Projeto Memórias da Literatura Infanto-Juvenil
Entrevistado por Thiago Majolo
Depoimento Luiz Galdino
Local São Paulo, 24/09/2008
Realização Museu da Pessoa
Depoimento MLIJ_HV026
Transcrito por Maria da Conceição Amaral da Silva
Revisado por Fernanda Regina
P – Luiz, eu queria perguntar primeiro o seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Luiz de Alvarenga Galdino. Uso só Luiz Galdino, sempre. Nascido em Caçapava, 17 de julho de 1940.
P – Conta um pouco o nome dos pais, o que eles faziam.
R – Meu pai chamava Berto Galdino, nasceu no Brasil por acaso. Meu avô era italiano, veio para o Brasil em 1890, já com dois filhos. Aqui ele descobriu que a América não era bem o paraíso que ele sonhava, talvez. E acho que num caso até raro ele voltou para a Itália. E para chegar lá e descobrir que realmente a America com todos os defeitos, com todos os problemas, estava melhor do que a Itália daquele momento, e voltou para cá. Então ele tinha vindo aqui com dois filhos, teve filhos aqui, voltou lá e teve um filho. Os dois últimos filhos - entre eles o meu pai, que é o mais novo, foi o último - nasceu aqui no Brasil quase por acaso. Os outros nasceram todos na Lombardia. São todos mantovanos. E a minha mãe é de uma família diferente. A minha mãe era portuguesa, a mãe, as avós, toda a parte materna era portuguesa da Ilha da Madeira, são ilhós. E o pai era um tipo estranho, provavelmente era um cafuzo. Era um tipo assim com mistura de negro, de índio, principalmente de índio. Era de Minas, da região lá de São João Del Rei, Vale do Rio das Mortes. E provavelmente eles vieram parar no Vale do Paraíba após a Inconfidência Mineira. Logo após o movimento da Inconfidência um grupo muito grande de pessoas ligadas à Inconfidência, naturalmente não seriam bem vistos. Então Migraram para o Vale do Paraíba, para a região de Aparecida, Pindamonhangaba e Guaratinguetá. E muitos integrantes dessa família Alvarenga que eram,...
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Entrevistado por Thiago Majolo
Depoimento Luiz Galdino
Local São Paulo, 24/09/2008
Realização Museu da Pessoa
Depoimento MLIJ_HV026
Transcrito por Maria da Conceição Amaral da Silva
Revisado por Fernanda Regina
P – Luiz, eu queria perguntar primeiro o seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Luiz de Alvarenga Galdino. Uso só Luiz Galdino, sempre. Nascido em Caçapava, 17 de julho de 1940.
P – Conta um pouco o nome dos pais, o que eles faziam.
R – Meu pai chamava Berto Galdino, nasceu no Brasil por acaso. Meu avô era italiano, veio para o Brasil em 1890, já com dois filhos. Aqui ele descobriu que a América não era bem o paraíso que ele sonhava, talvez. E acho que num caso até raro ele voltou para a Itália. E para chegar lá e descobrir que realmente a America com todos os defeitos, com todos os problemas, estava melhor do que a Itália daquele momento, e voltou para cá. Então ele tinha vindo aqui com dois filhos, teve filhos aqui, voltou lá e teve um filho. Os dois últimos filhos - entre eles o meu pai, que é o mais novo, foi o último - nasceu aqui no Brasil quase por acaso. Os outros nasceram todos na Lombardia. São todos mantovanos. E a minha mãe é de uma família diferente. A minha mãe era portuguesa, a mãe, as avós, toda a parte materna era portuguesa da Ilha da Madeira, são ilhós. E o pai era um tipo estranho, provavelmente era um cafuzo. Era um tipo assim com mistura de negro, de índio, principalmente de índio. Era de Minas, da região lá de São João Del Rei, Vale do Rio das Mortes. E provavelmente eles vieram parar no Vale do Paraíba após a Inconfidência Mineira. Logo após o movimento da Inconfidência um grupo muito grande de pessoas ligadas à Inconfidência, naturalmente não seriam bem vistos. Então Migraram para o Vale do Paraíba, para a região de Aparecida, Pindamonhangaba e Guaratinguetá. E muitos integrantes dessa família Alvarenga que eram, possivelmente, ligados ao Alvarenga Peixoto, que era da região. A gente tem uma família um tanto estranha. De um lado um italiano da Lombardia, quer dizer, quase austríaco, quase suíço. E do outro lado uma brasileira típica, morena. Então dos 12 irmãos que nós éramos, aliás, dos 14 que nós éramos, somos 11 ainda hoje, aqueles que puxavam o lado do pai saíam todos ruivos, com cara de lombardos, e os que puxavam a minha mãe, tem um que pra você ter uma idéia o apelido dele era Juruna; ele tem cara de índio. Então isso foi talvez a primeira coisa, esse encontro de coisas tão diferentes que, naturalmente, influenciou bastante na nossa primeira infância.
P – Conta, esses avós que o senhor disse, qual era o contato que o senhor tinha com eles quando era pequeno? Era próximo? Como que era?
R – Com o lado paterno muito pouco contato. Como meu pai era o último filho, o meu pai tinha a idade dos filhos dos irmãos mais velhos. E então era muita diferença. Hoje, por exemplo, os meus primos direto, primos de primeiro grau, são pessoas que têm pelo menos 20 anos a mais. Aliás, poucos sobreviveram, já que eu também estou chegando lá agora. Mas sobreviveram muito poucos. Então a convivência com os avós mesmo, no lado paterno, foi muito pequena. A convivência maior foi com o lado materno. A família sempre mais próxima. Outro aspecto é que meu avô veio trabalhar na cultura do café com os filhos que ele tinha, ele conseguiu depois de algum tempo comprar um sitiozinho, depois uma fazenda. E todos se fixaram na terra. Meu pai foi o único que deixou a zona rural, mas assim mesmo quando ele já tinha 24 anos, e foi para a cidade. Então todos os outros permaneceram, eram sitiantes, todos os irmãos mais velhos eram sitiantes, fazendeiros. Trabalhavam com a terra, com a cultura de café. Com o plantio de sobrevivência: pomares, coisas desse tipo. Então a própria ligação se tornava um pouco mais distanciada em função da própria distância entre o centro urbano - onde a gente foi viver muito cedo - e o lugar onde eles continuaram vivendo a maior parte do tempo.
P – Centro urbano de Caçapava?
R – Caçapava, sempre Caçapava. Até hoje os parentes todos ligados ao meu pai, os que estão na cidade são pouquíssimos. São assim os netos já dos irmãos dele. Mas a grande maioria permanece na zona rural. Quase todas as cachaças produzidas em Caçapava são de parentes. São produtores tradicionais de cachaça na região. São parentes, são ligados à zona rural.
P – E como que era Caçapava na sua infância? Como era a cidade? Conta um pouquinho.
R – O centro da cidade não mudou muito. Se você chega hoje ao centro da cidade ele não é muito diferente do que era naquela época. Eu vivi lá até os 17 anos. E a cidade cresceu horizontalmente. Para você ter uma ideia, a fazenda onde meu pai nasceu, que é a Fazenda do Iriguaçu, ficava quase na divisa de Monteiro Lobato, naquela época se chamava Buquira, era um bairro de Taubaté. Ficava a 18 quilômetros do centro urbano, e hoje é uma vila. Quer dizer, foi anexado pela cidade, pela zona urbana. A gente morava a apenas cinco quilômetros do centro da cidade. Mas era zona rural, totalmente. O Taquaral, a Roseira. Pelo menos, uns 20 anos atrás já foi tudo loteado. E hoje o que sobra é muito pouco. A zona rural hoje, de Caçapava, está mais para o lado direito da Dutra, mais em direção a Serra do Mar. E a área que era maior, que era mais importante, e que foi a área que eu vivi mais, convivi mais - que é a área da Mantiqueira, aquela região de Monteiro Lobato, a estradinha velha que ia para Campos, São Francisco de Campos, aquela região toda - hoje praticamente sobrou o Alto da Mantiqueira. Perdeu as suas características da zona rural.
P – E como, o senhor consegue descrever para mim a sua primeira casa? Quando eu digo a casa não só, também o físico, mas, o geográfico, aquele ambiente esse tanto de irmãos que tinha? (risos).
R – A minha experiência toda é assim muito próxima do rural. Na verdade, cheguei a viver um tempo muito pequeno na fazenda, e quando fui para a cidade, na época de ir para a escola, essa coisa, eu fui morar numa casa que era grande. Era uma casa que era uma chácara, uma chácara que tinha uns 12 mil metros quadrados. Ficava pra baixo da linha. Eram aquelas cidades divididas pela antiga Estrada de Ferro Central do Brasil, ali no Vale do Paraíba. E para baixo da linha ficava uma região de grandes chácaras. Tinha casas normais também, mas havia chácaras mais antigas, áreas maiores. E a gente cresceu praticamente numa casa dessas. Uma casa que era uma casa grande para caber 12 pessoas mais os adultos. E uma casa antiga. Uma casa com paredões de taipa. Era uma casa que é muito forte na lembrança da gente, que era uma casa que tinha tudo que você imaginar em termos de frutas, por exemplo. O fato do meu pai ter sido nascido na roça, criado na roça, todos os dias que ele chegava em casa ele trazia uma muda de alguma coisa. Então lá tinha jaca, tinha fruta-do-conde. Tinha bananas de cinco, seis espécies. Tinha goiabeiras. Era como uma verdadeira mata de goiabeiras. Bambu, verdadeiras matas de bambu. E tudo o que você imaginar. Laranjas de todos os tipos. E as coisas assim mais exóticas, como jambo, como fruta-do-conde, jaca, tinha tudo. Abacate e pêssego, por exemplo, apodrecia no chão, era comida para os porcos, era comida para os animais todos. Mandioca, se plantava muita mandioca lá. O hábito que todos os europeus aderiram no Brasil, a mandioca quase que substituiu a farinha de trigo aqui. Então eu acho que essa é a grande vivência. Essa coisa de você passar a vida empoleirado nas árvores, mexendo com bicho. Nunca menos de quatro cachorros dentro de casa. E todo mundo ligado a essa tradição que veio do interior. Ao lado da minha casa morava um senhor, o senhor José Siqueira, que ele era amigo, ele era o avô do meu amigo com quem eu fui o primeiro dia na escola. Ele havia sido jardineiro da prefeitura e havia sido demitido por bater boca com o prefeito da cidade. Porque o prefeito havia tentado se imiscuir na profissão dele, nos canteiros dele, nos conhecimentos dele. Então essa pessoa era uma pessoa muito atraente para as crianças da época, porque era alguém que falava tudo que os pais não permitiam a gente falar. Ele falava tudo, não só falava como permitia que a gente falasse. Achava isso natural. E falava, e falava dos políticos, e falava dos padres, tudo que a gente possa imaginar. E também estava ligado à essa coisa da vida rural. Era alguém que quando precisava fazer um enxerto, por exemplo, era ele que a gente ia chamar, trazia, fazia os enxertos. Então as laranjas, ao invés de esperar 10 anos, começavam a produzir com três. Era um milagre. E, além disso, ele era o fogueteiro especial das festas. Aliás, os padres o procuravam a contragosto porque sabiam da posição dele em relação à igreja, aos padres de um modo geral. Mas ele era o único fogueteiro da cidade e era excelente nesse aspecto. Então isso fazia dele uma pessoa muito querida por todos os festeiros e até pelos religiosos. Para a Festa de São João, que era o patrono da cidade, para as Festas do Divino, era sempre uma presença marcante.
P – E como, o senhor era mais para o meio, mais para os mais novos, mais para os mais velhos?
