Projeto Memória dos Brasileiros
Depoimento de José Marçal de Oliveira
Entrevistado por Antonia Domingues e Winnie Chow
São Gonçalo do Rio Preto, 02/08/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número MB_HV_033
Transcrito por Regina Paula de Souza
Revisado por Viviane Aguiar
Publicado em 07/05/2009
P1 – Gostaria que o senhor dissesse o seu nome, a data de nascimento.
R – Para eu falar meu nome e a data de nascimento? Meu nome é José Marçal de Oliveira. A data de nascimento é 22 de junho do ano de 22. Não. Dia 30 de junho de 92. 1992?
P1 – Quantos anos o senhor tem?
R – Eu tenho 85.
P1 – Então, está certo. E em que cidade o senhor nasceu?
R – Nasci aqui no Rio Peto, São Gonçalo do Rio Preto, né? Eu nasci no Rio Preto, depois mudaram para Felisberto Caldeira. E depois voltou para São Gonçalo de Rio Preto.
P1 – E qual era o nome dos seus pais?
R – Meu pai, Traudiano Ferreira de Oliveira, minha mãe, Maria Eloína dos Santos.
P1 – O que eles faziam?
R – Meu pai foi tropeiro, como falei para você, foi tropeiro e carreiro, e minha mãe doméstica. Mas minha mãe cuidava de casa, ela é a dona da casa, casada com ele, e que tratava dos moleques. É, era assim (risos).
P1 – E os seus avós?
R – Meus avós, engraçado é que não lembro bem. Meus avós... Minha avó chama, eles tratam ela de Aninha. E Antonio dos Santos, Antonico dos Santos.
P1 – O senhor tinha irmãos?
R – Irmão? Tinha. Tenho! Tenho uma irmã, Maria Ermínia de Oliveira, e tinha um irmão, Joaquim dos Santos de Oliveira. Morreu.
P1 – E como é que era a cidade de Rio Preto? Na infância do senhor, como é que era a cidade?
R – A cidade? A cidade aqui é de serviço. Não tinha nada do que tem hoje, não tinha, não. Mas, às vezes, é até melhor do que é hoje. Porque era um escuro, não tinha luz (risos). A cidade não tinha luz, não. A luz aqui, você sabe, quando tinha uma festa aqui era à base da fogueira e de canela. É o que iluminava. Ou, então, quando tinha uma Semana Santa era à base da tocha. Você já viu como é que é a tocha, para fazer procissão, para essas coisas tinham as tochas de cumeeira, desse mel dessa abelha... Como é que ela chama? Arapuá. Esse colhia o mel daquela abelha e a cera para fazer as tochas, para poder acender aquelas tochas. Podia ser até no rio mesmo, né? Eles faziam aquelas tochas para pôr no rio. Quando gostava de passear no rio. Não tinha nada que tinha. Luz não tinha nada. Depois de, deve ter uns 60 anos, né? Foi que puseram luz aqui. Puseram uma luz e um motor. Depois de motor, eles vieram e puseram a luz de... Puseram a luz, como diz? Com esses... Como é que chama?
P1 – Luz elétrica, né?
R – Luz elétrica, né? Puseram luz elétrica. Mas isso deve ter uns 60 anos. Era andar no escuro, e aqui o movimento era bom. Porque é no escuro, mas não tinha esse movimento de hoje. Não tinha aquele negócio de as moçadas saindo, arrumando aquela filharada. Aqui, não, era uma coisa muito dura. Os homem não tinham direito a estar trançando na rua... Mas as mulheres, não. Aqui, se via, quando você via um homem passeando com uma mulher, tinha uma outra do lado. Sempre companhia (risos). Antigamente, a gente era assim, né? Não tinha (risos)...
P1 – Como eram as festas da cidade?
R – As festas da cidade? É uma festa que vai ter aqui, dia 15 de agosto. É a festa que eu conheci aqui. Uma festa de marujada que tem, vocês não viram? Ah, não, vocês não viram isso aqui, né? É uma festa muito boa. As festas, tinha até muita festa, hoje tem até pouca festa. Que, aqui, tinha festa de Bom Jesus da Lapa, tinha festa de São Gonçalo. Tem ainda. Mas São Gonçalo era mais movimento, hoje não tem. Tinha festa de Nossa Senhora Santa Terezinha, tinha tudo, uma porção de santos que eles faziam festa. Parece que ocorria mais dinheiro, porque fazia muita novena. Tinha uma, mês de maio, tinha uma festa, mês de maio inteiro. Eles faziam muita festa. A cidadezinha até era boa. Não era cidade, não. Dependia de Diamantina, né? É distrito de Diamantina. Aquele tinha distrito de Diamantina e aquele santo era distrito daqui (risos). Isso é o que eu não entendo (risos).
P2 – Eu também não entendo.
R - É, todo santo era distrito daqui, pertencia a aqui. Hoje, emanciparam tudo, né? Puseram tudo como cidade.
P1 – E o senhor disse que o seu pai era tropeiro?
R – Era tropeiro.
P1 – E o senhor aprendeu com ele?
R – Eu não cheguei a trabalhar com ele, porque, quando ele morreu, eu estava com sete anos. Eu estava com sete anos incompletos, quer dizer, mas eu acho puxei foi ele, né? De toda maneira, foi o que ele fazia que eu aprendi a fazer também.
P1 – Mas tem alguma história dele que o senhor escutou?
R – Dele para eu contar, não tem. As histórias que eu tenho para contar são de serviço, que nós tínhamos uma casinha, morávamos lá embaixo, tinha uma casinha que eu via carregada de “carteira”, levando “carteira” para Carbonita. Eu não conhecia quem era Carbonita. Carbonita não chamava Carbonita, não. O nome de Carbonita era... Ah, como é que é gente? Mas hoje é Carbonita. Eu perdi o nome de Carbonita.
P2 – Carbonita não era município de Diamantina?
R – Carbonita, não. Devia ser de uma cidade de Minas Novas. Mas Carbonita era, deixa ver, uma chapada no Norte.
P1 – Seu Marçal, na sua infância, aqui era bem diferente, a cidade, né? Devia ter umas brincadeiras bem legais?
R – Tinha. Brincava. Mas pulei muito (risos). Tinha porrada, tinha muita brincadeira. Brinquedo até era demais, né? Esses pés de poste, tudo o que tinha, se hoje tivesse lá naquele tempo, amarrava aqueles cipós no pé do poste para ver gente topada no meio da rua (risos). “Braçada” no meio da rua (risos). Fincava, botava atrás para fincar. E nós distraímos com aquilo. Mas todo mundo escondia, porque, se o sujeito caísse, tomava só a queda, nós pagávamos o pato (risos).
P1 – O pessoal aqui vinha era mais de passagem ou tinha mina por aqui? Aqui na cidade tinha mina, de extração, de garimpo?
R – De garimpo? Não. O garimpo é mais longe. Aqui até tem um garimpo muito perto, mas passou para a mão dos usineiros, nem deu diamante mais, não. Porque eles tomaram, que deixaram mais ninguém trabalhar, não é? Que já foi bom para garimpo, bom para diamante. Eu mesmo andei trabalhando aqui. A minha dona estava para ter menino, eu não podia viajar. Então, eu arrumava um serviço para nós, para fazer garimpo. Deu até uns diamantes. Eu falei com eles: “Não, vocês podem ficar para vocês, estando bom. Continuo mexendo com isso, não.” E deu muito diamante, mas depois eles pesquisaram a lápide e parou. O povo daqui trabalhava mais para essas grandes redes, depois pararam. Tem umas firmas aqui. Quando veio a “Tijucana”, depois veio essa “Gutierrez”. Aí, quem ficou mandando foi esse povo.
P1 – Mas quando o senhor era pequeno, o que o pessoal fazia aqui? Eles ganhavam a vida...
R – Ah, minha filha, só se vendo. Grosar palha, carregar lenha (risos). Eu carreguei muito, grosei muita palha (risos). A gente grosava palha, e os tropeiros carregavam para a gente para Diamantina, para vender. Para vender um milheiro de palha, não era um milheiro. Eles punham 400 palhas no milheiro e falavam que era um milheiro, mas não era. Não era um milheiro de palha, não. E aqui você vendia por 400 réis. Você não conheceu essa moeda, né? Eu ainda tenha essas moedas, 400, 200.
P1 – E, quando o senhor era criança, o senhor escutava muita história?
R – Ah, escutava demais. Ih, escutava demais. Isso aqui, nós tínhamos um mateiro que vinha para aqui. Esse povo de Paraíba, esse povo que vinha trazendo muita história, muito pisquim que eles traziam. Para a gente aprender a cantar, porque aqui era só índio demais dá contá, né? A gente aprendia, tudo isso aí aprendia. E caçoava deles, mofava com eles. Quando entrou o primeiro caminhão aqui, eu tinha um compadre chamado José. Quando entrou o primeiro caminhão aqui e veio aqui, eles tinham uma porção de mateiros. Nós estávamos numa fazenda e morávamos na fazenda e fomos, deixamos de dormir lá dentro da casa para dormir numa senzala. Então, chegou o mateiro falando assim: “Oh, lá no Ipê está difícil, que os caminhões chegam naqueles pastos e acabam com tudo.” (risos) Ele estavam, eles não conhecem pasto (risos). E a gente não estava nem aí. O instrumento deles, que eles gastam é pasto (risos). Era bater, e comiam aquilo. Esse de abusar e de brincar é demais. Posso falar uma coisa? Tinha dia que eu deitava na cama assim, e eu não deixo minha cama virada para esse lado, não (risos). Desse lado tem um cemitério (risos). Desse lado tem igreja (risos). Esse povo virada a cama o dia inteiro, a noite inteira virando cama. E as bestas, os pobres de mateiro iam trabalhar no meio de umas “mateiradas” que tinham, né? Nessa fazenda mesmo. Lá nós tínhamos com muito mateiro que trabalhava. Eles eram mais bestas que nós (risos).
P1 – O que os mateiros faziam?
R – Mateiro puxava enxada. Naquele tempo, era bem para trabalhar, né? Aí vai capinar a roça, capinar cana, capinar milho. E nós nos aproveitávamos disso. Custumava sair lá da fazenda, vinha para aqui, pegava... Eles já andavam tudo com “polveira”, né? E nós carregávamos essas “polveiras”, e dava cada tiro (risos). Dava cada tiro aqui, detrás da rua (risos). Isso aqui, dava meia-noite por dia, porque cedo nós não podíamos fazer isso aqui, não. Mesmo assim eles denunciavam lá. E chega lá, falava assim: “Ah, meu padrinho Pedro, se os seus meninos, você facilita com esses meninos, não. Seus meninos estão fazendo quanta zoeira lá na rua, vocês nem imaginam.” Aí, nossa! “Ô, meu padrinho, ainda é bom que você ouviu.” Que nós tomamos aquele café com leite e fomos deitar, fomos dormir. “E você afasta esse bule!” (risos) Mas nós não fazíamos isso, não. Não fazia. (risos) Com aquela cara grande do mesmo jeito até, mas nós fazíamos (risos). Vinha para aqui fazer farra, né? E bebia nada, era só para fazer farra mesmo. Cada tiro, que não tinha soldado nesse tempo.
P1 – E o que o pessoal plantava por aqui?
R – Plantava muita lavoura, aqui produziu que Diamantina até Curvelo vivia daqui. Daqui, Couto Magalhães e Senador Modestino Gonçalves, né? Aqui, as lavouras eram muito grandes. Todo mundo só cuidava de lavoura. Todo mundo tinha um terreno para vender, hoje não tem nada. Todo mundo tinha um jeito de vida. O que não tinha um burro, tinha boi. O que não tinha boi, tinha cabrito, tinha carneiro. Hoje ninguém cuida de nada mais. Porcada, ih, tinha porcada que comia duas légua fora da fazenda. O povo era muito caprichoso com isso, tinha muita fartura. Depois, foi acabando. O povo tornou-se preguiçoso. Hoje, o sujeito fala, você fala pra ele: “Fulano, se leve para a terra.” “Ah, ‘deixa ver’.” (risos) E eu falei com ele: “Esse ‘deixa ver’ já não dá semente.” Não dá semente (risos). Você vê deixar a vida dar semente? Eu nunca vi. É, hoje piorou muito a situação. Principalmente depois desse governo. Vocês gostam desse governo? Acham o regime dele muito bom?
