P/1 – Vou começar nossa entrevista pedindo pra você me dizer de novo seu nome completo, a data e o lugar que você nasceu.
R – Cristiano Burlan da Silva. Nasci em Porto Alegre em 1975.
P/1 – Que dia você nasceu?
R – Eu não sei, você acredita?
P/1 – Você não sabe?
R – Não sei o dia que eu nasci, mas eu sei a hora.
P/1 – Que horas você nasceu?
R – Vinte e duas e 45 da noite.
P/1 – Mas por que você não sabe o dia que você nasceu?
R – Nunca parei pra pensar nisso, mas olha, agora fiquei curioso.
P/1 – Você não faz aniversário?
R – Faço. Você fala comemorar?
P/1 – É. Você faz no dia, mas não sabe se foi segunda, terça.
R – Não, nunca parei pra pensar nisso. Mas deve ter sido em ano bissexto.
P/1 – Por quê?
R – Não sei (risos).
P/1 – E o nome completo da sua mãe e do seu pai?
R – Isabel Burlan da Silva e Vânio Porto da Silva.
P/1 – E me conta um pouco o que você conhece da sua mãe. A sua mãe, como era o nome dos seus avós, o que você sabe de onde eles vieram.
R – Minha avó chegou ao Brasil, veio num navio com meus avós italianos. Meus avós, Elvira Burlan da Silva e Gumercindo Burlan. Meus avós eram Giuseppe e Gisella Nicolase. Minha avó foi morar numa colônia em Santa Catarina, Urussanga e depois migrou pra Porto Alegre.
P/1 – Vocês sabem quando eles chegaram...
R – Não. Eu nunca pesquisei a minha árvore genealógica. Eu tenho a certidão de nascimento da minha avó e uma época eu tentei tirar passaporte mas eu acabei, não quero morar na Europa, não quero morar fora do país, desisti.
P/1 – Então isso é a parte da sua família italiana. Esses são os pais do seu...
R – Da minha mãe.
P/1 – Da sua mãe. E os avós por parte do seu pai, como é o nome, de onde eles...
R – Eu acho que são portugueses com romeno, eu não tenho certeza. Eu não conheço muito bem a história da minha família.
P/1 – Você conheceu algum dos seus avós?
R – A minha avó italiana, a Elvira, ela casou três vezes. Depois que o pai da minha mãe morreu ela casou com mais duas pessoas. A minha avó, mãe do meu pai, chama Custódia, ela nasceu em Laguna, Santa Catarina, e o meu avô chamava Edevaldo, o vô morreu, a vó tá viva, tem quase 90 anos. Vó Custódia.
P/1 – Você conviveu com as duas.
R – Convivi com as duas. E com a mãe do meu pai convivo até hoje.
P/1 – Então me conta um pouquinho do que você conviveu com seus avós.
R – Ah, isso preenche muito meu imaginário, principalmente a minha avó italiana, porque ela tinha sotaque e por ela cozinhar muito. Mas a minha infância era muito estranha porque muita pobreza, muita violência, então eu não consigo descrever ela de maneira organizada, são flashes que me vêm à cabeça.
P/1 – Me conta quais são esses flashes.
R – Eu me lembro de sempre ser a parte pobre da família e me sentir muito fora do contexto familiar. A família do meu pai era mais abastada, a da minha mãe mais pobre e eu me lembro das festas de família que sempre tinha um olhar, principalmente dos meus primos, com relação à roupa que eu vestia, por não ter os brinquedos que eles tinham, então foi uma infância muito dura pra mim. Ao mesmo tempo a coisa mais importante era o carinho da minha mãe. Mesmo a infância muito dura, com muito contato com a violência, minha mãe era uma pessoa extremamente amorosa e carinhosa. E eu acho que isso de alguma maneira me protegeu.
P/1 – Mas deixa eu entender. A família da sua mãe, que era a família italiana, ela era mais...
R – Mais humilde.
P/1 – Mais humilde. Você sabe como seus pais se conheceram, como é que foi?
R – Todos moravam na mesma rua, num bairro da zona norte de Porto Alegre que chama Sarandi. Eles estudavam na mesma escola, escola essa que eu estudei também até o terceiro ano.
P/1 – Escola pública.
R – Escola pública, que era muito boa por sinal.
P/1 – E assim então...
R – Que eles se conheceram. Eles eram quase vizinhos de porta.
P/1 – E você sabe, eles namoraram como é que aconteceu?
R – Se eu não me engano meu pai namorou algumas irmãs, minha mãe tinha várias irmãs, várias tias, e ele namorou com umas duas, três antes de namorar com a minha mãe. Minha mãe era muito bonita e eles se casaram minha mãe tinha 15 anos de idade.
P/1 – Mas ele pediu a mão dela?
R – Não sei te dizer, não lembro disso.
P/1 – Você sabe o que seus avós maternos faziam, de que eles viviam?
R – O meu avô italiano trabalhava em construção, era mestre de obras. E a minha avó não trabalhava, só ficava em casa.
P/1 – E a outra família?
R – A outra comerciante.
P/1 – Eles tinham comércio de quê?
R – Loja de roupas e meu avô era metido com política, andou uma época junto com o Brizola e era metido a negociante também. Só que tudo o que ele colocava a mão acabava falindo. A minha avó, que chama Custódia, é uma mulher muito trabalhadora, chegou a ter umas cinco lojas, mas começou vendendo Bombril na feira quando eles vieram de Santa Catarina, eles tinham muitos filhos. E abriu a primeira loja e ela sustentou a família inteira, ela, não meu avô.
P/1 – Ela teve quantos...
R – Se não me engano 13. Alguns morreram criança e nove tios. A família é muito grande, então tenho dificuldade de lembrar. Sempre que eu volto pra lá, gaúcho adora fazer filho, né? E são muitos netos, primos, as pessoas falam com você como se você conhecesse todos e lembrasse dos nomes.
P/1 – Então essa é a família do seu pai.
R – A família do meu pai.
P/1 – Então seu pai tinha uma família enorme.
R – Sim.
P/1 – E o que você consegue lembrar dele?
R – Do meu pai?
P/1 – É.
R – Engraçado. Todos os homens da minha família têm aparentemente muito potencial, são extremamente sensíveis e uma habilidade pra aprender, uma facilidade pra aprender as coisas. Isso vai de música, memória muito forte, uma sensibilidade extremada. E ao mesmo tempo eu acho que isso também causou o início da nossa tragédia. O que eu me lembro do meu pai é que era uma pessoa com muito potencial e quando as coisas não começaram a acontecer pra ele, ele foi sabotando. Ele virou alcoólatra e quando bebia era uma pessoa extremamente violenta. Então eu tinha dois pais, um era o que bebia e que era violento, que agredia a minha mãe e o outro era uma pessoa que era trabalhadora, ponta firme e que todo mundo achava ele um grande amigo.
P/1 – Ele trabalhava em quê?
R – Quando jovem ele trabalhou com um tio meu em uma construtora que virou uma grande empreendedora lá no Rio Grande do Sul, ele poderia ter tido outra vida. Depois ele trabalhou numa empresa de geladeira chamada Steigleder. E aí ele foi perdendo essa conexão com os empregos e virou pedreiro, eletricista, trabalhava fazendo bicos. Minha mãe se separou dele, veio pra São Paulo, abandonou a gente lá. Nunca tive raiva dela por isso porque meu pai era muito violento. Depois de um tempo ela voltou pra buscar a gente, eles casaram novamente, foi quando a gente veio pra São Paulo.
P/1 – Tá, então vamos voltar só um pouquinho pra essa sua casa. Eu queria que você me contasse, se você lembra um pouco, como era desses flashes seus de infância, o que você lembra, como era a casa? Você dormia com quem? Tenta assim, recuperar...
R – Era uma casa muito pequena em um bairro muito pobre, chamava Brasília. Mesmo dentro dessa pobreza eu lembro que minha mãe era muito asseada, ela gostava das coisas limpas e cuidava muito bem dos filhos.
P/1 – Por que você lembra disso? O que...
R – Essa é a parte boa, né? É como se meu cérebro tentasse apagar da minha memória as coisas ruins. Eu me recordo também que meu pai gostava muito de futebol, isso acabou me influenciando. Eu lembro que ele jogava futebol em um clube de várzea e domingo pela manhã era o dia do jogo e todos os jogadores levavam seus filhos porque esse campo era um campo onde as vacas pastavam durante a semana, então, as crianças ficavam juntando as bostas de vaca pra limpar o campo e depois tinha esse jogo todo domingo. Mas era um domingo que começava bem e acabava sempre muito estranho porque meu pai ficava bêbado, voltava pra casa, aí sempre tinha briga. E era um bairro muito pobre, então, era comum. As pessoas são muito belicosas no Rio Grande do Sul e quanto mais pobre, mais contato com violência, e eu me lembro de assistir muita briga de faca, de facão.
P/1 – Mas me mostra um domingo desse que acabou em briga. Tenta me contar como era, só para eu entender.
R – Ah, eu me lembro que tinha um homem que era muito violento, que me assustava muito. Eu não esqueço o nome dele, chamava Cenoura, e que ele vivia arranjando briga em um bar. Na esquina de casa tinha um armazém que parecia um armazém italiano e o dono era italiano, chamava Armazém do Vino e era muito forte essa imagem e todos os odores, aromas do lugar, eu me recordo até hoje. Você comprava feijão, arroz no saco de papel pardo e tinha rolo de fumo pendurado. Mas lá vendia cachaça também. Então era um lugar que os homens se encontravam ali, muitos descendentes de italianos, e uma hora ou outra sempre alguém brigava, puxava uma faca e acabava matando o outro. Isso era muito comum. Mas era o lugar onde a gente buscava pão também. Esse lugar onde no domingo as pessoas se matavam, durante a semana você acordava cedo pra ir buscar pão na padaria do seu Vino.
P/1 – E o seu pai ia no dia de jogo nesse armazém.
R – Também.
P/1 – Então assim, quantos anos você tinha quando ia com ele no jogo?
R – Desde muito pequeno, cinco, seis anos. É muito engraçado que mesmo tendo lacunas na minha memória, a primeira imagem que eu tenho da minha vida, eu acho que eu tinha sete meses de vida, eu demorei muito pra descobrir isso, um dia eu falei a imagem, eu estava mamando no colo da minha mãe e da janela do carro eu via dunas.
P/1 – Via dunas?
R – Dunas. E o carro era preto. E eu falei pra minha mãe e ela: “Como você lembra disso?”. Era um Fusca preto de alguns dos parentes quando a minha tia foi a primeira a ter uma casa na praia. E foi a primeira vez que a gente foi pra esse lugar. E ela me falou que eu tinha sete meses de idade e é uma imagem muito antiga que eu encontrei na minha memória.
P/1 – E que outra imagem antiga você tem?
R – As festas de Natal na casa da minha avó, almoço de Natal.
P/1 – Como que era?
R – Porque lá a gente não tinha tradição de comemorar a ceia. Porque a minha avó comprava presente pra toda família. E às vezes você tinha 80 pessoas lá. E ela...
P/1 – Sua avó Custódia?
R – Custódia. Então ela colocava o nome de todo mundo, mesmo que fosse uma lembrancinha simples, mas todo mundo ganhava presente. E as pessoas bebiam muito, eu me lembro que tinha aquelas piscinas de plástico cheias de cerveja e o meu pai era um dos assadores oficiais. Só que tinha que ficar cuidando dele pra não ficar bêbado até queimar a carne, essas coisas. Então ele foi durante muito tempo o assador oficial da família, no Natal, mas meus tios ficavam ali perto controlando a bebida dele. Depois que ele terminasse desencanavam, deixavam ele beber até cair.
P/1 – E tem mais pessoas na sua família que eram assim, essa coisa da bebida, do alcoolismo estava presente?
R – Na família do meu pai não, mas na família da minha mãe, que eu não tinha tanto contato.
P/1 – Então na realidade a sua mãe foi conviver com a família do seu pai.
R – Isso, isso. Família da minha mãe era um pouco distante, mas eu fui batizado, meus padrinhos é irmã da minha mãe, que faleceu, chama Dalva. E por parte da minha família as pessoas eram um pouco mais pobres, mais humildes e eu me lembro que alguns tios bebiam muito. E eram muito...
P/1 – Da família da sua mãe.
R – Da minha mãe. E muito belicoso também, sempre muito violento.
P/1 – Então o que era pra você, como criança, ver uma coisa belicosa. Conta uma cena, o que você sentia?
R – As pessoas sempre dispostas, parecia que a qualquer momento alguém ia explodir, puxar uma faca e matar outra pessoa. Eu me lembro de uma vez, a gente não foi passar Natal na casa da minha avó e fomos pra casa de um tio meu. Eu me lembro que ele era gigante, tinha mais de dois metros. Ele era mecânico, mas ele era do interior do Rio Grande do Sul. E ele gostava de caçar, tinha muita arma na casa dele e ele ia matar um porco. E ele matou na frente das crianças, ele estava muito bêbado e não acertava o coração do porco e aquele sangue jorrava em todo mundo e o porco gritava. Eu acho que eu tinha seis anos de idade, essa cena ficou marcada. E eu não gostava de frequentar a casa deles. Por isso, parecia que a qualquer instante alguém ia matar outra pessoa, ia brigar. Mesmo que fosse uma conversa, aquelas pessoas, gente mais humilde no Sul, em geral do interior, eles falam muito alto e parece que estão sempre brigando. Então eu não sei se existia essa tensão ou na minha imagem as pessoas que falam alto demais estão sempre dispostas a brigar. Agora, ao mesmo tempo, gente que mora em regiões fronteiriças têm uma disponibilidade pra guerra, né? São pessoas belicosas, acho que está dentro da sua própria natureza.
P/1 – E você lembra desde muito criança de alguma briga do seu pai com a sua mãe?
R – Lembro, lembro. Eu me lembro que quando a gente foi morar nessa casa, logo que a gente se mudou, as paredes eram reboco, ainda estavam cruas as paredes, né? E a briga foi tão violenta... um dado momento minha mãe começou a reagir, que ela era mais alta do que ele. Ela parou de apanhar e começou a reagir também. Aí as brigas ficaram mais violentas. Mas eu me lembro deles brigarem tanto de quebrarem algumas paredes.
P/1 – A parede?
R – Parede.
P/1 – E era só você.
R – Saía correndo. Eu e mais dois irmãos.
P/1 – O que vocês faziam?
R – A gente ia pra casa dos vizinhos.
P/1 – Quando eles começavam vocês saíam.
R – É. Mas engraçado que meu pai mesmo sendo violento, poucas vezes ele me bateu, poucas vezes. De uma certa maneira eu era um companheiro dele. Cansei de ir pra puteiro com meu pai e minha mãe buscar a gente. Tinha um barzinho que ele frequentava que era meio que um puteirinho, bem bagaceiro. Por várias vezes minha mãe foi buscar a gente lá cinco da manhã. Aí eu já tinha sete pra oito anos de idade. Ele me levava sempre junto. E muito cedo eu comecei a trabalhar. Primeiro trabalho que eu consegui foi vendendo panela na feira junto com os ciganos.
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Tinha sete anos.
P/1 – E por que você decidiu fazer isso, quem te pôs pra fazer isso, de onde nasceu essa história?
R – É que como eu não tinha muita atenção porque as pessoas estavam sempre brigando e lutando pela sobrevivência, você acaba ficando muito sozinho. Então eu fiz amizade com uns meninos ciganos que moravam num acampamento perto de casa e comecei a andar com eles. E um dia eu fui vender com eles na feira, vendi bem e eles me convidaram pra ir outras vezes, até que meu pai descobriu e ficou muito agressivo comigo, mas quando viu que eu comecei a trazer dinheiro pra casa eles aceitaram.
P/1 – Então você vendia e o dinheiro ficava pra você, como que...
R – Não, pra casa, eu levava pra casa. E aí acho que começou o momento que eu me tornei um pouco arrimo de família, mal sabia eu que essa ia ser minha história.
P/1 – Mas por quê? Você trazia dinheiro, falava...
R – Entregava pra eles.
P/1 – E eles tinham muito problema de dinheiro?
R – Tinham, tinham. Minha mãe era muito bonita, ela chegou a trabalhar na Nestlé, trabalhou numa empresa de vinhos e depois as coisas, não sei, parece que num dado momento meu pai desistiu dos sonhos e ela também e ela virou empregada doméstica, cuidava dos filhos e abandonou tudo isso. E ele também.
P/1 – Mas empregada doméstica como? O que ela fazia?
R – Fazia faxina na casa das pessoas.
P/1 – Ela saía de manhã...
R – Isso.
P/1 – E vocês começaram a ir à escola, como era o cotidiano?
R – Eu tinha uma prima que cuidava da gente. Chama Adriana. Eu tinha... no Sul nós somos em cinco irmãos, eu, o Rafael e o Ricardo. Lá eram três. O Tiago e a Keli nasceram em São Paulo.
P/1 – Do seu pai depois.
R – É. Todos são do mesmo pai e da mesma mãe. A gente estudava, mas em geral essa prima cuidava da gente e minha mãe e meu pai trabalhavam.
P/1 – Então vocês acordavam... me conta um pouco como era a vida nessa casa. Você acordava...
R – Eu me lembro que eu ficava muito triste por minha mãe estar sempre distante da casa porque eu era muito apegado a ela. E quando ela saía, eu tenho até uma cicatriz aqui, eu não queria que ela fosse trabalhar, eu quebrei o vidro da janela da sala e cortou o pulso.
P/1 – O que você sentia quando ela ia trabalhar, o que você lembra?
R – Eu era uma criança muito assustada, tudo era muito inóspito. Era meu pai alcoólatra em casa. E como a gente frequentava muito a família dele eu sentia um olhar meio sempre de cima. Nenhum ambiente era agradável pra mim. E a escola foi horrível.
P/1 – A escola foi horrível também?
R – Foi horrível, foi horrível.
P/1 – O que te aconteceu na escola?
R – O sistema de ensino no Sul na época acho que era muito rígido, né? Então o que me salvou, que eu tive contato muito cedo foi a literatura. O livro pra mim foi uma descoberta muito grande.
P/1 – Como foi que você descobriu o livro?
R – Professora. Lembro o nome dela, Nair, foi na segunda série. Que a gente chegou numa salinha assim que era colorida, diferente, a escola parecia um quartel.
P/1 – A escola que você ia. Você ia andando pra escola?
R – Ia andando pra escola.
P/1 – Seus irmãos juntos?
R – Era. E essa sala eu não conhecia da escola. Quando chegou lá tinha brinquedos, todo mundo se interessou pelos brinquedos e eu encontrei um monte de livros coloridos que tinham desenhos e textos. E o meu apreço pela leitura começou por culpa da minha mãe. Minha mãe adorava ler gibi no banheiro. E eu peguei esse hábito dela. Então comecei a ler gibi em casa, livros na escola e comece ia levar livros pra casa, então até hoje os livros são...
P/1 – E quando você levava livros pra casa, isso tinha algum sentido na sua casa? Alguém falava o que é isso?
R – Não, não. Eu sempre tive uma memória muito prodigiosa, tudo o que eu lia eu guardava muito rápido, né? E aí eu comecei a me articular. Mas eu sempre fui uma criança muito sozinha e criei um universo particular pra conseguir sobreviver a essa violência, essa pobreza.