R – Eu sou o mais velho. Tenho irmãos que nasceram até 20 anos depois de mim. São dois gêmeos, um é engenheiro civil o outro fez Letras, Português e Francês. Eles têm exatamente 20 anos menos do que eu.
P – E como que era com esses mais próximos, como que era o relacionamento?
R – O relacionamento era meio complicado porque eu tinha um irmão que vinha logo depois de mim e que era exatamente o oposto. É como eu disse: lá um grupo puxava o pai, outro puxava a mãe. Os que puxavam o pai eram ruivos, os que puxavam a mãe às vezes saíam até com cara de índio. Mas havia uma diferença também de gênio. Os que puxavam o pai eram mais endiabrados, no dizer da minha mãe. E os que puxavam a minha mãe, pelo contrário, eram mais pacatos. Então eu tinha um problema sério porque eu era o mais velho, o segundo era um irmão que, justamente, puxava o lado da mãe, esse tipo mais pacato. E aí vinham três irmãs, e talvez se fosse uma, só não haveria grande problema, mas como eram três, elas acabavam formando ali um trio e levavam a vida separada. Até porque também naquela época, quando eu era criança em 1950, por aí, em torno de 1950, e no interior principalmente, a vida dos meninos era muito separada da vida das meninas. Naquele tempo ainda havia colégios onde os garotos entravam por um lado, as meninas por outro e não se misturavam lá dentro. Isso era muito comum. Aliás, existem alguns, eu vi alguns colégios no interior onde tem escrito na frente: "Eles, elas". Quer dizer, e é uma divisão mesmo, muito forte no interior. Então isso tudo levava para essa condição. Na verdade, eu comecei a conviver mais com os irmãos que eram menores, o quinto, sexto. Irmãos que já nasceram 10 anos depois. Quando eu tinha 18 eles tinham 10, tinham 9, 8. E a gente ainda conseguiu conviver um tanto, mas também não muito porque eu deixei a minha casa, a minha cidade relativamente cedo.
P – Conta um pouquinho quais eram as brincadeiras, ou com os seus irmãos ou com outras pessoas, ou com outros amigos.
R – Bom, era muito variado. Eu acho que interior é muito rico nisso. Primeiro você tem na fase de infância maior mesmo, as brincadeiras de rua. As brincadeiras de pega-pega, de esconde-esconde, mula sem cabeça, cela, coisas assim, brincadeira de rua mesmo. Depois época de colégio acho que voltado aí mais para os esportes, futebol. Eu estive muito próximo de ser um profissional de futebol. E, aliás, eu acho que dos meus 12, 14 anos tinha domingos que eu jogava de manhã num time e a tarde no outro, de tanto que eu gostava do futebol. E isso era uma coisa terrível também para a minha mãe. Ela não conseguia entender como é que alguém pode gostar tanto dessa coisa. E, na verdade, isso não começava com a gente, não. Esse fato da minha mãe não gostar de futebol já era uma tradição. A minha avó materna, a mãe dela, ela tinha exatamente o mesmo problema com o marido. O marido, esse sujeito que descende desse pessoal que veio lá de Minas, ele era assim um aficionado do futebol. A única foto que eu tenho dele, pelo menos, é uma foto com uniforme de futebol, aqueles calções longos da época, manga comprida, um boné. E a minha avó não suportava essa coisa dele sair de casa todo domingo e ir jogar futebol. E um dia ela chegou e disse: "Olha, você vai escolher, ou eu ou o futebol." e, segundo o meu tio, irmão da minha mãe, ele teve a falta de lisura e aceitou o cabresto da mulher e desistiu do futebol. Quer dizer, segundo a opinião desse tio meu, que era filho dela também, ele deveria ter optado pelo futebol. Mas diz que nunca mais foi a mesma pessoa. Ele já era viúvo quando casou com a minha avó, e disse que então no primeiro domingo que ele não foi jogar futebol, ele foi ao cemitério. Ele desapareceu de casa. A minha avó pensava que ele estava jogando futebol, não, acharam ele no cemitério chorando no túmulo da falecida.
P – Que ótima história. E esse amigo que o senhor disse que tinha que ia para a escola, que era filho do seu vizinho. Qual era o nome dele?
R – João Manoel.
P – João Manoel?
R – É.
P – Conta um pouquinho como o senhor conhece?
R – O João Manoel era, eu costumo dizer, o chato. Esse tipo que quando você diz: "Olha, eu comprei isso." ele falou: "Ah, eu já tenho." Você fala: "Eu comprei aquilo." ele fala: "Ah, mas o meu é melhor". Quer dizer, o dele é sempre melhor, ou ele sempre já tinha. Aquele sujeito que tem uma necessidade de dizer que as coisas dele são sempre melhores. Ele inclusive levava uma grande vantagem em função do avô dele que, realmente, era o fogueteiro da cidade. Fabricava bomba. Dava bomba na mão dele. Coisa que as outras mães, às vezes, não deixavam nem chegar perto. Mas ele tinha uma grande virtude: era péssimo jogador de futebol. Nisso eu levava vantagem, e nadando no rio. Aliás, o rio era uma presença. Caçapava fica à margem do Paraíba. E o Paraíba, numa época em que o Paraíba era um rio limpo, que tinha muito peixe, que tinha dourado. Foi antes do fechamento das represas da CESP. E, principalmente, antes dessas indústrias de papel em Jacareí começarem a poluir completamente o rio. Então, na minha infância, na minha juventude a gente aprendia a nadar era no rio Paraíba mesmo. Era assim uma forma de crescer, enfrentar os desafios de saltar da ponte, quatro, cinco metros. Atravessar o rio de uma margem para outra, que era 400, 500 metros. Então ele era ruim em tudo, mas ele tinha uma virtude que eu descobri muito cedo e gostava, ele era, talvez nas primeiras fases dos sete, oito, nove anos, o único amigo que eu conhecia que gostava de ler também. Então o companheiro de leitura, o grande companheiro das primeiras leituras foi ele. A gente começou com os primeiros livros. A gente inclusive fazia algumas artimanhas mesmo. A gente organizava listas de maneira que as minhas não coincidissem com a dele, então o pai dele comprava alguns livros, meu pai comprava livros diferentes e a gente sempre tinha um estoque maior um pouco. E isso era muito importante naquela época. Que esse é um aspecto também interessante. Eu desde que aprendi a ler, acho que eu nunca parei nem de ler, nem de escrever. Para mim foi a grande descoberta, eu acho. Pelo menos a primeira grande realização da minha vida. Eu me lembro, inclusive, de fases de antes dos sete anos, antes de ir para a escola mesmo, e ser alfabetizado. Aliás, eu fui para a escola mais cedo. Fui para um tipo de jardim da infância, Jardim da Infância Dona Maroca, se chamava. Eu lembro que mesmo nessa época, quando eu tinha ainda uns cinco anos, muitas vezes eu me surpreendia pegando alguma folha de jornal, às vezes até jornal sujo. Eles tinham, naquela época, eu acho que ainda tem no interior em muitos lugares, o péssimo hábito, por exemplo, de embrulhar a carne, embrulhar o peixe com jornal. Isso era muito comum naquela época. Então eu lembro que às vezes minha mãe chegava do mercado no sábado e ficava aquele jornal às vezes manchado de sangue. Mas eu tinha certeza que por trás daquele sangue, daquela sujeira, daquelas letrinhas, daquela coisa toda, havia um significado. Havia uma coisa importante que eu só não conseguia entender porque eu era um completo analfabeto. Então, quer dizer, para mim o dia de ir para a escola, o primeiro dia que eu fui para a escola, eu lembro. O primeiro dia que eu fui para essa escola, Jardim da Infância Dona Maroca, isso foi assim uma realização. Até hoje eu não entendo porque tinha um monte de garoto na porta que ficava chorando, não queria entrar. Para mim foi a grande realização. E, naturalmente, o João Manoel estava lá. Carlos Spinelli, um amigo meu que morreu agora, ano passado, ainda estava lá. Tem foto do primeiro dia da escola. E foi uma grande satisfação começar a decifrar as primeiras letras. Aquela época havia ainda os cadernos de caligrafia. Então você começar a decifrar as primeiras letras, desenhar as letras, praticamente, foi uma grande coisa. Então, quer dizer, ao lado das brincadeiras, de fato, eu acho que a leitura sempre fez parte também desse mundo do lazer, com certeza.
P – Fiquei tentando imaginar como que era o João Manoel fisicamente, naquela época? E qual eram as primeiras leituras que vocês compartilharam.
R – O João Manoel era um sujeito completamente desengonçado. Aliás, mesmo depois que a gente estava no ginásio, as pessoas reparavam. E a impressão que dava é que ele tinha um tórax muito alto e tinha as pernas mais curtas. Era um pouco, faltava um esquadro ali na coisa. Ele tinha uma perna assim mais curta. Você olhando para as pernas dele dava a impressão de uma pessoa menor. Mas depois o que faltava parece que ele compunha com o tórax. Ele tinha um tórax grande, mais alto. Mas era um tipo estranho. Era um tipo amorenado, como os caboclos. E falava também um modo meio fanho. Ele era meio estranho mesmo. Mas essa coisa de compartilhar das leituras é que unia muito a gente. A gente só se separou mesmo quando um foi para um lado, outro para o outro, em cidades diferentes. Mas a gente sempre foi muito ligado. O que a gente lia, basicamente, as primeiras coisas que a gente lia naquela época, principalmente, era Monteiro Lobato. Monteiro Lobato era uma influência muito próxima. Porque Monteiro Lobato, diz a genealogia, que ele nasceu em Taubaté. Na verdade ele nasceu lá no antigo Buquira, que hoje chama Monteiro Lobato, e que era um bairro de Taubaté. E o Buquira era um lugar que era muito próximo. Inclusive da fazenda que eu visitei, que eu frequentei muito, onde nasceu o meu pai. Essa fazenda ficava praticamente no que ele chamava de Estrada do Buquira, que era uma estrada que subia a Mantiqueira e ia justamente onde é Monteiro Lobato hoje. Eu inclusive imaginava que um dia eu ia subir lá a estrada do Buquira. Dava volta na Pedra Branca e ia visitar o Monteiro Lobato lá na Fazenda do Tanque, que era uma fazenda que havia pertencido ao Visconde de Tremembé, o avô do Monteiro Lobato. O que eu não sabia é que, provavelmente, quando eu pensava isso, por volta lá dos 10 anos, o Monteiro Lobato já havia embarcado. Já havia passado dessa para melhor. Mas então ele era uma presença muito próxima da gente, e não só por isso, mas também por tudo que ele escrevia. Para mim o fato dele ser originário ali da Mantiqueira também. Quer dizer, eu identificava muito das coisas que ele escrevia. Eu sabia onde é que tinha um ipê, eu sabia onde tinha urupês, eu sabia onde que tinha quase que cada coisa. O mata-pau, sabia o que era. Quer dizer, eu sabia muitas coisas que as pessoas talvez não atinassem no que liam dele, mesmo com aquela idade. Então realmente era uma presença forte. A gente conviveu, naturalmente, a gente trocou muita coisa. No caso do João Manoel houve muitas trocas em relação ao Monteiro Lobato. E os livros que as crianças liam daquela época, que não são muito diferentes em relação pelo menos aos livros infantis, infanto-juvenis tradicionais; aqueles que são traduzidos, que vieram da França, de outros países. Até aí não havia muita diferença. A grande, a única diferença em relação a hoje é que hoje existe um mercado enorme que produz livros pensando realmente na criança e no jovem.
P – E do Monteiro Lobato, desses livros clássicos, aí vocês passam para quais livros?