P2 – Eu gosto muito dele.
R – Ah, você não dá nada. Você pode gostar, eu não gosto.
P1 – O senhor começou a trabalhar com que idade?
R – Com sete anos de idade.
P1 – Com o que o senhor começou a trabalhar?
R – Eu comecei, nós começamos a fazer uma casa. Nós tivemos até que pedir esmola. É que comecemos a fazer a casa. E nós tínhamos que trabalhar, eu, e meus irmãos ainda eram mais novos que eu. E nós começamos já trabalhando, mexendo com casa depois. Acabei de fazer essa casinha. Nós vamos mexer com a rocinha, plantando. Ia para a roça capinar. Plantava quatro, cinco bocados de milho. Tratava desse milho. Até que eu fiz dez anos. Quando eu fiz dez anos, aí eu já fui mexer, fui trabalhar com a tropa. Tinha um homem até me esperando, um sujeito muito amigo de meu pai, que já estava me esperando para eu ir trabalhar com ele. Eu ia ser cozinheiro. Cozinheiro, que, na tropa, gastavam um cozinheiro, um tocador e um arrieiro. Quando tinha mais burro, gastavam dois tocadores, um cozinheiro e um arrieiro. Então, eu fiquei fazendo parte desse tempo como cozinheiro. Depois de cozinheiro, logo quando eu passei para catorze anos, eu comecei já trabalhando, pegando carga e tudo. Depois, passei para tomar conta da tropa. Com catorze anos, eu comecei a tomar conta de um lote de burro. Aqui, nessa fazenda, eu já fazia, carregava, saía daqui carregado, em Diamantina descarregava e carregava em Diamantina outra vez. Carregava de Diamantina para cá, pedia os fretes, para eu dar os fretes, eles me davam, eu carregava para trás. E daí por diante eu fui só crescendo na profissão. Depois, comecei a descer para esses trens abaixo, todos. Até Governador Valadares eu fui. Daqui a Governador tem 300 quilômetros, né? Daqui a Governador. Eu fui lá com tropa, picando marcha. Eu gastei daqui em Governador, ida e volta, 57 dias. Mas, aí, sabia, mascatiando, vendo uma coisa, carrego de outra. E vai tocando, né? Aquele que é o tropeiro. Tropeiro não é aquele que monta no boi e fica jogando cavalgada como esse povo faz aqui nisso, naquilo, aquele. Não. Aqui é um passeio, um brinquedo, né? E o outro, que toca tropa, também é muladeiro. Tem boiadeiro e tem muladeiro, que vendia tropa. E nós, não, nós transportávamos. Nós transportávamos mercadoria, que carregava em Diamantina. E Diamantina já tinha uma, aquela, como é que ela chamava? Maria Fumaça. Maria Fumaça era um trem de ferro que tinha, que vinha de Belo Horizonte para Diamantina. Então, aí, vinha Diamantina e de Curvelo para cá, já puxava tudo na Maria Fumaça e vinha para Diamantina. Em Diamantina, tinham aqueles armazéns que despachavam a mercadoria. A gente ia lá e carregava e descia carregado. Costumava chegar lá, nós descarregávamos, carregávamos outra vez de toucinho, café, feijão. Voltava carregado. O truque da tropa era esse, né? Carrega e descarrega.
P1 – O que o senhor aprendeu a cozinhar?
R – O que eu aprendi a cozinhar? De tudo eu sabia fazer, mas carne que eu mais sabia fazer. É carne (risos). O que mais a gente usava: carne, feijão, arroz e farinha. É o que fazia. Dali, você fazia uma farofa, você fazia uma sopa. Com farinha, você fazia sopa. Às vezes, cozinhava carne de boi ou cozinhava osso de boi e fazia a sopa. Tudo era gosto, né? Você chegava de manhã cedo, você levantava cedo, você comia uma sopa boa com carne, uma delícia. Quando a gente chegava na rancharia, você pegava aquela comida que sobrava, você punha dentro do caldeirão, punha farinhazinha para poder não entornar na caixa de cozinha. Quando você chegava lá, você fritava seis barrilzinhos de toicinho, tirava o toucinho e fritava. Fritava o toucinho e passava. Aí, você fazia uma comidinha. Quando você refogava aquela comida de novo, nossa, o que cheirava, menina, fazia gosto. Com a carne frita, torresmo, carne frita.
P1 – Fubá suado?
R – É, fubá suado [farofa], tinha dia que fazia também o fubá suado. Para tirar jejum. Que, aqui, se fazia fubá suado, ainda sobrava para merendar. Você estava ranchado, você mudava, trocava de rancho, que você fazia marcha, né? Lá, você chegava e tornava a passar aquele fogo e às vezes passava uma gordurinha nele. A gordurinha eu não esquecia, não. Que é bom gordinho, né? Passava gordurinha nele e tornava a merendar. E agora ia, fazia a janta. A janta é feijão, arroz e carne. É o que havia certo, era aquilo. Não tinha batata, ninguém fazia nada, só tinha feijão, arroz e carne.
P1 – Tem algum prato que é o mais típico dos tropeiros?
R – Mais interessante?
P1 – É, o mais tradicional?
R – Não, é esse que é o tradicional. Agora, o dia que você queria matar um frango, você matava um frango, abatia uma galinha, na lá na trempe mesmo você fazia, mexia em angu. Com muita dificuldade, mas mexia. Porque aquele segura na alcinha da caldeira (risos). Mexia, esse dá trabalho, mas a gente fazia assim mesmo.
P1 – E como é que eram as panelas?
R – As panelas, de acordo com a quantidade de gente. Às vezes, que você estava com uma tropa muito grande. Às vezes, você tinha panela maior para tratar de mais um ou dois, duas pessoas. Às vezes, a panelinha é pequena porque são duas pessoas. Eu viajei muito com dois. Depois, passei a viajar com três, e depois já passei a viajar com quatro. Às vezes, tinha vezes que estava com cinco, mas era assim. De acordo com a quantidade de bucho que você tá carregando, era de acordo com a gente, você carregava também.
P1 – E, quando o senhor começou a trabalhar, tinha alguma coisa que era mais comum de levar? O que era que o senhor...
R – Aqui só produzia, muitos produziam toucinhozinho também, bem toucinho produzia. Mas produziam mais rapadura, feijão. Arroz, não. Farinha de mandioca, fubá. Isso se produzia demais, né? Que, domingo, você fazia o fubá e puxava o milho também. Era o que mais puxava por aqui era isso. Agora, Zona da Mata é que trazia toucinho. Você sabe que aquele Maranhão, Lorena, esses lugares tudo soltava toucinho para aqui, até Teofilo Otoni passava tropa daqui para vir para Diamantina. Eu conheci, vi muito tropeiro, trabalhei com muito tropeiro de Maranhão e Água Boa. Aqui se puxava mais era toucinho. Toucinho e café, é para deixar lucro para eles, né? Eu lembro que os barreleiros de toucinho, eles pesavam lá. Chegava em Diamantina, quando eles batiam os barreleiros na balança, eles falavam assim: “Não, se deu mais de três quilos de quebra, não. Balança está certa, não.” (risos) Porque tudo era muito bem feito que fazia, né? Na taquara, que eles pesavam, eles marcavam o peso. Se eles excedessem, eles ficassem assim, mas se baixassem mais de três quilos eles não concordavam. Ele disse: “Não, aí estão furtando. A balança está furtando.” E os mateiros eram inteligentes mesmo. Que os barreleiros não davam quebra, porque eles salgavam o toucinho duas vezes. Eles salgam primeiro, passam o primeiro sal no toucinho, e depois eles deixavam aquilo numa banca, subiam lá em cima, que, depois, dia de amarrar para sair, eles tornavam a tirar aquele toucinho e passavam nele o tolete outra vez. Passava o sal, aí o sal já vendia com o toucinho. Tinham uns que vendiam toucinho é mais sal (risos). Aqui, em Diamantina, tinha um tal de um Lopes Irmão, ele recebia toucinho e começava a falar. Ele guardava o sal, assim: “Não, eu comprei em sua mão foi toucinho, foi sal, não.” Sal volta para o sal (risos). Era uma briga para a vida inteira. Eles forneciam mesmo era assim.Aí, eles ganharam dinheiro foi em sal, ficaram rico em sal. Você pegava um pano de toucinho desse, na hora você pegava, você sacudia assim, você tomava aquele choque com o toucinho na mão. Porque caía, o saco é pesado. Era muito interessante o serviço deles. Eles ganhavam dinheiro no sal (risos).
P1 – Foi fácil aprender a profissão de tropeiro? Como é que foi? Alguém ensinou para o senhor? Teve alguém?
R – De tropeiro? Não, continuei vendo os outros fazerem e continuei fazendo também. Mas muito inteligente. E eu, de tropeiro, eu já fazia tudo. Eles me davam o burro peladinho assim, eu arreava ele. Eu fazia tudo, fazia os nós de cangalha, fazia as cangalhas, fazia. Tudo o que precisava no burro, fazia.
P1 – Como que é? Explica para a gente tudo isso.
R – Primeiro, você tem que fazer os nós de cangalha, para depois você fazer. Aí, você corta, faz a retranca, faz o peitoral, faz o couro para você fazer a capa. Depois, você vem com a capa, você vem com ela sobre a carga que é para aperto, apertar. Eu fazia tudo, né? Depois, tinha que fazer as bruacas para carregar a mercadoria. Porque, quando carrega os milhos, você sempre podia carregar no balaio. Fazia aqueles balainhos tudo no jeito e punha saco lá dentro dos balaios. Mas carregava milho e feijão, carregava. Mas carregava fubá, carregava farinha e é assim. Tinha que enfiar as bruacas. A gente fazia as bruacas, que ficava fácil de carregar. E já evitava também de pôr couro na carga, porque não molhava, as bruacas não molhavam. Você fechou, amarrou, até dentro da água podia cair que não molhava. Caiu comigo, muitas vezes caiu carga de farinha e, no cair, não molhava. Que fechava, amarrava, depois de amarrado até e, quando chegava de molhar a farinha, mas a farinha colava e não deixava água entrar nela. Caía muito nesse Jequitinhonha ali, caiu muito comigo na água. Caía na água. Porque lá atola demais. O Vale de Jequitinhonha atolava demais. Então, vai ver, se todo dia você ia, você agarrava no rabo dele para ir jogando ele para fora, até ver se ele caía certo. Quando caía que plantava para dentro da água, você tinha que tirar a carga dele e jogar dentro da água. Para ele levantar, para você tornar a carregar ele. É sofrido, viu? Mas você tinha que ter prazer de, quando você chegava no rancho, você contar o que aconteceu (risos). Em vez de contar com sofrimento, era com satisfação.
P1 – Seu José, conta para a gente, essas partes que o senhor estava falando que tinha de fazer as partes para amarrar a mula, né? Para não cair.
R – Aquilo é para por a cangalha. É a cangalha primeiro. É onde ele carregava a carga. É lenha, é tudo que ele carregava, mas tinha a cangalha. E a cangalha você, cada um fazia com um cuidado melhor. Eu fazia as cangalhas que eu gostava de fazer com as capas bem compridas, porque as capas, sendo bem compridas, quando você acaba de carregar o animal, você pegava a capa e puxava ela assim e tampava o fundo das bruacas ou dos balaios, o que fosse que tampava. Para evitar que burro caminhasse na lama e espirrasse lama na carga.
P1 – E como o senhor escolhia a mula? Que isso é um companheiro bom para ir com vocês.
R – Para trabalhar? Era. Ah, o dia que era ruim também trabalhava com o ruim (risos). A gente se sujeita a boi também e, se não achava um bom, trabalhava com o ruim.
P1 – E o senhor já foi sozinho?
R – Se eu já fui sozinho? Já.
P1 – E os caminhos? Como que achava esses caminhos loucos?