P/1 – Como era a sua relação com seus irmãos nessa época? Era você, Rafael e Ricardo.
R – Isso. Ah, eu protegia muito eles, né? Até hoje, sempre fui parâmetro. Sou até hoje.
P/1 – Esses nomes seus, Cristiano, Rafael e Ricardo vieram de algum lugar?
R – O meu veio de uma novela que o Tony Ramos fez, eu não me lembro o ano, mas essa novela fez um sucesso tremendo, acho que foi 73 ou 74. E aí no ano de 74, 75 tem vários Cristianos, foi por isso. E a televisão estava sempre ligada em casa.
P/1 – A televisão estava sempre ligada.
R – Sempre ligada em casa.
P/1 – De manhã, de tarde...
R – Tarde, noite. E eu achava estranho porque eu sempre gostei de rádio, mas escutava muito pouco rádio.
P/1 – E se via o quê, a Globo?
R – É. Sempre. Sempre ligado. Tinha uns momentos bons quando a gente ia pescar. Esse meu tio, que era um homem muito violento e parecia um gigante...
P/1 – Esse do porco?
R – É. Ele adorava pescar e caçar. Então às vezes a gente ia com ele no final de semana pra pescar e caçar. Então aprendi a atirar muito cedo.
P/1 – Vocês iam caçar e pescar onde?
R – No interior, Arroio do Sal, depois de Gravataí, interior do Rio Grande do Sul a duas horas de Porto Alegre. A gente ficava acampado lá.
P/1 – Quem? Você...
R – Eu, meu pai e meus irmãos, meu tio e meus dois primos, Alex e Alan. O Alex era um grande amigo meu e o Alan era um garoto bem complicado, que adorava matar bicho, mexer com os outros e brigar.
P/1 – Que virou depois?
R – Uma pessoa tranquila.
P/1 – Aí vocês passavam o quê, o fim de semana lá?
R – O final de semana. A gente ia na sexta e voltava domingo à noite.
P/1 – E o que vocês caçavam ou pescavam?
R – Marreco. Pescava e caçava marreco.
P/1 – Pra comer.
R – Pra comer. Eu não gostava de comer os marrecos e nem gostava de matar. Mas todos os meus primos matavam, se eu não fizesse isso ia ficar estranho, né? Eu aprendi a matar bicho muito cedo. Agora pescar eu sempre gostei, porque a gente comia o peixe. Eu acho que era uma sensação estranha, eu tinha um certo prazer nisso.
P/1 – De comer o peixe.
R – De comer o peixe que eu pesquei. Ao mesmo tempo me trazia uma certa serenidade porque quando você pesca você espera muito tempo. Então era um ambiente tranquilo. Mas sempre muito álcool. A lembrança que eu tenho da infância, meu pai sempre bebendo muito.
P/1 – Então como era o seu pai, que quando você via que ele estava bêbado, o que você via?
R – Ele se transformava, né?
P/1 – O que acontecia?
R – Ele tomava um copo de cerveja e ficava agressivo.
P/1 – Contigo, por exemplo?
R – Com todo mundo. Todo mundo. Mas ele não me agrediu muitas vezes. As pessoas são muito violentas no Sul, muito. E a maneira de se educar filhos, deve estar mudando, mas o Rio Grande do Sul é um ambiente muito estranho. Quando eu vou pra lá, pra Porto Alegre, eu tenho vontade de voltar em três dias no máximo.
P/1 – Por exemplo, o que é que era a relação dele com você que você está me dizendo isso. O que é?
R – É estranho porque eu tinha dois pais, um era o que estava bêbado, que era violento e batia na minha mãe, e o outro era uma pessoa trabalhadora, que me levava pra todos os lados e que me ensinou muita coisa.
P/1 – Você tinha raiva dele?
R – Não, tinha pena, sempre tive pena dele. Ele morreu aos 51 anos de uma maneira muito estranha. Tenho até medo de falar, é tão dolorido pra mim. Foi numa briga em casa. Ele tropeçou, bateu a cabeça, e aí uma semana ele ficou no hospital e morreu. Eu vi ele morrer na minha frente porque ele teve uma parada cardíaca e de repente se apagou assim. Eu me lembro que saiu uma lágrima do olho dele, porque ele estava sofrendo muito, sabe?
P/1 – Onde foi?
R – No hospital. E hospital muito ruim, hospital público em Uberlândia. Eu sabia que ele ia morrer ali porque o atendimento era... eu fiquei uma semana com ele lá. E o médico falou que ele já estava morto, que era questão de dias. E eu me lembro que um dia eu acordei, ele teve uma parada cardíaca e morreu logo depois. Mas acho que uma hora antes dele morrer ele chorou, saiu uma lágrima do olho dele. E eu falei: “Tá vendo, como é que uma pessoa que está morta chora?”, ele estava com aparelho. Foi, bem, um final triste. A tristeza que me dá é que eu sei que ele tinha muito potencial, sabe? Era uma pessoa muito sensível.
P/1 – Como você sabe isso?
R – Ah, a maneira como ele cuidava das coisas quando ele não estava bêbado, sabe, o carinho que ele tinha, até pela família. Eu me lembro uma vez um rapaz bateu no meu irmão e ele tinha uma noção de proteção muito grande da família. Ele foi lá, ele sempre fazia isso, protegia muito os filhos. É um contrassenso.
P/1 – A sua mãe, como era?
R – Ah, ela era incrível. Eu briguei com a minha mãe uma vez na minha vida. E isso acabou com a minha semana. Ela não tinha mau humor, era muito doce e tranquila, muito serena.
P/1 – E a casa, ela que cozinhava?
R – É. Ela cozinhava muito bem. Eu gosto de cozinhar também, o pouco eu aprendi de cozinha. Ela estava morando em Uberlândia no final da vida dela e meu grande prazer era no final do ano passar dois, três dias com ela cozinhando. Mas também uma vida muito triste. Nossa, acho que, quando ela morreu foi horrível, mas ao mesmo tempo eu tive a sensação de um alívio pra ela porque ô pessoa que sofreu na vida, sofreu demais.
P/1 – Você lembra de você criança olhar ela triste?
R – Sim, sim. E essa sensação de frustração de não poder mudar as coisas, você perceber que aquele é seu destino e você não tem como transformar aquilo, isso é muito difícil. E ela sempre me apoiou em tudo.
P/1 – Então vamos voltar pra você. Você estava nessa casa, com esse cotidiano de escola, uma escola ruim, os irmãos e a família. Aí você começou a trabalhar, bem cedinho.
R – Isso.
P/1 – E aí? Me conta como foi indo essa vida.
R – Bom, minha mãe separou do meu pai, cansou dessa vida. Veio pra São Paulo sozinha.
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Acho que eu devia ter uns oito anos. E ela deixou a gente sozinho e meu pai colocou uma mulher pra morar lá com a gente, chamava Sandra.
P/1 – Uma namorada?
R – É. E ela era mais alcoólatra que ele e mais violenta que ele. E ela batia nos meus irmãos. Um dia ela tentou me bater, eu reagi e ela não tocou mais em mim, mas ela bateu muito nos meus irmãos, muito mesmo. Meu pai vendeu a nossa casa e meu avô, que era bem maluco, estava morando em Santa Catarina.
P/1 – O pai dele?
R – O pai dele. Vô Edevaldo. Ele estava morando em um sítio numa região muito estranha, mas ao mesmo tempo muito bela porque você tinha o mar, entre Laguna e Tubarão. Você tinha o mar, você tinha água e tinha um rio. E a gente foi morar com o meu tio nesse sítio, com essa mulher, Sandra.
P/1 – Com seu tio ou seu pai?
R – Não, com meu avô. Com meu avô, com meu pai e meus três irmãos.
P/1 – E com essa Sandra.
R – Com essa Sandra. Mas o dia que minha mãe chegou lá meu pai já mandou ela embora na mesma hora e foi tudo muito rápido. Em três semanas a gente já estava viajando de caminhão pra São Paulo.
P/1 – Então, essa...
R – Foi 1984 isso. Eu tinha nove anos de idade.
P/1 – Você tinha nove anos e essa Sandra, o que você lembra dela?
R – Ela era uma pessoa muito triste. Muito triste. Dava pena até, sabe? Era uma pessoa que parecia um zumbi quando não estava bêbada.
P/1 – Bebia muito.
R – Bebia muito. O dia inteiro. Muito mais do que meu pai.
P/1 – E uma curiosidade. Vocês viviam muito longe, por exemplo, da sua avó Custódia.
R – Não, era próximo.
P/1 – E ninguém percebia que estava acontecendo isso?
R – Percebia, quando não conseguia pagar as contas eles faziam vaquinha pra trazer roupa, supermercado. Ao mesmo tempo que ajudavam, meus parentes eram... não sei, estranho, eu guardava muita amargura, eu consegui lidar com isso depois de algum tempo. Mas essa coisa da bondade eu sempre desconfiei, sabe? Quanto você não quer se eximir desse problema ajudando financeiramente ou materialmente? O quanto eles poderiam ter ajudado o meu pai. Mas eu sei que meu pai foi um adolescente muito difícil, causou muito sofrimento pra eles também.
P/1 – Mas, por exemplo, vocês. A sua avó ou seus tios não viam que ela batia em vocês? Ninguém...
R – Mas não fizeram nada, não fizeram.
P/1 – Era normal isso?
R – Era normal, é, não sei, é estranho. Não sei o que eles poderiam fazer também, todo mundo tinha suas vidas. Meu pai era um problema pra eles, sempre foi. A sensação que eu tenho quando a gente saiu de Porto Alegre eles ficaram um pouco aliviados. Meu pai causou muito, causou muito, a vida toda.
P/1 – Ele era uma pessoa atormentada?
R – Era. Visivelmente atormentada. Mas é isso que é triste, você perceber... é horrível falar isso, não é qualidades eletivas, mas o potencial, a pessoa poderia fazer o que quisesse da vida e ela decidiu se autodestruir. E o mais apavorante nisso é que eu sei que eu tenho isso em mim também. E é um demônio que eu tenho consciência que ele existe e eu tento controlá-lo.
P/1 – Mas como você tem essa consciência?
R – Ah, eu já fui muito agressivo. E eu já corri muitos riscos. Até os 18 anos eu aprontei muito na minha vida também. Nunca fui violento diretamente com uma pessoa, mas cometi muitos delitos, coisas graves até. E eu sempre coloquei minha vida num risco, eu quase morri várias vezes. Parecia que eu fazia isso de maneira consciente, eu sabia do meu destino trágico e estava indo de encontro a ele. Não foi um dia que eu acordei, mas eu percebi que eu gostava de viver e tinha coisas que me apaixonavam na vida e que se eu não virasse o caminho, não tomasse outra linha, que eu poderia já estar morto há muito tempo, como muitos amigos meus estão. Como meu irmão está, como minha mãe está, como meu pai está.
P/1 – Então vamos voltar pra entender essa trajetória dessas mortes, né? Eu li que você esteve na escola, acho que não foi mais aqui, essa relação de amigos que foram morrendo. Isso foi depois que você veio pra São Paulo?
R – Isso. Quando a gente saiu de Trevo de Guaiuba, depois de Laguna.
P/1 – Então vamos voltar pra Trevo de Guaiuba. Vocês chegaram lá, vocês ficaram quanto tempo?
R – Por volta de um ano, até minha mãe aparecer.
P/1 – Tá. Vocês iam à escola, como era a vida de vocês lá?
R – Meu pai vinha pra São Paulo, eu ia à escola, mas não ia muito porque a escola era muito ruim e ninguém controlava isso, tanto faz se a gente fosse pra escola ou não. E meu pai vinha pra São Paulo, comprava óculos e eu viajava com ele pelo interior de Santa Catarina, pelas praias vendendo óculos e relógio.
P/1 – Nas praias?
R – É. Porque família sempre tinha um tino pro comércio.
P/1 – E como vocês faziam?
R – E também ele tinha o dinheiro da casa, que foi gastando. A gente parava nas feiras e vendia os óculos. Montava uma banquinha e quando vinha a polícia tinha que sair correndo. Eu lembro de uma história que a gente estava em Garopaba, o rapaz veio e comprou o relógio, perguntou se era à prova d´água e meu pai falou que sim, ele pagou. Aí ele entrou pra dar um mergulho e a gente olhou e ele batia no relógio assim, começou a falhar. E meu pai falou: “Tá na hora de ir embora”, a gente recolheu a banca e saiu correndo. Eu não achei aquilo muito legal, não. Depois disso, a gente ficou pouco tempo lá, quando a minha mãe voltou, três semanas a gente veio pra São Paulo.
P/1 – Por que sua mãe voltou? Ela apareceu um dia, você acordou e sua mãe estava lá?
R – Ela falou que sentiu falta. E meu pai falou que ia mudar, que ia parar de beber, que ia pro AA, coisa que ele fez a vida inteira, Alcoólicos Anônimos. Ele sempre começava o tratamento e um dia ele tinha uma recaída. E ele parou de beber, ficou quase um ano dessa vez. Ele muda completamente, ele se dedica à família, aos filhos, a melhorar de vida. Trabalha com afinco, era mais carinhoso com a minha mãe. Minha mãe era uma pessoa muito bonita por dentro, mas você via um sofrimento no rosto dela, era perceptível assim. Uma tristeza muito grande. E quando a gente chegou em São Paulo a gente foi morar de favor na casa de um tio meu, tio Albino, que ele morava na Vila Joaniza, não era comunidade, era uma favela mesmo.
P/1 – Era uma favela.
R – Eram dois cômodos. Ele tinha a família grande e a gente chegou lá com três filhos e ficamos lá duas semanas. Aí a irmã da minha mãe, chamada Belmira, morava no Rio Pequeno, numa casa maior, num sobrado, tinha dormitórios pro fundo, eles ficaram com a gente lá três semanas, duas semanas na Joaniza, na casa do meu tio Albina, três semanas na casa da tia Belmira. Meu tio trabalhava na USP e arranjou um trabalho pro meu pai numa empresa dentro da faculdade de Elétrica. E lá eu estudava de manhã.
P/1 – Onde você estudava?
R – A gente foi morar em Osasco, na Olaria do Nino, em Novo Osasco. Eu estudava de manhã e à tarde eu ia pra USP vender doce, ali na Faculdade de Engenharia Elétrica, na Poli. Andava com uma caixinha no pescoço.
P/1 – Você tinha quantos anos nessa época?
R – Dez anos.
P/1 – E quem te dava esses doces?
R – Meu pai. Porque eu tinha facilidade pra falar, me comunicar e a gente sempre vendia óculos com ele, comecei a vender com os ciganos, era bom de negócio. E da Poli eu comecei a ir até a ECA. E aí um dia eu descobri a sala preta, que era um lugar onde o Guto Araújo e a Cibele Forjaz estudaram e essa sala preta é onde tinham os experimentos de interpretação dos alunos. E com dez pra 11 anos eu já entrava lá, vendia doce e ficava lá assistindo as peças. Isso me marcou muito nessa época.
P/1 – Mas você sabia o que era teatro?
R – Não, eu não tinha a mínima ideia, mas tinha umas moças peladas lá, eu achava interessante também. A primeira peça que eu assisti eu me lembro que eles penduraram uma mulher e ela estava completamente nua. Foi a primeira vez que eu vi uma mulher nua na minha frente. Eu achei aquilo tão legal e eu comecei a voltar pra ECA toda tarde. E quando não eram encenações eram palestras. Eu usava a desculpa de vender doce pra ficar lá.
P/1 – Então como você fazia? Você pegava...
R – Eu entrava, as pessoas deixavam. Mas na ECA eu senti, eu não sabia explicar o que era aquilo, mas eu me sentia bem lá, as pessoas eram mais agradáveis e simpáticas do que na engenharia elétrica, onde meu pai trabalhava, onde eu podia vender lá tranquilamente. Mas lá as pessoas eram mais frias e duras. Mas lá na ECA não, tinha outro ambiente, as pessoas estavam sempre sorrindo.
P/1 – E aí você curtia, você ficava ali.
R – Eu adorava esse espaço, eu estava sempre vendendo doce por lá. Mas eu só podia vender oficialmente, tinha autorização, pra vender lá na Poli, na Engenharia Elétrica. Depois disso um diretor lá da Poli trabalhava na Cohab e conseguiu um apartamento pra gente na Cohab Adventista, lá no Capão Redondo. E aí eu fui morar lá.
P/1 – Você, sua mãe...
R – E meus três irmãos.
P/1 – E ela teve mais filhos.
R – Teve. Teve uma menina, chama Keli, e um menino, chama Tiago, que é meu irmão mais novo. Esse deu muito problema. Dos 15 aos 18 ele esteve várias vezes na Febem e dos 18 até agora, ele está com 28, 29 se não me engano, ele já esteve preso três vezes, em presídios. Primeiro foi CDP-2 de Osasco, depois em Uberlândia, depois ele ficou preso no Mato Grosso muito tempo.
P/1 – Voltando então. Vocês chegaram no Capão. Aí vocês estavam já numa casa, como era?
R – Era um apartamento de Cohab. Era simples, mas já tinha, você tinha dois quartos, uma sala, uma cozinha, aí parecia uma casa, tinha uma estrutura.
P/1 – E tinha o quê? Tinha televisão, tinha sofá.
R – Tinha.
P/1 – Explica como era essa casa.
R – Tinha televisão, sofá, rádio e poucos livros que eu levava e os gibis da minha mãe.
P/1 – E cama? Onde você dormia?
R – Beliche.
P/1 – Vários beliches?
R – Não, eu dormia na sala, tinha dois beliches no quarto.
P/1 – A menina, sua irmã, dormia com os meninos?
R – Dormia com os meninos também. Mas aí foi o começo do fim, né?
P/1 – Então me conta assim, vocês estão lá, todo mundo, você na sala, os quatro, seu pai morando com a sua mãe. Sua mãe trabalhava?
R – Trabalhava. Ela começou a trabalhar na fábrica da Kibon.
P/1 – Então ela saía de manhã...
R – Saía de manhã. E meu pai também.
P/1 – E aí?
R – Aí a gente ficava por conta.
P/1 – Vocês comiam, como era?
R – É, eu já sabia, minha mãe deixava comida e eu esquentava e meio que cuidava dos meus irmãos. Eu sei trocar fralda de pano, essas coisas todas porque ajudei a criar os quatro.
P/1 – Mas você, não chegava ninguém, você ficava...
R – Não, era só...
P/1 – Você estava com quantos anos nesse momento, Cristiano?
R – Era já dez, 11 anos; 11 pra 12.
P/1 – E vocês iam todos pra escola, como era esse dia a dia?
R – Sempre. Pra escola, pro jardim de infância.
P/1 – Você ia botando as pessoas no lugar?
R – É. Mas a gente se cuidava. É isso que eu falo, as crianças lá em casa eram muito inteligentes, muito... eu me lembro de pegar ônibus e ir pro centro sozinho já muito novo. A primeira vez que eu fui ao cinema sozinho eu tinha 13 anos. Então eu sabia me locomover e todas as crianças lá eram muito espertas. E minha mãe sabia disso. Ela também não tinha opção, né? Não tinha dinheiro pra empregada, pra babá, não tinha nada disso, tinha que se virar. E muito cedo, você está em casa e vai pra aula, você faz o quê depois? Você fica na rua. E aí na rua que a coisa acontece.