R – Eu me lembro que uma vez eu conversando com o Marcos Rey e era praticamente os mesmos livros que a gente lia. O Marcos Rey é um paulistano. E a gente lá do interior lia praticamente as mesmas coisas, que eram livros às vezes considerados até para adultos, mas que era perfeitamente legíveis por jovens, por adolescentes, pré-adolescentes, pelo fato de serem livros que privilegiavam a ação, a aventura, o mistério. Era basicamente isso. Livros como, por exemplo, Os Três Mosqueteiros, O Conde de Monte Cristo, Robson Crusoé. Livros desse tipo. Depois, Caçapava apesar de ser uma cidade muito pequena naquela época - eram 35 mil habitantes - e, na verdade a zona urbana tinha apenas cinco ou pouco mais do que isso, tinha uma biblioteca até razoável. Doação de alguém que depois acho que acabou até sendo o nome da biblioteca. Mas eles tinham uma Coleção Amarela, a famosa Coleção Amarela, que era uma coleção só de histórias de mistério. Que era publicada pela Globo lá de Porto Alegre. Então eram só histórias da Agatha Christie, do Ellery Queen; O Ataúde Grego. Era muito lido na época. É que há autores que eram muito lidos na época e que hoje praticamente estão fora. Mas então eu lembro que na minha época, na minha adolescência ou pré-adolescência, todo mundo leu aquela coleção. Das pessoas que liam todo mundo havia lido aquelas coleções. E eu lia basicamente histórias de mistério e histórias de viagem. Eu sonhava que um dia eu ia conhecer o mundo. Ia sair daquele, daquela cidade fechada entre a Mantiqueira e a Serra do Mar, e ia conhecer o mundo de verdade.
P – Esse era um sonho de infância?
R – Era um sonho já de infância. Eu lia muita história de viagens. Empolgava-me muito histórias que se passavam não no Brasil, mas que se passavam na África, na Austrália. No tempo de colégio eu lembro que eu lia os diários de viagem do Colombo. E, na verdade, aquilo não era uma leitura. Quer dizer, eu embarcava, realmente, naquelas viagens e era como se eu também ajudasse, participasse do descobrimento da América, visse aquelas paisagens pela primeira vez. Aqueles povos todos. Isso era muito importante. Aliás, eu acho que era isso que eu gostava do Monteiro Lobato também. Porque o Monteiro Lobato não descrevia aquela cidade que a gente conhece, que todo mundo conhece. Ele descrevia aquelas coisas, aquelas brotas, aqueles cafundós da Mantiqueira. Eram coisas assim muito específicas, coisas que exigiam certa iniciação naquilo. Sempre gostei muito desse aspecto. Eu lia as histórias do Doutor Livingston, que passou a vida na África. Aquilo para mim era um negócio impressionante. Todo esse pessoal que viajou o mundo, que descobriu o Pólo Norte, descobriu o Pólo Sul, isso para mim era uma coisa incrível. O próprio Monteiro Lobato, A História do Mundo para Criança eu devo ter lido, entre a infância e a adolescência, umas quatros vezes, pelo menos. Coisa que é difícil quando a gente é criança você reler com a intenção realmente de apreender alguma coisa a mais. Então eu acho que era basicamente isso.
P – Luis, deixando um pouquinho de lado a leitura, depois a gente volta para ela, só para contar um pouco a história do futebol. Como é que entra na sua vida? Conta um pouco disso para a gente.
R – Bom, futebol no Brasil é uma coisa tão natural, quer dizer, não tem grande mistério. E é principalmente as companhias. Pra todo garoto de rua, uma das principais atividades e uma das atividades mais sadias, é talvez o futebol. Naquela época, inclusive, a questão da violência era uma questão não tão grave quanto hoje. Havia um contingente de meninos pobres que viviam nas vilas mais afastadas lá de Caçapava, mas era muito raro caso de roubo. Mas sem muita consequência. Naquela época eu acho que era tudo mais fácil um pouco. Eu lembro que na minha casa, como eu disse, se perdiam as frutas, como abacate, pêssego, por exemplo. Então minha mãe, por exemplo, nunca se preocupou em vender coisas. As pessoas entravam, pegavam, levavam. Ela mandava caixotes, fazia doces, fazia licores, que eram maravilhas. E, naturalmente, justamente esses meninos eram - em relação aos de hoje - acho que muito comportados até. A distância entre os garotos daquela época e as mães deles era maior. Muitas vezes eles não obedeciam as mães. Isso surpreenderia hoje, mas esse era o grande problema deles. Eles não faziam praticavam nada mais grave do que isso. Então eles estavam o tempo todo ou na beira do Paraíba nadando ou no fim do dia estavam na beira do Paraíba pescando. Quando ia chegando o fim do dia, pescando os lambarizinhos para levar para casa jantar. Ou eles estavam no campo de futebol. Então, como eu morava na parte mais rural da cidade, que era para baixo da linha da estrada de ferro, a chácara que eu morava que era bem grande, ela tinha de um lado a usina, que era a Vigor. Então ali tinha um campinho. Do outro lado da Vigor tinha outro campo. E lá para trás tinha um campo oficial onde os clubes jogavam. Naquela época Caçapavense disputava a Terceira Divisão. Então era, inclusive, uma coisa mais, o futebol era de certa forma prestigiado. E afora o time principal, havia os times então que jogavam naqueles campos de várzea. Havia os japoneses, a colônia japonesa que jogava também. Um contingente de jovens assim de toda cor, de todo jeito. Sempre tinha todo ano tinha uma espécie de olheiro lá. Um sujeito que havia trabalhado aqui no São Paulo, acho que chamava Satino, era o treinador do time principal lá da associação. E ele indicava para as peneiras dos grandes clubes aqui de São Paulo. Então havia, inclusive, pessoas que saíam de lá com futuro, pelo menos uma expectativa boa em relação ao futebol. Mas na tradição da família da minha mãe e minha avó, se via o futebol como algo tenebroso. Segundo minha mãe, era em função das companhias, dos garotos que a maior parte andava dia e noite na rua mesmo. Às vezes não comiam, não bebiam, roubavam uma fruta aqui, outra lá, coisas desse tipo. E naturalmente pra gente, que ela considerava bons filhos, achava que conviver com aquela molecada podia não levar a um bom termo. E é uma bobagem. Porque às vezes eu fico pensando naquela época, e talvez os melhores amigos que eu tive, com certeza, estavam entre esses garotos que passavam a grande parte do dia na rua.
P – E qual que era a sua posição?
R – Eu era um atacante. Eu era um goleador nato.
P – Tem algum jogo memorável para contar para a gente?
R – Havia sempre um jogo. Aliás, eu escrevi uma historinha uma vez sobre isso. Havia um jogo memorável, que era essa rixa que havia entre o Em Cima da Linha e o Embaixo da Linha. Porque os bons colégios estavam todos do lado de cima. A igreja matriz estava do lado de cima. Então isso dava foros de grande cidade: a parte de cima da cidade. Enquanto a parte de baixo era um negócio meio duvidoso. Com esses caboclinhos, esses mulatinhos, todo mundo andando na rua. Eles achavam, talvez, que o fato de não serem brancos, polidos, limpinhos, bem arrumados, talvez depusesse contra. E isso até hoje não mudou grande coisa. Mas, na verdade, eu sinto que alguns dos verdadeiros amigos, alguns que realmente eu me lembro até hoje, estão entre esses garotos.
P – Então o senhor freqüenta uma escola, a mesma escola dos sete até os 17, como que é? Muda de escola?
R – A gente foi para a escola de cima, o famoso Grupo Escolar Rui Barbosa. Rui Barbosa era um personagem mítico. Era um sujeito grande, grandalhão, e era daqueles que quando você fazia alguma coisa errada ele te segurava pelo braço, te chacoalhava mesmo. E ele nem era assim tão violento. Mas ele tinha um tamanho tão grande que ele amedrontava, botava medo na gente. E a escola começa a mudar a gente. Você começa a se integrar, você começa a deixar de conviver só com os garotos da rua, da vila, do bairro, do campinho. E é claro que o grupo cresce. Isso eu acho que foi muito importante. Você conhece pessoas que vêm de outros lados, que tratam de outras coisas, curtem outras coisas. É claro que isso enriquece a vida da gente. Não havia uma escola naquela época, naquela época era bem estanque. Havia o curso primário, havia o ginásio, depois então você ia ou para o científico ou para o clássico. Depois passou a ser primeiro grau, segundo grau. Mas eram diferentes, você fazia o primário numa escola e fazia o ginásio e o segundo grau em outra escola.
P – Você disse que escrevia desde sempre. Você escrevia o que? Poesia, o que era?
R – Nunca escrevi poesia. Talvez foi a influência do Monteiro Lobato foi tão forte. O fato de eu não consigo encontrar outra explicação. Porque eu me lembro que na época de colégio geralmente quem escrevia, escrevia poesia. Ou começava pela poesia. E as pessoas achavam que bastava rimar alguma coisa que estavam fazendo poesia. Mas nunca me passou pela cabeça. Na verdade mesmo depois de adulto eu sempre li muito mais prosa do que poesia. Poesia eu lia sempre muito pouco, muito menos. Até hoje eu leio pouca poesia, e meus gostos diferem da maioria dos poetas, inclusive. Mas eu acho que talvez foi influência do Monteiro Lobato. O fato de ter começado a ler pelo Monteiro Lobato sempre prosa, prosa, prosa. E ter sempre apreciado muito, sempre gostado muito. Monteiro Lobato foi muito especial. Eu continuei lendo Monteiro Lobato até numa fase em que meus amigos já não liam mais, porque achavam que era coisa de criança. E eu achava naquela época, e continuo achando, que o Monteiro Lobato você pode ler quando é criança, pode ler quando é adolescente e até quando é adulto. Você descobre sempre coisas muito importantes. Inclusive as personagens. As personagens assim riquíssimas, de uma variedade incrível. Aqueles personagens eram uma delícia.
P – O que o senhor escrevia era o que? Pequenas historinhas que inventava?
R – Eu acho que as primeiras coisas mais palpáveis eu escrevia no jornalzinho do colégio, no começo. Eram artiguetes, pequenos artigos muito entusiasmados sobre feriados nacionais, sobre coisas assim. Até que de repente eu fiquei meio desgostoso, meio desiludido com os feriados nacionais e passei a ler. Talvez foi a influência de outros escritores que começaram a entrar, e você descobre que há outras temáticas, uma temática interessante. Pessoas que pensam nos outros, pensam no social, pensa na vida em si, no como é duro viver todo dia. Na verdade não são muitos temas, mas temas que a gente pode explorar a vida toda que sempre vai ter o que dizer.
P – Ô, Luiz, depois de Monteiro Lobato como leitura que começa ainda na infância, e que é o primeiro autor que impacta, o senhor lembra de algum autor mais adolescência, mais essa fase já quase adulto? Aquele autor que marca profundamente a sua leitura?
R – Eu me lembro eu lia muito os contistas americanos. Os mais antigos como Herman Melville. E lia, naturalmente, os mais recentes, como Hemingway. Tinha uma paixão muito grande pelo Hemingway não só, talvez, pelo escrito, mas pelo próprio personagem que ele era. Era uma atração muito forte. E eu me lembro assim de um fato muito interessante. É que o Melville - a famosa história da baleia branca, Moby Dick – me lembro que eu havia lido aquilo acho que com 16 anos, 17 anos. E aquilo para mim havia sido uma história de aventura. A história de um doido que queria matar uma baleia branca. E aí mais ou menos beirando os 18 anos eu li um dia uma crítica, um artigo, eu não lembro exatamente, acho que foi um ensaio publicado do Alberto Camus, e o Camu falava maravilhas do Moby Dick. Eu falei: "Pô, não é possível, eu acho que é outro livro." Ele falava aquilo, do homem lutando contra as suas próprias forças irracionais. As forças irracionais estavam dentro dele mesmo. Quer dizer, a baleia branca não era uma baleia, era um símbolo. Ela era o que ele tinha de irracional dentro dele, que ele exorcizava ou tentava exorcizar de alguma maneira na imagem da baleia. Mas eu demorei para entender que era o mesmo livro. Eu falei: "Não é possível, puxa vida". E aí eu descobri: "Eu acho que eu estou fazendo uma subleitura das coisas". Porque eu nunca pensei, nunca imaginei isso. E aí fui ler de novo o Moby Dick e, realmente, era exatamente aquilo que ele dizia. Esse foi assim um grande ensinamento. Porque essa coisa de você entender que um livro te permite várias leituras, não só o mesmo livro em vista de um leitor, como ele em vista de várias leituras. E as leituras são muitas possíveis. E aí você começa a pensar livro, literatura de uma outra maneira.