R – Uai, e a tropa, menina, a tropa guarda a gente. Com tanto conhecimento como a gente. E a tropa fica gostando. Quando a gente acostumava assim, eu mesmo que trabalhava com a tropa, que até interessante. Os burros, até tinha burro no meio da tropa que não deixava o outro raspar, não. Até para raspar, eu que tinha que raspar. Se a gente pegava para a tropa e encostava num muro, numa cerca, qualquer lugar, tudo virado o gado, para poder você tratar deles, né? Amarrava para ensinar eles a comer sem jogar o milho fora. Que você punha as mochilas de milho, então, se eles fossem jogar os milhos para cima – que, quando o milho começa a acabar, eles começam a jogar para cima, jogam tudo no chão, né? – então, ia, amarrava os pés deles, amarrava a cabeça dele na mão, porque, aí, quando era para eles levantarem, não levantavam. Eles ficavam agarrados lá. Então, você aprendia a não suspender a cabeça. Já comia levando a mochila no chão para comer o resto do milho. Tudo isso tinha que ter trabalho, né? Agora, eles costumavam, para você raspar eles. Tinham uns burros, tinham os lombos doloridos, não achavam tocador de burro que raspasse. Mas chegava, você punha os fitilhos no lugar, quando o sujeito que estava raspando vinha raspando eles, chegavam e saíam de lá (risos). Eles saíam e não deixavam ele raspar, não. Saíam e ficavam andando. Mas chegavam perto de mim e ficavam raspando a cabeça em mim, que sabiam que eu tinha que raspar. E eu ficava até com dó deles. Eu que raspava, mas, quando eu fosse raspar, eu raspava ele todo, e chegava o pescoço para eu raspar, chegava a cabeça, pegava pela orelha para tirar os carrapatos. Então, é assim que era. A gente também toma amor, até para eu sair de um lugar, que eu falei com ele assim: “Eu estou com mais pesar de deixar esses burros aqui que vocês, eu acostumei tanto com eles que eu não posso.” Mas eu gostava da profissão minha.
P1 – Mas raspar que o senhor fala é, por exemplo... Às vezes, você tinha que ir daqui e ir até Diamantina, às vezes o burro sabia o caminho?
R – Sabia, sabia os caminhos. O burro é mais inteligente que a gente. Se você passar com um burro ali, a estrada é aqui, né? Mas, se você for desviar, fizer um atalho, passar ali, na volta, você vai perceber, ele vai passar lá onde ele passou (risos). Ele não passa lá (risos). E se você chegar depois, se se perder, também gritar com ele para achar, você esquecia, ele estava errado? Não, ele estava certo. Aí, ele voltava, ele ficava no lugar em que ele estava e atravessava a estrada. Depois que você lembrava: “Foi eu mesmo que desviei ele daqui.” É, a tropa, o burro é muito, fica mais embaixo da gente. Eles não passa num caminho fundo, quando o caminho, você vê, tem uma estrada funda, que eles sabem que a carga pega, eles não passam ali, de jeito nenhum (risos). Isso ali apruma, faz tudo quanto é miséria, mas lá ele não vai. Eles sabem que a carga vai pegar ali naqueles buraco, né? E nós tínhamos que fazer estrada, antigamente. Não tinha estrada. As trilhas como eles dizem, né? Eles diziam que era a trilha. Então, você carregava uma enxadinha, carregava foice, carregava enxada, tudo cabo curto, que é para você cavocar, fazer estrada para passar com o burro. Aqui, na serra, estava mostrando aos meninos, tinha lugar na serra que não subia, que a estrada era ruim que só. Às vezes, uma carga pesada, sabia que o burro não era capaz de pegar um tope grande, ele não subia nele. Então, você chegava, pegava umas pedra e punha, tampando o tope para eles chegarem e subirem em cima, e ainda ajudava eles a subir. Porque às vezes a estrada, o serviço era pesado. Para você não ver um burro descadeirar, você tinha que ajudar ele a subir.
P1 – O senhor deve ter passado por muito caminho difícil, né?
R – Nossa Senhora! Nessa serra mesmo, não conto para você, que tinha a cruz de
“Graças a Deus” (risos). Quando você cavava essa aí, essa serra, você falava em “Graças a Deus”, e nós vamos pôr essa cruz lá com os iniciais. “Graças a Deus.” Nós vamos, o Tonhão e eu, os seis que estavam comigo. Nós é que fizemos esse passeio, que a cruzinha acabou. O braço dela quebrou, e ficou só a ponta lá em cima, lá na serra (risos). Ainda custei a achar. Agora, nós vamos voltar lá e pôr.
P1 – Tem algum caminho, um percurso que o senhor gostou mais de fazer?
R – Ah, tem não (risos). Passei em um que não quis nem fazer. Teve um em Governador Valadares, quando eu subi com a tropa, tinha um atalho, Serra da Escadinha, eu não quis passar por ela, não (risos). Dava uma volta, dando uma volta grande para não passar na Serra da Escadinha, que lá é estrada de tropa. Mas não passei, me disseram, foi quando começaram os ladrões roubando. Então, começaram lá na serra, o povo começou a roubar. E eu não quis passar, não queria passar, não. Essa aí eu recusei. Mas a estrada não era boa, não, ruim. Que, aqui mesmo, tinha estrada ruim. Uma que ela acaba, que vocês sobem ela ali hoje, aquela acaba, você subia naquele pico de morro. É que a tropa subia, né? Estrada ruim, que a gente passava nela. Tem umas estradas aí que você ficava responsável de Santo Antônio para poder subir. É, aqui do Rio Manso para cá, você vê a estrada do Rio Manso, depois que abriu estrada de carro, por isso não teve tropa mais. Mas se você visse os lugares em que subia... Nossa Senhora, é estrada ruim mesmo, eu subia fazendo, para fazer uma marcha de três léguas se gastavam mais de cinco horas, para fazer uma marcha de três léguas. Eram ruins demais as estradas. O morro, você subia, quando você subia um aqui, lá adiante vai ter uma descida. Quando você descia, lá adiante vai ter uma subida (risos). Só grota, né? Você pensou se você vê que estava com o burro cansado? Você ficava alegre quando chegava para dar na descida. Que, aí, até o pezinho do burro ia mais. Mas, quando você sabia que descia, você sabia que na frente tinha uma que subia, né? E que ia trançar você. E você subia devagarinho, mas subia. Era penoso demais, mas a gente que está acostumado não se importava com aquilo, não. Você vê, gostava de andar bem carregado, pesado. Que gostava de trabalhar mesmo. Que, às vezes, você punha até dez arroubas, 12 arroubas num burro. Você sabia que você tinha uma pá que você tinha que apanhar. Mas você importava com aquilo, não. Mas também, antes de chegar no mercado, quando você estava apanhando as cargas para carregar, você chegava, depois que você já estava cansado, você ainda estava carregando, você ainda ia pegar peso. Cada um queria pôr suas vantagens (risos). Apanhar mais do que o outro (risos). Aquilo tudo era distração, né? Para nós, era distração.
P1 – Mas tinha algum lugar em que o senhor gostava mais de passar?
R – Ah, tem uma estrada que você gostava mais, mas aqui é tudo estrada ruim mesmo. Aqui não tinha nenhum mistério, não. Quando você achava umas estradas como nós, tinha Diamantina, você subia essa serra. Quando você pegava a Chapada dos Cristais, que era uma chapada, frio! Era frio demais, nem toda hora você podia passar. Que até que você passava bem. Lá não passava, que lá o tempo de frio de manhã cedo você precisava passar. Em tempo de chuva também você custava a passar. Às vezes, na serra, você descia bem, mesmo chuvendo. Agora, lá nos Cristais é tremendo, porque era feio mesmo na serra. É como nós, que temos a Chapado do Couto, que é aqui, é onde vocês foram, né? Lá perto, você foi no Pico do Itambé? Pois é, o Pico do Itambé está para lá da Chapada do Couto, né? Chapado do Couto está para cá, está perto dos Dois Irmãos. Dois Irmãos você sabe qual é também, né? Você encherga, né? Ali, em pezinho, tem a Chapada do Couto. Aquele lugar também era perigoso, estrada boa. Mas, para passar, era difícil, tempo das águas, Nossa Senhora! Morria gente.
P1 – O que é uma estrada boa para o senhor?
R – A estrada boa, para mim, é o quê? Que estrada boa aí é estrada de caminhão, né? Porque é larga (risos).
P1 – Mas para o tropeiro?
R – Ah, para o tropeiro? É, hoje não serve, estrada de caminhão não serve mais para o tropeiro, porque como é que você encontra com um carro? Tem jeito não, dá desastre toda hora.
P1 – Mas, antigamente, qual era a estrada boa?
R – A estrada boa para nós? De estrada boa é a estrada daqui para Diamantina, a estrada era muito boa, que era mais distraída. As marchas eram menos. Que a marcha daqui, punha aí, você saía daqui para Diamantina, você saía daqui para o Rio Manso, do Rio Manso você ia pra Samambaia, (Goiabal?). “Arranchava” lá, chegava lá no outro dia cedo. Só que no Rio Manso tem pasto fechado. Esse lugar tinha, e, já no (Goiabal?), e nem na Samambaia não tinha, era na larga que você soltava burro. Às vezes, você achava e, às vezes, não achava. Quando a tropa era muito madrinheira, muito boa, até achava, mas tinha dia que eles mesmo... Burro é bem safado, né? Como eu falo para você, muito inteligente. Tem burro que fecha o (berloque?) dentro do queixo e não deixa ele balançar (risos). Só se vem muito mosquito, eles só sabem pôr se tiver mosquito. Se não tiver, aí você fica pensando, você pegar ele (risos).
P1 – Seu José, conta para a gente como é que eram as matas?
R – As matas? As matas aqui eram muito bonitas. Essa estrada em que vocês passaram aqui, que era salto aqui, fazia assim aqui, uma arcada de mato. Tudo muito bonito, as matas. Agora, mata aqui para baixo, eles falavam “a mata”, bem que eu não conheci mata mais, não. Eu conheci foi um sertão “brabo” aí, e capim-gordura. Não tinha mata mais, não, do meu tempo disso foi mata. Eles falavam até baixinho assim, e aqui tem casas, foi tirada a madeira daqui. Agora, quando eu conheci, já era tudo sertão, já tinham acabado com o mato tudo.
P1 – Capim-gordura é ruim demais, né?
R – Não, é bom demais, você come um queijo gostoso é capim-gordura (risos). Você já viu? Pois o queijo do gado, se vê que o pasto é de capim-gordura, o queijo é gostoso.
P1 – É mesmo?
R – É, colonial. Esse da branquiária não tem gordura no queijo, não. E o queijo de capim-gordura é gordo. Então, o queijo do mês de junho, que o capim estava maduro, Nossa Senhora! É muito, até percebe que tomou o leite. Hoje tomei. Estou tomando um leite aí, que está comprando um leite aqui na mão da minha filha, como ele chama? Presta atenção, que esse leite para mim está misturado com água, viu? Eles estão aumentando ele com água. Porque não pode (risos). Ele não está deixando nada no copo, não. E num tempo desse o leite, já dá até ruim até para você lavar os copos. E esse dele está limpo, fácil de lavar, é porque é mais água do que leite.
P1 – Devia ter muito bicho?
R – Bicho tinha, tem nessas estradas? Ah, tinha. Cobra, isso daí tem demais.
P1 – Tem alguns bichos, os nomes, que o senhor podia falar para a gente?
R – Que eu fale? Não, tem. Mas quase que nem vê mais isso, tem cotia, tem paca, tem onça, tem tamanduá-bandeira, mas quase... Isso lá no parque até tem.
P1 – Mas, nas viagens, o que o senhor via?
R – Não. Encontrei muito guará (risos).
P1 – Guará?
R – Guará, é. Guará, tatu, encontrava demais. E guará, não gostava nem de encontrar ele. É que ele é mais fechado do que tudo (risos).
P1 – Como assim?