P/1 – E aí, o que começou a acontecer?
R – Isso é próximo dos anos 90 já.
P/1 – Você está com?
R – Aí eu já estou com 12, 13 anos. Eu fiz 15 anos nos anos 90, mas de 87, quando a gente foi pro Capão – acho que foi 87, 88 se não me engano, essa região era conhecida como Triângulo de Morte, Capão Redondo, Jardim ngela e Jardim São Luís. Lá você tinha o Cabo Bruno que comandava um esquadrão de extermínio, esquadrão esse pago por comerciantes e afins. Você tinha a Rota que matava muito e você tinha os Pés de Patos, que eram os justiceiros, policiais e moradores locais, comerciantes, que matavam todo mundo também. Então se matava muita gente, era um lugar extremamente violento. E aí eu me criei nesse lugar. Eu tentei ser jogador de futebol, eu joguei no Pequenos do Jóquei, no Palmeiras e na Portuguesa, tentei dez vezes peneira no Corinthians. Eu tinha habilidade até, jogando bola eu sou ambidestro, e eu decidi não ser jogador profissional se não fosse no Corinthians. E aí eu abandonei o futebol, comecei a fazer atletismo, mas em paralelo a isso eu já comecei a ... eu fiz muitas amizades na escola onde eu estudei, chama Beatriz de Quadros Leme, no Parque Fernanda. E lá era um antro.
P/1 – Como era a escola? Ela era muito diferente das outras que você conhecia?
R – Parecia uma cadeia.
P/1 – Essa escola.
R – Essa escola. Eu me lembro de entrar nessa escola e as grades iam se fechando atrás, um barulho muito estridente. Os professores, eles não se interessavam pelos alunos. Eu me lembro que se tinha 20 livros na biblioteca da escola era muito. E todo mundo usando droga o dia inteiro na quadra da escola. Tinha um segurança lá que não apitava nada. A direção da escola não se interessava pelos alunos. A merenda era muito ruim, era nojento. E sempre tinha uma pessoa ou outra que morria. Acho que eu não passei um mês da minha vida na época que eu estudei nessa escola que algum aluno da escola não morreu, ou um vizinho próximo. O camburão do IML era muito comum na região, muito. Eu vi muita gente morrer na minha frente, era muito comum.
P/1 – Morria como, Cristiano?
R – Morria, todo mundo andava armado, era uma coisa do outro mundo. E era terra de sem lei, sabe? As pessoas se matavam mesmo. Era extremamente violento.
P/1 – Você tinha o quê, 13 anos, 12 anos?
R – Treze pra catorze.
P/1 – E seus amigos que estavam morrendo.
R – Eu tive 18 pessoas que eu conhecia que morreram. Doze amigos muito próximos. Isso de chacina, troca de tiro com a polícia, boa parte deles morreu pela mão de policiais.
P/1 – E a outra, briga...
R – Briga entre eles, traficantes.
P/1 – Mas eles todos estavam envolvidos?
R – Nem todos, nem todos. Mas você acaba se envolvendo, mesmo se você não tem uma índole para o crime você acaba se envolvendo. Porque você não tem nada pra fazer.
P/1 – Então como é ...
R – Você está ali no campinho de futebol, aí você toma uma cerveja, vai pro barzinho e você, puxa, dá um tapa no baseado, aí você cheira uma cocaína. E aí você está fudido em casa, não tem nem comida, sua mãe não apareceu, seu pai também não, todo mundo brigou. E aí um amigo fala: “Estamos de carro aí, vamos fazer”, me lembro até hoje, “uma fita na butique do Itaim”. Começa assim, sempre uma fita na butique do Itaim.
P/1 – Isso foi um dia. Me conta essa história, a primeira vez que você saiu.
R – Foi assim, desse jeito. Você está ali, você tem 15 anos e de repente você vê seus amigos morrerem e você se sente acuado. Uma arma acaba sendo uma maneira de se proteger. Eu me lembro a primeira vez que eu peguei, era diferente atirar com as espingardas do meu tio no Sul, mas quando eu peguei um 38 na mão, que um bandido amigo meu me deu na mão assim, a sensação de poder e segurança que eu tive. Porque eu tinha muita insegurança, muito medo de morrer. Eu tinha um amigo chamado Marcos. Ele era alto, ele era muito bonito, os irmãos dele também. E lá na periferia quando você não é negro, você é o alemão. Então o Marcos era como eu, era chamado de Alemão também.
P/1 – Você também era chamado de Alemão.
R – Também. E esse Marcos tinha quatro irmãos, eles eram muito violentos, muito mesmo. Eles mataram muita gente, os quatro irmãos. Eram bandidos profissionais. E aí chegou, em um mês eles mataram todos os irmãos dele, inclusive ele. Assim, exterminaram a família toda. É difícil explicar porque é tão banal, de repente você está aqui jogando uma sinuca e chega alguém e atira na cabeça da pessoa na sua frente. Agora o pior sempre foi a polícia. A polícia exterminou muita gente. A grande paura quando você mora na periferia, eu morava nessa época no Capão Redondo, era você encontrar um Opala Preto, que podia ser um Pé de Pato, podia ser o Cabo Bruno ou algum comparsa dele, ou você encontrar, aí era pior, você sabia que ia morrer, era um camburão da Rota. Porque eles atiravam primeiro e depois eles iam entender quem era. Passou das dez da noite e você dava de cara com um camburão da Rota, a chance de você sair vivo era muito pouca.
P/1 – E nisso era no seu cotidiano?
R – Hunrum. No meu cotidiano. E aí mesmo cometendo esses pequenos delitos...
P/1 – O que é um pequeno delito?
R – Ah, não sei se é pequeno delito, mas roubar banco não é um pequeno delito (risos).
P/1 – Mas como é que você entrou nessa história dos delitos?
R – Amigos. Amigos e querendo...
P/1 – Daí você está em casa, fumou maconha, cheirou cocaína, está meio de saco cheio...
R – É, mas nessa época eu nem... eu comecei a ter contato mais forte com droga mesmo depois que eu saí do Capão Redondo. Eu achava interessante porque você está ali, aí você está andando com a turma, sabe? De repente você está num carro, o cara não tem carta e aí você está vindo pros Jardins, você está bebendo, aí tem umas moças que começam a olhar pra você diferente porque você está andando com a turma. Essa é, pra se sentir parte do negócio. Aí eu parei de jogar bola. Mas aí as pessoas vão morrendo. Eu me lembro que eu conheci dois garotos que jogavam muito, eram gênios do futebol. Um deles deve estar vivo, chamado Miltinho, que era uma mistura de Garrincha com Pelé, não estou exagerando, não, eu sou um pouco hiperbólico, mas nesse caso não. E o outro era o William, amigo meu, a gente estudou todas as séries juntos. Ele tinha uma mãe que tinha uma deficiência, ela não saía de casa. Ele cuidava da mãe, do irmão e ele jogava muita bola. A gente fez muito teste juntos. Mas um dia ele saiu com um amigo nosso que era barra pesada, chamado Nonô, esse era sangue ruim mesmo, e aí eles não voltaram essa noite. Nonô apareceu lá em casa sete da manhã e falou: “A gente foi assaltar um taxista, o taxista estava armado e deu um tiro na cabeça do William”. E eu me lembro que esse William nunca tinha feito nada na vida, ele só estudava e cuidava da mãe deficiente. E ele morreu com um tiro na cabeça. E aí eu sempre tive medo que isso fosse acontecer comigo. E aí eu comece ia frequentar a biblioteca Robert Kennedy, em Santo Amaro, eu acho que eu li essa biblioteca umas duas vezes, eu lia muito, compulsivamente.
P/1 – Dentro dessa biblioteca.
R – Dentro dessa biblioteca e levava livros pra casa.
P/1 – Mas como você descobriu uma biblioteca?
R – Eu passava de ônibus ali na João Dias. Antigamente pra você vir pro centro, que não tinha nada lá, você tinha que pegar um ônibus que demorava duas horas, Capão Redondo – Praça da Bandeira, que vinha ali pela João Dias, Avenida Santo Amaro. Os ônibus eram muito ruins e eu achava bonito aquele espaço, um dia entrei lá. Mas eu tive um grande amigo, que eu conheci no Capão Redondo, chama Tiago. O pai dele era do Pernambuco, o avô, e deixou a biblioteca pra ele, então ele tinha muita coisa. Então um hábito feroz também tive com ele, quando ele começou a emprestar os livros dele pra mim.
P/1 – Ele lia também?
R – Lia compulsivamente. Lia muito. Ele é um grande amigo meu, acabei me afastando dele não sei por quê. Ele participa do documentário do meu irmão, tem uma longa entrevista de 30 minutos. É um grande amigo que a gente acabou se afastando. Porque eu acho que, não sei se isso foi de maneira consciente, eu me afastei da minha família também, porque esse núcleo de violência, de pobreza, de morte trágica, se eu não me afastasse isso iria me consumir de uma maneira tal, pode parecer um pouco cruel, né? Mas eu me afastei pra tentar sobreviver, senão eu não conseguiria.
P/1 – Voltando essa história, queria voltar um pouco desse seu momento que você vai se envolvendo um pouco com essa turma que está fazendo... o quê que é, me conta uma cena por exemplo. O que é você estava de noite, você saiu, o que você foi fazendo? Tenta me contar exatamente como foi acontecendo.
R – Eu nunca participei de ações violentas. Como diz meu amigo, eu era o que o Marcos Reis nos anos 50 chamava de malandro, né? Coisa como o Meneghetti, que era um bandido que nem usava armas. Tinha um lado romântico nisso pra mim. Quando tinha contato com violência diretamente isso nunca me interessou, eu sempre tive uma sensação meio de Robin Hood, sabe? Aquilo que eu te falei, uma raiva de classes isso eu sempre tive.
P/1 – Então você ficava com vontade de chegar no Itaim...
R – Porque eu sentia que eu tinha direito por aquilo, sabe? Eu via a minha família inteira sempre, minha mãe empregada doméstica, meu pai pedreiro, eletricista, trabalhando pros outros. Eu me lembro de ir com meu pai limpar fossa na casa das pessoas em época, dia de Natal, meu pai limpando a fossa de uma casa e eu me lembro que eles não ofereciam nem um copo de água pras pessoas, pra mim e pro meu pai. Isso sempre me deu muita raiva. Minha mãe morreu sendo faxineira. Domingo agora eu começo um filme sobre ela e uma das pessoas que eu quero entrevistar é uma mulher que ela trabalhou na casa dessa pessoa, que ela é da família Naves, do caso dos irmãos Naves, que o Jean Claude fez o roteiro. Mas essa coisa de, eu não sei, é estranho falar disso, você me perguntou e eu esqueci a pergunta.
P/1 – A pergunta era como você foi...
R – Ah, dos crimes você quer...
P/1 – É.
R – É assim, isso tem uma certa raiva que você vai acumulando. Uma vez eu estava jogando futebol na quadra da escola e a Rota chegou e eles, tinha alguém ali que estava envolvido com alguma coisa, eu não sei que de repente começou um tiroteio, atiraram em todo mundo, inclusive em mim. E o cara além de atirar, ele foi lá e deu um tiro na cabeça de cada um, tenho essa marca aqui. Era um tenente da Rota.
P/1 – Ele deu um tiro na sua cabeça?
R – Deu um tiro na minha cabeça. Eu não tinha sido atingindo antes e quando eu caí o tiro passou, tem o osso aqui. Eu me levantei depois que eles foram embora e saí correndo. Eles voltaram depois e tiraram todos os corpos. Eu sobrevivi a essa chacina. Esse tenente foi assassinado. Não por mim, não por minha culpa, mas por parentes de outros.
P/1 – Daquele...
R – É. Ele era conhecido por matar muita gente lá. Então assim, eu sobrevivi a uma chacina.
P/1 – Você estava com quantos anos nessa época?
R – Acho que eu tinha 15, 16. As datas eu confundo um pouco, sabe? É porque é tanta coisa que aconteceu, 15, 16 anos.
P/1 – E você contava isso pra alguém?
R – Não, eu não podia.
P/1 – Sua mãe...
R – Não podia chegar em casa e falar: “Olha, acabei de levar um tiro na cabeça e não morri”.
P/1 – Nada. Você chegava...
R – Nada, nada. Como se nada tivesse acontecido. É como se você tivesse duas vidas. Porque também num ambiente desse você não tem, cada um tem seu problema e são muitos problemas. São muitos problemas.
P/1 – Na casa. Sua casa não era um lugar, você sentia que você não...
R – Não. A minha casa sempre foi a rua, sempre foram meus amigos. Ao mesmo tempo, paralelo a esses meus pequenos delitos, eu passei a frequentar a biblioteca, eu comecei a fazer curso de teatro, comecei a vir pro centro, comecei a frequentar o teatro municipal. Muito cedo eu descobri, isso por culpa lá do Capão Redondo, ali na Casa de Cultura, no Teatro Paulo Eiró, aí tive acesso a apresentações de balé e música clássica, isso sempre me interessou muito. E no Teatro Municipal eu descobri que os casais brigavam e sempre sobrava um convite ou outro. Isso eu já com 15, 16, 17 anos. Então eu vi muita ópera. Eu adorava a Rádio Cultura.
P/1 – Isso foi aparecendo e você foi...
R – Foi. Foi muito rápido, sabe? Porque foi me dando uma certa... foi me instrumentalizando. Era uma maneira de uma fuga dessa violência toda, dessa pobreza, essa tristeza toda e um lugar agradável pra mim, era um outro ambiente. É o contato com o teatro, com a literatura, com a música, conhece artistas da época que eu frequentava lá a USP, a ECA. Aí eu fui vendo pessoas que tinham prazer em estarem vivas, em falar das coisas. Claro, eu era um garoto, só observava isso, né? Mas isso foi ficando no meu inconsciente. E aí eu descobri que tinha outro mundo, outras possibilidades. Eu fiz um curso com um amigo meu que chama Caetano Vilela. Ele era ator, diretor de teatro, mas trabalhava em um restaurante. E aí ele me levou pra trabalhar no restaurante, o restaurante chamava Mister Fish Grill, ficava na Lorena e tinha que falar em inglês. Ele falou: “Se alguém te perguntar que você fala inglês você diz que sim”, porque era do lado do consulado americano. E aí eu fui bem na entrevista, o cara perguntou se eu falava inglês, fez algumas perguntas e eu respondi, mas eu não falava nada. Mas na mesma noite eu decorei o cardápio inteiro em inglês e algumas respostas que eu precisava saber porque a grana era muito boa. Então com 17 anos eu consegui sair de casa e fui morar sozinho, na Bela Vista.
P/1 – Você foi morar onde?
R – Na Bela Vista, no apartamento de um amigo meu que estava indo viajar e era músico e ele sublocou o apartamento pra mim. E aí foi a liberdade pra mim.
P/1 – Então você passou a trabalhar de garçom.
R – Isso. Porque na época era moda. Tinha chegado de Nova York aquela moda, era o Ritz, o Spot, então os atores, gente de teatro que eu comecei a frequentar, fiz amizade muito rápido com muita gente, em consequência disso eu virei garçom. Que foi uma grande descoberta pra mim também.
P/1 – Por quê? O que você descobriu?
R – Porque eu gostava de cozinhar. Culpa da minha mãe. E aí eu comecei, como eu queria e aquilo era uma grana que eu não estava acostumado e seria importante pra mim, então eu quis aprender tudo sobre gastronomia e fiquei apaixonado por vinhos também, aí comecei a ler livros, fiz um curso na ABS. Não sou sommelier, mas é um...
P/1 – Você virou um bom garçom?
R – Ótimo. A ponto de trabalhar dez anos em restaurante, entre idas e vindas, a ponto de ser sommelier em restaurante, ser gerente, ter treinado equipe pra restaurante.
P/1 – Mas você chegou a fazer um curso de garçom?
R – Não, não. Mas eu trabalhei no Spot, trabalhei no Ruella, no Le Tan Tan. Trabalhei fora do país em alguns restaurantes também. Trabalhei em Goiânia, abri um restaurante lá, fui contratado pra treinar a equipe, fiz curso de sommelier na ABS. Ah, me apaixonei por alimentos e bebidas.
P/1 – Você gostou disso.
R – Gostei. Era um ambiente muito agradável. Ao mesmo tempo fazia teatro, comecei a trabalhar com cinema também. E aí fui me afastando desse universo violento.
P/1 – E isso começou quando, essa sua vida...
R – Em 93, se não me engano, estava com 18, 19 anos.
P/1 – Aí você começou a entrar no teatro e que teatro você entrou?
R – Primeiro num grupo, desse meu amigo Caetano. Depois eu trabalhei com Sérgio Ferrara num grupo chamado Companhia de Arte Degenerada, mas eu descobri que muito cedo que como ator eu era muito medíocre. E dirigir já me atraía. Aí eu comecei a fazer uns experimentos. Mas meu trabalho como diretor de teatro nessa época é pra se esquecer assim. Mas foi importante pra mim, né? Depois eu voltei pro Capão Redondo e comecei a dar oficinas, eu tive um grupo lá durante seis anos, chamava Grupo A Fúria e passaram mais de 80 adolescentes na minha mão, que tiveram contato íntimo comigo, pesquisa.
P/1 – Mas você voltou pra sua casa?
R – Não. Voltei pra uma ONG lá no Capão e pra Casa de Cultura de Santo Amaro. Depois de muitos anos, eu já não tinha mais parente lá, tenho uma tia ainda. Mas quando eu saí de casa, logo depois, minha mãe conheceu um rapaz que chamava Lourival, ele era borracheiro.
P/1 – Ainda casada com seu pai ela conheceu.
R – Conheceu, é. E meu pai estava cada vez mais louco.
P/1 – De bebida?
R – De bebida. E esse Lourival era um borracheiro, morava em frente ao prédio na Estrada de Itapecerica. E ele virou amigo da minha mãe, acho que eles até tiveram um caso. E ele cuidava da minha mãe, ele era muito amigo, se faltava dava dinheiro. No final das contas minha mãe decidiu se separar do meu pai de novo, vender a casa e morar pra Uberlândia, onde esse Lourival tinha um irmão. Meu pai ficou meio transtornado, mas aceitou e ele foi morar na Bela Vista.
P/1 – Seu pai.
R – Meu pai.
P/1 – Sozinho.
R – Sozinho.
P/1 – Nessa altura seus irmãos onde estavam?
R – Meu irmão estava casado, o Rafael. Mas aí minha tia no Sul, que era mais abastada, com pena do meu pai porque ele estava morando meio jogado, foi lá e comprou um apartamento em outra Cohab, mais pra baixo. E aí meu pai foi morar nessa Cohab. Meu irmão Rafael estava casado, já tinha dois filhos, nessa época ele tinha 20 anos. E aí eu já pulei, eu já estou em 99, 2000. Minha mãe estava morando em Uberlândia.
P/1 – Me conta da ida da sua mãe pra Uberlândia.
R – Ela foi pra lá com meu irmão.
P/1 – Mais novo.
R – Mais novo, o Tiago, com o Ricardo e com a Keli. O Rafael tinha casado e já tinha filhos, ficou em São Paulo.
P/1 – E você.
R – Eu já morava sozinho há muito tempo, já tinha ido pra Europa.
P/1 – E você lembra quando ela falou: “Eu vou sair com o Lourival”.