P – Conta um pouquinho a trajetória do senhor. Sai de casa aos 17 anos, é isso?
R – É.
P – Como que foi a história. Conta o que acontece, para onde o senhor vai.
R – Eu era um garoto meio rebelde. Saí de casa com 17 anos. Acho que dá para entender em função desta vivência que eu estava te falando. Eu era uma pessoa muito presa porque minha mãe achava que eu era um garoto diferente daqueles que andavam na rua todo dia. E isso ela dizia que era para o meu bem, para eu não me tornar alguém como eles. Eu perguntava: "O que é que eles têm de errado? Eles andam na rua, ué. As mães deles deixam eles andarem. Eles jogam futebol, caçam passarinho" naquela época não havia tanta campanha ecológica. As pessoas caçavam passarinho, iam pescar. No interior era assim. E eu não conseguia ver grandes diferenças entre mim, os meus amigos do colégio e esses garotos. Realmente não conseguia e essa era a minha grande bronca. Mas realmente a convivência se tornou bastante difícil. Além disso, havia um outro aspecto: nós éramos uma família que tinha 12 filhos numa cidade que tinha cinco mil habitantes na zona urbana. Isso significava grandes encrencas no futuro, grandes problemas. Eu lembro que a minha infância toda, a minha adolescência, não havia o que fazer na cidade. Meia dúzia de amigos trabalhava nos bancos que havia lá e pronto. Estava esgotado. Os outros iam ser caixeiros nas lojas, nos armazéns, coisas desse tipo. Era muito difícil você imaginar como é que você coloca 12 filhos numa cidade com pouco mais de cinco mil pessoas na zona urbana. Então, quer dizer, juntando a insatisfação da minha vida em função do que minha mãe considerava o bem viver, e a sombra desse futuro, eu comecei a pensar numa maneira de sair da cidade. Meu tio, o irmão da minha mãe, aquele famoso que achava que o pai devia ter escolhido a chuteira ao invés da mãe, ele saiu da cidade com 14 anos, e veio para São Paulo. Fugiu de casa. Veio fugido. Foi morar com uma madrinha, Dona Juju, que morava na rua da estrada de ferro, na Souza Lima, aqui na Barra Funda. E nunca mais voltou lá para a cidade. Então eu pensava no exemplo dele. Eu tinha uma madrinha também que morava em São Paulo, mas a minha madrinha, provavelmente, se eu chegasse na casa dela, ela me traria de volta no mesmo dia. Então ia ser duas vergonhas.
Então descobri uma grande chance. No tempo de colégio muitos amigos meus deixaram o colégio pela metade e foram para as escolas de sargento, e alguns foram para a academia. Os que se formaram e foram para academias depois. Mas às vezes as famílias enfrentavam problemas tão sérios, ou eles tinham projetos: casar mais cedo, essa coisa. E uma saída era essa, era entrar na Escola de Especialistas da Aeronáutica, em Guaratinguetá, ou na Escola de Sargentos, que era Três Corações, em Minas, não sei onde. E, ou entrar na Marinha Mercante. E muita gente fazia isso. E então eu botei na cabeça: "Pô, essa é uma saída boa." Vai para lá, vai para uma escola dessas, tem casa, comida. Durante dois anos de curso você tem casa, comida, roupa lavada, ganha uns trocados.
Tinha terminado o ginásio naquela época e eu estava me preparando para fazer isso quando alguns amigos vieram, companheiros de colégio, e me disseram que iam tentar a academia, a Academia da Força Aérea. E se eu estava pensando em sair e era melhor ir para a Academia do que para uma Escola de Sargento. E nós fomos, prestamos o exame em quatro e os quatro foram aprovados para a Academia da Força Aérea. Fizemos os três primeiros anos na Preparatória de Cadetes, que era o equivalente ao segundo grau. E no início era a fase de formação mesmo de piloto - que eu deixei - dois outros foram desligados por problema de saúde e um chegou até o final. Mas na verdade, para mim foi suficiente o fato de ter ido para lá, terminado o colegial. Porque não me passava muito bem pela cabeça também essa história de ser militar. Caçapava era uma cidade que tinha o Sexto Regimento de Infantaria. A gente estava acostumado com a vida de uma cidade onde tem um quartel. E aquele monte de soldado o dia inteiro andando para tudo que é lado que você olha. E gente estranha, porque é gente que veio de tudo que é lado. A maioria das pessoas você não conhece. Você tem meia dúzia de colegas seus que estão servindo lá e o resto é desconhecido. Então para mim, na verdade, a escola militar era uma maneira, era aquilo que eu havia imaginado como uma forma de sair de casa, com casa, roupa lavada e um pequeno salário para gastar nos finais de semana. Porque nessas escolas para oficiais você só sai mesmo sábado e domingo. Mas eu saí então na primeira oportunidade, depois desses anos em que eu fiz o colegial lá. Quer dizer, poderia ter feito em outro lugar, acabei fazendo lá e isso me deu uma abertura grande. E o Exército tem várias escolas, tem Colégio Naval em Porto Alegre, Campinas, Rio e a Academia lá, depois, em Agulhas Negras. Mas a Aeronáutica, não. A Aeronáutica é uma escola só em todo o país. Na verdade duas. É a Escola Preparatória, que é em Minas, em Barbacena e aí a Academia já e fim. Então, na mesma escola você tinha gente desde o Rio Grande do Sul até a Amazônia, Nordeste. Então isso foi muito importante, conhecer gente que vinha de todos os lugares. Pessoal que vinha de famílias tradicionais de militares. Gente que os avós, bisavôs tinham participado da Guerra do Paraguai, coisas desse tipo. Tem famílias assim que são militares há 100 anos. E tinha gente que vinha de carona nos aviões do Correio Aéreo, porque o sujeito não tinha nem, dinheiro para essa coisa. Então para muita gente a carreira militar é, inclusive, uma salvação. Mas para mim aquilo era tudo o que eu não queria.
P – Isso era meados da década de 60?
R – Eu fui para lá em 58. Me senti livre, usei o Correio Aéreo para passar férias na Amazônia. Foi incrível. Eu usei nesses termos. Conheci, vivi lá dois anos em Barbacena, conheci todas as cidades históricas. Então aquilo foi uma abertura incrível. Conhecer essas coisas, ir para a Amazônia. Fiquei lá, passei umas férias inteiras, um janeiro inteiro conhecendo outra realidade. Foi extremamente importante nesse aspecto, de ter uma visão, inclusive, que a gente muitas vezes não espera, do que é o Brasil.
P – E saindo de lá aí o senhor vai para?
R – Aí eu vim para São Paulo prestar vestibular. E começar tudo de novo. Prestei exame para Direito, fui aprovado aqui. Eu acho que em seis meses eu descobri que não tinha nada que ver. Aconteceu a mesma coisa que com a carreira militar. Eu fiquei preocupado porque eu já tinha deixado a carreira militar, que todo mundo dizia que era o suprassumo. E agora abandonava outra coisa também e cheguei a ficar até meio assim. Mas aí eu tinha um amigo alemão que trabalhava no Estadão, ele falou: "Vai lá, faz um teste. Conversa com o pessoal. Você gosta de escrever". E aí eu fui lá ao Estadão e fui aprovado. Comecei a trabalhar lá e falei: "Poxa, era isso que eu queria". Queria escrever mesmo. Mas são as experiências que você acumula. Aí logo, logo eu já estava meio desconsolado de novo porque eu queria escrever, mas não era bem aquilo que eu estava escrevendo. Eu queria escrever era ficção, coisa que eu não tivesse que dar satisfação a ninguém. No início eu havia pensado até: "Puxa vida, agora eu não preciso nem fazer mais faculdade, coisa nenhuma porque é isso aqui mesmo." Quando saiu, inclusive, a Lei do Nível Universitário, eu já tinha dois anos, já estava lá. Mas não era legal trabalhar no Estadão. Eu acho que é uma grande empresa, naquela época era um negócio muito mais rico. Naquela época o Estadão tinha um quadro de pessoal assim que era o que havia de melhor na vida cultural de São Paulo e até do Brasil. O famoso Suplemento Literário, que depois virou Suplemento Cultural, era um negócio seríssimo. Mas eu acho que é normal do ser humano, quer dizer, eu estava muito mais próximo do que eu havia imaginado que eu podia chegar, mas não era bem ainda o que eu queria. Daí eu passei para Publicidade. Naquela época, alguém que trabalhava em criação de publicidade, redator, por exemplo, ganhava dois, às vezes, três vezes o salário que um jornalista do Estadão, por exemplo, ganhava. Eram os anos bons mesmo da Publicidade; o ano de ouro da Publicidade foi 1970. Depois as coisas foram descambando um pouco. Começaram a chegar as crises de 80, do petróleo, disso e daquilo. Mas ela era uma maravilha. Eu não estava escrevendo também exatamente o que eu queria escrever, mas eu estava ganhando mais pelo menos. Estava começando a ganhar mais. Aí acabei deixando São Paulo. Era a época brava da política. A minha ex-mulher era uma pessoa visada. A gente saiu de São Paulo e foi para Brasília. E até pelo fato de ter muito tempo disponível, eu acabei voltando a estudar de novo. E aí fiz primeiro Publicidade e Propaganda, e depois fiz Artes. E aí também já envereda por outro caminho. Porque em função da minha formação em Artes eu fui me preocupar, por exemplo, a origem da Arte. Eu fui fazer pesquisa de campo aqui sobre Arte Rupestre, Arte Pré-Histórica do Brasil, Arte Indígena. E isso me levou para outro caminho. Hoje, por exemplo, eu trabalho uma boa parte do meu tempo com Pré-História brasileira.
P – E esse estudo de História da Arte, basicamente, de Arte que o senhor faz está em Brasília mesmo? Qual universidade que é?
R – A Universidade de Brasília, a UNB mesmo. Naquela época havia o ICA, que era o Instituto de Comunicação e Artes.
P – E depois o senhor volta para São Paulo, ou o senhor fica lá? Como é que funciona?
R – Logo depois de formado eu falei para a minha mulher, que era socióloga - tinha acabado de se formar em Sociologia -, eu falei para ela de fazer essa pesquisa de campo sobre Arte Pré-Histórica no Brasil. Falei: "É o tipo de coisa que ou a gente faz hoje ou não faz nunca mais". Eu tinha algumas ligações ainda com o Estadão, a Revista Senhor. E os lugares que a gente viajava, mesmo que você quisesse um bom hotel, não havia. A gente acampava, dormia na casa dos caboclos, dividia tudo com essa gente. E então foi a saída. E ela topou. Ela era uma pessoa bem resolvida e que passou no mato pelo menos cinco, seis anos da nossa vida. Viajando desde o Rio Grande do Sul até a Amazônia, Paraguai, Bolívia, parte do Peru, parte de Colômbia. Tratando exclusivamente de Arte Rupestre. Então quando a gente voltou a São Paulo, a gente tinha um arquivo mais ou menos de seis mil slides só sobre pinturas e inscrições rupestres de todo o Brasil.
P – Qual o nome da sua mulher, desculpe?