R – Se ele vai fazer um negócio, se você encontrar um guará, se ele estiver andando para a frente, você pode andar e pode ir lá fazer o negócio. Mas se você encontrar com ele, você pode voltar, que o negócio não dá certo, não.
P1 – Por quê?
R – Ele é fechado. Para tudo, ele é fechado. Eu estava com paiol de gorgurão, lá na beira do rio, para lavar, e falei com os meninos, falei assim: “Estou com esperança nesse paiol”, falei. “E eu não estou com esperança nenhuma.” “Por quê?” Aí, eu fui buscar uns burros ali embaixo, quando cheguei, encontrei um guará e eu pelejei para tocar, para sair da estrada para eu poder passar, e ele não tocou, ele encrespou foi para o meu lado e eu falei para você que não vai dar certo, não. “Você quer lavar esse paiol par você? Eu sei que não vai dar nada.” É bater, mas tentou, mas não deu nada (risos). Sabia, ele é fechado mesmo.
P1 – Ele ficava parado?
R – Disse que guará e cobra-cipó não vão, não, não vão mexer com o negócio, que não presta.
P1 – A cobra-cipó? Ela é perigosa?
R – Não, não é perigosa. Ela é mansa demais, mas dizem que muito fechada. E, se encontrar com cobra-cipó, não precisa fazer negócio, não (risos). O povo tem superstição, não tem? E eu também fui muito supersticioso. Esse tal de guará eu não gosto de ver ele desse jeito (risos). Ele é fechado, é tanto, que todo mundo, quando o sujeito sai com qualquer coisa: “Você está com o couro fora das costas.” Para mim, é que já sabe que ele é fechado. Ele só serve para curar alguma coisa. Porque não desenvolve. Às vezes, uma ferida, para curar uma ferida pode servir, né? Porque nada dele desenvolve. Assim, ferida também não desenvolve. Mas esse tal de guará, vocês conhecem? Não, né? Você conhece no papel, mas você não conhece, não vê lá andando. Você vê ele andando, trem mais feio do mundo. Porque ele é esguio. A frente dele é mais alta, mais baixa do que a traseira dele. Então, ele caminha, aquele trem desengonçado que ele caminha. E tem uns que são até maus, tem uns calombos pretos, que esse até escolhe a gente. Mas eu, para mim, já não passo nem perto deles, se eu souber que tem guará no muro, não quero encontrar com ele, não. Se eu encontrar com ele, não vou na viagem, não (risos). Vixe!
P1 – Seu Marçal, o senhor conhece as árvores da região?
R – Um bocado.
P1 – Tem alguma árvore que o senhor gosta mais? Do cerrado?
R – Tem, tem a árvore que mais nós apreciamos aqui é sucupira. Pau-d’arco, que vocês conhecem lá, como é que vocês conhece? O nome dele, pau-d’arco é ipê. Lá, para vocês é ipê e, para nós, é pau-d’arco. Tem aqui uma massambé, pau-d’arco, tem braúna, tem sucupira, tem cabelo-de-negro. Ah, de madeira, eu conheço canela-de-velha. Eu conheço tudo quanto é trem (risos). Tudo quanto é madeira eu conheço.
P1 – E essas madeiras, elas são usadas para alguma coisa?
R – Para fazer, construir casa, né? Para tudo. Para serra, para serrar, mas sucupira de vez é muito procurada. Tem esse pereiro, esse aqui é pereiro, essa madeira é muito boa também o pereiro, monjolo. Isso eu conheço, essas madeiras todas.
P1 – Sucupira é bom para a Medicina também, não é?
R – Para Medicina? Deve prestar, porque eles falavam muito na flor da casca e da flor dela. Disso tem muito, nós temos muito, eu devo ter uma aqui. Isso aqui chama bacupari.
P1 – Bacupari?
R – Bacupari é esse aqui, esse aqui dá madeira. Isso dá madeira no mato para qualquer coisa. Começa dando cabo de enxada, porque ela, essas duas folhas, essa daqui é o talo, esse aqui é tal chapéu-de-couro. E essa daqui é o dom-bernardo. Isso tudo é bom para dormir. Chega, até para baixar a pressão, ela é boa, se é bom para dormir. Deve baixar a pressão (risos), baixar a pressão também. Isso aqui, o bacupari, você sabe para que eu uso esse bacupari? Eu fazia muita, eu comprava isso muito na mão desse povo para eu fazar garrafada. Esse povo que tem essas doenças de ”gotas”. Ácido úrico, né? Não tem essas doenças, que é custoso. Médico custa a tratar disso, né? “Gotas” e ácido úrico. Não trata fácil, não. Então, é isso aqui. Eu ponho na cachaça para poder tomar (risos). E dou muito para os outros também (risos). Eles mandam buscar esse trem (risos). Eu serro os pedacinhos para poder dar para os outros (risos). Troço tem muito remédio, né? E eu até vou falar para vocês, se eu estivesse mais novo, eu ia ser um raizeiro, que não tem trem bom para ganhar dinheiro igual a raizeiro (risos). Todo raizeiro que eu conheci, o retiro dele é cheio de gado (risos). Eles tratam da raiz, né? Raiz não faz mal a ninguém. Se não fizer bem, mal também não faz. Então, e eles vendem a raiz. Eu também já fui em muitos raizeiros. Às vezes, você vai e não dá certo, mas você já pagou ele (risos). Também não tem problema, já recebeu (risos).
P1 – E, Seu Marçal, me conta uma coisa, o senhor poderia descrever para a gente um dia de tropeiro?
R – Um dia?
P1 – É. Como que é um dia, desde que acorda, o que faz?
R – A primeira coisa que nós fazemos, de acordar todo mundo, é que, quando acordava, tomava um café, fazia um cigarro e ainda fumava. E eu fumava, mas não gostava de fumar enquanto a tropa não estava carregada, eu não fumava. Agora, depois que eu carregava a tropa é que eu fumava. Levantava cedo, tomava o café e, quando eu quero, quando eu era o cozinheiro, eu levantava, coava o café e fazia o almoço, para, quando eles chegassem do pasto, já estar com o almoço pronto. Agora, quando eu já tratava, já mexendo com o burro, que outro cozinhava, eu já deixava a banha pronta. Então, eu saía e ia para o pasto, chegava, trazia o que ficava lá dentro do rancho, pegava, punha os dobros tudo para fora. Punha dobro, punha subcarga espichada no chão, pegava as cangalhas, chegava, você punha cabeça nos burros, punha as dobradeiras, batia as cangalhas em cima. E, aí, ia, almoçava, depois de você almoçar, ia carregar. Aí, dava o que você carregou, você soltava. Tem um peitoral que a mula de guia carrega, um peitoral, que é muito bonito até o peitoral. O dobro é muito diferente, né? Que você dobrava um couro, até para dobrar um couro, tinha que saber como é que dobrava. Que aquele couro tinha que cair em pezinho (risos). Se elas viessem para trás, com as garras, se um vento batesse, você via só garra bater assim. Aquilo era o entusiamo do tropeiro (risos). Tudo é enfeite, né? Mas você solta. Quando soltava, que você montasse, tivesse com o tocador de burro. Eu montava a cavalo, aí eu puxava do fumo, puxava da palha, fazia um cigarrinho e ia puxar fumaça a essa hora. Aí, ia puxar fumaça. Aí, eu socava ele. Chegava, costumava acertar, às vezes tinha cinco, seis lotes da ranchada. Você chega, se você fosse sair primeiro, você pedia licença para o outro. Porque dizem que eles atrapalhavam a gente na estrada, né? Então, você: “Você vai dar licença que, vocês ainda estão carregando, eu já estou carregado, posso voltar, mas eu coo café e espero vocês lá para a frente (risos). Você já chega, tem café coado.” Aí, eles ficavam satisfeitos. Pois aí também, caso você chega e nós não demos estrada, vocês podem chegar que nós paramos, nós tiramos a estrada de um lado e vocês passam. E vocês vão embora, e depois nós vamos atrás. Mas fazia isso nada (risos). Da hora que você saía, da hora que você saía, você espichava a correia, eles pegam e o trem caminhava. Todo mundo também estava doido para chegar e ranchar. Aí, você ia embora, né? Depois, aí, vamos. “Vocês andaram bem, né?” Falei: “Andei, andei, mas parece que foi, né? Vocês não tiveram muito problema na estrada, não?” “Não, teve não.” É porque vocês caminharam demais mesmo.” Tinha que pedir licença. Agora, se você não pedisse licença, era perigoso você ficar atrasado na estrada (risos). Porque usava muita simpatia, que eles faziam (risos). A gente não podia facilitar, não. Isso era o carreira, tropeiro, todo mundo tinha essas macaquices. Era muito respeito. Também, quando você chegava, depois era muito bom, que você quase descarregava um burro. Quando você chegava, você vai desapertando e você tira o seu tocador, que nós não pudemos saber como é que você descarrega, né? Que cada um tem um lugar certo de descarregar. Então, nós ajudamos vocês a descarregar, e vocês podem só desapertar e soltar para nós, e deixar aí que nós descarregamos. Ajudava a gente, né? “Aí, vocês, agora, já tomaram meu café (risos)? Tomou café? Café meu já está coado. Vocês querem esperar? Não, comida, não. Nós vamos ter comida também.” Todo mundo tratava um com o outro, com aquele respeito (risos). Mas todo mundo, era uma coisa bonita. Engraçado, né? Você com aquela companheirada, aquilo tudo, naquela mesma profissão. Não tinha ninguém para ir brigar com o outro, não tinha nada, era só satisfação. Era bom demais. Você chegar, quando você chegava na cidade, tinham as moças. Eu mesmo tinha umas menina que me rodeavam demais. Às vezes, ela chegava assim: “Oi, você vai ficar aí hoje?” “Estou com vontade de ficar. Agora, na volta, eu não passo por aqui, não.” “Por que você não passa?” “Não volto, porque eu já passo daqui, vou lá para o Rio Manso.” Porque a “zinha” falava assim: “Ah, então nós não vamos comer o feijãozinho com vocês, não, né? Os torresmos.” “Não, hoje, não. Hoje vou passar.” E elas vinham para a porta do rancho. A gente era meio besta, meio atrasado (risos). Mesmo assim, a gente prestigiava ela. Que você sabe? Onde tem homem, tem mulher também. Onde tem mulher, homem está querendo estar ali perto. É desse jeito (risos). Tinham umas meninas na montanha, que eu ranchava na subida para lá. Eu não ranchava, só ranchava na vinda, porque, na vinda, fazia uma marcha em Diamantina, menos montanha, então, para carregar. Teve um dia que eu cheguei lá na montanha com a tropa carregada e eu ia sozinho, um companheiro meu não valia porcaria nenhuma, ruim que, nem para descarregar um burro, ele não descarregava. Então, eu descarreguei a tropa tudo dentro do rancho. Levava de dois a dois e descarregava lá dentro. Quando foi que cheguei, que chuva, menina. Debaixo de um aguaceiro, que fazia até medo. Quando eu acabei de descarregar, ela veio de lá. Lá de dentro da casa dela, trazendo um saquinho de biscoito e um café para mim. Depois, voltou lá, trouxe para mim um feixinho de lenha, que eu tinha meia lenha, tinha, mas tava molhada. Depois, trouxe a lenha, trouxe uma maçã. Trouxe umas canelas, eu fiquei tão satisfeito com aquilo (risos). E a menina era bonita, viu? E, aí, toda vez que eu chegava lá, ou devia de ter uma laranja, ou devia de ter um bolo, dividia qualquer coisa para levar para mim. E eu ficava entusiasmado com aquilo. Essas eram três. Uma, quando às vezes eu estava ranchado, uma passava. Morava mais para cima e a outra morava para baixo da outra. Mas uma gritava: “Oh, Fulano, vamos lá na bica para apanhar uma água?” “Oh, Fulana, eu não vou para lá, não, que eu fui lá agora.” “Vamos lá, que você vai lá comigo só para bater papo com alguém.” Você não fica satisfeito? Você está me vendo, é mais um ano de vida que você vive, né? Eu passava por isso tudo, por isso que eu gostava da profissão, é por isso (risos). Eu ficava satisfeito com aquilo.