R – Lembro, lembro. Eu dei apoio pra ela, como sempre...
P/1 – Seu pai não bateu nela.
R – Não, não. Porque a gente já estava... meu pai era baixinho, né, aí quando os filhos cresceram ele parou de fazer isso. Porque meu irmão bateu nele uma vez, o que morreu, o Rafael. Bateu muito forte assim. Depois desse dia ele nunca mais tocou na minha mãe. E minha mãe era alta também, né? Chegou, em Porto Alegre ainda, ela começou a reagir, ela descobriu que ela podia bater nele, porque ele era baixinho, então, o papel mudou. Mas isso foi diminuindo. O que acontecia é uma vez a gente chegou em casa e ele tinha quebrado tudo, lá nessa Cohab, logo que a gente mudou no segundo ano, aquela foi uma cena apavorante, ele derrubou geladeira, quebrou a TV, estava tudo no chão. Teve uma crise psicótica em decorrência do álcool. Minha mãe foi pra Uberlândia, parecia estar mais tranquila lá.
P/1 – O que ela fazia lá?
R – Empregada doméstica.
P/1 – Sempre foi empregada doméstica.
R – É. E aí eles alugaram uma casa e o rapaz construiu uma borracharia na frente.
P/1 – E com seus três irmãos.
R – Com meus três irmãos. Meu irmão Tiago e a Keli eram pequenos e o meu irmão Ricardo. Meu irmão estava casado aqui e meu pai morava na Cohab. E depois minha mãe separou do Lourival, meu pai foi pra Uberlândia pra morar com ela de novo. Apareceu lá e ela aceitou. Ele tinha parado de beber, como ele sempre fazia todo ano, ele entrava no AA. E meu irmão, eu tinha voltado da Europa, em 97.
P/1 – Então depois você volta pra pegar isso.
R – Isso. Eu fui pro apartamento que ele tinha deixado aqui, que a minha tia tinha dado pra ele na Cohab. Meu irmão estava separado da esposa dele e foi morar comigo lá.
P/1 – Nesse apartamento.
R – Nesse apartamento. Eu tinha voltado de Barcelona e eu estava trabalhando em um restaurante, não tinha onde morar e fui morar lá. Pra mim foi uma coisa muito estranha ter que voltar pra Cohab, pro Capão Redondo, depois de muitos anos, mas eu não tinha casa. E meu irmão, eu levei meu irmão pra trabalhar em restaurante. Como garçom ele não era muito bom, mas ele gostava de beber e eu tinha um amigo barman que treinou ele, ele virou um ótimo barman. E ele trabalhava em bons restaurantes, trabalhava dois períodos, começou a ganhar uma grana. Mas o meu irmão era incrível, porque fisicamente ele era muito bonito, chamava muito a atenção e tinha um poder de atração muito forte, onde ele chegasse as pessoas olhavam pra ele, conversavam com ele. Mas eu sabia que alguma coisa não estava certa nele, ele tinha uma paixão pela vida muito grande.
P/1 – Ele tinha uma paixão?
R – Tinha, tinha muito, muito. Ele se drogava, bebia, saía com todo mundo, putaria, fazia os diabos. Adorava tudo. E como eu, eu percebi que ele estava fazendo, seguindo o mesmo caminho que eu, um dia você está trabalhando, um dia você não está, ele já tinha filhos, morava na Pedreira, que é um lugar muito violento também. E ele começou a puxar carro. Ele perdeu o trabalho e tinha que levar dinheiro pra casa, desculpa dele.
P/1 – Mas isso ele estava separado?
R – Estava separado, foi morar comigo lá no Capão Redondo.
P/1 – E aí puxar carro quer dizer?
R – Tinha uma quadrilha no Capão Redondo comandada por um policial militar, da Rota, que agregava, arregimentava os jovens ali pra roubar carro pra uma quadrilha. Tudo garoto. Roubavam os carros, eles vendiam. Meu irmão roubou alguns carros pra essa quadrilha e não pagaram ele, ele cobrou. Eles marcaram um dia pra pagar e em vez de pagar mataram ele.
P/1 – E como foi isso? Como você soube de toda essa história, o que te aconteceu?
R – A gente estava morando junto lá. Na noite anterior eu cheguei em casa, encontrei ele com o amigo dele que chamava Carioca, eles estavam fumando crack. E a imagem foi muito pesada pra mim porque eu experimentei muita droga na minha vida mas, quando eu morava na Europa eu tinha uns amigos que usavam heroína mas eu nunca quis, a imagem de alguém se picando, mas vi muita gente se picar. E achei muito pesado, é uma coisa que eu não saberia lidar. Eu sempre fui muito aventureiro, todas as drogas eu experimentei, menos o crack e a heroína. E aí quando eu vi meu irmão fumando pedra isso me deu, fiquei muito chocado. Eu expulsei o cara de casa, o amigo dele. No outro dia eu estava assistindo um filme, chama Um Dia Especial, com George Clooney e eu pensei em faltar ao trabalho e convidar ele pra jantar, pra ir ver um filme, coisa que eu fazia muito e ele ia comigo de vez em quando. Não fiz isso. Eu fui embora.
P/1 – Nisso você estava trabalhado no restaurante.
R – Estava trabalhado no restaurante. Mas eu faltei e convidei uma namoradinha minha pra ir jantar, não queria trabalhar naquele dia. Quando eu estou jantando com ela minha mãe liga dizendo que ele tinha sido assassinado. E eu me lembro...
P/1 – Sua mãe em Uberlândia.
R – Em Uberlândia. Liga chorando e fala: “Sua tia me ligou, mataram seu irmão”, em prantos. E aí eu falei pra minha namorada: “Mataram meu irmão”. Ela disse: “Esse negócio de morte e pobreza eu não trabalho muito bem”. Levantou e foi embora. O garçom tinha acabado de abrir o vinho assim. E aí eu me lembro de pegar um táxi, levei a garrafa de vinho e as luzes, eu até uso essa imagem no meu filme, que as luzes eram muito desfocadas, né? Daí eu chego no Capão Redondo e encontro meu irmão lá numa vala comum assim. Ele foi morto com sete tiros pelas costas. E aí eu enlouqueci muito.
P/1 – Mas como que souberam tão em cima da hora? Quem...
R – Era minha tia. Meu primo estava com ele, um primo meu.
P/1 – Ah.
R – Foi testemunha ocular. E ele fugiu quando meu irmão foi assassinado, foi pra casa da minha tia, avisou minha tia, que ligou pra minha mãe, que me ligou.
P/1 – Tá. Aí você viu ele e aí?
R – Ah, fiquei muito transtornado, né? E aí é aquilo, quando alguém morre na periferia, o corpo fica lá cinco, seis horas até chegar o camburão, IML, polícia científica. Não é no instante. E o corpo fica lá, coberto com jornal.
P/1 – E você ficou lá?
R – Eu fiquei lá e reconheci os assassinos passando.
P/1 – Você reconheceu?
R – Reconheci. Eu coloquei alguns deles na cadeia. Depois disso, aí aquele trâmite todo, vieram meus pais pra cá, todos os meus irmãos. E o meu pai se acovardou muito, eles não quiseram ir no... quando alguém morre assassinado você tem autópsia e depois você tem que reconhecer o corpo. Eu me lembro que meu irmão estava todo costurado assim, uma imagem muito pesada. E eu passei por todo esse processo, do enterro e afins. Foi muito pesado pra mim. E eu tinha um amigo que estava crescendo na hierarquia do crime, ele já era um patrão, foi morto, e aí ele falou: “Eu não posso matar os caras porque eles são comparsas, mas você pode e eu te ajudo se você quiser”. Eu me lembro que ele me deu uma 380 e mais um 38 e muita cocaína. E eu passei dois dias cheirando e pensando em matar os caras.
P/1 – Porque você sabia exatamente quem era.
R – Sabia. E aí eu andava armado e muito louco, dia e noite, cheirava dia e noite. Até que eu descobri a casa de um deles, falei: “Vou matar o cara”. Eu já tinha servido a Legião Estrangeira, lá eu aprendi táticas de guerrilha urbana, que é horrível, né, mas... você mete fogo na casa da pessoa, a pessoa sai correndo e aí você mata a pessoa. E eu fiquei a noite inteira lá. Era uma moita e estava muito armado, eu tinha conseguido mais uma arma, eu tinha três armas, e muito louco, muito louco mesmo, transtornado. Cinco da manhã sai uma senhorinha com duas crianças, sabe? E eu tinha coquetel molotov, ia meter fogo na casa. Eu não sei o que aconteceu ali, foi um clique pra mim, sabe? Acho que foi a grande virada da minha vida, que dali eu poderia ter me tornado realmente um assassino e acho que depois que você mata uma pessoa não tem como você voltar pra uma vida normal, né? Acredito eu. E aí parece que foi uma iluminação.
P/1 – O que aconteceu, você olhou a senhora saindo...
R – A senhora saindo com as crianças. Não vou matar criança, mulher, não vou matar ninguém. E aí voltei pra minha casa. E aí eu decidi ir pelas vias normais. Procurei o DHPP, informei quem era, onde estava. Isso demorou seis meses até que eles prendessem alguém. Um deles foi julgado, o outro estava foragido e o outro foi morto. Mas no dia do julgamento estava o menino que levou ele, que era o que eu sentia mais raiva, que armou todo o esquema pra ele, ele foi condenado a 12 anos de prisão e a mãe dele estava lá. Eu me senti muito mal com aquilo. Meu primo foi testemunha e depois disso, em 2004, aí eu passei uns dois anos da minha vida um pouco hesitando viver. Tinha uns empregos, mas me abalou muito a morte do meu irmão. Eu me sentia muito culpado, sinto até hoje. O filme eu fui fazer não por uma terapia, pra uma sublimação, uma resiliência freudiana, mas eu queria entender o que foi isso também.
P/1 – Vou voltar pra entender do filme, mas esse filme você foi fazer com que motivação?
R – É porque assim, todo esse processo que eu passei quando eu fui enterrar, desde a morte do meu irmão até quando teve o processo que prendeu o cidadão eles trataram meu irmão como se fosse um número, numa estatística. Isso me assombrou muito, depois que a pessoa morre ela vira um número. Mas pra pessoa que tem contato com aquilo, aquilo não é um número, né? Aquilo é uma fotografia, é um álbum de retrato, é a sua memória que está ali pra sempre. É como assistir televisão e essas imagens horripilantes que a gente vê todo dia de gente sendo morta na periferia. Então eu encontrei um ponto ali, quando você começa a fazer um filme, claro que você parte de uma perspectiva individual, privada pra chegar ao público e ao geral. A minha perspectiva era, eu não ia falar sobre um irmão, mas falando do meu irmão eu estaria fazendo uma reflexão sobre muitos irmãos e muitos adolescentes que são mortos nas grandes periferias das cidades brasileiras. E eu me sentia responsável por isso porque eu já era um cineasta, era o meu ofício. Eu não sei se tem uma função o cinema, mas pra mim era muito importante. Pra mim foi uma virada como artista também e como ser humano. Porque até então eu era uma pessoa formalista, um esteta, queria fazer filmes. Falava de coisas que talvez eu não tivesse uma compreensão total. E pela primeira vez na minha vida eu me senti útil no cinema, porque eu acho que eu deveria, que talvez o meu ofício tivesse uma função ali. E foi porque o mais importante do filme não são os prêmios que eu recebi ou porque eu fui trabalhar com problemas que me afetavam, mas é isso, como o filme é tocante pras pessoas, como é importante para algumas pessoas. Até hoje. O filme passa na televisão, as pessoas me escrevem e falam sobre isso. Porque é incrível, quando você nasce na periferia todo mundo tem contato com alguma questão de violência. E principalmente gente morta por uma arma de policial, é muito comum isso.
P/1 – Cristiano, vamos fazer uma pequena pausinha porque eu quero voltar, tudo bem?
R – Ok.
PAUSA
P/1 – Eu queria voltar. A gente foi até essa parte do seu irmão, vamos voltar. Você chegou em São Paulo, foi pro Capão, começou, teve toda a história. E aí eu queria que voltasse um pouquinho mais detalhadamente essa coisa do livro, desse outro mundo que foi aparecendo na sua vida, porque a gente foi um pouco rápido. Aí você conheceu um cara, ele te levou pra restaurante. Mas é muito um outro mundo, então vamos tentar explorar isso um pouquinho. Voltar. E aí a minha pergunta pra você é assim: Como era a sua relação com esses seus amigos lá do Capão? O que vocês faziam, o que vocês conversavam e como você foi entrando no outro mundo. Que outras pessoas você descobriu.
R – Esse meu contato com a Arte na verdade começa na escola, no Rio Grande do Sul. Mesmo sendo uma escola estranha tinha teatro, tinha música, tinha escoteiro – mas eu nunca gostei do lance de escoteiro, achava um ambiente de quartel, tinha alguma coisa nele; depois eu fui entender que a coisa é meio bizarra, escoterismo. Mas a minha mãe me levava ao circo e ao cinema.
P/1 – Ela te levava.
R – Me levava. Eu me lembro do cinema que ela me levava, Cine Leão, na Avenida Assis Brasil. Eu vi vários filmes dos Trapalhões e o Circo Garcia, que a minha mãe, as tias e os primos, mas a gente era muito pobre, comprava ingresso mas não podia comprar pipoca. Elas faziam sacos de pipoca. E é naquela época que tinha muitos animais no circo, mas o que eu mais gostava era do Globo da Morte, que era um globo onde tinha as motos. E aquele imaginário do circo e do cinema, até hoje eu vou ao cinema como um espectador comum, eu não consigo ter um distanciamento pra fazer uma análise crítica do filme; se eu tenho que fazer isso eu faço em casa, no computador. Na sala de cinema... e mesmo não comendo mais pipoca no cinema eu ainda sinto o cheiro quando eu entro na sala.
P/1 – Como foi a primeira vez, você lembra, que você foi no cinema?
R – Lembro. Eu lembro do filme. Era Os Trapalhões no Planeta dos Macacos. Eu fui com meu pai e com a minha mãe, era um domingo à tarde. E aquilo foi uma descoberta pra mim, emocionante, até hoje. Eu odeio falar isso, mas eu posso dizer que o cinema talvez tenha me salvado, ou me fez me perder completamente. Em relação à literatura...
P/1 – Vamos voltar pra esse dia, me conta aí.
R – Do cinema?
P/1 – É.
R – Ah, era um dia friozinho e minha mãe falou: “Vamos ao cinema” e meu pai falou: “Vamos”. Meus irmãos não quiseram porque tinha uma tia minha lá que ia fazer um bolo chamado Nega Maluca – olha como gaúcho é racista, tem um bolo de chocolate chamado Nega Maluca! E brigadeiro lá chama negrinho. Meus irmãos não quiseram ir e a gente foi. Eu me lembro do ônibus, a gente pegou um ônibus que saía lá de Brasília, passava pelo Sarandi e pegava a Assis Brasil. E o cinema ficava numa esquina. E o letreiro era muito colorido, cheio de neon. Eu achei aquilo tudo muito mágico, não esqueço até hoje. Minha mãe comprou pipoca e meu pai comprou um drops chamado Ducora. E aquela sensação entrou dentro de mim muito forte.
P/1 – Aí você entrou...
R – Sabe a sensação que eu tive? Que eu já tinha estado ali, sabe? Quando ligaram a luz da tela, aquele barulhinho do refletor, porque a proteção da sala de projeção não é tão, dava pra você escutar o projetor. E a gente estava sentado no fundo. Eu me lembro do projetor ligado, da sala apagar, das imagens aparecendo, foi muito bonito. Duas semanas depois eu fui ao circo, aí já tinha ido ao circo, mas eu era muito novo. E esse circo sempre passava por lá, ele tinha várias carretas. E no mesmo terreno. Eu lembro de pegar ônibus com a minha mãe sempre naquele terreno baldio esperando quando o circo fosse aparecer. Eram dois circos que passavam por lá: Circo Vostok e o Circo Garcia. A sensação que eu tive no circo foi a mesma que eu tive no cinema, lugar mágico, um imaginário incrível, me marcou muito, foi muito forte. E eu fui muito ao cinema com a minha mãe.
P/1 – Então ela gostava de ir ao cinema.
R – Gostava, ela sempre gostou de filmes.
P/1 – Seus irmãos gostavam também?
R – Não, não. Meus irmãos eram muito tímidos, fechados, não tinham muito essa... meu irmão tinha uma facilidade muito grande pra música, pra aprende instrumento.
P/1 – Esse que morreu?
R – É. E ele também era muito assanhado, ele gostava de gente. Acho que ele comeu qualquer ser que andou e rastejou pela face da terra. Eu me lembro até hoje que tinha um rapaz que chamava Vivi, ele tinha morado na Europa, então era muito moderno. Um dia eu vejo meu irmão se pegando com ele no banheiro do restaurante francês que a gente trabalhava. Eu achei incrível aquilo, eu achei que meu irmão era super preconceituoso, sabe? Não. Ele saía com qualquer um, qualquer pessoa, qualquer sexo (risos). Era pansexual o menino! Mas eu achei admirável nele.
P/1 – Ele era bonito?
R – Ele era bem bonito. E mais do que bonito, ele era uma pessoa, tinha um poder de atração muito forte. Ele trabalhava no bar desse restaurante, no bar do Ruella. Eu levando ele pra lá, a gente abria o restaurante. E era raro uma noite que ele não saía com uma cliente lá, que ele sentava no bar, ele ia fazendo os drinks, ele era muito... tinha um poder de atração muito forte. E era muito doce. Mas ao mesmo tempo esse contato com o crime que ele teve, talvez com mais afinco do que eu, tinha esse lado violento dele.
P/1 – Tipo o quê, ele assaltava?
R – Ele nunca foi violento com as pessoas, mas ele andava armado, sabe? Algumas vezes eu encontrei meu irmão com arma. Ele foi morto com a arma dele.
P/1 – E você não sabe, por exemplo, se ele fez assalto a mão armada?
R – Não, não fez. Eu fiz, ele não.
P/1 – E você fez quando esse assalto a mão armada?
R – Fiz numa butique mas não tinha gente trabalhando, tinha um segurança. Não fui eu, eu me lembro que era um Chevette, só que o motor era mexido, era muito rápido. O cara que dirigia era um demônio no volante. Ele bateu, arranhou. É tudo muito rápido. Assalto a banco é mais... mas eu fiz tudo isso antes dos 18, tá? Não posso ser responsabilizado por isso agora. Eu senti muito prazer.
P/1 – Você sentiu prazer?
R – Senti, é horrível falar isso porque a gente fugiu e veio uma viatura, a gente trocou tiro com a polícia.
P/1 – A viatura veio atrás de vocês. Isso do banco ou da butique?
R – Do banco.
P/1 – Vocês conseguiram pegar o dinheiro?
R – Pouco. Pouco. Mas gastamos tudo em uma semana. Mas não era uma fortuna. Porque foi muito rápido, de repente tocou alarme. Você não consegue, é tão... é como tomar um tiro também. Eu já tomei dois tiros, um na perna e uma facada. Quando você toma o tiro você não sente, é uma fisgada, quando você vê tem o sangue. O tiro que eu tomei na perna foi um...
P/1 – Um assalto.
R – Foi em um assalto. Foi a banco também, trocando tiro com a polícia.