R – Virginia Maestra. E ela faleceu dois anos atrás, agora. E aí a gente então começou a trabalhar em Ciência. E publicou muitos artigos em São Paulo, no Rio, Bahia, Minas, Rio Grande do Sul. E começamos a trabalhar nesse sentido. Escrevi um livro em 72 sobre esse material e consegui publicar o livro em 88. Dezesseis anos depois. Mas foi bem. Foi um livro patrocinado, um livro que chama Itacoatiaras, uma Pré-História da Arte no Brasil. É um livro que não existia no país. Porque nesse tipo de matéria você tinha coisas muito seccionadas, coisas muito estanques, de uma região, de outra. Não havia assim uma visão geral das ocorrências que existiam no Brasil todo, de ponta a ponta. Então esse livro foi o primeiro, ele abriu o caminho para uma série de livros. Naquela época essas publicações estavam em boletins de museus, de universidades. E no tempo que a gente foi para o mato também, eram poucos, na verdade, e havia poucas universidades que tinha gente trabalhando ativamente nisso. Tinha no Rio Grande do Sul, no Paraná, no Pará, na Bahia, mas não era muito. Hoje sim, hoje tem, todas as universidades tem gente trabalhando no interior, trabalhando no campo. E hoje tem publicações recentes sobre as pinturas e inscrições rupestres da Amazônia, do Nordeste, do Sul. Já está mais aberto.
P – E tinha algum momento que o senhor achava que esse material pudesse virar uma literatura mais ficcional?
R – Não. Na verdade isso veio depois. Na verdade, quando eu comecei a trabalhar esse material, puxa vida, eu já estava fazendo ficção. Porque na verdade a ficção é como eu te disse: eu acho que desde que eu fui alfabetizado realmente, eu comecei a escrever. Claro que da maioria das coisas que eu escrevi quando eu tinha 18 anos sobrou 10%. O resto foi para o lixo mesmo. A não ser que o sujeito seja um gênio, ele não consegue escrever nada, nenhuma obra-prima aos 10 anos, 14. Mesmo até mais tarde um pouco. Então, do que havia deve ter sobrado 10%. Mas eu nunca deixei de escrever. Quer dizer, desde aqueles artiguetes lá no jornal da escola. Daquilo eu passei, passei para os contos. Durante muito tempo eu fiquei nos contos. E, na verdade, o que me salvou, puxa vida, eu acho que é isso. Eu descobri que a primeira coisa, talvez a mais importante é isso: é que escrever, escrever, escrever. E, mesmo depois de adulto já, eu descobri que era muito difícil você publicar um livro. A gente vivia num país que cada vez lia menos. Que, provavelmente, no tempo do Monteiro Lobato, em que o Brasil tinha 50 milhões de habitantes, lia-se mais do que se lê hoje. Isso é muito comum. Então eu descobri que não é fácil. Grandes escritores, escritores de nome, inclusive, eles tinham que ter outra profissão porque eles não conseguiriam viver do seu trabalho de escritor. Jamais seria um escritor como eu imaginava quando era criança. Na verdade - eu acho que eu não falei disso - quando eu tinha uns 12 anos de idade eu disse a mim mesmo que eu ia ser escritor. E ia escrever coisas tão boas como aquelas que o Monteiro Lobato escrevia. E não parei. Desde então, realmente, eu estava me propondo a ser um escritor. Mais dia, menos dias, eu chegaria lá. Mas aí, depois da fase adulta, eu descobri que a coisa era muito mais difícil do que eu imaginava. E que talvez minha mãe tivesse razão mesmo. Porque às vezes quando eu dizia que eu ia ser escritor minha mãe ela ria. Eu não sei se ela entendia muito bem, ou se não, se imaginava que não tinha cabimento. Até porque na cabeça deles, eles imaginavam que profissão era o professor, era o médico, o advogado, o engenheiro, o padre. Até o padre. Naquela época era muito comum famílias como a nossa que tinha 12 filhos, um ia ser padre, ou ia ser freira. Havia aquela coisa das vocações sacerdotais. Ela até tentou com um dos meus irmãos, mas não deu certo. Mas então desde aquela época eu nunca deixei de escrever, e sempre ficção. Comecei com os contos, depois algumas histórias mais consistentes. Comecei escrevendo para adultos. Quer dizer, quando eu disse aos 12 anos que eu ia ser escritor, eu imaginava que eu ia ser alguém que escreveria grandes romances para gente grande. Porque eu intuía, eu percebia talvez naquela época, que o grande leitor era o adulto. E essa era uma verdade na década de 50. Naquela época, realmente, quem você via com livros eram os adultos. Qualquer pessoa de formação mínima, um engenheiro, um advogado, ele tinha uma biblioteca doméstica. Era uma época que as bibliotecas domésticas eram comuns. O maestro da banda que rolava na esquina da minha rua tinha uma biblioteca musical incrível. Tudo isso era muito comum. Foi na fase adulta eu descobri que o grande leitor não era mais o adulto. E você continuar escrevendo só para adulto deixava de lado o grande leitor que o Brasil tem hoje, que é o jovem e a criança. Na verdade, isso veio um pouco tarde, e durante muito tempo eu não me dei conta disso. Porque eu também comecei a publicar muito tarde, tem esse aspecto também. Quer dizer, eu sou alguém que afirmou aos 12 anos que um dia ia ser escritor e que só conseguiu publicar o primeiro livro aos 37 anos. Dos 12 aos 37 eu passei pelo menos 25 anos escrevendo praticamente todos os dias. E cada vez tomando uma consciência maior de que eu não conseguiria publicar nada. Que era complicado, que era difícil. Eu lembro de ter visto uma entrevista da Ligia Fagundes Telles, de outros autores assim que eram conhecidos na época, e que falavam que viviam das suas profissões, que não era a de escritor. Que era muito difícil. E, aliás, essa é uma realidade ainda hoje. Você pega grandes escritores e eles são professores universitários, são jornalistas, publicitários. Talvez a coisa mais absurda é você ver que alguém, por exemplo, tem que trabalhar, fazer um mercado, ter uma outra profissão para sustentar o escritor que ele pretende ser. Eu acho isso de uma tristeza, a coisa difícil de entender. Mas eu demorei para entender isso também. Como eu demorei para publicar. Quer dizer, eu escrevia, estava mais preocupado em escrever do que em entender o mercado, entender outros aspectos. Eu achava difícil, eu via testemunhos como esse que eu me lembro muito bem da Ligia. Então eu jamais iria encarar uma editora porque eu tinha certeza que eu ia levar um tremendo “não”, e então nem ia lá. Ficava imaginando, quem sabe um dia eu fico rico e publico, me dou ao luxo de publicar alguns livros. Embora soubesse que esse não era o melhor caminho. E nunca me preocupei muito também com os concursos literários – os amigos às vezes os amigos te ajudam, às vezes os amigos te atrapalham - e eu nunca tinha mandado um trabalho, por exemplo, para um concurso literário, porque a maioria das pessoas que eu conhecia que escrevia era completamente contra. Elas achavam que concurso literário era coisa de jogo de carta marcada. Todo mundo já sabia quem ia ganhar, quem não ia. Então deixava de lado. E foi trabalhando no Estadão ainda que me ocorreu de encontrar um regulamento de um concurso literário, que era o prêmio Nacional do Clube do Livro. Que era antigo, era uma premiação que vinha já de uns 20 anos. O patrocinador era o Sesi. E eu fiquei empolgado pela coisa porque eu nem me preocupei muito, para falar a verdade, com o prêmio em dinheiro. Estava trabalhando, ganhando um bom salário, que podia ser chamado de um bom salário. Mas o fato de que as três primeiras colocados, as três melhores histórias seriam publicadas. Então eu falei: "Puxa, será que eu não sou capaz de ganhar nem um terceiro lugar?". E talvez eu não fizesse ideia de quanto era difícil pegar um terceiro lugar num país como esse, que tem quase que mais escritor do que leitor. Isso me impressionou muito, mas assim mesmo eu ainda hesitei muito em função disso, que muitos amigos me diziam, gente que escrevia. E outra coisa é que eu tinha uma dúvida muito, muito séria: eu não tinha um senso crítico assim que me permitisse entender se aquilo que eu escrevia realmente era literatura, se podia ter uma função social. Se podia servir a mais alguém, enfim, ou se era aquela coisa que você coloca no teu diário, que você coloca na tua agenda no tempo de estudante e que serve para você, mas não serve para mais ninguém. De uma maneira geral era isso. Mas aí, sei lá, o regulamento pedia originais com o mínimo de 150 páginas, que podia ser um romance, uma novela ou vários contos que somassem as 150 páginas. Eu tinha tanto original que cabia nessa condição que eu falei: "Puxa vida, o que é que eu posso perder? As cópias xerox?". E resolvi mandar. Independente de qualquer outra coisa. E também é uma maneira de saber, quer dizer: "De repente o que eu estou escrevendo mesmo é pura elucubração aqui, não tem função nenhuma a não ser encher o meu tempo, o meu espaço". Eu acho que essa foi realmente a grande importância de ter participado, ter mandado uma obra para um concurso. E a primeira vez que eu mandei eu não peguei o terceiro, ganhei o primeiro prêmio, o Prêmio Nacional do Clube do Livro com um livro de contos. Aliás, é esse livro aqui O Urutu Cruzeiro. Então era interessante porque ao invés de sair uma edição de dois, três mil exemplares, saiam 18 mil exemplares para atender a rede de assinantes que havia principalmente no interior do estado. Isso foi muito, foi muito importante para mim. E desde aí esqueci todo resto, e cada vez que eu via um regulamento de concurso que prometia publicação, estava mandando. E esse primeiro foi em 1982. E aí em seguida, praticamente no mesmo ano eu ganhei um prêmio de romance inédito do Instituto Nacional do Livro, com O Príncipe da Pedra Verde. E depois eu o Moleque de rua para o João de Barro, prefeitura de Belo Horizonte, ele ganhou também, para jovens. Então praticamente em um ano eu fiz um romance, um livro de contos e o primeiro livro para jovens.
P – Nesse meio tempo teve "A Missa do Diabo", também, não teve?
R – A Missa do Diabo pegou uma Menção Honrosa eu acho que dois anos depois, do Clube do Livro também. Bom, aí eu entrei numa fase de publicar os livros sobre pré-história. Os livros sobre arte indígena, sobre arte rupestre. Publiquei um livro sobre os antigos caminhos. Tem um caminho que é engraçado que as pessoas falam hoje em essa estrada pan-americana, coisa assim. Eles estão abrindo essa estrada lá no Acre agora ligando ao Peru. Mas para chegar até o Pacífico é um problema sério. E essa história dos antigos caminhos é basicamente a história de um caminho que saía daqui de São Vicente, passava por dentro de São Paulo, ia até Sorocaba, descia até o Paraná, pegava em direção ao interior, ia até o Rio Paraná, o Paraguai, de lá atravessava o Chaco, ia para Cuzco e de lá descia até o Pacifico no norte do Chile. Esse caminho ele permaneceu vivo, quer dizer a história dele permaneceu viva em função do Sergio Buarque de Hollanda, que sempre colocava o caminho, e o Hernâni Donato. O doutor Hernâni Donato que é um grande entusiasta do Peabiru. Eu andei esses caminhos, andei, descobri trechos que sobraram desses caminhos e fomos até lá. Até praticamente o Pacífico. E agora eu estou com um livro novo sobre astronomia indígena. É outra coisa também que as pessoas não imaginam. Você fala em astronomia: "Mas índio? Índio sabia o quê de astronomia?" E a gente se engana, que eles tinham um conhecimento incrível. Os Tupinambás, por exemplo, que são conhecidos mais pelo canibalismo - como se os outros índios não fossem - eles conheciam, para você ter uma ideia, 400 estrelas e constelações. Mas não só conheciam como conheciam o nascente e o poente de cada uma. As funções delas, por exemplo, aquelas estrelas de constelações que traziam a chuva, as que traziam vento, as que traziam o verão, as que traziam o caju, na época do caju. Eles tinham verdadeiros calendários que te diziam quando surgiam as plêiades, por exemplo, no firmamento, no mês de junho eles já sabiam que ia chover. E logo depois da chuva era a época de você plantar. Então, resumindo, veio uma fase com uma meia dúzia desses livros.