P1 – E essa história do chapéu do tropeiro?
R – Ah, o chapeuzinho? Era chapeuzinho. O meu era de tropeiro, não. O meu era esse chapéu, que o tropeiro mais usava era chapéu de couro, né? Ganhei, gostei foi desse. Só que eu gostava de pôr de certo jeito, uma hora para cima (risos).
P1 – E, para cima, o que é?
R – Para cima, quer dizer que você está desamparado mesmo, que não tinha namorada (risos). Você não tinha. Parece que você está na brisa. Aí, você procurava algum que estava procurando. Você: “O que você viu hoje?” “Eh, nada, não, eu estou também descontrolado.” Aí, elas procuravam a gente (risos).
P1 – Mostra para a gente, mostra como é que era. Para cima?
R – Para cima, assim. Quando você punha o chapeuzinho para cima, você sabe que você está na brisa, não tinha ninguém. Agora, quando você estava assim, você já tinha namorada (risos). Ela não precisava procurar você.
P1 – Todos os tropeiros faziam isso? Ou só o senhor?
R – Não, é eu, né? Cada um tem uma cabeça, né? E eu gostava. Não era coisa de andar com tropa, não. Quando eu estava aqui na rua mesmo, andando aqui na rua. Eu usava é isso. Você olha, você: “Oi.” “Seu ‘oi’ está desamparado.” “Por quê?” “Ah, estou vendo você com esse chapeuzinho para cima.” Você: “Ah, de fato, tem razão (risos).” Eu vou falar para você: no tempo, eu casei novo, casei com 22 anos, mas nesses 22 anos, de 15 anos até 22 anos, eu namorei demais. Mas só namorava. Mas o namoro de antigamente não é igual o de hoje não. Hoje, você está abraçando, beijando. Naquele tempo, não. Naquele tempo, você só fitava, é o mesmo que jacaré, né? Só olha para o outro (risos). Você fica aí, você não tirava o olho, não. Você já não ouviu contar disso, não? Que é flerte (risos). Tinha o tal de flerte. Era o namoro de antigamente. Você não ficava conhecendo a moça, não. Mas, mesmo assim, você ficava satisfeito, porque sabia que namorar era daquele jeito. Você via duas, uma moça e um rapaz namorando, você sentava, ficava de papo. Ele encarava na moça e a moça encarava nele. Enquanto ele não tateava, ele não parava, não levantava a cabeça.
P1 – E tinha alguma mulher que era tropeira?
R – Ah, tinha. Não, tinha mulher. Mulher de zona, tinha muita.
P1 – Não. Mulher tropeira tinha alguma?
R – De tropeira? Na estrada, não (risos). Não tinha esse negócio de mulher de tropeira, não.
P1 – O senhor não conheceu nenhuma mulher?
R – Não. Tinha lá em Diamantina, né? Lá em Diamantina, Mendanha, no Rio Manso, esses tinham. Mas, lá em Diamantina, você não achava. Lá tinha um tal de Beco do Mota que era muito afamado. Lá, a vida dos homens (risos). Agora, você pensou, os bestas dos homens saem de casa. Quando você sai de casa, você não passa uma roupa, você não passa nada. Até lavar roupa, você leva lavadinha. Mas carregar roupa, não tem, não, carrega numa mala, carrega num saco de roupa. Agora, você veja, abarrota toda, né? Quando você chegava do Beco do Mota, você vê os companheiros (risos). “Oh, aquele é companheiro nosso.” “Por quê?” “Quem engoma ele é boi!” Às vezes, a gente caçoava (risos). A gente servia de caçoada e caçoando os outros, que você está do mesmo jeito, né? E, lá, você tinha, você vai, se cortava, fica. E toda noite eu estava lá. Teve uma ocasião em que eu fiquei lá seis dias. Uma chuva que não parava, uma chuva de gelo. Eu toda noite eu ia lá para o Beco do Mota. Só que Deus ajudava, eu não arrumava nada. Porque essas mulheres chegavam, viam as comitivas, às vezes tinha mulher boa. Eu disse: “Oh, minha filha, estou de um jeito que não estou prestando para nada, não estou querendo nem nada com vocês.” “Por quê?” “Ah, eu estou cheio de problema, tropa carregada, tirei tudo do depósito, quase tive que voltar com eles para trás.” “E o dinheiro?” “Sem dinheiro.” Mulher gosta é de dinheiro. Eu não tenho. E o que eu vou arrumar, tem que ficar tapeando, mas eu já estava mesmo sem graça também. A gente, tudo perturba, é o cérebro da gente. Você não estando com o cérebro ruim, você não quer nada. Nem namoro você não quer. Então, nisso, tudo eu guardava. Falava com elas: “Não, eu não estou interessando, não.” Teve um dia que eu cheguei lá, e tinha uma, eu cheguei de viagem tarde da noite. E cheguei, soltei tropa tarde. Quando foi às dez horas eu fui para lá. Falei com um companheiro assim: “Oh, nós não vamos fazer já comida para comer, não. Nós vamos lá para o Beco do Mota para ver se nós achamos um feijão ferrado, fazemos um mexido qualquer, não acha mulher, para comer, né? Cheguei lá, ainda dei parte de quebrado mesmo. E estou lá, falei assim, e tinha uma lá te atendendo, conversando comigo, e eu falando com ela assim: “Ah, não, eu toquei, estou chegando agora, não fiz nada, não tenho nada.” Comecei comprando o que tem na mão dele. E foi. Quando foi na hora de pagar, eu estava com dinheiro no bolso, né? Quando eu puxei esse dinheiro, essa mulher virou outra (risos). Virou outra mulher, 1 metro e noventa. “E eu falei com você que não tenho dinheiro.” Mas e esse dinheiro que você está com ele, tem compromisso com ele?” “Esse não é meu.” “Tem compromisso com ele ou não tem?” Pois ela implicou comigo mesmo, fez eu ir no quarto dela. Eu fui olhar, olhei esse quarto dela. “Achei o quarto muito ruim”, falei assim. Ela: “Ué, mas você, eu não vou levar vantagem nenhuma com você?” Falei assim: “Não, nenhuma.” “Estou achando interessante esse trechinho (risos).” Eu: “Oh, menina. Eu tenho entrado em casa de mulher aqui, que dá gosto de entrar. Eu não fico, não acho interessante.” “Agora, eu achei interessante você.” “Eu quero, não.” Eu fui, rodeei, fui na porta, fiquei na porta. Fui primeiro, falei assim: “Daqui eu pulo lá fora (risos).” Que eles tinham um negócio, navalha. As mulheres eram perigosas, “brabas” demais. Costumava passar a mão na navalha. E cortou muita gente lá. Cortava muita gente, navalha. Que elas são atrevidas. Quando não dá para elas, dá ao menos um dinheiro. Tinha que dar. Não deu, elas saíam para a briga. E eu não fiz nada. Falei assim: “Não, eu estou perdido mesmo hoje, quero não, vamos embora.” Fui embora para casa. Mas tinha ido lá só para comer um salgado qualquer. Não tinha tempo de fazer comida, e era tarde. É o “faz caso”, né? Você punha a tampa no largo, lugar largo. Não acha, vai sair no outro dia, você fala assim: “Nós vamos ficar aqui hoje?” “Não, ficamos não. Nós vamos embora, senão, vai acontecer amanhã do mesmo jeito.” “Então, vamos aproveitar a noite.” E fomos debaixo d’água, ainda chegamos em Diamantina. Ih, não sentia nada, né? Você vê, tem gente que fica desesperado, cansado. Nós não cansávamos, não. Trabalhava do mesmo jeito. Sobrou uma serra lá, e eu falei: “Pois é.” E nós subimos essa serra, mas eu, só, não toco, não. Eu falei assim: “Você pode deixar que eu toco, toma o burro que eu vou tocar.” Toquei até o bicho subir a serra, foi embora. Para chegar em Diamantina. Chegar na Chapada, fria, um frio que fazia mesmo. Só que a chuva não demorou muito tempo. Daqui a um pouco, a chuva estiou, esquentou, a lua clareou, nós acabamos de chegar em Diamantina. Mas era um sofrimento, viu? Mas eu, para mim, não era sofrimento, não. Gostava daquilo (risos). Às vezes, eu estava deitado numa barraca. Com um pouco falava, gritava: “Oh, gente, oh, Zé, a água está entrando na barraca, debaixo da barraca.” Eles não viam a chuva. A chuva chovendo, a água entrava debaixo da barraca. Aí, era hora de levantar, para poder pôr os trens tudo no alto. E arrumar forro para pôr os couros em cima, porque a água entrava dentro dos couros. E como é que dormia?
P1 – Como é que era essa barraca?
R – As barracas? A barraca é um pano branco que nós usávamos. Eles tratavam de
“sarjada do rio”. Então, eles tinham que fazer uma barraca em que cabiam dois lotes de burros. Você chegava, já tinha nesses lugares ponto que você vivia. Você vai andando, você já tinha no meio de uma serra, você já tinha as madeiras escondidas. Que você não podia deixar a madeira, se não, se outros tiravam e mudavam para outro lugar, para você chegar, você não achava a madeira no lugar. E, para achar essa madeira, é difícil, lá é só cheio de campina. Então, eu deixava, tinha tudo guardado. Aí, teve que chegar, só armava a barraca e dormia. Mas tinha noite que, às vezes, dormia, a chuva vinha de noite. Você não sabia como é que estava, você nem cortava a enxurrada. Porque, você corta a enxurrada dos lados, então, você corta, para a enxurrada, se chover, não cair dentro da barraca. Era sofrimento (risos). Agora, para esses meninos, até é bom, que essa barraca passava o chuvisco. Passava, né? Mas você estava deitado, e caindo aquele chuveirinho fino. Aquele chuvisco fino na gente. Aí, dava até sono, mais sono na gente (risos). Isso eu ranchava muito aqui nessa Samambaia, aqui no (Goiabal?), do Rio Manso, do Mendanha para cima. Ranchei muitas vezes, naquele lugar todo ali eu ranchava. E aproveitava aquilo, que é muito bom.
P1 – E tinha música? Vocês cantavam?
R – Não. Cantava, eu cantava demais (risos).
P1 – O que o senhor cantava?
R – Eu cantava tudo (risos).
P1 – Tem alguma canção?
R – O que tivesse. Cantava muito (risos). Eu cantava, nesses bailes todos eu cantava. Hoje que não tem mais, não tem isso mais. Hoje, tem mais é som, né? Para esses bailes, para tudo. Mas, antigamente, não era. Era viola, uma sanfona tocando, e a gente cantando.
P1 – Canção de tropeiro tinha?
R – De tropeiro? Tinha muito.
P1 – O senhor lembra de alguma?
R – Não, guardo isso, não (risos). Você cantava o que vinha na boca (risos). Você transformava tudo em verso. Aqui, você esquecia muitos.
P1 – Não tem nem um versinho para a gente?
R – Não, não (risos). Tem muito verso, cantava demais. Isso eu canto até hoje. Eu vou, entro no banheiro, vou tomar banho, estou cantando (risos).
P1 – Aqui, não? Canta uma para a gente?
R – Não, hoje não dá para cantar, não. Se eu tomar umas duas, eu canto (risos).
P1 – E uma história que nem você falou dos guarás? Conta uma história para a gente?
R – Pois eu não contei para você uma?
P1 – Conta outra para a gente?
R – Falei com você, guará, eu não mexo com aquele bicho, não. Esse bicho, de jeito nenhum (risos). Aquele é fechado mesmo. E aquele, o bandeira e o guará são fechados. Aqui entrou um bandeira na rua, numa ocasião. Tem um tal de Jacinto que matou esse bandeira. E esse bandeira corria a rua toda, até estava tirando folia, de porta em porta. E entrou um “azarzinho” preto. Teve uma mortandade aqui, que muita gente falou assim: “Isso vai dar sangue aqui no Rio Preto.” Falei: “Por que, Seu Rivelino?” Ele disse: “Não. Quando entram esses matos, esses antigos tinham isso, né? Quando entra um bicho desse de fora, que não é lá do mato, vem para aqui, aparece aqui, é mau sinal.” E foi dito e feito, foi um mau sinal mesmo. É o mesmo que galo cantando de manhã cedo. Galinha começa a cantar de manhã cedo, você pode contar que é um difunto na certa (risos).