P/1 – Então, como é que foi, você pode me contar, você topa? Eu quero entender na hora. Você fala: “Vamos assaltar um banco?”, vocês combinaram, como é que foi?
R – É porque na quebrada sempre tem um cara mais esperto, o bandido mais profissional. Aí você começa a andar com os caras, sempre precisa de mais gente. Mas você não chega ali, o cara te dá uma arma e leva, você tem que conhecer, tem uma certa malandragem. Você tem que ter uma verve, não é qualquer um que vai fazer um assalto. Porque quando você vai assaltar, é louco o mundo do crime porque tem uma organização, é muito sofisticada a coisa ao mesmo tempo. Porque se você está comigo você tem uma arma, a tua vida depende de mim e a minha depende da sua, tá entendendo?
P/1 – Tô.
R – Você tem uma responsabilidade sobre o outro. E nunca é pra obter o lucro só, é uma coisa de afirmação, de autoestima baixa e de que o mundo te deve alguma coisa. Os líderes dessas gangues, eles são muito inteligentes, eles estimulam por esse lado.
P/1 – Tipo, ele te diz o quê?
R – O dinheiro que está lá é nosso. Você é um garoto, ele te dá um 38 na mão e fala que a gente vai ganhar uma grana pesada, dinheiro. Então eu sempre acho que o bandidão é um comunista. Claro, dentro do universo dele, ele encontra uma justificativa praquilo, você não está indo lá pra roubar alguma coisa de alguém, você está indo pra lá pra pegar o que é seu, o que tiraram. Eu nunca me relacionei com bandido chinfrim, ladrão de galinha, que não tivesse um discurso mais...
P/1 – Vocês tinham essa conversa?
R – Tinha, tinha.
P/1 – O que vocês falavam, como é que era?
R – É porque assim, esses meus amigos bandidos não eram qualquer um, era uma pessoa que podia fazer qualquer coisa na vida.
P/1 – Esses eram do Capão.
R – Do Capão Redondo, era gente que lia.
P/1 – Eram da sua escola?
R – Era gente da minha escola. Era gente que lia, era gente que optou pelo crime. Claro, estou romantizando, é horrível isso, né? Mas é uma possibilidade de ver as coisas também. Você pode olhar para um lado e ver que o cara é só aquilo, mas ele pode ser outra coisa se você mudar sua perspectiva em relação àquilo. Eu acho muito simplista pegar uma coisa e fazer uma análise única.
P/1 – Como que era? Você foi se envolvendo com essas pessoas que você diz que eram pessoas mais interessantes.
R – É porque assim, você anda com gente descolada. Você está fudido ali, você não tem dinheiro, as meninas não olham pra você, a escola é uma merda, a tua família, o seu pai é alcoólatra, aquela merda toda e de repente alguém chega e fala: “Vamos lá no Jardins, no Itaim e aqui está um 38”. E você cheira a melhor cocaína do bairro, você não paga e você vai no boteco que você tinha medo de ir e de repente lá você é considerado. E se você arranja confusão com um bandido, com um cabra folgado, mas você está andando com aquela turma, você já é respeitado e de repente você vira uma pessoa respeitada na tua quebrada.
P/1 – E por que você foi chamado?
R – Porque eu sempre tive muito, como eles chamam, proceder.
P/1 – Proceder?
R – Proceder.
P/1 – O que é proceder?
R – Proceder é você saber se colocar, sabe? Você entender. Você não precisa ser bandido, mas tem bandido que te respeita quando você chega e tem o proceder. Quando eu fui visitar o meu irmão na cadeia, não foi fácil pra mim. Mas você chega lá, você é branco, o cara já acha que você é um bundão, otário. Então quando ele já puxa uma gíria, gíria de bandido, de malandro, o cara entende que não é um otário que está, eu não sou um rapaz de classe média alta, eu me criei nesse lugar. Então são alguns signos, alguns códigos que você entende, sabe?
P/1 – E aí você acha que ele te respeita mais.
R – Com certeza.
P/1 – O fato de você ser branco, no Capão, era...
R – Era problema.
P/1 – Era um problema.
R – Era problema. Porque você sempre tem que se colocar, sempre tem que se colocar. Eles acham que você é playboy. Aí você tinha que ser mais violento, você tinha que ser mais abusado, porque senão você apanhava. É dura a vida lá, é dura. E na prisão é a mesma coisa. Eu sempre achei que eu fosse chegar lá e meu irmão já virado a mocinha da prisão. Meu irmão é muito esperto, meu irmão é loiro, de olho azul. Se você encontra ele aqui, ele leva teu carro, cheque e você ainda sente pena dele e você não sabe como você deu tudo pra ele. Ele é profissional de marca maior. A grande pergunta pra ele é: “Por que você não virou um traficante internacional, um bandido de peso, você é ladrão de galinha?”, tá entendendo?
P/1 – Ele é ladrão de galinha.
R – É ladrão de galinha, sempre se fode. E é romântico. A última vez que ele foi preso ele estava assaltando um taxista. Não sei que problemas eles têm com taxista, né? Eu tenho vários. Mas uma namorada dele, meio Bonnie e Clyde. E ele foi preso e ele não deixou ela ser presa, ele disse que tinha sequestrado ela também. Então ele foi preso com duas armas, assaltando um taxista e sequestrando uma moça que era a namorada dele, ele segurou a bronca sozinho.
P/1 – Aqui?
R – Isso foi em Minas. Minha mãe teve dois filhos presos no presídio que ela via da janela de casa.
P/1 – Ele...
R – E o outro, o Ricardo. Tenho um irmão que tem problemas, problema sério.
P/1 – Qual é?
R – Chama Ricardo. Ele tem algum problema que eu não sei o que é, mas ele... só pra você ter uma ideia: ele foi preso e a moça contando na televisão, tipo Datena da vida, que ela estava tremendo e ele achou que ela estava com frio e foi lá e ofereceu um cobertor pra ela. Ele tem sérios problemas, eu não sei o que é, nunca cuidaram.
P/1 – Mas o que seria?
R – Tem uma deficiência.
P/1 – Tem uma deficiência?
R – Tem, tem. Mas eu não tenho muito contato com ele, só todo mês que ele me pede dinheiro pra pagar aluguel.
P/1 – O Ricardo é o que conviveu com você bastante junto com o Rafael, certo?
R – É.
P/1 – Eles eram quanto tempo mais novos que você?
R – Média de dois, três anos. Sou eu, Rafael e o Ricardo. Depois a Keli e o Tiago.
P/1 – Então você, o Rafael era uns dois anos mais novo que você.
R – É.
P/1 – E aí vinha o Ricardo.
R – Isso.
P/1 – E sempre você nessa relação de criança, vocês, sempre você sentiu responsável por eles.
R – Sempre. Até hoje.
P/1 – Agora todos vocês se enrolaram com o crime.
R – Hunrum.
P/1 – Por que você acha isso? Pelo ambiente? De onde você acha que veio...
R – É o ambiente. O ambiente que faz você. Porque assim, você mora na periferia, você não tem... vou ser um pouco demagogo também.
P/1 – Tá.
R – Você não tem uma praça, não tem um campinho de futebol furreca, a escola é uma merda, não tem nenhum atrativo pra você lá. Quando você sai da escola você tem um tempo ocioso. A tua casa não é confortável, não é um ambiente bom pra se estar, porque lá também é agressivo e violento. Aí você fica na rua. E na rua as coisas acontecem. E na periferia é isso, você fica naqueles lugarzinhos, nos antros, botequinhos, aí vem a droga, vem uma arma, aí vem a possibilidade de conseguir dinheiro pra fazer uma coisa. E quando você está ali de repente... eu achava apavorante, tinha muito medo. E quando você vê você está envolvido com as coisas. E o que é que está envolvido? É difícil. Você é levado.
P/1 – E assim você se sentiu levado, você achou que o Rafael foi entrando...
R – O Rafael foi levado. Eu não, eu escolhi me levar, eu tinha um discernimento do que era aquilo que eu estava entrando, entrei por escolha própria.
P/1 – Porque você me conta que você começou a ver ... eu vou voltar agora pro seu lado da Arte, que você muito novo começou a ver filme, a ver essas peças. Então como que você vivia essa vida? Porque você começou isso com 12, né? E essa sua vida no Capão de fazer tudo isso era a partir de que idade?
R – Quinze. Catorze, quinze anos.
P/1 – Então assim, é meio, começa um lado, o outro. Como que era na sua cabeça o seu sentimento no seu coração?
R – Mas mesmo quando eu comecei a frequentar os Jardins e trabalhando nos lugares eu ainda fiz uns tráficos leves. E era muito sacal porque eu trabalhava numa boate lá na Franz Schubert, que esse amigo meu Marcos era segurança e me lembro até hoje. É violento isso que eu vou falar, tá? Os seguranças lá ou eram policiais ou eram bandidos. E aí ele falou: “Você quer um trabalho de segurança?” “Quero”. Ele falou: “Mas você não é muito alto, então tem que ser casca grossa”. Eu falei: “Ok”. Na primeira noite o rapaz agrediu uma moça lá, tentou estuprar. E falava: “A gente vai lá pra salinha agora e você vai ter mostrar se é capaz ou não, vai estar o chefe lá”. E eu estava muito louco, estava cheirado pra caralho. O cara falou assim: “É, eu sou filho de juiz”. Eu falei: “Meu pai é pedreiro”. E dei um soco nele. O nariz dele quebrou e os caras: “Porra, você quebrou o nariz do cara? Não pode bater assim. Você bate de outra maneira”. Aí eles mostraram como batiam na cabeça e na sola. Eu fiquei muito mal com aquilo porque eu nunca fui violento, mas eu tinha que ser ali. E não continuei no trabalho. E o rapaz era filho de juiz mesmo (risos). Fecharam a casa, eu quase morri, os caras queriam me pegar (risos), eu quebrei o nariz do cara. Eu falei: “Vocês falaram que eu tinha que ser, eu fui”. E eu estava com raiva dele porque ele tinha sido bem filho da puta. Mas poucas vezes eu tive contato físico e fui violento com as pessoas. E das vezes que eu fui, eu tive que ser, pra não serem comigo. E eu me lembro que eu sofria muito com isso. Se você vê sangue de alguém que você agrediu é dilacerante, é horrível, é horrível. Mas ao mesmo tempo eu sei que todo mundo é capaz de fazer isso.
P/1 – Da onde vem essa energia na hora?
R – Instinto de sobrevivência. Porque se eu não batesse no cara eles iam me bater, entendeu? O cara, bandido, que me levou pra lá falou que eu era casca grossa. E se eu não segurasse a bronca ali...
P/1 – Ele ia...
R – Eu estava fudido, como eu ia voltar pra quebrada? Amarelou, bundão, não tem coragem. Em outros lugares que eu trabalhei eu comecei a fazer tráfico, levava cocaína. E assim, tem os playboys que consomem, quem consome droga nesse país é quem tem grana, não é pobre. Pobre fica com a droga ruim até, né? E aí: “Ah, você tem contato?” “Ah, tenho”, que alguém vende aqui. Você está trabalhando ali, vendendo champanhe pra mesa do cara. “Parece que tem aí, vou ver”. E eu trazia uma droga muito ruim, eu misturava com um monte de coisa e vendia aquela merda pra eles e cobrava muito caro. Eu ganhava três vezes mais vendendo isso. Mas aí a coisa começou a crescer, entendeu? E eu já tinha visto essa história acontecer.
P/1 – Como que começou a crescer?
R – Porque aí você começa a vender muito, né? As pessoas começam a pedir mais e aí você percebe que é melhor não misturar e vender uma mais forte, mais cara. E aí quando você vê já tem muita gente pedindo. De repente...
P/1 – Você passou a vender uma melhor?
R – É.
P/1 – E aí o pessoal sabe que você está vendendo melhor?
R – Ah, eles começam a descobrir, né? Gente que usa cocaína é foda, os caras são muito espertos.
P/1 – Entra e sabe: “Fulano mandou falar pra você”...
R – É. Eu falo que não sou eu, é alguém, mas aí uma hora a casa vai cair. Mas aí eu percebendo isso e já tendo vivenciado isso muitas vezes, aí eu parei. Que é uma vida muito... não tem, quando você está nesse lugar ou é cadeia ou é morte, sempre.
P/1 – Mas você pensava nisso? Eu queria entender uma coisa.
R – Eu não queria morrer.
P/1 – Não queria morrer.
R – Eu não queria morrer.
P/1 – E ser chamado de bundão, assim, pelo cara que é da quebrada, você é branco. Aí você está lá com os playboys. Assim, você se sentia um bundão, você se sentia superior ao playboy? Como você se sentia, Cristiano? Você, nesse mapa...
R – Eu só estava tentando sobreviver, da melhor maneira.
P/1 – Você não tinha uma dimensão sua, ai, quem sou eu.
R – Não, não, não. Quando você é fudido assim, se você chegar vivo no final do dia já é uma grande vitória. Sem apanhar, sem ter matado alguém é outra vitória. Eu estou falando de uma época que é diferente de hoje. É uma época de extrema violência, que ninguém se preocupava quantas pessoas morriam no Capão Redondo. Era muito violento o negócio. E que você, pra sobreviver, tinha que ser violento também. Se você não era o cara violento, você era o cara que sofria a violência. Então entre apanhar e bater eu preferi bater. É horrível falar isso, eu não falo isso com orgulho, lembro desses momentos de maneira muito triste, assim. Não sei se eu fui mais esperto, tive sorte, não acredito em nenhuma das duas coisas, mas eu perdi 12 amigos próximos, que optaram por um dois lados. Ou que nem optaram, que não tiveram escolha. Eu acho que tive sorte, não sei.
P/1 – Isso era uma conversa entre vocês? Vou morrer, não vou morrer. Você pensava nisso?
R – Pensava porque a qualquer instante, todo mundo morria, né? Era um...
P/1 – Mas você pensava assim: “Eu preciso ficar vivo”? Ou não...
R – Não era tão consciente. O que eu tinha era o instinto de sobrevivência e sempre tive muito forte. Todas as vezes que eu quase morri na minha vida eu tive a sensação que eu poderia ter morrido ali na hora, antes que acontecesse. E depois que passa a coisa você desmonta, a perna fica bamba, sabe? Você quase desmaia. Você percebeu o quão periclitante foi aquela situação. Quando eu tinha uns 15 anos, eu acho que foi num livro do Apollinaire, não me recordo o escritor, mas tem uma frase lá que me chamou muito a atenção. Dois livros, duas frases. O livro eu não lembro e nem o autor, mas a frase era: “Você tem uma certa tendência ao luto”. Achei isso muito forte. E mal saberia eu que isso viraria a minha própria história, que eu tinha uma certa tendência ao luto. E a outra, eu lembro muito bem que é o livro do Ivan Turgueniev, Pais e Filhos, onde tem uma frase assim: “Seu sobrinho é um niilista”. Eu achei aquela frase tão potente. Nem sabia o que era niilista, depois eu fui procurar entender. E aí eu falei... hoje eu estava dando aula pela manhã e um aluno vem e traz o livro: “Eu li uma entrevista sua que você fala desse livro e eu comprei, fiquei curioso”. Mas a literatura me forjou muito, sabia?
P/1 – A literatura. Então vamos voltar a isso.
R – A literatura.
P/1 – Você descobriu a biblioteca.
R – Sim.
P/1 – E aí, como que era essa sua vida? Que você descobriu essa biblioteca na escola. Aí você ia pegando livro, como foi?
R – Isso. Foi meio ao acaso, sem nenhuma, eu não entendia nada. Eu li muita coisa ruim, mas eu não sabia o que era ruim e precisava ler.
P/1 – E você gostava, te dava prazer.
R – É, me dava prazer. Aí os russos foram uma descoberta pra mim.
P/1 – Qual russo que te pegou de cara?
R – Ah, Dostoievski, né? E Ivan Turgueniev também. Depois li Tolstoi. Arquipélago Gulag, Soljenítsin. Eu não sei, parece que o instinto de sobrevivência, a violência que essas pessoas sofreram nos gulags, eu conseguia fazer um paralelo com a violência que eu tinha contato na minha vida, mesmo não sendo preso. Mas a pobreza acaba sendo uma certa prisão.
P/1 – Mas você via esses livros assim, eles estavam ali na estante dessa escola?
R – Acaso, aleatoriamente.
P/1 – Dostoievski, por exemplo?
R – Ah não, aí eu já estava sofisticando meu gosto pela literatura, né? Mas no começo eu lia tudo, até manual de pesca, livro de química.
P/1 – Só você na sua casa?
R – Só eu na minha casa, sempre, sempre.
P/1 – Alguma pessoa te influenciou e falou: “Que bom que você está lendo”?
R – Não, não. O que eu tive, eu cheguei no ápice da minha obsessão por leitura, eu lia em média um livro a cada dois dias, eu lia no ônibus, lia em pé, dormia, acordava sempre com um livro na mão. Lia compulsivamente. E depois eu adquiri o hábito de reler, que agora eu estou nisso no cinema, eu estou nos anos 40, já cheguei nos anos 40, que eu estou revendo os grandes filmes, por décadas e por diretores. Mas esse prazer eu descobri na literatura, que você reler um livro é um reencontro, é muito interessante. Mas eu não sou um intelectual e não consegui ter uma análise crítica sobre literatura e afins. Pra mim foi uma maneira, era uma fuga e uma maneira de proteger minha cabeça pra não enlouquecer.
P/1 – Aquilo te trazia um...
R – Um afago. E uma certa paz.
P/1 – E você foi trilhando sozinho ou de repente você encontrou uma turma, começou a trocar...
R – Não. Mas depois eu comecei a participar de grupos de estudos. Eu era campeão de cursos assim, viciado em tudo quanto é curso livre, sabe? Acho que até de cerâmica, serigrafia, fiz todos esses cursos.
P/1 – Onde você fazia isso?
R – Masp. E assim, muitas vezes, na maioria das vezes não tinha grana. Eu era daqueles que aparecem lá e falam: “Eu não tenho dinheiro e queria fazer o curso”. Porque eu descobri que as pessoas são legais. Fui expulso de vários, né? Aula de Filosofia na USP, de História. Sempre fui muito lá na FFLCH, era campeão. Entrava lá nas salas de aula. Fui expulso de várias salas, mas eu fui aluno ouvinte sem ter autorização em muitos cursos. Passei muito tempo da minha vida fazendo isso. No Lasar Segall eu fiz curso de xilogravura, fiz muito curso no Masp. Uma vez eu estava procurando trabalho, eu estava na Rua Sete de Abril e um produtor estava falando ao telefone que precisava encontrar um contrarregra. Quando ele desligou eu falei que eu tinha sido contrarregra, já tinha feito teatro. Ele era produtor do Osmar Prado. Na mesma tarde me levaram pro ensaio, estava o Osmar lá e um diretor chamado Roberto Vignati, que foi diretor de TV e teatro. Dirigiu o Bent, do Martin Sherman, Bella Ciao. E aí eu comecei a trabalhar com o Osmar Prado, como contrarregra, foi o meu debut no teatro.
P/1 – Foi assim que você chegou no teatro?