P – Só retomando um pouco, pegando esse fio de literatura infanto-juvenil que interessa muito à gente, esse, o "Moleque de Rua", que é o primeiro livro, conta um pouquinho.
R – Na verdade, Moleque de Rua ganhou prêmio, então foi o primeiro livro de destaque. Mas o primeiro livro que foi publicado era um livro sobre índios, que se chamava Çarungaua. Esse, que a Ciça Fittipaldi ilustrou, acho que foi o primeiro livro que ela ilustrou de literatura infantil.
P – Conta um pouquinho a história de como ele surge, como, porque o livro infantil tem muita relação muito grande com o ilustrador.
R – Ah sim.
P – Como foi a primeira relação, o primeiro contato grande com uma ilustração?
R – Não, no nosso caso até que não foi tanto assim. A gente tinha experiências parecidas. Esse livro foi publicado pelas Paulinas, mas dentro de uma coleção especial, que era gerenciada pelo Edmir Perrotti. Era uma coleção especial, muito bonita, bem feita. Ele conhecia a Ciça e chamou, sabia da vivência dela, que era uma vivência parecida. Ela morou muito tempo em Brasília, tinha uma vivência de leitura muito grande sobre mitologia indígena e conhecia alguma coisa de índio também. E a minha vivência é uma vivência até de local mesmo. Eu convivi durante essa fase da pesquisa de arte rupestre no Brasil, eu cheguei a passar uma temporada de seis meses com os Xavantes lá em São Félix, na região de São Félix do Araguaia. E foi uma experiência assim impressionante. Uma experiência, porque o que você ouve do índio hoje é, invariavelmente, que o índio é sujo e que o índio é preguiçoso. É essa a história do índio no Brasil hoje. Todo mundo esquece que isso aqui é uma terra que pertencia ao índio, é uma terra que não foi descoberta, ela foi conquistada. Que aqui os descobridores estavam há muito tempo, já viviam aqui. Eles foram conquistados, que é outra história. E na literatura brasileira você não acha o índio. É como se a gente tivesse vergonha de descender de índio. Se você esquecer a Iracema, o José de Alencar, enfim, O Guarani, Iracema, que não são índios. Eles botam umas penas nos caras, mas eles não se comportam como índios. Comportam-se como europeus. Você não encontra índios de verdade em histórias de ficção. Você vai encontrar índio de verdade no Darcy Ribeiro, em autores como esse. Mas não em ficção mesmo. A impressão que dá é que a gente vive na Dinamarca, vive na Alemanha. Então, puxa vida, quando você vive diante dessa coisa as pessoas acreditam de fato que o índio é sujo, que o índio é preguiçoso. Aí você convive seis meses, diariamente, exatamente do modo como eles vivem, você fica muito surpreso. Você descobre, por exemplo, que um índio jamais derruba uma árvore se ele não tiver assim um motivo muito forte para isso. Jamais ele mata um animal se ele não depender daquele animal para a sua alimentação. Coisas desse tipo assim, e o resto então são besteiras muito grandes. Quer dizer, o preguiçoso, eu me lembro que em relação aos Xavantes, as cinco horas da manhã está todo mundo de pé. Eles ficam de pé até às oito da noite. E, raramente, você vê essa gente parada, conversando, em rodinha. Eles conversam muito, mas é na hora do almoço, na hora que eles estão comendo. Quando eles se levantam, quando eles saem da cama é impressionante. Porque eles não diferenciam muito. Para eles, por exemplo, sonho, o que eles sonham, é como se eles tivessem viajado. Então eles dão notícia: "Olha, eu estive lá e encontrei o teu pai, que...". O cara que tinha morrido aí há dois anos. “... Ele está muito bem, sadio, forte". É Impressionante, todo mundo fala de manhã, e eu ficava impressionado. Disse: "Ah, eles estão falando dos sonhos deles, tudo que eles viram". Que para eles não é sonho não. Nunca diga para eles que é sonho. Eles viram realmente, eles estão lá. Você vê até crianças, nas aldeias xavantes, que elas saem até ao redor assim de uns cinco quilômetros em volta da aldeia recolhendo aquelas penugens de pássaros, que são usadas para fazer adornos, aplicados numa série de coisas. Você não vê sinônimo de preguiça em lugar nenhum. E a limpeza então, quer dizer, a sujeira é mais grave ainda, porque isso vem de um mal entendido. O índio usa muita gordura de animais na pele, que é a forma dele se proteger por estar exposto o tempo todo ao sol, proteger das picadas de insetos. Quer dizer, tem uma função para eles e, naturalmente, para o nosso olfato uma gordura de capivara, por exemplo, tem um cheiro que não é muito agradável. Mas a gente se esquece que para ele o desodorante que a gente usa também cheira muito mal. Porque não tem nada a ver com a cultura deles. E o mais importante é você chamar de sujo alguém que passa os poucos períodos que ele tem de folga dentro da água. As crianças indígenas, por exemplo, passam o dia inteiro dentro do rio, na praia, dentro do rio. E o que a grande maioria das pessoas, nós brancos, principalmente, não sabemos, não nos demos conta ainda, é que nós aprendemos a tomar banho diário foi aqui. Porque na Europa até hoje se toma pouco banho. Na Europa tem pouca água, energia é muito cara. Na Dinamarca ou na Suécia se você tem dois aparelhos de televisão você paga por dois aparelhos, ou paga por três, e assim por diante. E sem falar do inverno que tem em países como a Rússia, como a Islândia, como a Noruega, e você tem 40 graus negativos. Como é que alguém vai tomar banho diário com um clima desse? Agora, o que não pode é a gente esquecer isso e vir aqui chamar o sujeito de sujo porque ele usou uma gordura. Na verdade existem dados assim de historiadores muito sérios que dizem que na época das grandes navegações, das grandes descobertas, os grandes navegadores europeus tomavam banho três vezes por ano. Então, isso foi muito impressionante. Foi uma experiência para mim mais importante do que ter estado em qualquer outro lugar do mundo. E acho que não foi por acaso então o primeiro livro publicado, um dos primeiros livros que eu escrevi, e que foi o primeiro publicado foi o Çarungaua. Que hoje ele está sendo republicado como Um Índio Chamado Esperança. Ele foi traduzido no México e Espanha. Ele é leitura obrigatória em alguns cursos dos Estados Unidos. Quer dizer, é um índio que fez sucesso. Na verdade, eu escrevi quando voltei dessa experiência lá no Araguaia, eu escrevi essa história e escrevi uma outra história que chama Terra Sem Males, que ganhou o Jabuti. É uma história que foi publicada pela Lê, de Belo Horizonte. E o Terra Sem Males é uma tradição muito interessante também, porque todos os povos do mundo têm uma tradição sobre um paraíso perdido. Sobre uma época de ouro, uma era de ouro assim que ficou no passado e se perdeu. E os nossos índios, os guaranis, os tupis e os guaranis têm uma tradição sobre um lugar que eles chamam de Yvy Marã Ei. O Yvy Marã Ei é a Terra Sem Mal. É um lugar onde as pessoas não precisam trabalhar, onde estão os antepassados. Onde as pessoas não sofrem e não precisam sequer trabalhar. As ferramentas vão sozinhas para o campo, cavam a terra, produzem tudo e, o mais importante, não tem o branco lá.
P – Depois desse primeiro contato com literatura infanto-juvenil esse espaço te interessa mais, ou é uma coisa que interessava anteriormente? Que escrevia mas deixava na gaveta?
R – Bom, foi essa coisa de você começar a publicar. É engraçado que eu tinha já umas poucas histórias para criança. Porque eu tinha filha, minha filha mais velha que faz teatro hoje, ela devia ter uns seis anos, eu acho, quando eu publiquei o meu primeiro livro. Então, eu escrevia algumas histórias assim para criança em função dela. Mas só depois é que eu entendi essa coisa de escrever, não só pelo fato de ter uma filha. Mas o grande leitor naquele momento, como hoje, é o jovem, é a criança. E o adulto, pelo contrário, ele está lendo cada vez menos. Como as pessoas ouvem muito falar no Paulo Coelho e nos milhões de livros que o Paulo Coelho vende em tudo que é lugar, as pessoas esquecem que - não vamos nem entrar no mérito se é literatura, se não é - mas contando como livro mesmo ele é exceção. Quer dizer, escritores como Jorge Amado são excepcionais nesse país. São raros, puxa vida. Nós vivemos num país que tem 190 milhões de habitantes, e que continua fazendo edições de três mil exemplares. É um absurdo. E muitas vezes não conseguem girar isso num ano, por exemplo. Ou sei lá, não conseguem vender toda uma produção. Todas as editoras têm encalhes. Todos, você tem hoje o Salério, por exemplo, que tem uma rede de livrarias que vende livros novos que simplesmente ficaram no estoque das livrarias. Não conseguiram girar. E você acha livros incríveis. A Face Horrível, do Ivan Ângelo, por exemplo, coisa assim. Alguns regionais que não chegam ao eixo aqui, que são escritores assim de mão cheia. Você encontra lá a cinco reais, puxa vida. São livros que foram publicados e, simplesmente, pararam no depósito. Então essa é uma dificuldade muito grande. Então eu tomei consciência, quer dizer, você tem uma série de coisas que você tem que escrever. Eu penso assim. Eu não estou escrevendo para o mercado. Eu tenho um compromisso antes de tudo é comigo mesmo e com algum leitor que eu sei que existe para esse tipo de coisa. Mas, por exemplo, dentro de uma situação como essa, você ignorar o leitor jovem, o leitor criança, você está ignorando o maior mercado. Pelo menos, os maiores, os grandes leitores de livro no Brasil. Enquanto um livro para adulto sai em média, ainda hoje, a tiragem média ainda é de três mil exemplares, livros como esses da FTD, da Ática, saem com 10 mil exemplares normalmente. E giram com facilidade.
P – Tem, além dessa particularidade do livro infanto-juvenil que sai mais, tem outras particularidades. Uma delas a gente comentou aqui, mas eu queria que o senhor aprofundasse um pouco mais, que é a relação ilustrador, escritor, que é a maior composição de ambos os livros. E a outra é com o leitor, que é um contato mais próximo, ele ir à escola. Conta um pouco de experiências suas sobre isso.