P1 – O que é essa bandeira aí?
R – Os tamanduás-bandeiras? Ele têm uma bandeirona no rabo, na cauda. É uma bandeira, e aquele que é o perigo dele. Porque ele, dentro do mato, ele é o feroz. Agora, numa chapada limpa, qualquer pessoa mata ele. Porque ele tem um nariz comprido, desse jeito. O alimento dele é mais formiga e cupim. Esse aqui, ele enfia dentro do formigueiro, aquele enche de formiga, ele puxa. E come aquilo. Tamanduá-bandeira. Será que essa língua aguenta mordida de formiga (risos)? Mas ele se alimenta é disso, é formiga. Enfia o nariz no formigueiro, a língua no formigueiro, deixa ela encher, na hora que enche, ele puxa para dentro. Ele engole.
P1 – Como é que foi a vida do senhor, casado, viajando muito?
R – Foi muito sofrida, porque a minha mulher foi muito doente. Com cinco anos que eu casei, ela começou a sofrer, a ter ataque. E aquilo me tirou do serviço, eu fiquei desorientado. Eu, às vezes, viajava e ficava só com medo de dar um ataque em casa. Ela dava um ataque muito feio. Pelejei, mas pelejamos isso mais de 30 anos. Pelejamos com isso. Depois, Deus ajudou, foi aparecendo uns comprimidos, e eu fui pelejando, até que ela parou. Costumava dar muito ataque encarreirado. Aí, passou para dar um ataque, três ataques, depois passou a um ataque só. E nós fomos vivendo. Eu trabalhando. Quando eu vim, larguei de mexer com tropa foi por causa disso. Eu vim caçar de mexer com comércio, com outra coisa. Explorar outras coisas. Eu sabia que a vida era pesada. Eu tinha que ser cavador da vida. Aí, dessa ocasião, eu fazia tudo. Eu trabalhei com roça, trabalhei muito, uns três anos ou quatro. Trabalhei com a lavoura, depois passei a mexer com arreio. Com arreio, eu já mexia, e aqui eu já tocava arreio, tocava tudo. Então, não viajei mais. Viajava só assim, saía daqui, ia lá na Lorena, comprava uma tropa, trazia, vendia, arreava. Outra hora, arreava e vendia. Só isso, eu comecei mexendo só com isso. Até que nós conseguimos afirmar numa casinha de comércio ali em baixo. E, ali, Deus ajudou que eu comecei crescendo e logo fiz a casa. Fiz casa em Diamantina, fiz casa em Belo Horizonte. Isso tudo. Depois, quando eu perdi a mulher, eu entreguei tudo para os filhos. E fiquei aqui, né? Só com essa casinha. Fiquei com a casinha e fiquei com a criação. Esse cerco ficou para mim. Mas, com a aposentadoria minha, dá para eu tomar uma cervejinha, tem dia que eu tomo até uísque (risos).
P1 – E como foi para o senhor deixar a profissão de tropeiro?
R – Ah, deixei por isso.
P1 – Mas o que foi pior?
R – O que piorou é porque não podia continuar viajando, porque não podia largar ela em casa. Eu tinha que ficar em casa, olhando. Que eu viajando, dentro de casa e que eu fui trabalhar. Eu comecei, comprei caminhão. Comecei a trabalhar com caminhão. Mas, mesmo assim, caminhão tem para ir viajar. Porque, quando eu ia em Diamantina, tinha uma dona que morava comigo. Falava assim: “Ih, sua dona.” Que ela ficou, nove anos, ela ficou muda. Ela teve uma embolia cerebral. Primeiro, ela teve um derrame, depois teve uma embolia. Com essa embolia, ela dependia muito de mim, ela precisava de mim até para levar no banheiro. Para a comida, dependia de mim. E ela dava falta de mim demais. Às vezes, chegava o dia que eu viajava, ela ia na porta da venda, e ficava na porta da venda, batendo na porta. E olhando na porta, para ver se eu estava lá. Eu fiquei com muito dó, eu não aguentei mais viajar. Para ir viajar desse jeito, fico em casa. De vez em quando, eu ia fazer viagem em Belo Horizonte, de um dia para o outro. Eu comprei um caminhãozinho depois, passei um caminhão que eu tinha, que eu fazia transporte. Eu peguei, passei para os filhos, para os dois filhos. Quando eu passei os trens para eles, comprei um caminhãozinho. Comprei um caminhãozinho, desses caminhõezinhos, como é que chama o caminhão, gente? Mas muito bonzinho o caminhão. Eu saía daqui em Diamantina e carregava ele e vinha para aqui. Dormia em casa, para não ficar longe dela. Que não tinha confiança de ficar longe dela. Eu sofri. E, agora, que eu sofri. Esse é o sofrimento. Porque tinha que viajar, não dormia de noite. Porque, às vezes, ela quase não dormia, e eu passava a noite olhando ela. Tinham umas meninas que gostavam muito de um forró, mas elas olhavam ela até as cinco horas. Das cinco hora, era eu que tinha que olhar. E, para dormir, eu deitava, tinha dia que arruinava. Eu costumava deitar com ela nos braços. Ficava deitado, e ela deitada em cima de mim, e eu olhando ela. Até o dia amanhecer. Quando o dia amanheceu, eu apanhava, dava a ela uma coberta, e ela levantava aquelas cobertas. Mas, também, com escuro ainda, eu levantava, eu ia para a venda, e ela ia atrás de mim. Eu chegava, levava ela na pedreira, sentava na pedreira e embuçava ela e deixava ela sentada. Nove anos passando essa... Não era para eu dar uma risada mais, não era?
P1 – Nossa! É, o senhor tem muito...
R – Concordei com tudo que Deus fez comigo. Fui muito paciente. Mas toda vida eu queria de todo mundo. Essa fazenda que eu trabalhei, todas essas fazendas, eu tinha uma cotação. Nossa Senhora! Os homens não sabiam o que fazer comigo. Isso tudo me prendia. Eles tinham coisa comigo mesmo. Mas eu também trabalhava demais. Toda vida, gostei muito de trabalhar. Fui muito interesseiro, trabalhei, por que, quem se interessa pelos outros, os outros se interessam por ele, né? Agora, quem não interessa para ninguém, ninguém interessa por ele também, não. E todo mundo interessava por mim. Esse homens mesmo não queriam que eu saísse da fazenda dele de jeito nenhum. Mas Deus ajudou, que eu “descombinei” com o filho dele, e ele falou comigo, não queria que eu saísse. Primeiro, “descombinei” com o rapazinho. Ele ficou com o rapazinho fora de casa dois anos, e eu lá dentro. Depois, o rapazinho começou a voltar às boas comigo, ele voltou para lá outra vez. E eu fiquei lá. E ele voltou, e o rapazinho ficou. Mas logo de cara, ele começou a tornar a fazer as besteiras comigo, fui, larguei. Falei com ele: “Não! Vou embora. Agora eu vou embora.” Mas Deus estava me ajudando, que eu tomei um caminho certo. Porque, enquanto eu estava com ele, eu comprei casa, comprei tropa, comprei tudo. Mas aí eu tornei a ficar junto dela, olhando ela. E consegui fazer muita coisa. Que isso aqui, essa loja aqui fui eu. A maior loja que teve no Rio Preto foi minha. Tinha movimento grande mesmo. E tinha três moças que trabalhavam comigo, que me davam gosto. Além de eu ficar, só de olhar, elas, para mim, davam gosto. Que uma é aquela que você viu aqui. E outra é uma, aquela que tem aquela loja ali ó. Aquela tal de Goia. E a outra que tem uma lojinha lá em cima, lá embaixo. Mas eu também pus honestamente todas essas aí, com recurso. Essa que esteve aqui, essa ali, você viu? Aquela tem uma lojinha aqui e tem uma casa muito boa, que eu ajudei a fazer. A outra que tem ali, demos dinheiro para pôr uma lojinha para ela, lá vai bem. A outra também, é a mesma coisa, tem uma lojinha. Em vez de eu dar aos filhos, que não me ajudaram em nada, eu fiz, foi, ajudei elas. E graças a Deus elas todas estão crescendo e está dando para manter as despesas. E eu fico satisfeito. Eu, com esse buraquinho aqui, para não atentar elas. Que costuma até chegar lá, costuma. Elas abanam para mim, assim. Não estou satisfeito, não, enquanto eu não der o braço, eu não estou satisfeito (risos).
P1 – Seu Marçal, só voltando um pouquinho. O senhor é uma pessoa que gosta muito de viajar, né? Foi tropeiro, também fez viagem de caminhoneiro, como é que é?
R – Gosto. Viajei, viajava muito. Nos festivos, eu viajei muito de caminhão, depois eu parei. Agora, depois que eu fiquei viúvo, eu comecei a viajar, que eu perdi minha mulher e comecei a viajar. Agora saio para passear, saio para tudo. Pouco tempo, eu estava em Belo Horizonte, que essa menina que estava aqui, que você viu ela, eu saí com a família dela toda, levando a família. E foi lá para Belo Horizonte. Ficamos lá oito dias, lá em Belo Horizonte. Passeando, né? Passeando, mas quase não saía de casa, não. Eles tudo saíam, eu não.
P1 – Mas desde pequeno você gosta? O que você acha que você mais gosta de viajar? Porque trabalhou viajando...
R – Não, porque viagem estraga você muito. Você conhece todo mundo, fica com todo mundo. Você chega, acho, diferente. Você acha umas mocinhas mais interessantes (risos). Eu mesmo achava você mais interessante. Mesmo depois que eu casei, um dia, eu cheguei lá na Lorena. Fui lá olhar uma tropa de Lorena, e ficava lá. E nesse rancho em que eu ficava, nesse lugar em que eu ficava, as meninas passavam sempre na porta, carregando qualquer coisa. Mas, de tudo isso, eu estava olhando, mas já estava casado também (risos). Não tinha jeito. Cheguei na casa de um sujeito, fui olhar uns burros na casa do sujeito, e tinha um companheiro que morava aqui no Rio Manso. Ele que andava, viajava comigo, comprava burro junto comigo. Então, eu cheguei, e tinha uma menina muito bonitinha. E eu comecei conversar, bater um papo com ela, e ela batendo um papo comigo. Que eu não podia bater papo com ela, eu era casado. Aí, chegou, começou a conversar comigo, e eu a agradei, né? Fiquei lá. E falei assim: “Não, espera aí, que eu já vou lá olhar os burros.” Ela falou assim: “Ah, vai não, deixa, depois você vai, eu vou buscar um café para nós.” Depois, ela trouxe o café com biscoito, eu fiquei comendo, e o outro com ele lá: “Oh, José, deixa você, vou consertar você.” “Por que, moço?” “Ah, não. Eu estou conversando com essa menina aqui, depois eu vou, tem tempo, é cedo ainda.” Estava olhando, só batendo aqueles olhos dele. Depois, chegava e falava com o pessoal todo. “Vai, conversa furada, vai lá, conversa furada, para você ver.” De vez em quando, ele chegava. Quando nós chegamos aqui em casa, ele falou assim, ele começava a abrir a boca, falei assim: “Abre conversa, vai conversar, vai piorar para você.” Hoje, vai que tudo distraía, né? (risos) Ele falou, me amedrontando, que ele ia falar que eu estava conversando com uma moça lá no rio e estava querendo namorar com a moça (risos). Não. Mas não teve nada. Ela ficou para lá, eu estou para cá. Ela era filha de criação de um tal Liolino Afonso. Nós fomos olhar a tropa dele. Então, a menina “se agradou” de mim. E me puxou para uma prosa, e eu fiquei proseando com ela. E era até bonitinha, jeitosa, de jeito, mas o coração meu acho que é bom mesmo, porque todo mundo agrada (risos). Não está ruim. E lá tinha uma outra, que era filha de fulano tal, de Lorena. João Antônio? Não, acho que Raimundo, de Lorena. Essa também passa. Essa que passava na porta do rancho, carregando água, coitada. Deve ter acabado com a cabeça de tanto carregar água (risos). Essa não saía também na rua, não. Só a via, mas ela é que estava gostando de mim, eu que estava gostando dela não.