R – É, profissionalmente. Viajei boa parte do país, interior do estado de São Paulo. E o Osmar era um grande ator, que a gente até conversa hoje em dia, estou querendo trabalhar com ele no cinema. E era uma pessoa muito difícil, mas uma pessoa muito vigorosa e talvez o ser humano mais ético que eu conheci na minha vida. Eu me lembro que depois de um ano fazendo esse espetáculo, que era O Fabuloso Obsceno, do Dario Fo. E era impressionante, que ele fazia 18 personagens, eu achava aquilo ali incrível, o primeiro grande ator que eu conheci na minha vida. Ele começou aos oito anos de idade, na TV Paulista, canal 5, junto com o Sérgio Cardoso. Ele conheceu os grandes mestres, ele conheceu Zabinski e afins. Mas a dimensão de um grande ator, a primeira vez que eu tive contato foi com ele. Depois de um ano viajando, o espetáculo estava parado, e minha mãe teve precisão de um dinheiro alto, eu não me lembro qual, eu liguei pra ele. Ele falou: “Não, eu te consigo esse dinheiro”. Eu fui até a casa dele, ele morava em Higienópolis, estava fazendo uma novela no SBT. Ele me deu um pacote de dinheiro assim. Um ano e meio depois o espetáculo voltou, eu quis pagar e ele nunca aceitou. Eu me lembro disso. Eu me lembro que a gente foi em Americana jantar depois do espetáculo e o dono do restaurante chegou e falou pra ele assim: “Pra você e sua esposa a gente fez uma lagosta não sei o que lá”. Ele falou: “Por quê? E as pessoas que trabalham comigo não têm direito a comer lagosta?”. Ele deu um esculacho no cara e a gente não comeu lá, a gente voltou pro hotel e comeu lanche. Ele não aceitou aquilo. Eu me lembro também que ele era muito rigoroso com jornalistas. Eles se sentavam pra entrevistar e falavam: “Me conte um pouco da peça”. E ele: “Mas você não leu o release? Não aprendeu na faculdade?”, aí em vez de uma entrevista as pessoas saíam de lá chorando. Eu achava isso muito cruel, né? Mas ele era uma pessoa rigorosa, eu aprendi muito com ele, muito com ele. E ele não era um ator que era bonito, né? Então sempre quando ele fazia novela, ele acabava tomando de assalto. Um grande ser humano que eu conheci e me influenciou muito.
P/1 – Aí você ficou convivendo bastante com ele.
R – É, por dois e meio. Depois a gente mantém contato por e-mail hoje em dia, estamos ensaiando pra fazer um filme juntos.
P/1 – E aí, Cristiano, dali de contrarregra o que aconteceu?
R – Eu comecei a fazer teatro com ator.
P/1 – Com esse grupo que você falou?
R – É, com esse e outros também. Eu fazia muita coisa, eu me envolvia em tudo, onde tinha uma fresta eu entrava. Aí fui pra Europa, trabalhei num restaurante...
P/1 – Um minutinho. Você fazia teatro, fazia todos esses cursos e vivia de?
R – Restaurante.
P/1 – Restaurante. Isso foi durante um bom tempo...
R – Dez anos. Idas e vindas dez anos trabalhando em restaurante.
P/1 – De noite você trabalhava?
R – Almoço também. Quando eu não podia trabalhar à noite porque eu estava ensaiando ou com algum espetáculo em cartaz eu trabalhava só no almoço. E às vezes eu ganhava um dinheiro com teatro também, muito pouco. E aí eu decidi ir pra Europa.
P/1 – Por quê?
R – Eu queria estudar, fazer, viajar o mundo, né? Aí eu juntei dinheiro, comprei a passagem, passei seis meses trabalhando almoço e jantar. Eu não gastava um centavo. Não gastei nada. Morava num quarto de empregada na casa de uns amigos, pagava muito pouco, só ia pra lá pra dormir. Eu juntei todo meu dinheiro e fui. Fui pra Barcelona.
P/1 – Que ano nós estamos falando, Cristiano?
R – 1997. Fui pra Barcelona e de lá eu fui fazer um curso no Instituto de Teatro de Barcelona. Fiz que fiz que me deram meia bolsa, só que o curso era em catalão (risos). Não foi muito legal. Bom, aí quando você está nessa crise de novo, sempre você acaba caindo no submundo, não tem jeito. E aí você está sem grana, comendo pouco, o dinheiro acaba muito rápido, você achou que valia muito o que você tinha guardado durante um ano e não era. Aí eu fiz amizade com uns marroquinos lá no bairro Chino. Ainda era o único lugar de resistência na cidade porque Barcelona é uma cidade muito burguesa, aí eles vendiam haxixe, ópio, comecei a fazer uns tráficos pequenos pra me sustentar.
P/1 – Morando onde?
R – Estava morando no bairro Gótico também. O bairro Chino é no final do bairro Gótico, perto do porto. E aí tinha um brasileiro muito filho da puta que gerenciava um restaurante e alugava vagas no apartamento dele, mas explorava brasileiro lá, sabe? Ele fez isso comigo. E aí eu me apaixonei pela prima do traficante que estava indo pra Tânger e fui atrás dela. Quando cheguei lá fui ameaçado de morte pelos parentes, ela era muçulmana, voltei pra Barcelona. Em Barcelona encontrei um brasileiro que estava indo pra Legião Estrangeira. E aí eu me lembrava da Legião pelo livro do... quem escreveu Diário de um Ladrão, agora esqueci o nome.
P/1 – Diário de um?
R – Ladrão. Jean Genet. Em o Diário de um Ladrão o Jean Genet conta a experiência dele na Legião Estrangeira e aquilo ficou no meu imaginário, quando falou o nome Legião Estrangeira eu não pensei duas vezes. A gente foi de lá até Perpignan. A gente foi preso pela polícia porque já tinha vencido o meu visto e ele falou: “Deixa comigo”. Ele falou: “A gente está indo pra Legião Estrangeira”. Então em vez de ser deportado ele levou a gente até o quartel. E lá em três dias eu já era soldado. De lá fomos pra Aubagne, a 15 quilômetros de Marseille. Eu fiquei quase três meses. E lá foi horrível.
P/1 – O que acontecia na Legião Estrangeira?
R – Eles te treinam pra ser uma máquina pra matar. Porque assim, francês é covarde, eles não lutam, eles não vão pro front de batalha, eles contratam soldados mercenários. Isso vem desde as colônias, Djibuti na África, Guiana Francesa. Oficial é só francês, legionário, você pode servir durante 15 anos a França, com contratos de cinco anos. E as legiões vêm desde a época dos romanos. Os romanos não lutavam também. As legiões que conquistaram boa parte do mundo eram mercenários pagos pelo Império Romano. Dentro de Roma as legiões não entravam, só os centuriões que eram romanos. Então a Legião Estrangeira existe na França há 300 anos.
P/1 – Nesse modelo, né?
R – Nesse modelo. Que você é treinado pra ser uma máquina de matar.
P/1 – O que é treinado pra ser uma máquina de matar?
R – Você aprende todas as técnicas de tortura. Os franceses são especialistas nisso, a ponto de influenciar as ditaduras na América Latina. Onde eles desenvolveram o ápice da tortura foi na Argélia. Tem até um livro de um torturador francês que foi pra Escola das Américas e andou pelo Brasil também distribuindo todo o seu conhecimento sobre tortura. Eu tive aula de Krav Maga. Todas as técnicas de luta, de controle, de armamento eles te ensinam. Você vira um soldado. Era muito comum, o treinamento oficial dura seis meses e um dia, depois você fugir e ir pro Oriente Médio trabalhar pra algum ditador. Porque se você fez a Legião Estrangeira existem dois exércitos de elite no mundo, um é o legionário e o outro são os marines americanos, o melhor treinamento pra um soldado. Mas eu não completei o treinamento.
P/1 – Você ficou três...
R – Três meses. Mas eu dei tiro de .50. .50 é uma metralhadora que derruba avião. É uma bala desse tamanho. Quando você treina com .50 durante o dia, à noite você continua com tremedeira. Uma coisa horrível. Na madrugada eles te acordam pra fazer treinamento e era muito frio. Foi torturante pra mim.
P/1 – Mas tem ideologia ou é só treino prático?
R – Não tem um... você é condicionado. Você aprende francês na porrada, né? Você tem que decorar a Marselhesa, você jura bandeira. É exército, só que você é pago pra isso.
P/1 – E quem eram as pessoas que estavam com você lá?
R – Esse dia foi engraçado. Na primeira entrevista eles te perguntam: “Você matou alguém? Isso não é impedimento pra entrar na Legião Estrangeira. O que a gente precisa é saber. Se você não contar a gente vai saber pela Interpol e aí você vai ser expulso e pode ser preso. Mas se você matou alguém pode falar aqui o nome”. Em geral são pessoas do leste europeu, com a queda do muro os exércitos estavam sucateados, então muita gente desses exércitos entram pra Legião assassino, gente sem família, gente sem eira nem beira. É lugar pra quando você não tem pra onde ir no mundo, a Legião te recebe. Até hoje, se você chegar, se você for barrado no aeroporto porque eles acham que você está indo trabalhar como imigrante ilegal, você fala: “Eu estou indo pra Legião Estrangeira”. Eles te colocam no camburão e te jogam lá no quartel. O quartel aceita você.
P/1 – Você tem que ser homem, jovem e forte, né?
R- Isso. E eles adoram brasileiro, eles acham que brasileiro é bom soldado. Tanto que me convidaram pra ir pro treinamento de elite da Legião. E aí são três anos de treinamento na Córsega. Aí você vira especialista em armar e desarmar bomba, pilotar helicóptero, aí é coisa do outro mundo.
P/1 – E você ganha bem?
R – Então, na época ainda era franco. E se você pedisse pra sair, até seis meses e um dia você poda pedir. Vai sofrer um pouco, vai apanhar, mas você sai. Eles te devolvem o passaporte. Depois de seis meses e um dia você não pode sair, é proibido. Só fugindo. Todo dia eles te perguntam: Civil, civil, civil?
P/1 – Civil?
R – Se você quer ser civil, ir embora. Todo dia pela manhã.
P/1 – Ah, todo dia.
R – Todo dia. Se você pede pra sair eles te pagavam 50 francos por dia pelos dias que você estava lá. Se você é mandado embora são 100 francos. Então eu demorei, na segunda semana eu já queria ir embora, mas eu precisava do dinheiro porque eu não tinha recurso nenhum. Na segunda semana eu fiquei quase dois meses imaginando como eu poderia sair sendo mandado embora. Aí eu descobri o teste psicotécnico, que era muito simples, e eu fiz tudo errado. Então tirei zero no teste psicotécnico, coisa que é quase impossível na Legião. Aí eu fui dispensado por insuficiência, um sargento português falou comigo, por insuficiência técnica mental, a frase que ele usou. Aí eu recebi os 100 francos e poderia tentar voltar três meses depois. Aí eu fiz um teatrinho lá, fiquei triste, falando que a minha vida era a Legião e queria muito ficar. Ele falou: “Não, infelizmente você não vai conseguir”. Aí o dinheiro que eu recebi lá eu gastei em quatro dias na noite em Marselha, é a noite mais agitada da Europa.
P/1 – E fazendo o quê?
R – Ah, de tudo, né? Eu saí de lá com um córsego que tinha saído e tinha sido expulso também porque quase matou um cara.
P/1 – As pessoas querem sair lá?
R – Nãoooo, tem muita gente que quer receber o treinamento. Esse córsego, o tio dele era um mafioso da Córsega, que é uma máfia muito violenta, muito antiga da Europa, e ele disse assim: “Eu falei de você pro meu tio e ele te aceita lá, se você quiser aí”. Aí a gente ficou, ele conhecia muita gente, traficante, baixo meretrício ali no Marseille. Fiquei quatro noites com ele, gastei muito dinheiro, quase todo dinheiro que eu tinha.
P/1 – Com droga, mulher?
R – Isso. Bebida, hotel, essas coisas. Você fica três meses num quartel com um monte de homem violento, quando você sai de lá você quer se divertir.
P/1 – Isso que ficava na sua cabeça? Como você se sentia? Você falava, esse dinheiro que eu tenho, ficava na boa.
R – Você não tem, você não consegue pensar no amanhã, entendeu? É um dia de cada vez. Essas épocas que eu estava entre Barcelona eu fui pra Maiorca também, fiquei um tempo lá. Depois fui pra Madri, dormi quatro dias na rua em Madri. Até que eu descobri que a Europa não era pra mim e voltei pro Brasil.
P/1 – Como você descobriu que a Europa não era pra você? O que te bateu?
R – Ah, depois de tanto perrengue, né? Quando eu saí da Legião, voltei pra Barcelona, tentei arranjar trabalho lá e aí não queria fazer tráfico e não queria trabalhar em restaurante, subemprego. Aí eu pedi ajuda para uns amigos, comprei a passagem e voltei pro Brasil. Quase fui preso porque estava imigrante ilegal na saída, mas como eu estava voltando... falaram um monte de merda pra mim, foi bem agressivo. Hoje em dia quando eu volto pra Europa eu fico muito assustado com essas zonas de alfândega, como é violento, como é agressivo. E agora que a xenofobia está tão em alta... Mas eu sempre viajo, ainda tenho uma certa insegurança dessa época, das vezes que eu voltei agora eu fui com projetos do consulado suíço, então eu recebo uma carta do consulado que eu estou viajando, aí estou com a agenda cultural.
P/1 – O que você sente?
R – Ah, eu acho que a gente evoluiu muito pouco como ser humano, sabe? É muito fácil. Eu vi, entrando em Genebra, lá no aeroporto, tinha uma senhora e a filha dela negra e ouvi, não sei se é a minha cabeça ou o quanto aquele cara... ele me deixou passar, mas ele fez questão de parar as duas ali e ficar um tempo com elas. Eu estava atrás delas. E aí eu me pergunto se ele trataria elas daquele jeito se elas não fossem negras, não estivessem vindo da África. Horrível, né?
P/1 – Conta. Tu voltou pro Brasil aí.
R – Aí aqui no Brasil eu voltei a trabalhar em restaurante.
P/1 – Você chegou aqui, voltou pra São Paulo.
R – Voltei pra São Paulo. Eu voltei a trabalhar em restaurante, aí me afastei um pouco do teatro. Lá em Barcelona eu cheguei a fazer cinema também. Me juntei com um grupo chamado Super-8. Eu fiz um longa em Super-8 que se perdeu, ainda bem porque o filme era muito ruim. Mas não deu muito certo minha vida de cinema lá. Quando eu cheguei em São Paulo eu reatei meus contatos com o povo do teatro, comecei a fazer teatro novamente. Aí meu irmão morreu em 2001, isso deu dois, três anos da minha vida que se apagou completamente da minha memória.
P/1 – Você voltou pra cá em 98...
R – Ou 99, foi mais ou menos essa época, não me lembro muito bem as datas. Aí eu fiquei um tempo trabalhando com teatro e restaurantes. Tentei fazer cinema porque a coisa me pegou completamente lá, mesmo tendo feito os filmes ruins em Super-8.
P/1 – Você pensou...
R – Eu pensei, primeira vez na minha vida, que talvez o cinema fosse um lugar pra se estar. Comecei a estudar como autodidata. Eu já via muitos filmes, sempre fui muito ao cinema e eu comecei a estudar.
P/1 – Como você estuda como autodidata, Cristiano? O que é isso?
R – Primeiro é entender quais são os grandes diretores da história do cinema. Por que eles são reverenciados até hoje? E esses filmes que falam que são os grandes filmes da história do cinema. Eu me lembro de ter visto uma lista dos americanos que era os melhores filmes da história do cinema. Fui lá e assisti todos. E eu queria saber por que o O Encouraçado Potemkin e o filme do Cidadão Kane do Orson Welles estavam sempre ali nos melhores filmes da história do cinema. Aí fui estudar cinema russo, já tinha uma proximidade com a literatura. Aí via toda a obra desse diretor e depois desse diretor falava de outro e comecei a ver muitos filmes compulsivamente.
P/1 – Você via onde isso?
R – Cineclube, cinema. Na época não tinha a internet, estava começando, então era fácil. A Mostra de Cinema foi um lugar onde eu vi muita coisa. E São Paulo sempre tem muitas possibilidades. É Tudo Verdade, foi um lugar que em termos de documentários me criou audiovisualmente, ter contato com a obra do Frederick Wiseman pra mim foi um aprendizado. Não só ter contato como conhecê-lo pessoalmente.
P/1 – Então você começou indo atrás.
R – Isso, fui procurar, eu fui me instruir. Aí eu decidi estudar Cinema, mas eu já tinha uma cultura cinematográfica muito extensa. Porque é aquilo, quando eu decido fazer uma coisa é meio de doido, eu só faço aquilo e faço muito. Eu sabia que eu tinha que, de alguma maneira, eu não poderia parar e estudar, e ir para uma universidade, morar em Paris, estudar Cinema. Adoraria, queria que a minha história de vida tivesse sido essa, mas não era o caso, tudo sempre com muito esforço. Aí eu decidi estudar Cinema, eu trabalhava num restaurante que estava meio falido, chamava Le Tan Tan, e eu tive uma namorada nessa época que era um pouco abastada, tinha uma graninha.
P/1 – Ela era do restaurante também?
R – Não, cliente. A gente começou a sair. E aí eu falei pra ela: “Eu vou pra Curitiba estudar Cinema, abriu uma escola de Cinema lá”. Ela falou: “Ah, loucura”. Eu falei: “Eu não tenho nada a perder na minha vida, morreu todo mundo, mataram todo mundo, vou ficar fazendo o quê em São Paulo como garçom?”. Aí eu fui pra essa escola sem ter dinheiro pra pagar a escola e eu virei o primeiro bolsista da escola. Antes de ser expulso eu fiz um curta que entrou no festival internacional. Era o primeiro semestre da escola e eu já tinha um filme num festival, isso pra escola era importante. Aí me deram uma bolsa. Eu passei muita fome em Curitiba.
P/1 – Você trabalhava também?
R – Não. Só estudava. E bebia bastante. Porque lá é muito frio, né? É um bom lugar pra se matar. Paulo Leminski dizia assim: “Beber em Curitiba não é crime, é legítima defesa”. Mas tinha boas salas de cinema. O cineclubismo lá é muito forte. A cinemateca, o Cine Luz que já fechou. O Cine Ritz, que era um cinema que só passava cinema clássico. Então boa parte dos filmes que eu vi em cineclube, ou DVD, VHS, eu tive a oportunidade de ver no cinema. Então foi dois anos da minha vida que realmente eu estudei com muito afinco, depurei meu olhar.
P/1 – E você vivia de?
R – De ajuda da minha namorada, que ela mandava, de favores de amigos e os trabalhos dos amigos eu cobrava pra fazer. Mas eu passei muito mal, eu me lembro que eu comia miojo com steak, meu jantar e almoço era 5,50. Eu era muito magro e imagina que a sensação que eu tive é que eu estava desenvolvendo uma gastrite já. Eu tomava muito café, que tinha de graça na escola, meu café da manhã era o café da escola e eu comia isso. No final de semana ia na casa de amigos comer churrasco. Mas eu passei muita fome e muito frio naquela cidade. Tenho uma relação de amor e ódio com Curitiba.
P/1 – Conheceu pessoas legais?
R – Muito.
P/1 – E a escola te serviu?