R – Infelizmente, eu acho que essa relação autor e ilustrador é uma relação difícil, uma relação complicada. Porque você vê o caso do Edmir Perrotti, que dirigia essa coleção, essa história de índio, o Edmir Perrotti é um cara excepcional. É um cara diferente. É um cara que tem uma visão incrível. Então ele juntou alguém que tinha uma experiência do índio com outra pessoa que tinha experiência do índio, e a gente não precisou trocar ideia. Porque eu acho que na verdade quando você tem dois autores competentes, quando um escreveu, o outro faz a ilustração, pô, você realmente pode deixar por conta. Porque eu acho que as pessoas chegam a bom termo. O problema é q você vive num mercado onde nem todo mundo pensa como o Perrotti, certo? Muitas editoras, por exemplo, têm duas, três classes de ilustradores. Que usa um ilustrador para a Ruth Rocha, usa outro para um autor médio e usa outro para o cara que apareceu ontem. Então isso é difícil. Muitas vezes, por exemplo, eu sugeri, eu lembro de alguns casos, eu sugeri, por exemplo: "Eu gostaria que esse livro fosse ilustrado por Fulano de Tal. Acho que esse livro é para esse Fulano". Às vezes uma editora aceita, às vezes não. Porque entra essa coisa do custo. Então, puxa vida, eu gostaria de trabalhar o tempo todo com o Ricardo Azevedo, por exemplo, que eu acho um cara gênio. É um cara que não é só um grande escritor, mas um cara originalíssimo. Os textos dele são originalíssimos mesmo, e grande ilustrador também. É um cara que tem as duas aptidões. E eu consegui fazer alguma coisa com ele. Mas nem toda editora permite. Porque, o Michele Iacocca, por exemplo, eu não tenho um livro ilustrado por ele. É amicíssimo meu. Tentei várias vezes, não consegui, porque havia essa coisa. Quer dizer, tem editoras até que aceitam. Agora tem outra que, às vezes, você vai trabalhar um texto que seria bom para ele, mas essa editora não alcança aquele patamar, patamar de custo. Então esse problema existe. Eu acho que, na verdade, tem que haver um trabalho de responsabilidade, isso é que não existe. Porque se existisse o trabalho de responsabilidade eu digo: "Bom, eu acho que esse livro aqui ficaria ótimo com o Michele Iacocca, ou com o Ricardo Azevedo". Eu acho que eu não preciso nem trocar ideia. Se o cara me ligar de vez em quando, precisar de algum subsídio, alguma informação, tudo bem. Mas são pessoas que eu deposito toda a confiança. Tenho certeza que eles vão fazer um trabalho de primeira linha. Agora, o problema é que muitas vezes isso não é aceito. E aí aparece lá, sei lá, um cara que você nunca ouviu falar na vida e o trabalho condiz. Aí é mais complicado.
P – E essa relação com o leitor o senhor tem muito próxima, teve muito próximo de ir em escola? Como que é?
R – É, eu tenho, eu faço muito isso. Como eu consegui chegar assim a um volume de vendas que me permitiu pelo menos sobreviver disso, eu preferi deixar a Publicidade de lado. Talvez tenha errado. Talvez estaria rico hoje fazendo as duas coisas, e escrevendo como a maioria das pessoas escreve: só a noite, fim de semana. Mas como estava, eu senti que seria possível pelo menos sobreviver de uma forma mais ou menos digna, eu preferi deixar a Publicidade. Até porque eu estava cansado. Publicidade é um ambiente meio viciado. As coisas giram muito em torno das mesmas bobagens sempre. Eu preferi então esse caminho. Então isso me dá pelo menos certa disponibilidade. Quer dizer, eu tenho todo o meu tempo para escrever, e para ler, e para falar de livro. Então eu vou muito, é raro uma semana que eu não vá a uma, duas escolas. Passei um mês no Acre agora, o mês passado. Tenho agora um negócio marcado para Roraima. Coisas assim, para Roraima, por exemplo, é um encontro com professores que trabalham leitura em sala de aula. Então é muito importante, porque são os formadores, os possíveis formadores de leitores. Dia três agora, por exemplo, a Curitiba. Coisa rápida, coisa de três, quatro dias. Curitiba, Ponta Grossa. Mas então, quer dizer, essa disponibilidade me permite fazer isso. E, quando me chamam, por exemplo, lá para Porto Alegre ou para Curitiba, a editora aqui exige uma cota de vendas. Porque é claro, eles têm que pagar avião, tem que pagar a estadia lá, e tem que sobrar algum para a editora. Então, quer dizer, para isso eles têm que vender muito livro. E então, embora eles não me paguem nada à vista, quer dizer, eu sei que para me levar lá eles vão ter que vender mil, dois mil livros... Embora eu não receba nada agora, indiretamente o direito autoral desse 1500, 2000 livros está lá incluído. Às vezes eu fico uma semana inteira em Porto Alegre, ou na região da serra, ou lá em Passo Fundo. Enfim, ou em Santa Catarina, ou no Paraná, ou no norte do Paraná. Eu vendo, por exemplo, mais ao norte do Paraná do que em São Paulo. E Goiás, Bahia, daí para frente. Então esse contato é mais próximo. Eu acho que faz parte. Quando você escreve você está se propondo a falar com alguém. E se você tem a oportunidade de falar diretamente, melhor ainda. Então eu acho que é importante isso. Você encontra, você acaba motivando algumas vezes, claro que não todo mundo, mas muitas vezes eu já encontrei pessoas que tinham um pé atrás em relação à leitura. Pessoas que achavam que não gostavam de ler. E que hoje lêem. Eu recebo muitas cartas assim nesse sentido. Pessoas que decidem fazer aquilo. Eu sempre coloco alguma coisa antes de começar a troca mesmo a conversa. Eu sempre falo um pouco sobre a leitura e digo para eles que muitas vezes as pessoas que dizem que não gostam de ler são pessoas que nunca leram na vida. E aí não dá para gostar mesmo. E explico como é que você tem que fazer, como é que tem que ler. Como é que começa. Do começo ao fim. Aí um dia você vai descobrir um livro que você goste, aí você nunca mais vai deixar de ler. Isso trás uma satisfação muito grande. É muito melhor do que você achar que não gosta de ler e nunca mais. Você chegar ao fim da tua vida sem ler um livro que não seja o livro didático, que ele é obrigatório, ou o livro de missa, o livro de reza que toda religião exige.
P – Luiz, eu queria pontuar dois, dois não, alguns trabalhos, principalmente "As Melhores Histórias de Guerra e Paz". Conta um pouquinho como surge esse projeto, qual a repercussão dele, o que é que era também. Conta um pouco da história dele.
R - É da Biblioteca da Juventude de Munique. Eu não sei, eu acho que eles gostam dos meus livros. Eu devo ter alguma coisa nos meus livros que atraem os alemães lá. Se bem que a Biblioteca da Juventude é um negócio global. Mas o Brasil, por exemplo, é lido dentro de uma parte que é ligada à Língua Portuguesa, Espanhola, América Latina. Quer dizer, é mais fechado. Agora, esses livros concorrem com livros de todas as outras nacionalidades, todos os outros pontos. Eu tenho, acho que eu tenho, uns cinco ou seis livros que fazem parte já do acervo permanente da biblioteca, que foram escolhidos. E surgiu então uma parte que foi esse Os Livros de Guerra e Paz. O projeto é muito simples. Eles achavam que precisavam de um projeto para fazer frente àquilo que o homem mais combateu em toda a sua história. E que hoje continua tão atual como ao tempo da Guerra de Tróia. Aliás, talvez seja pior hoje. Porque antigamente para uma Guerra de Tróia, você passava depois 20 anos, 30 anos se refazendo daquilo, tentando se recompor. Aquelas cidades incendiadas, aquela coisa toda. E hoje cada vez você tem assim mais guerras localizadas, mas que nem por isso matam menos. Então se você começa a juntar as guerras que existem em todo o mundo hoje, isso dá uma grande guerra tranquilamente, e com riscos muito mais graves. Então esse projeto vem como uma forma de fazer frente a isso. Tentar lembrar às pessoas, principalmente o jovem, que, puxa vida, o grande trauma da humanidade continua exatamente o mesmo, desde que o homem existe. Provavelmente, desde que o homem existe ele está disputando a caverna, disputando o alimento, disputando as coisas mais necessárias até coisas totalmente desnecessárias.
P – Conta alguns, narra algumas obras suas, infanto-juvenis, que tenham essas duas importâncias: uma pelos prêmios outras pelo pessoal.
R – Eu não sei, os prêmios são muito subjetivos. Eu, sinceramente, tenho em relação aos prêmios eu tenho uma cisma assim. Eu ganhei muitos prêmios. Eu ganhei acho que mais de 20, mas eu sempre ganhei prêmios que pautavam pelo anonimato. E os prêmios abertos eu acho que eu nunca ganhei nenhum, desses que os caras dão para a pessoa sabendo quem é. Então isso sempre me deixou meio... Falei: "Por que. Ganho tanto prêmio aí, quando é o anônimo, e quando você tem que colocar o pseudônimo lá, e não ganho quando é aberto". Agora, bom, isso é apenas um parênteses. Mas eu não sei, o prêmio é muito importante, claro, porque antes de tudo como um reconhecimento. Eu tenho, inclusive, um prêmio que eu ganhei que o júri era o Jorge Amado, a Raquel de Queiróz e o outro lá do sul da Bahia. Quer dizer, três escritores assim de primeira linha. Você tem que considerar. Um livro, um romance que ganhou o prêmio do Instituto Nacional do Livro. Romance inédito, O Príncipe da Pedra Verde. Então, puxa vida, com Jorge Amado e a Raquel de Queiroz, não são nenhum gênio da humanidade, mas eles são os grandes escritores brasileiros. Se eles reconhecem, eu acho que está bem aqui. Eu até já participei de alguns júris também: Mapa Cultural Paulista, durante alguns anos eu participei. Eu acho que o júri tem muito também de subjetivo e eu acho que não é só a tarefa do escritor, o ofício do escritor. Sobre o que a pessoa escreve conta muito sobre o tema que ela trabalha, e até a maneira de entender a história conta muito. Por exemplo, tenho alguns livros foram premiados, eu acho que têm o seu valor. Mas eu não vejo assim como. Eu sinto, por exemplo, livros que eu acho que deveriam ser premiados e não foram. Agora, para mim eles continuam valendo talvez até mais do que aqueles que foram premiados. Ou pelo menos alguns daqueles que foram premiados. São livros assim que estão justamente mais presos a essa vivência mais pessoal, da infância rural, da infância no interior. Essa coisa da Mantiqueira, da Serra do Mar, do Rio Paraíba. São livros assim. Por exemplo, o Rio Abaixo, Vida Acima, é um livro assim. Eu não lembro mais se são cinco ou seis histórias, que são vividas pelo mesmo grupo. E o cenário é sempre o Rio Paraíba. Então são, aliás, um dos poucos livros assim que parte de uma vivência pessoal, de uma experiência pessoal. Embora eu deva, talvez desnecessário, mas dizer que isso não significa que eu escrevi histórias exatamente como elas aconteceram. Quer dizer, mesmo a história vivenciada pelo autor ela serve como ponto de partida para você escrever uma história. Quase, no meu caso, é sempre isso. E a partir daí você acrescenta, tira coisas e no fim você tem uma história que tem muito de real e tem muito de imaginário. Eu acho que esse é o segredo da história de ficção. É que, geralmente, ela parte de alguma coisa que é realidade, se não foi para você, para o autor, foi para alguém que estava na notícia que o autor leu. E funciona bem dessa maneira. Mas aquilo que está intrínseco na vida da gente sempre conta mais. Talvez porque, pelos menos para o autor, ele tem uma sensibilidade maior em relação àquilo. Talvez até uma história que eu conte em relação a essa vivência lá do Rio Paraíba, da Mantiqueira, talvez para outras pessoas não tenham até o mesmo sabor. Porque eu acho que as pessoas estão muito próximas ao tipo de ambiente que elas vivem. Eu, por exemplo, nasci no Vale do Paraíba, e nasci assim numa rua que era privilegiada. Uma rua que eu botava a cabeça para fora da janela e à direita eu via a Mantiqueira e à esquerda eu via a Serra do Mar. Quer dizer, era uma coisa assim muito forte. A Mantiqueira era sempre verde, a Serra do Mar era sempre azul, azulada. Era mais tênue, talvez por ser mais distante um pouco. Eu, por exemplo, depois que eu me formei eu fui lecionar no oeste de São Paulo, lecionei um ano também em Campo Grande, e eu ficava doido porque o oeste de São Paulo e o Mato Grosso é aquela coisa assim, você olha é aquela coisa que não acaba. Não tem uma colina. Eu falava: "Mas que terra é essa que não tem uma colina, puxa vida?". Então é essa coisa de quem nasceu vendo a Mantiqueira, vendo a Serra do Mar. É o exemplo do cara que nasce na Irlanda, por exemplo, na Escócia, na sombra das terras altas, lá das Highlands, essa coisa, o cara jamais vai conseguir viver num lugar que não tenha nenhuma colina. Ele não consegue. As pessoas que eu conheço que têm essa vivência são parecidas. Então talvez muitas vezes essa vivência, que é tão forte para mim, em função da Mantiqueira e da Serra do Mar, para muita gente, talvez, não tenha significado. Porque eles preferem aquela planura do Pampa, do Rio Grande, ou da região do Rio Paraná, ou do Paraná, ou do Mato Grosso, do Pantanal.