P1 – Como é que se escolhe um bom burro?
R – Ah, você escolhe, ué.
P1 – Mas como que é? Qual que é bom?
R – Você, primeiro, vai olhar mesmo se ele tem a canela fina. Você vê um burro com a canela muito grossa, não é bom. É pirracento, não é esperto. E você tem que escolher assim. E a gente escolhia sempre assim, olhando. Você entra numa tropa, então par você escolher, se você for escolher animal de cela é um. Agora, o de carga, qualquer burro serve para carga. Tendo corpo, serve. E eu tinha para vender. Eu arreava e vendia. Hoje, já não está trabalhando mais com essas coisas. Só trabalhei enquanto eu arreava, amansava eles. Foi um meio de negócio. Eu comprei, fiz muito colchão. Vocês não alembram de colchão de capim, né? Não devem lembrar. Que esse colchão de palha é primeiro, depois passamos para o de paina, puxei muita paina para vender, e, depois, colchão de capim. Quando eu fiquei sem recurso, que eu não podia viajar, eu comecei a fazer, ia levar os burros para carregar de balaio, aqueles balaios grandes, e ia buscar capim no campo. Chamava capim bulbo, né? Chegava em casa, minha dona costurava, mandava fazer os colchões. Fazia os colchões, “debronhava” aquilo tudo, bem “debronhado”, acolchoava e vendia para os outro. Vendia demais. E aí, tratando deles, comprando um fubazinho, uns toucinhozinhos, uma carninha para dar a eles. E é desse jeito que eu fui criando. Eu fui muito criativo, que eu não parava de trabalhar. Quando era para pegar em alguma coisa... Eu fiz muito tijolo aqui para essa cidade, fiz demais, tijolo demais. Fui o primeiro que mexeu com tijolo aqui, fui eu. Trabalhei, mexi com telha. Tudo que eu sabia que dava dinheiro para fazer, eu fazia.
P1 – Quando o senhor comprou a primeira tropa? Quantos anos o senhor tinha?
R – Quando que eu comprei? Ah, isso deve ter, devia estar mais ou menos, uns 32 anos, quando eu comprei a primeira tropa.
P1 – Quantos burros tinha?
R – O que era de um lote de burros eram 10 burros, que é de um lote de burro. Mas você comprava 20, eram dois, você comprava 30, eram três. Mas sempre comprava muito para vender. Teve uma viagem mesmo em que eu trouxe, eu mais um companheiro nós trouxemos 50 burros de uma vez. Para vender. Nós vendemos tudo. Trouxe primeiro 20.
P1 – Eu queria que você contasse para a gente um pouco... Todo mundo fala bem do senhor por aqui, e o senhor é muito viajado. Eu queria que você falasse um pouco para gente: por que o pessoal gosta tanto do senhor?
R – Moça, eu prestei muito à comunidade. É que eu prestei muito à comunidade, eles mesmo viram que eu prestei à comunidade. Porque eu fui pobre de esmola, você pode ver uma coisa. Fui pobre de esmola. E vocês andaram pendurados em mim, quanto tempo vocês andaram pendurados em mim aqui? (risos) Ajudando esse povo todo, né? Eu não tinha condição para isso não, uai. Não estou falando para você que o pobre de esmola... Nós fizemos uma casinha através de esmola. Meu pai, quando morreu, ele deixou. Você sabe o que ele deixou, para fazer uma casa? Um revólver 32. É o que tinha para vender. E nós lutamos e fizemos. Através de esmola, através de muito serviço nosso. Eu com sete anos, e o outro com seis, não tinha seis anos completos. Nós trabalhávamos assando barro, fazendo tudo para poder fazer essa casinha igual a João de Barro. E fizemos. Moramos nela muito tempo, depois que nós moramos nela, eu comecei a comprar lote e a fazer casa.
P1 – Seu Marçal, o pessoal gosta muito de você, porque você é bom de prosa também, né?
R – Papo (risos). Mas tem gente que não gosta, não. Tem gente que acha que eu converso muito. Tem gente que eu chego calado, fico quieto. E acaba: “Mas por que você não está conversando hoje?” “Eu sei que vocês não gostam.” Eu guardo só para mim (risos).
P1 – É muita história de viagem, não é, não?
R – Tinha muita história de viagem. Viajei muito.
P1 – Perigo, aventura?
R – Agora mesmo eu fiz uma viagem em Inhaí. Eu já fiz duas viagens a Inhaí. E eu ia, viajava muito para lá. O povo de lá, só você vendô, tinha uma coisa comigo, vivia aperreando para eu mudar para lá. Mas eu nunca podia mudar. Eu tinha serviço por aqui. Mas quando o povo agrada de uma pessoa, né? Todo mundo quer. Mas eu não podia sair, porque o sujeito, os donos, quando eu morava com eles, já me satisfazia. Eu ficava quieto. Mas lá para Inhaí eles queriam. Apanhei muita carga para lá. De Diamantina para lá. Então, eles queriam que eu mudasse para lá. Eu assim: “Não posso mudar, não. Quero conviver com vocês, mas não, mudar, não. Posso não.” Eu cheguei, arrumei muita amizade lá. Hoje mesmo chegou um, veio visitar. Aquele é que tem muita coisa comigo. Ele, para não sair de casa, mas ele sabe que me pertencia. Que o sujeito era meu genro. Ele veio aí, um tal de Zé Coelho, que é de lá. Eu cheguei um dia lá em Inhaí, tinha um tal Levi Armeiro, que era muito amigo. Então, o dia que eu cheguei lá, eles não estavam lá, mas eles sabiam que eu cavalgava lá e que eu estava no meio daquele povo. Aí, quando eu cheguei, eu estou no meio daquela procissão de gente, daí a um pouco, estão gritando: “Quem é que é Jose Marçal aí, gente?” “Oi, gente, é Marçal.” Eu fui chegando, me aproximando mais. Aí, cheguei: “Sou eu mesmo, Seu José Marçal.” Assim: “Que o Levi deixou um monte encomendado. Que você ia chegar aqui e não sabia de que jeito que você ia chegar. Se você chegava a cavalo ou se chegava de carro. Mas deixou a casa aí, passou de exposição, se você precisar de pasto, se precisar de alguma coisa pra você.” Daí, fui levando um filho dele para Diamantina, hoje. Ele não sabe que dia que ele volta. Mas ele agradecia demais. Falei: “Não, eu tinha pago a pensão para ele ficar.” Fiquei na pensão. Agora, dessa vez, eu não fiquei na pensão, não. Dessa vez, eu levei, eu tenho a Kombi, que, sempre quando eu viajo nela, para poder levar cama, dormir. Aí levamos, fizemos a comida aqui, e já levamos a comida. A menina que trabalha comigo aqui fez para mim uma farofa. Mas no jeito mesmo que eles fazem. Aí, quando cheguei lá, puxamos dessa farofa, as menina, todo mundo pegou e gostou: “Mas que farofa boa.” “Pois é, porque a menina é que fez.” “Boa.” (risos) E comemos bastante. Comemos até, e almoçamos no outro dia essa farofa. Que vim embora no outro dia mesmo. Aí, já deu para nós virmos embora. Dormimos lá. Agora, quando foi de manhã cedo é que foi pior. Que de manhã cedo, nós encoronhamo. E levantar para urinar? (risos) Aí, ficaram as mulheres e eu também, mais o marido da menina que estava aqui. Falou assim: “Oh, gente, vamos sair aqui, passeando aqui, ver se acha um lugar por aí para encostar num canto.” Mas não achava (risos). Não achava de jeito nenhum. Aí, que eu falei assim: “Oh, vocês, eu vou com elas pra vocês.” Cheguei aqui, uma dona em pé, tinha uma carreira de casa, eu chamei ela: “Vocês não têm, você podia arrumar para aquelas meninas um banheiro, para essas meninas? Porque nós estamos querendo só lavar o rosto. Agora, as menina estão querendo urinar, às vezes, precisam de banheiro.” Disse: “Perfeitamente, pode entrar para cá, entra para cá com elas.” Entrei para lá, daqui a um pouco, chegou essa menina, e essa menina era uma pobrezinha que só você vendo. Ela falou comigo: “Ah, eu não sou nem daqui, não. Eu sou de São João da Chapada.” Falei: “Conheço demais. Conheço São João da Chapada, conheço o povo de lá.” E comecei a perguntar, comecei a me informar. “Você conhece fulano de São João da Chapada?” Falei: “Conheço. Você conheceu fulano de tal?” “Conheci.” “É, esse eu conheci, esses povos todos também. Trabalhei muito tempo para lá.” (risos) Deu notícia de todo canto. Aí, fui lá, depois que as meninas já tinham lavado o rosto, que já tinham feito as apurações delas lá. Elas vieram, ela foi lá, trouxe uma garrafa de café, trouxe uns saquinhos com bolachinha, bolachinha de queijo com biscoito, com rosquinha, tudo. Falei assim: “Oh, vocês vão comendo isso aí até vocês chamarem o moço que está com vocês, que passou para lá.” Falei: “Não, ele já foi para lá.” Depois, chamei ele, porque ele gosta muito de ver horta. Aí, foi, levou, que dá para o quintal para me mostrar as hortas dela. Eu fiquei satisfeito, muito agradecido. Falei com eles: “Oh, isso daqui, Nossa Senhora da Conceição é que vai conservar você desse jeito, não esquece suas hortas, não. Está muito bonita.” Um terreiro cheio de galinha, e a água passando em cima do terreiro. Galinho não precisa nem da água, galinho. A horta também não precisava nem molhar, que tinha aqueles, como é que chama? Correndo lá, jorrando água. Falei assim: “Mas é muito bom.” E o resto de nós, conversando. Ela chegou e falou comigo, e falou com o marido dela. Ele chegou, passando, saindo para o serviço. Ela falou assim: “Você podia deixar um dinheiro comigo.” Falou assim: “Oh, menina, eu não tenho dinheiro nenhum para deixar para você.” Eu fiquei calado. Quando saí na porta da rua, eu tinha um dinheiro no bolso: “Toma esse dinheiro aqui.” Ela não quis receber de jeito nenhum. Eu fui, dei ao menininho menor. Falei assim: “Entrega à sua mãe, ela vai receber.” O menino foi e entregou a ela. Ela me agradeceu: “Oh, José, para que fazer isso? Você vem aqui, todos nós desejamos que você venha aqui.” Falei: “Não, se você não receber, eu nem volto aqui mais. E eu gosto, todo canto eu deixo um rastro. Por que eu não posso deixar aqui com você?” Tem que deixar. Elas ficaram muito satisfeitas. E eu fiquei satisfeito também, com o agrado dela. Pobrezinha, né? Depois ela falou comigo: “Oh, eu fui operada.” Ela fez cesariana. “Eu não estou podendo fazer muito exercício ainda, porque eu fui operada, fiz cesária.” Eu, assim: “Pois é, não facilita, não. E não tem necessidade. Nós temos que nos preocuparmos conosco. Nós estamos passeando aqui, nós estamos andando, vagabundeando (risos), e você não, você está trabalhando.” “Não, mas você voltando, aí você vem aqui em casa, né? Não deixe de vir, não.” Eu assim: “Perfeitamente.” Mas todo canto em que eu chegava lá, eles estavam me oferecendo. Já tinham duas casas me esperando. Tinha um tal do Joãozinho Coelho e a irmã dele, que era Sebastiana. Já estava me esperando também. Que o Zé Coelho, que é irmão desse, já tinha telefonado para eles: “José, vocês aumentam o feijão, a água no feijão. José lá vai encontrando com vocês.” E falou com a irmã. Mas ela me procurou por todo canto lá, mas eu não conhecia ela. E ninguém, pedi para me informar, não me informaram. Mas também eu estava prevenido. E mais outras casas que eu tinha aqui para eu ficar também. Eles falava comigo: “Isso aqui é seu, você é daqui, nós não consideramos você de fora daqui, não. Nós consideramos você daqui.” “Ai, eu sei isso, eu também me considero daqui (risos).” E passei muitos anos sem ir