R – Não, os professores eram gringos e a minha maior decepção foi descobrir que esses gringos não tinham uma cinefilia, não tinham paixão por filmes. Eram professores técnicos. O grande professor que eu tive lá é um cara chamado Fernando Severo, um grande curta metragista e foi a maior influência que eu tive como professor. Ele conhece muito de cinema e foi generoso comigo, transferiu todo o conhecimento que ele tinha. A gente é amigo até hoje. Foi um grande incentivador meu. Ele que fez aquele comentário do filme sobre o _1:53:22_ a _1:53:23_, que parecia um comercial da Chanel. E aí se tornou um amigo.
P/1 – Ele olhou esse curta e falou isso?
R – Isso. Mas a maioria das pessoas que estavam lá eram pessoas perdidas, gente do país e de vários lugares do mundo também, os estudantes e professores. Então era um ambiente propício pra mim, um lugar de gente, eu me sinto um pouco desterrado. Então esses dois anos foram muito importantes, foi a virada da minha vida.
P/1 – Isso foi depois da morte do seu irmão?
R – Depois da morte do meu irmão. Uma época que eu estava, eu posso dizer, um pouco louco, perdido completamente na minha vida. Completamente. Eu só trabalhava pra comer, pra me manter. E eu estava morando no Capão Redondo nessa época. E aí eu abandonei esse apartamento e o meu irmão Tiago trocou por um Chevette. Ele tinha muitas dívidas também de condomínio e afins e o apartamento se perdeu, ele trocou num Chevette.
P/1 – O seu irmão esse que está na cadeia.
R – Isso. Que agora foi solto. Eu fui expulso da escola.
P/1 – Por que?
R – Porque o dono é americano e achava que eu tinha que trabalhar pra me formar lá e eu disse pra ele que a escola era medíocre e que na terra dele alunos geniais – eu era um pouco arrogante com 20 e poucos anos – alunos geniais como eu deveriam receber bolsa, que na terra dele era muito comum. Aí eu fui expulso. Depois de alguns anos, muitos anos, eu volto à escola e me torno professor lá. E eles falam que eu sou formado por lá. Eu aceito por conveniência, mas é mentira. Mas me deram o diploma. Um dia apareceu um envelope na minha mão com um diploma.
P/1 – Depois que você foi embora. Ele falou: “Vai embora então”.
R – É. Aí muitos anos depois, como eu me tornei um realizador profícuo, uma produção muito grande, a escola percebeu que era de interesse deles falar que eu sou formado por lá e que eu me tornasse professor, coisa que eu já era. Foi por acaso também.
P/1 – Aí você voltou pra cá e começou a fazer cinema?
R – Hunrum.
P/1 – Vamos conversar um pouco.
R – Profissionalmente desde 2004.
P/1 – Desde 2004.
R – Desde 2004.
P/1 – E como é essa sua relação de fazer cinema? O que você faz? Me conta aí, você tem a ideia: “Eu vou fazer esse filme”.
R – É muito torto, né? A maneira como eu faço filmes é a maneira como eu dou minhas aulas.
P/1 – São duas pessoas diferentes?
R – Completamente. Porque na escola você tem que falar de uma maneira acadêmica, convencional, você tem um conteúdo programático, que é pensado por várias pessoas. Se eu fosse falar as coisas que eu acredito sobre cinema na escola eu seria odiado pelos professores, pela diretoria e pelos alunos também. Porque um aluno nas escolas que eu dou aula, que talvez eu não tenha muito orgulho de dar aula nessas escolas.
P/1 – Quais escolas você dá aula?
R – Eu dou aula no... O Célia Helena tem uma escola legal. Dou aula no Célio Helena, na AIC, Academia Internacional de Cinema, essa escola que eu estudei, fui expulso e falam que eu sou formado por ela.
P/1 – É de Curitiba?
R – É de Curitiba. Sou da primeira turma. O dono é americano.
P/1 – Que agora tem aqui.
R – Tem aqui e no Rio de Janeiro. Eu sou muito maltratado lá, eu dou aula há 11 anos.
P/1 – Como você se tornou um professor?
R – Por necessidade. Primeiro professor de teatro.
P/1 – Como foi isso?
R – Amigos que eram professores e comecei a ser assistente em cursos. Um dia o professor faltou, eu tive que dar aula e eu senti gosto por aquilo e foi natural, nunca procurei isso, né? Eu não tinha muita didática no começo, a minha pedagogia era um pouco falha. Não estou dizendo que eu melhorei, mas o cinema não é um lugar agradável pra se estar, isso que eu queria te dizer. Dar aula me deixa, pra mim é muito importante, pra não me tornar um boçal porque é um lugar de muita vaidade, você sai muito no jornal, você viaja muito.
P/1 – No cinema?
R – No cinema. É um lugar cancerígeno. A sensação que eu tenho quando eu faço filmes é de ansiedade e frustração. Ansiedade quando eu estou produzindo e frustração quando eu realizo. Eu passei dez anos da minha vida fazendo filmes que ninguém quis ver. O dia que eu faço um filme sobre o assassinato do meu irmão parece que todo o meu trabalho foi justificado. E aí eu virei, pra imprensa, o ex-pobre, bandido, que foi salvo pela Arte, que filma as tragédias pessoais. Não estou dizendo que não seja isso, é só um aspecto, né? Mas o que eu adoraria é que meus filmes fossem vistos por outra perspectiva. Mas eu não tenho controle sobre isso. E se dos 20 aos 30 eu fui um cineasta arrogante, pretensioso que fez muitos filmes medíocres, hoje em dia eu me sinto mais tranquilo. Minha vida pessoal continua sendo muito instável, mas no meu trabalho eu tento ter um pouco de estabilidade. O que significa isso? Não me empolgar quando me der um prêmio, eu falar que sou genial, e também não sofrer tanto quando falam que meus filmes são ruins e eu sou um cineasta medíocre.
P/1 – Como você faz isso, você sai fora do seu, você vê de fora?
R – Eu não levo tão a sério essas coisas, eu me preocupo mais com amigos que acreditam no meu trabalho, eu tenho bons amigos, e com o trabalho em si. Minha relação é com o filme, com a obra. Depois é circo. Eu aprendi a lidar com isso. Tomei muita porrada, sofri muito. O resto é circo.
P/1 – Quando você...
R – Com o documentário do meu irmão, Mataram meu Irmão.
P/1 – Foi ali que você...
R – Eu perdi a ingenuidade. A inocência não, que eu nunca vou perder a inocência. Se você perde a inocência você vira um cínico, aí pra mim acho que é a morte para um artista quando você se torna um cínico. Mas a ingenuidade eu perdi ali. Porque eu nunca tive tanta atenção, nunca dei tanta entrevista, nunca fui pra tantos festivais. E eu nunca fui tão bajulado, que eu ganhei o prêmio do governador do estado, É Tudo Verdade. Em vários festivais o filme foi premiado. Tem muita atenção no trabalho. E um dia passou e aí você começa a acreditar também que o cinema talvez seja isso, os prêmios, festivais.
P/1 – Você acreditou nisso, você falou?
R – Um pouco. Um pouco, mas nem tanto, eu já estava um pouco rodado. Talvez o fracasso foi uma coisa muito importante pra mim. Dez anos de rejeição completa ao seu trabalho, ou você se torna um rancoroso amargurado, ou você adquire uma certa estabilidade em relação ao trabalho. Você sabe que vai ser aquilo, ninguém vai querer ver seus filmes, mas você tem paixão por isso e você quer fazer aquilo da sua vida. Então...
P/1 – É assim que você sente?
R – É assim. Pra mim, eu não tenho expectativa nenhuma em relação ao cinema. Se tem um lugar que eu tenho pretensão é no teatro, que pra mim foi a minha morada e pra onde eu voltei depois de 14 anos.
P/1 – O que significa ter pretensão?
R – Ah, de querer fazer coisas grandes. Eu fiz dois espetáculos depois de 14 anos. Um é a partir de dois textos do Foulcault, eu tenho uma companhia com meu sócio que se chama Cia dos Infames, e nosso primeiro espetáculo é A Vida dos Homens Infames. A partir de dois textos que o Foulcault resgatou: Eu, Pierre Rivière, que Degolei Meu Pai, Minha Mãe e minha Irmã e Herculine Barbin, Diário de uma Hermafrodita. E o segundo espetáculo a gente ganhou um prêmio da prefeitura pra montar o espetáculo, que é Música Perfeita para o Suicídio, a partir de escritos do Emil Cioran. E esses espetáculos foram completamente, não teve crítica, até teve público, mas foi uma indiferença completa em relação ao trabalho.
P/1 – Eles passaram onde?
R – Despercebidos, eles ficaram em cartaz em teatros pequenos aqui, independentes, em São Paulo. Aí você cria uma expectativa, que as pessoas vão querer ver, vão discutir, vão escrever sobre seu trabalho, vai ter um diálogo com o trabalho e isso não aconteceu, isso me frustrou muito. Muito mesmo, muito mais do que um filme que não é distribuído, me afetou muito. Mas eu senti um prazer que eu não sentia há muito tempo trabalhando.
P/1 – Com o teatro.
R – Com o teatro. Eu estive em Estocolmo e aí foi apaixonante descobrir a importância de Bergman para o teatro. Ele antes de mais nada sempre foi um homem de teatro. Durante 50 anos ele foi pro teatro nacional dirigir suas peças lá. Isso me confortou um pouco porque era uma frase dele até, o cinema pra ele era amante e o teatro era a namorada, o lugar pra onde ele voltava. Aí eu me senti voltando pra casa.
P/1 – Você voltou a fazer teatro agora?
R – Voltei a fazer teatro agora, depois de 14 anos. Há dois anos, uma peça por ano.
P/1 – E você tem essa meta, faça uma peça por ano?
R – Não, não tenho meta. Eu tenho conseguido produzir. Adoraria fazer mais, sair de um espetáculo pra outro. Esse vazio que dá entre um trabalho e outro é horrível. No cinema tudo bem, você tem um hiato muito grande, mas o teatro é um lugar agradável pra se estar, né?
P/1 – Vamos voltar pro cinema. Você foi produzindo como seus filmes? Você falou: “Cinema é legal”, você voltou, estudou e falou: “Vou fazer Cinema”.
R – E aí eu imaginei que as portas fossem se abrir pra mim. Eu comecei a escrever projetos em editais e nunca era contemplado e aí eu descobri muito cedo que se eu esperasse uma situação ideal pra fazer filmes eu nunca faria nenhum filme. E nos meus estudos solitários eu sempre tive um apreço pelos marginais, pelos rebeldes, na História da Arte em geral. E aí alguns cineastas foram importantes pra minha formação, como _2:02:46_, Samuel Fuller, Nicholas Ray, o próprio Rogério Sganzerla, Glauber e afins, são cineastas que fizeram sempre seus filmes com poucos recursos, né? Que a resistência da vida para que eles produzissem era força motriz pro seu trabalho. E aí eu descobri também, uma percepção muito pessoal, não é uma regra geral, que as grandes evoluções estéticas dos poucos anos de história do cinema de cento e poucos anos elas se davam em um lugar dos meios de produção. Então as evoluções em termos de meio de produção eram dispositivos para gerar evoluções estéticas.
P/1 – Tipo?
R – O advento de novas tecnologias digitais democratizou o acesso de muitos novos realizadores. Então câmeras mais baratas, então, eu quero fazer cinema, eu não tenho dinheiro ou tenho poucos recursos, aí eu tenho que usar o que está disponível pra mim. Então eu voltei a esses cineastas, entender como eles faziam, de fazer com o que tem e não achar que a dificuldade é um problema. Mas se a porta está fechada aqui, a porta se abre ali. Então, eu juntei muitos amigos, propus isso, muitos negaram e encontrei meia dúzia de malucos que toparam fazer os filmes dessa maneira. Nem sempre os filmes davam certo, mas aí eu comecei a pensar o que é dar certo? Pra mim o importante é quando você estimula a paixão no outro, que o cara trabalha sem receber e empresta o equipamento e que eu termine o filme, que tenha um resultado final. Nunca deixei de terminar um filme, mesmo que os filmes fossem completamente esquecidos e nunca analisados e projetados, mas eu sempre terminei todos os meus filmes. E isso gera um respeito pras pessoas, né? O cara quer fazer um filme, sabe que independente que o mundo desabe na nossa cabeça ele vai chegar ao fim e vai ver o filme terminado. E aí, não sei por que, as pessoas acreditam em mim, confiam e eu consegui terminar todos os filmes. Eu parei de pensar que se os filmes são ruins ou bons, eu fiz o melhor que eu pude naquele momento, eu terminei meu décimo quarto longa agora, eu já passei de 20 filmes, eu vou parar de contar. Fiz uns filmes muito ruins, muito ruins mesmo. Tenho vergonha de um ou dois, mas não escondo. Mas ruim com estilo, tem diferença de um cineasta ruim sem estilo e um cineasta ruim com estilo. Eu acredito, modéstia à parte, que talvez eu tenha um pouco de estilo pra fazer filmes, senão eu já teria me matado também. Mas filmar pra mim é como respirar, sabe? Eu não tenho medo. Eu já filmei pra publicidade também, uma época. Parei de fazer não por questões ideológicas, mas é porque eu não tenho estilo pra ser publicitário e dirigir publicidade. Tem uma nova geração que filma com muito estilo. Eu não, eu tenho um tempo muito distinto com o cinema. E é um ambiente que não me apavora, eu sei lidar com os produtores bandidos que só pensam em dinheiro, sei lidar com distribuidor. O que me deprime é perder amigos por causa de filme.
P/1 – Se perde amigos por causa de...
R – Eu já perdi alguns por causa de dinheiro, por causa de vaidade. É um ambiente, você trabalha com máquina, com gente poderosa, dinheiro, exposição. E o principal que são os filmes as pessoas esquecem esse contato, né? Quando você chega nesse lugar. Não perdi, mas as pessoas se afastaram de mim e eu me afastei das pessoas. Porque é um lugar muito sagrado pra mim, esse lugar onde eu consigo respirar. Consegui dar um outro caminho pra minha vida. Eu nunca falo isso, que o cinema me salvou, eu acho meio piegas, mas me salvou. Foi a literatura, foi meu contato com cinema. É estranho porque é uma sala escura onde você não conversa com as pessoas, você está sozinho ali. Muito cedo eu descobri que eu nasci sozinho, vivi sozinho e vou morrer sozinho. Eu acho que quanto mais cedo eu tive consciência disso, mais eu me preparei. Ao mesmo tempo, eu acho também que a gente não consegue medir a dor. Eu posso, toda minha história trágica de morte e violência, você pode atravessar a rua, topar numa pedra e isso pode te afetar de maneira muito mais profunda. A ressonância que isso tem dentro da gente, a gente não consegue emitir.
P/1 – De tudo o que você viveu, você reconhece momentos que você volta a ter essa dor? Onde que é essa dor em você? Onde você sente ela? Aqui, aqui, aqui? Corporalmente, onde que ela está?
R – Ah, é no estômago, sabe? É uma coisa mais primitiva. O que me manteve vivo até hoje, mesmo tendo passado por situações limítrofes de humanidade mesmo é uma relação primitiva que eu tenho com meus instintos. Eu não sei como eu forjei isso dentro de mim. E eu demorei dez anos fazendo cinema pra recorrer a isso.
P/1 – Pra chegar na história do seu irmão, por exemplo?
R – Por exemplo, isso. Mas é de reconhecer os signos que estão ali. Porque talvez seja físico mesmo a coisa, você tem todo o seu DNA ali que está na sua célula. Mas aí a coisa de estudar te deixa muito cerebral, né? O cinema começou a acontecer pra mim de maneira mais orgânica quando eu comecei a respeitar meus instintos. Que esses meus instintos que me mantiveram vivo quando eu estava em situações de perigo completo, a ponto de perder minha vida. Esses instintos que me mostraram que eu poderia estar morto, ou morrer naquele momento. Quando eu assumi isso pro meu trabalho no cinema a coisa começou a andar, aí fluiu. É incrível assim, no instante é tudo muito duro, parece que você não serve praquilo, que a coisa não vai acontecer e no outro você filma como você respira e a coisa fica mais natural... natural nunca é, mas é orgânico, sabe? E como você vai ensinar isso para uma pessoa numa sala de aula? Dizer que o que você acha que são seus defeitos são suas melhores qualidades, que você nunca vai ser igual ao diretor clássico, fazer daquele jeito porque você é torto, você é mal formado, você tem insegurança pra escrever, que você tem autoestima baixa, mas que talvez a autoestima baixa que te proteja de algumas coisas também. É estranho.
P/1 – Essas são as suas reflexões sobre a sua vida, né?
R – É. Mas o meu grande, eu demorei muito tempo pra assumir isso. A sensação que eu tenho é que eu poderia ter salvo da morte meu pai, minha mãe e meu irmão, é isso.
P/1 – Você se sente responsável pela morte deles? Em que sentido?
R – Todos.
P/1 – Diga um, já que tem todos.
R – Talvez o que me mantém vivo até hoje não foi uma lucidez, mas uma consciência da nossa loucura, sabe? Que talvez no meio de toda essa tragédia eu fosse a única pessoa que tinha consciência dessa loucura. E que chegou um lugar que o verbo já não dá mais conta, aí é outra história. Mas essa loucura é minha força motriz também. É meio apavorante, mas eu sou muito consciente de todos os demônios que têm na minha cabeça e de como eles podem me destruir também.
P/1 – Mas são esses demônios que te fazem responsável?
R – Com certeza. No filme do meu irmão tem um momento muito apavorante pra mim ali, quando a minha irmã diz assim: “Todo mundo morreu de maneira muito violenta e eu acho que isso é a nossa sina. E acho que isso vai acontecer com a gente também”, fala mais ou menos isso. E ela olha pra mim. E é apavorante porque talvez seja uma sina mesmo. E isso não aconteceu só na minha família, tem, na história da humanidade a gente percebe. Eu estava vendo um documentário sobre Alepo, o cara perdeu a família inteira, uma bomba caiu lá e ele não estava em casa, morreu a família inteira, pai, mãe, vó, tio, irmão. E como você tem sanidade pra continuar vivendo depois de uma coisa dessas? Eu gosto muito de viver e eu descobri muito rápido que eu não poderia ter pena de mim, autocomiseração. Eu tenho um amigo que a mãe dele morreu há pouco tempo e eu admirei tanto nele que ele nunca chorou, nunca veio falar: “Ah, a gente se reconhece numa dor agora”. Ele nunca, me nenhum instante parou pra falar sobre isso, né? Conseguiu. Claro que nem todo mundo consegue, tem gente que dá uma topada na pedra e vem chorar e chora a vida inteira sobre isso. Também não quer dizer que se eu consigo segurar essa bronca, que eu sou melhor ou pior.
P/1 – Cristiano, eu queria, se você me permite, voltar um pouco à história da sua mãe.
R – Claro.
P/1 – Porque ela foi pra Uberlândia com o Lourival.
R – Lourival, o borracheiro. É surreal isso, né? Se eu conto: “Minha mãe deixou meu pai pelo borracheiro”. E pior que eu gosto do borracheiro, sou amigo dele.
P/1 – Você é amigo dele?
R – Sou amigo dele.
P/1 – E aí ela ficou lá com o Lourival.
R – Depois o Lourival era meio capenga e terminou com o Lourival, expulsou ele de casa.
P/1 – Expulsou ele de casa?