P – Como que é, mesmo a partir da tua experiência, como que é o seu processo de criação diária assim? É diária? Como é que funciona isso?
R – Não tenho assim uma disciplina. Eu tenho um amigo que ele vive lá no Recife, o Everaldo Veras, eu ficava doido. Porque o Everaldo ele era engenheiro de formação, e então ele trabalhava como engenheiro da prefeitura, como fiscal de obras da prefeitura lá em Olinda. E depois ele trabalhava a tarde no Banco do Brasil. Ele tinha que ter dois empregos porque era daquelas famílias que tinha um monte de filhos, e um monte de netos, e todo mundo vivia ali em volta dele. Então ele me dizia que o único jeito de escrever era acordar às cinco horas da manhã e escrevia cinco horas todo dia. Eu falei: "Puxa vida, se eu tivesse que fazer isso eu desistia de ser escritor. Eu jamais ia acordar às cinco horas da manhã e escrever cinco horas seguidas todo dia, principalmente," como ele assegurou que fazia, o tempo todo. Então na minha vida, realmente, eu não tenho disciplina nenhuma. Eu, aliás, estou convencido de que, se um dia que eu não estou disposto a escrever - eu já tentei fazer isso - forçar a barra, tentar escrever sem estar muito disposto, é trabalho de jogar fora depois. É trabalho perdido. Então eu prefiro certas épocas em que realmente eu estou com muita vontade de escrever. Aí eu sento e escrevo seis, oito horas direto. E às vezes vou até o fim. Pelo menos da primeira versão. E eu prefiro isso. Estava conversando com a Maria Lúcia, aquela da Biblioteca Monteiro Lobato, eu falava: "Eu eu desconfio que eu tenho um negócio assim de período fértil e de decadência depois". Então eu tenho seis meses do ano, mais ou menos, que eu escrevo assim em tempo integral. Aí quando vai chegando lá para outubro eu sinto que já não está rendendo a mesma coisa. Me dá uma vontade muito grande de ler. Quer dizer, eu leio o ano inteiro. Mas leio às vezes muito devagar até. E aí quando vai chegando essa época, às vezes, eu entro em fase de ler um livro no dia. E não para mais. Eu acho que não é que sejam processos diferentes, ou que seja ruptura. Essa coisa da leitura faz parte do processo também. É uma forma talvez de você recarregar para, de repente, até colocar mais adiante. Mais adiante você vai, você topa com autores que fazem coisas completamente diferentes. Hoje você tem um universo muito maior. Você tem uma literatura que vem lá dos confins da Ásia, que vem da Índia, que vem de tudo que é lugar que você imaginar. Oriente Médio, Egito. E isso acrescenta até maneiras de pensar diferente.
P – E, fazendo um apanhado, agora chegando mais próximo do final da entrevista. Aquela sua vontade de escrever as grandes histórias que você lia quando era pequeno. Isso, pensando agora, você acha que cumpriu assim, que vingou?
R – Não, acho que não. Mas eu não sei, eu tenho assim uma certeza, é que eu tinha esse negócio em relação à pré-história. A pré-história para mim é uma paixão igualzinha à Literatura, igualzinha à ficção. Com a vantagem que isso me leva a ir para o mato, a curtir coisas novas, completamente diferentes. Isso me levou ao Acre, me levou à Amazônia, me levou ao Amapá, América do Sul toda. Então isso é muito importante. Eu tinha alguns livros que eu falei: "Não posso deixar de escrever". É como a história das pinturas rupestres. Quando eu publiquei o meu livro não havia nenhum livro como aquele. Havia só publicações em boletim de museu, de universidade, coisas picadas. Aí escrevi o livro sobre Arte Indígena, que era uma coisa que já havia um universo maior. Aí escrevi o livro sobre esse caminho que ligava São Vicente ao Pacífico, ligava o Atlântico ao Pacífico. Agora, terminei esse livro sobre Astronomia Indígena. E vou fazer ainda um livro que já está praticamente mais da metade, que ao invés de tratar só de um caminho como o Peabiru, que é esse caminho que leva do Atlântico ao Pacífico, é um livro que trata de alguns caminhos antigos do Brasil. Que são muito diferentes, que não têm nada a ver com as trilhas indígenas. São caminhos, inclusive, que as tradições indígenas ligam assim a possível presença do homem branco na América pré-cabraliana, pré-colombiana. Coisas muito interessantes. Por exemplo, na Bahia eu descobri algumas antigas minas que estavam marcadas com enormes marcos de pedra. Isso é uma coisa que não faz parte da cultura do bandeirante. Não existe isso. Pelo contrário. O famoso bandeirante baiano lá, o das minas de prata, o que eles chamam de Muribeca, o Belchior Dias Moréia. Belchior Dias Moréia é um sujeito que, segundo a crônica colonial, ele envenenou 80 pessoas numa oportunidade. Ele botou veneno na comida e matou mais de 80 pessoas para manter em segredo a localização das minas, na região que é hoje Chapada Diamantina, Paramirim. Então imagina se um cara que mata, é capaz de envenenar 80 pessoas para manter em segredo a situação das minas, se ele vai botar um marco de pedra imenso para dizer: "Pô, olha a mina aqui". É claro que não é. Isso é coisa de algum outro povo que não era daqui e deixou marcos, inclusive em outros pontos para que viesse outro grupo diferente eles chegassem a uma determinada baía ou enseada, seguissem alguns marcos, alguns caminhos e chegassem de novo a esse local. Então isso é interessante. Com esses dois livros eu estou encerrando a minha fase de, que eu acho importante tratar, de pré-história. E aí eu acho que vou volto à ficção de novo e vou escrever. Tenho um romance também em fase de acabamento. E vou escrever pelo menos mais um romanção desses ligados aqui ao ciclo do café no Vale do Paraíba. Porque é engraçado, todos os grandes ciclos no Brasil têm uma literatura importante, interessante. O ciclo do café você tem o Monteiro Lobato que viu assim de uma maneira muito parcimoniosa. O Francisco Marins, que trata do café também, mas de uma forma acho que também parcimoniosa. Acho que falta um livro sobre o café. O café no tempo ainda da monarquia. Quer dizer, o apogeu do café no Vale do Paraíba, a época dos barões mesmo do café, aquela coisa toda.
P – Então, para a gente ir encerrando, a pergunta de praxe que é o que o senhor acha de contar um pouco, de amarrar essa história aqui para o projeto, de contar para a gente? Qual foi, como é que foi essa experiência?
R – Eu acho importante. É sempre interessante a gente retomar as coisas. Eu não costumo me preparar muito para as coisas. Eu gosto assim muito da surpresa, sabe? Então quando eu vim para cá eu não pensei em exatamente nada do que eu ia dizer. Eu acho que está tudo na cabeça. Mas, apesar disso, eu senti assim em alguns momentos que eu estava relembrando de coisas que fazia tempo que eu não lembrava. E, com certeza, eu esqueci de um monte de coisas também. Porque é difícil você falar de tudo ao mesmo tempo. São tantas implicações. Como o autor, o meio que você viveu, a família que você viveu. O meio dos escritores, o mercado disso. A função disso na escola junto ao leitor. É uma coisa. Por exemplo, eu estava lembrando agora de duas pessoas: a Emilia e a Alzira. São duas pessoas assim da infância que eu esqueci não sei como. São duas pessoas negras, uma bem negra mesmo, daquelas. A Alzira, uma negra daquelas que azulava. Aqueles negros que não existem mais hoje. E a Emilia é um tipo assim mais amulatado. Eram todos descendentes daqueles negros que vieram trabalhar na lavoura do café no Vale. No contexto da época elas faziam trabalho de casa. Completamente, totalmente analfabetas. Naquela época, inclusive, um contingente muito grande de brancas eram analfabetas também. Porque as pessoas achavam que a mulher não precisava estudar. Eu lembro delas assim, inclusive, como as grandes contadoras de história. É uma experiência que eu me esqueci aqui da minha infância que era muito forte. Era a noite no pé do fogão de lenha a gente sentava lá, principalmente no inverno, e ficava ouvindo as duas contarem histórias. E hoje eu me surpreendo, inclusive, porque de certa forma eu sou produto do que elas plantavam. A Emília, por exemplo, ela tinha vivido em outras fazendas na região lá no Vale, mas já na divisa do rio. Aquela região lá mais de Lorena, para a frente lá. E imagine então que ela falava sobre histórias daquelas fazendas do café. Ela tinha uma idéia muito mais clara do que eu, que era filho de um fazendeiro, que nasceu numa fazenda do café. Ela tinha uma ideia muito mais clara que a gente sobre isso. Sobre o que era a fazenda do café. O que é que era a estrutura do café. Ela sabia que tudo desmoronou porque o café desmoronou. E contava, naturalmente, tudo que era, o que acontecia naquela região, as grandes famílias que se tornaram pobres. Que obrigaram, inclusive, pessoas como ela a sair andando pelo mundo em busca de algum outro lugar para morar. Então ela tinha assim, vamos dizer, uma visão quase que historiográfica da realidade dela. Ela conseguia ouvir as coisas e captar alguma coisa disso. Já a Alzira não, a Alzira era ficcionista mesmo. Era aquela que contava as histórias do capeta, as histórias da mula-sem-cabeça, do lobisomem, do saci. Ela chamava a gente de noite, mostrava lá pelo buraco da janela os vagalumes lá. Jamais dissesse para ela que era vaga-lume. Ela mostrava: "Está vendo? É o saci, é o pito do saci que está lá dando um nó na crina dos cavalos". E quando meu pai dizia que era bobagem, que não existia saci, ela ficava por trás dele falando: "Ele não sabe nada". E, realmente, na época eu acreditava que meu pai, realmente, não sabia coisa nenhuma. Eu lembro de ter perguntado uma vez para a minha mãe se na lua tinha gente. Uma preocupação que eu nunca vi em nenhum amigo meu, cansei de perguntar para ele. O Zé, o João Manoel, achava isso uma grande bobagem. E a minha mãe também achava: "Isso é bobagem, imagina se na lua tem gente. Deve ter o São Jorge que falam lá". E o meu pai falava: "Pô, vai cuidar da sua vida. Procura alguma coisa útil para fazer". E Alzira então ela era assim a grande guru. Eu chegava para ela e perguntava: "Na lua tem gente?". Ela falava: "É claro, puxa vida. Você não está vendo aquela poeira toda lá em cima? Aquilo lá são os lunáticos todos pulando, dançando, levanta aquela poeira. E você fica aqui, e as pessoas como seu pai ainda, essa gente metida a besta aí fica achando que na lua não tem. Por que é que só na terra tem que ter gente? Tem alguma explicação para isso? Se Deus criou o homem e botou, por que é que ia botar justo aqui, em Caçapava nesse terreno, naquela coisa, nesse mundinho de nada?" Ela tinha uma lógica. Ela falou: "É só olhar para a poeira".
P – Que ótimo. Então obrigado pela entrevista, Luiz. Obrigado por estar aqui com a gente. Foi muito bom.
R – Foi uma satisfação.
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