lá. Depois que eu fui mexer com comércio, eu não viajei mais. Daí, eu fiquei, só viajo para Belo Horizonte. Diamantina, Belo Horizonte. Até Diamantina é muito difícil. Mas, quando eu trabalhava com tropa, estava sempre lá. E lá eu brincava com eles. Teve um dia que eu cheguei lá, tinham chegado dois sujeitos carregados de rapadura, e eu cheguei com 15 rapaduras. Cheguei, falei assim: “Gente, eu não vou nem ranchar aqui, não.” “Por quê?” “Uai, se tem dois lotes de burro carregados aqui de rapadura, onde é que vocês vão vender esse trem todo assim.” “Você é besta, moço! As suas você vende, eles podem até não vender, mas você vende. Você pode deixar aí.” Foi, descarreguei. Enquanto eu tinha rapadura, ninguém vendeu uma. Acabei de vender rapadura e fui embora. Voltei, fui embora para aqui. Esse dia eu não fui lá para Diamantina. Que acostumava, de lá, entrar para São João, e carregava em Diamantina e vinha para aqui. Aí, fui, voltei para casa. Cheguei, carreguei outra vez e voltei para lá. Quando eu passei, foi que passei de bandeira abertai: “Uai, você vai ficar aí hoje não?” Não, hoje tem para vocês não (risos).” Mas eu sabia que estava cheio, não tinha para eles. Eu falei: “Eu vou direto para São João. E fui para São João. Cheguei em São João, vendi em São João, de São João mesmo eu saí para Diamantina, carreguei em Diamantina e vim embora para aqui. Eu gastava 13 dias na viagem, para fazer esse giro. Mas compensava, que eu tinha vantagem na venda lá. E tinha vantagem da carga que eu apanhava de lá para aqui, que eu vendia também. Em Diamantina, os depósitos que tinham em Diamantina, os comércios, eles todos me vendiam. Falei assim: “Não, eu não comprava a dinheiro, não. Não, você leva, depois você paga. Não tem problema, não.” Ia carregado do jeito que eles carregavam. Um dia, eu cheguei no Lopes, depois que eu larguei de mexer com tropa, comecei, peguei caminhão. E cheguei com o caminhão. Tinha passado muito tempo, tinham passado uns oito anos que eu não ia lá. Aí, eu cheguei com o caminhão carregado, descarreguei e ia carregar. E eu fui, falei com Tião: “Você fala com esse povo que eles vão carregar esse caminhão para mim, mas que eu não tenho o dinheiro todo para dar a eles, não. Que você vai me avalizar aí.” O Tião foi chamar o Pedro e falou assim: “Oh, Pedro, o José está falando, me pediu para você o dinheiro. Enquanto o dinheiro dele desse, carregasse. O que não desse, para eu avalizar.” Ele assim: “O quê? Não!” “O que não desse para você, para eu avalizar.” Ele assim: “Ele pode avalizar você, moço? Esse aí pode avalizar?” Eu falei assim: “Não, você está interpretando, pois tem oito anos que você não me vê aqui. Você não sabe o que eu estou tratando, de maneira que, se eu estou aleijado ou se eu não estou.” “Não, moço, o que eu vendi para você, vendo tudo que você quiser aqui. Você pode carregar aqui do jeito que você quiser carregar (risos).” Era desse jeito comigo. A gente não tinha satisfação? Eu fui lá uma vez, quando doente, minha dona doente, e eu fui lá para acertar umas contas com eles todos. Acertar com ele. Fui com minha dona para o hospital. Eles tiveram notícia que eu estava com a dona no hospital. De primeiro, eu fui lá no Costa, que era o Leandro, o tal de Leandro Costa, que era o maior, o fortão de lá, e o Lopes. Cheguei lá, falei: “Oh, Leandro, você puxa conta minha e de Helena aqui.” Ele falou assim: “Uai, puxar conta para quê?” “Não, para pagar vocês.” “Não, hoje não paga conta, não. Hoje você não deve nada a ninguém.” “Por quê?” “Eu sei que você tá com a sua dona doente aí em Diamantina, está no hospital.” Não, está no hospital, mas eu estou com o dinheiro para pagar.” “Não, seu dinheiro hoje não vale, não. Não vale mesmo. Você vai tratar da sua saúde primeiro, depois você me paga. Até um dinheiro se você quiser, eu te empresto. Eu tenho um dinheiro, não é só para te vender, não. Tem o tempo de vender e o dia para te emprestar.” Agradeci muito. Falei assim: “Não, agradeço você muito, mas...” E não paguei, não. Aí fui num tal de Aventino Leão, fez a mesma coisa comigo. Fui nos Lopes, também fez do mesmo jeito. “Não, não recebo seu dinheiro, não. Seu dinheiro só recebo depois que você tratar sua saúde, aí vou receber seu dinheiro. Agora você não deve nada.” A gente não fica satisfeito? Você não vê meu mundo feliz? Quer coisa melhor que crédito? Nossa Senhora! Para mim, é a coisa importante. É que, depois, eu gostava da minha tropa, né? (risos)
P1 – Do que o senhor mais sente saudade de tropeiro?
R – Da tropa? Nossa Senhora! Você acredita que eu sonho até hoje? De vez em quando, eu sonho. Embaraçando os burros perdidos (risos). Você nunca sonha certo, você sonha, sempre tem dificuldade. Mas sonho é demais. Eu falo com todo mundo. É onde que eu tenho pesar, que toda vida... Ainda há pouco tempo, eu vi um peitoral que eu comprei para essa bendita tropa. Eu vi lá na mão de um sujeito aqui. Eu falei com ele assim – ele tinha comprado por 500 reais –, falei assim: “Eu dou mil, eu dou até mais de mil.” “Mas, não, eu não estou interessado, não, porque você já foi tropeiro, conhece, deve gostar.” Teve um prefeito aqui, que queria fazer, mas ele queria que juntasse esses burrinhos tudo que tem no meio desses matos e que fosse para eu poder fazer uns passeios para ele ver. Mas não quero. “Eu quero você pegar, trabalhar suas tropas, um ano de serviço para eu ver, para eu educar, para você saber como é que é tropeiro.” Porque tropeiro, você andava com uma tropa educada, né? Porque você sabia, você chega numa rua como essa daqui, que eu espichava a correr lá em cima. A tropa toda “pingada”, né? Um burro tinha que dar ao menos uns 10 metros para poder ir atrás dos outros. Não podia embolar, não.
P1 – Como é que educa?
R – Ah, educa assim desse jeito, né?
P1 – Mas como que é?
R – Como é que educa? Você sabendo acompanhar o burro, você não imprensar ele, porque você levar, tocando uma tropa, para você trocar, colocar ele, é uma estrada apertada. Como é que você aperta o detrás para ele sair para ele empurrar o da frente? Não tem jeito, você acaba matando ele. Agora, você tem que entrar de um lado, abrir a distância entre eles, para ele dar lugar para todos, para cada um caminhar. Não, mas eles não sabia fazer isso.
P1 – Eles aprendem rápido?
R – Ah, pois aí eles subiam, né? Eles não deixavam apertar demais. Porque estavam subindo o morro. Agora, na descida, na baixada, não. Eu puxava. Aí, eu conversava com eles. Conversava. E disse: “Não, nós estamos chegando para tirar essa carga fora (risos)” Isso, você tocava era conversando.
P1 – E, Seu Marçal, o que o senhor acha desse trabalho da gente vir aqui, perguntar para o senhor sua história?
R – Da minha história? Eu acho que vocês não têm proveito nisso, mas eu tenho. Você sabe por quê? Porque eu gosto de contar, eu gosto de ocupar meu tempo sempre contando os casos. Vocês não estão contando? O que foi a minha vida. Vocês não vão ver tudo, porque nós não vamos ter tempo, porque eu não contei para vocês que eu fiquei com um homem, conversando com ele, umas três horas. Vim embora. Três, não! Quatro ou cinco horas, lá no parque, e depois vim embora para casa. Fui lá numa quinta-feira, para tornar a contar história. Só eu tinha que contar, ele não contou nada. Ainda ficou história por contar (risos). Falei com ele: “Não, isso vai ficar muita história. Oitenta anos de vivido, eu não tinha 85 ainda, não, eu tinha uns 82, 83 anos vivido, moço, tem muita história para contar. Eu comecei a trabalhar cedo. Tem muita história para contar.
P1 – Só para a gente finalizar. O que o senhor, Seu José, que já viajou por todo esse Vale do Jequitinhonha, o que o senhor acha do Vale?
R – Do Vale? Eu, todo canto que eu achei, eu gostei demais do Vale. Porque tudo ali eu fui muito bem recebido. Todo canto em que eu chegava, parece que eu também já era conhecido. Então, o que eu gostei foi disso. Todo canto em que chegava, eu era conhecido. Nunca ninguém me negou nada. Às vezes, fala, não entrava com eles, não. Eu estou te propondo, mas estou propondo por bobagem. Porque eu sei que você não me conhece, não sabe quem eu sou. E foi isso, aí entrosava com eles. E toda vida gostei do Vale, justamente por isso. Porque daqui a Belo Horizonte, comprei muito em São Paulo. Agora, São Paulo está a que distância daqui, a São Paulo? De vez em quando, eu recebo uma cartinha daqueles hospitais, que sempre pedem uma ajudazinha. Aí eu faço o sacrifício. Porque aqueles cancerosos, aqueles trens tudo que, vez em quando, tem uns. Elas mandam alguém me agradecer. Telefonam para mim, me agradecendo. Sei conviver muito com o povo.
P1 – O Vale do Jequitinhonha era diferente dos outros lugares?
R – O Vale do Jequitinhonha aqui é pobre demais. O Vale do Jequitinhonha é muito pobre. Você pode comparar o Vale do Jequitinhonha com São Paulo, depois com os outros estados, Espírito Santo, que eles não têm isso, não. Como assim você conhece Argentina, Argentina é um outro país, né? Assim, como você conhece lá para fora.
P2 – Seu Marçal, muito obrigado, viu? Por ter concedido...
R – Nada, obrigado você. Pois é, eu vou falar para você, eu fui muito. Aqui, no Rio Preto, eu tenho alguém, algum inimigo, mas você sabe o inimigo que eu tenho? Aquele que não quis me pagar, porque o que não quis me pagar, eu fiquei inimigo deles, de fato eu fiquei. Eu não gosto, que é sem palavra. E tem uns que andaram me respondendo mal, e eu falei assim: “Não, eu não preciso brigar com vocês, eu não quero, não. Porque não adianta briga com vocês, para quê? Se a briga me pagasse, eu ia brigar com vocês, mas não paga.” Então, não adianta, né? Pode ficar com o que eles estavam? Não vou brigar, não.
P1 – O senhor deixava?
R – Deixo, largo para lá. Está devendo, não compra mais, né? Só que essa pessoas não compram mais, não procuram um jeito de servir. Diz que Deus até não deixa isso, não. Por mim, se eles caíssem no fogo, eu não jogava água, não. Eu punha mais fogo, mais lenha (risos). Você acha que eu vou pôr água para apagar o fogo? Não. Vão morrer. Eu punha mais lenha no fogo.
P1 – Então, Seu Marçal, muito obrigada pela entrevista. Para a gente finalizar, muito obrigada mesmo.
R – Consegui tropa. Eu tive tudo, viu? Aqui mesmo, eu já fui o rei dos tropeiros, que teve muito tropeiro aqui. Mas eu fui o rei dos tropeiros. Basta só saber, que eu fazia do princípio até o fim. Não pedia a ninguém fazer nada para mim. Para eu pôr a carga no burro, não. Fazia tudo. E, se tivesse companheiro que trabalhasse, eu não tivesse que trabalhar sozinho. Toda vida fui muito esperto. Hoje que eu estou mole, que a idade chegou, né? As juntas endurecem (risos).
P1 – Obrigada, hein, Seu Marçal?
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