R – Expulsou ele de casa. E aí meu pai voltou, ele tentou agredir minha mãe de novo e meu irmão brigou com ele, o Tiago. Ele escorregou, caiu, não sei como foi, bateu a cabeça, foi para o hospital e morreu em uma semana, em 2004. Aí eu voltei pra enterrar meu pai, ele está enterrado lá. É uma cidade que eu odeio, aquela terra vermelha.
P/1 – Uberlândia.
R – É. Uberlândia não tem história, não tem nada. Uberaba é uma cidade histórica, Uberlândia é o cu do mundo, desculpa o palavreado chulo. Odeio aquela cidade, aquela terra vermelha. E aí eu tenho a mãe e o pai enterrados lá.
P/1 – E o Tiago, quando seu pai morreu, você ficou com raiva dele?
R – Um pouco. Um pouco mas eu vejo meu irmão, o meu pai nele, sabe? Eles são muito parecidos. Sempre que o telefone toca, a sensação que eu tenho eu estou esperando a notícia da morte dele. E eu não tenho, talvez eu pudesse fazer mais, eu faço o que eu posso.
P/1 – Ele está na cadeia lá?
R – Não, agora ele está solto. Ele está solto. A última vez que ele esteve preso foi em Mato Grosso, Cuiabá, ele ficou muitos anos preso.
P/1 – Por tráfico?
R – Não sei por que ele foi preso, mas provavelmente. Agora ele está em Uberlândia também. Então, nessas idas e vindas minha mãe acabou conhecendo um cidadão.
P/1 – Lá?
R – Lá. Jovem.
P/1 – Mais jovem que ela?
R – É. Uma pessoa muito estranha, nunca fui muito com a cara dele, mas nunca critiquei e nem fiz um comentário pra minha mãe.
P/1 – Ele era o quê, fazia o quê?
R – Era pedreiro. Um cara muito fechado, parecia uma pessoa tímida, né? Ele era analfabeto, eu descobri isso de uma maneira muito estranha. A gente estava assistindo um DVD e eu odeio assistir filmes dublados e minha mãe falou: “Coloca dublado”, eu falei: “Não” e eu fiz uma piada e ela falou: “É que ele não sabe ler”, não conseguia ler legenda. Eu me senti mal por isso. Mas eu achava ele muito estranho. Eu ia pra lá no Natal, eu sempre passei só o Natal com ela e parecia que ele ficava meio com ciúmes da minha relação com minha mãe.
P/1 – E o que você acha que sua mãe achou nele?
R – Não sei, carência. Nunca parei pra pensar muito não, porque é muita loucura pra cabeça. Só aceitava e fazia de conta que estava tudo certo, se ela estava feliz, estava bem, ok. Mas um dia minha irmã me liga e diz que ele agrediu ela. Aquilo me deixou muito transtornado. Eu liguei pra ela, falei que ia até lá. Ela falou: “Não, está tudo certo”. Mas aquilo ficou uma coisa dentro de mim, eu sabia que tinha algo errado ali. E não demorou acho que duas, três semanas ele matou ela, matou enforcada. Aí a minha irmã...
P/1 – E por quê? Você sabe o motivo que ele matou ela?
R – Não sei. Foi uma briga, ciúmes. Ele enforcou ela e minha irmã encontrou ela no fundo de casa assim, morta já, estrangulada pelo fio. E o mais apavorante é que essa imagem, a matéria que fizeram sobre minha mãe, mostram o corpo dela, está na internet até hoje. E eu pensei muito se eu deveria fazer o filme ou não. É que quando você faz filme, além de você fazer o filme você tem que falar sobre, né? Uma semana antes do Bergman morrer, ele deu uma entrevista longa para uma amiga e aí ela perguntou pra ele: “E sobre Gritos e Sussurros, é sobre sua mãe, complexo de édipo?”. Ele disse assim: “É mentira, eu tinha que falar alguma coisa sobre o filme e o filme sempre foi sobre mulheres de branco em um quarto vermelho”, ele falando sobre Gritos e Sussurros. Essa minha estranha obsessão por querer filmar tragédia da minha família, eu fiz um documentário sobre meu pai, chama Construção, em 2007. Foi a primeira vez que eu entrei em competição no É Tudo Verdade. Eu me lembro de uma matéria que saiu no Estadão, o Merten fez, o João Moreira Salles estava hors concours com Santiago. A manchete foi: “Festival É Tudo Verdade esse ano tem o filho do pedreiro e o filho do banqueiro”. E aquilo foi hors concours. Eu fui vaiado esse ano no festival. Um documentário.
P/1 – Aquilo do hors concours você ficou puto ou você ficou feliz?
R – Não, foi estranho. Foi estranho porque é uma questão de classe mesmo. E sempre vai ser. O Merten até é um jornalista que eu tenho um contato, que ele fez crítica desde os meus primeiros curtas, conhece muito o meu trabalho. Eu não fiquei puto com ele, mas o que importa se é banqueiro ou pedreiro, né? Uma coisa que não saiu da minha cabeça. Eu não entendo muito bem, mas ficou marcado pra mim. Até falo pra ele.
P/1 – Você falou pra ele?
R – Falei pro Merten. O filme é muito simples, é um média metragem de 48 minutos, isso num canteiro de obras. Eu trabalhei em obra também e eu trabalhei em fábrica, coisa muito rápida. E meu pai foi pedreiro durante muito tempo, eletricista, fazia bico de manutenção. E eu me lembro que as vezes que eu trabalhei com ele e a coisa do concreto, de como é inóspito aquele som, aquele barulho. E o filme é num canteiro de obras, num média metragem de 48 minutos. Eu fui vaiado no Cine Sesc. Mas eu senti tanto prazer aquele dia porque foi a primeira vez que as pessoas reagiram ao meu trabalho, então foi um prazer imenso. A sala lotada.
P/1 – Por que elas vaiaram?
R – Acharam o filme muito chato. Não tem entrevista, tem cinco minutos de tela preta no começo só com o som da obra, era um filme, pode-se dizer, eu não acho tão radical, mas as pessoas acharam muito experimental e radical, então foi vaiado o filme. Mas eu fiquei tão feliz porque você está acostumado com indiferença completa no seu trabalho, e de repente as pessoas estão vaiando o seu filme? É lindo, né? E eu não fiquei triste, não. Em 2013 eu voltei ao festival, em competição, e ganhei o prêmio pelo documentário do meu irmão. Essa série de filmes sobre a minha família eu chamo carinhosamente de Trilogia do Luto, a primeira sobre meu pai, Construção, a segunda sobre meu irmão, Mataram meu irmão, e a terceira que eu começo a filmar agora domingo, olha que loucura. Organizamos, decisão minha começar domingo, com um tio meu, irmão dela, chama Albino, e domingo é Dia das Mães. Eu não sei como eu vou sair desse filme, se algum dia eu vou voltar a fazer filmes depois disso. Pra mim é um rito de passagem.
P/1 – Por quê? O que está te impulsionando nessa história?
R – Porque eu sou gaúcho. É um estado onde os homens são misóginos, são violentos e são machistas. Reconhecer o machismo em mim é um problema pra mim, mas eu reconheço isso e é apavorante. Eu assisti a um filme chamado Precisamos Falar sobre Assédio, de uma moça, eu fiquei tão apavorado com aquilo, como eu me reconheço naquilo também. E minha mãe foi morta por um homem, minha mãe sofreu violência masculina a vida inteira. Que tem uma questão ali, além de pessoal, tem de como o Brasil é um país violento com as mulheres. E não é só minha mãe, mas tem aquela história, não vou falar o nome da minha prima, mas de como, é muito violento, né? Como ela foi uma mulher que foi violentada a vida inteira, vários tipos de violência. E teve uma morte muito violenta também, foi estrangulada por culpa de uma doença de um psicótico, um maluco, ciúmes. Então tem uma coisa que vai, eu preciso encontrar uma coisa que não fale, senão vira uma coisa falocêntrica, sabe? Eu preciso uma coisa que me comunique com o outro também.
P/1 – Você vai encontrá-lo? O que aconteceu com esse cara?
R – Ele está solto.
P/1 – Ele está solto?
R – Ele está solto. E um dos...
P/1 – Por que ele está solto?
R – Foragido.
P/1 – Ah, ele está foragido.
R – Está foragido. Uma das possibilidades do filme é que eu possa ir atrás dele, né?
P/1 – Você não tem o roteiro, você vai explorar.
R – Eu tenho, tenho o roteiro até o primeiro dia que eu começo a filmar, depois eu esqueço tudo o que eu pensei, aí eu preciso me relacionar de maneira orgânica com o filme. Claro, tem uma lista de situações, entrevistas, lugares que eu vou, planos que eu quero fazer, mas aí eu esqueço isso completamente, aí a coisa já não é mais racional, ela tem que ter um batimento humano, senão aí eu vou estar no lugar... eu tenho que me colocar no lugar do outro e que a câmera se torne uma via de mão dupla, né? Eu preciso me afetar pelo outro também quando eu filmo alguém, senão é uma relação de hierarquia. E por mais que a pessoa seja simples, humilde, lá do outro lado da câmera, ela percebe isso, acaba se tornando... porque não é natural filmar alguém, essa coisa é muito agressiva, ela é uma máquina, né? E o filme se chama Elegia de um Crime. Elegia é uma memória triste, uma reminiscência, pode ser um poema sobre alguém que já foi. E também vem de uma série de filmes de um grande cineasta russo, que eu tenho uma admiração tremenda, que se chama Alexander Sokurov, o primeiro cineasta a fazer um filme numa única tomada, o Arca Russa, e ele tem uma série de filmes emotivos, não vou falar de afeto porque eu não gosto muito dessa palavra, assim como Diógenes, mas de lembranças dele, vai desde a influência do Tarkovski, arte, a música, então chama Elegias, uma série de Elegias. E é muito difícil pra mim encontrar um título pro meu filme. E quando encontrei esse. A outra coisa que eu não sei se vou ter coragem de fazer, que eu já tenho até editora, é um livro.
P/1 – Sobre isso.
R – Sobre, eu tenho uma editora, vai chamar Nota Sobre Luto, é a minha história pessoal com a feitura desse filme. Eu não sei se eu vou querer fazer o livro.
P/1 – Você escrever durante o filme.
R – Durante o filme.
P/1 – Você está com essa ideia?
R – Não, já tem editora até querendo lançar o livro, eu tenho uma pessoa mesmo, editora. Não vou falar o nome dela, mas ela é editora. O Jean Claude que colocou essa coisa na minha cabeça e há três anos já tem editora falando comigo, tem editora pra lançar o livro, tudo. Primeiro ela quis saber se eu sabia escrever, né? Aí eu mandei uns escritos meus pra ela. Mas eu não sei se eu vou fazer o livro. O livro chamaria Notas Sobre o Luto. Mas eu também não sei o quanto, é ridículo falar isso, que estranho, o cara que mostra toda a família morta, o quanto não seria muita exposição e o quanto eu já não estou manipulando demais essa materialidade. Mas também não sei o quanto é cafona e piegas dizer que talvez isso seja uma terapia pra mim e que eu preciso tirar um peso da minha cabeça senão eu enlouqueço. Então talvez eu tenha que fazer peça, teatro, filme.
P/1 – Esse peso, ele está o tempo todo contigo?
R – É o luto. Isso é uma coisa que vai estar no filme também, mas o dia que minha mãe estava morta eu estava com uma amiga que tinha um celular e eu pensei em filmá-la, não fiz. E aí essa possibilidade, essa ideia de filmá-la, me oprime até hoje.
P/1 – De você ter pensado nisso.
R – É. Agora ao mesmo tempo eu encontro uma justificativa. No filme do meu irmão eu começo o filme procurando os ossos dele pra reconstruir a imagem dele, imagem essa que não fui eu que produzi, são fotos dos autos do processo. O luto opera na minha sensibilidade de uma maneira muito estranha, não sei pros outros, mas eu não vejo mais o rosto da minha mãe. Eu posso olhar uma foto, posso lembrar dela, eu não consigo, então é uma tentativa de reconstruir a imagem dela. É como se o corpo fisicamente, pra te proteger, ele anulasse essas coisas.
P/1 – Você sente falta dela ou você sente ela...
R – Sinto muita falta e sinto falta da imagem dela. Eu não consigo reconhecer o rosto da minha mãe. Então, o filme talvez seja uma tentativa de reconstruir essa imagem pra mim. E a minha última homenagem a ela. Eu escolhi pra minha vida, ou fui escolhido, pensando de maneira bem brejeira, o cinema me escolheu, e o meu ofício é a minha paixão. Que ela tem culpa nisso, ela me ajudou, forjou isso em mim. Ela era muito apaixonada por filmes, então acho que nada mais óbvio que realizar um filme sobre ela. Não é um filme sobre violência e sobre assassinato, é também, mas antes de mais nada é sobre um filho tentando reconstruir a imagem da sua mãe.
P/1 – Sabe uma pessoa que eu estou interessada em saber onde ela está? Sua irmã.
R – A minha irmã é uma pessoa muito doce. Dessa loucura toda talvez seja a pessoa mais sã.
P/1 – Pois é, ela mora onde?
R – Ela mora em Uberlândia. Ela vai ser personagem no filme. Ela tem duas filhas.
P/1 – Ela casou então.
R – Casou. E eu tenho um sentimento por ela que eu não gostaria de ter, pena.
P/1 – Pena?
R – Eu tenho muita pena dela.
P/1 – Por que?
R – Porque no meio disso tudo ela era a pessoa mais doce e acabou encontrando a minha mãe morta, sabe? E ela era muito gentil, muito sensível também. Eu me lembro que desde pequeno, ela deve ter uma biblioteca na casa dela, todos os livros que eu acho que uma criança deveria ler desde o começo, na minha cabeça.
P/1 – Você dava pra ela.
R – Sempre levei. E acho que ela nunca leu nenhum. Eu achei que ela fosse estudar, que fosse ter uma vida diferente, sabe? Não sei, idealizando que talvez isso fosse uma possibilidade de felicidade pra ela fugir dessa sina de pobreza, de violência, de engravidar cedo, de ser empregada, de ganhar pouco.
P/1 – É isso que ela vive? Ela é o quê?
R – Ela é cabeleireira. Tem um marido que parece ser um cara legal, não tenho muito contato, tem duas filhas. Às vezes eu esqueço o nome das filhas, não sei a idade. Esqueço aniversário, eles me ligam cobrando que eu não liguei no dia do aniversário. Essas datas eu apago da minha memória. Porque toda vez que eu tenho que voltar coisa da família é uma semana sem dormir, é horrível. Ufa.
P/1 – O que você, assim, essa coisa da família, o que é que te dá? É dor, é o quê? O que te dá?
R – Tem muita coisa ruim, muita coisa feia, muita dor e muita violência. Mas também tem muito amor, muita ternura, sabe? Minha vida não foi completamente horrível. Nos momentos que não tinha violência e briga o ambiente em casa era muito bom, meus pais eram muito engraçados.
P/1 – Eram engraçados?
R – Muuuito, muito. A gente se divertia muito.
P/1 – Então tinha alegria.
R – Tinha, tinha. Senão seria insuportável, né? Muito.
P/1 – Seus irmãos eram engraçados?
R – Também, também. Tirando o Ricardo, que sempre foi uma pessoa estranha. Mas eu sei que ele tem um problema, que eu não sei qual é. Também não consigo lidar com isso. Mas era muito divertido, a gente brincava muito.
P/1 – Isso se estende a seus avós, tios e primos ou?
R – Sim.
P/1 – Quando você fala família você fala essa família ou você fala aquele grupo inteiro?
R – O grupo inteiro. Mas em casa também era um ambiente muito... era divertidíssimo. E eu sinto falta disso. Sinto falta do ambiente familiar.
P/1 - Você sente falta?
R – Sinto.
P/1 – Você casou?
R – Estou morando junto há dois meses pela primeira vez. Não sei se vai dar muito certo, acho que não. Não sei se eu dou pra essas coisas, mas eu estou tentando.
P/1 – Mas assim, você não tem filho, né?
R – Não.
P/1 – Isso é algo na sua cabeça?
R – Nunca parei pra pensar. Uma vez aparentemente eu seria pai, fiquei completamente transtornado, pensando. O primeiro pensamento que vem é: eu vou continuar essa... porque essencialmente a minha personalidade é trágica, né? E eu achei que eu poderia acabar com isso por aqui, né? Tenho dúvida se quero prolongar essa tragédia.
P/1 – Você sente que você está numa tragédia.
R – Completamente. Grega, só faltou uma Deus ex machina aqui, né?
P/1 – Mas assim, ao mesmo tempo você se sente feliz?
R – Eu nunca parei pra pensar em felicidade, alegria, não consigo ter essa, formular isso. Pra mim, felicidade é uma palavra muito subjetiva, não consigo dar forma a ela. Mas eu tenho momentos de prazer e de... o que eu mais busco na minha vida é paz, sabe? Serenidade talvez, acho muito difícil.
P/1 – É o que pra você paz?
R – Ah, poder dormir uma noite tranquila sem ter um pensamento desses que eu acho que há muitos anos não tem um dia que eu não acorde e não lembre de ter essas coisas.
P/1 – Isso é o que todo dia você acorda.
R – Todo dia.
P/1 – Você acorda de madrugada?
R – Sim. Eu tenho o sono intranquilo.
P/1 – Você acorda e é isso que te vem?
R – É, é. A imagem da minha mãe morta, o corpo do meu irmão, é meu pai chorando de dor no hospital. A fome que eu passei física que eu sinto.
P/1 – Essa é uma pergunta minha, tá, pra mim, que eu ando pensando, eu faço que pra muito pouca gente, acho que pra ninguém, mas eu acho que você, se você quiser responder. É assim, se você pensar assim, você contou muito da sua história. O que você chamaria de eu? Então eu pergunto do nosso trabalho junto assim: quem sou eu? Eu existo? Quem sou eu? Pra você.
R – Você sabe que montando o filme eu tenho me perguntado isso. E aí, eu estou com dificuldade de pensar sobre isso, mas eu não cheguei a uma conclusão, mas o eu são os outros e os outros são essa minha história, então o eu é a minha história, entende? Que faz parte dos outros. Então eu, a minha mãe que morreu, o meu irmão que foi assassinado e a minha irmã que tem uma vida dura. Por isso que eu acho apaixonante conhecer gente.
P/1 – Por que exatamente?
R – Porque eu descobri que a gente não está tão sozinho assim. Esse filme que eu fiz pra mim agora foi muito importante, esse Estopô Balaio, que eu fui pra periferia. Porque eu virei um burguês, né? Eu viajo, vou a restaurantes, tenho uma vida aparentemente confortável, ou tento parecer que ela é confortável. Mas voltar a um lugar que eu me afastei por opção porque aquilo me oprime muito, me fez rever minha relação com o trabalho, com a vida com os amigos, relação amorosa.
P/1 – Você se reconhece mais nesse lugar?
R – É.
P/1 – Isso tem a ver com o que você acha que é o seu eu?
R – É. O meu eu é o que eu tento esconder, sabe? É a minha própria história, a minha tragédia. E também eu não sei se é tão importante a gente, essa coisa do eu. Antigamente eu me preocupava muito com isso, o que eu sou e como os outros me veem. Mas eu acho isso uma perda de tempo, porque aí a vida está acontecendo e você está preocupado em quem você é e como os outros te veem.
P/1 – Mas eu tenho uma curiosidade, desses momentos da sua vida de muita ação, hoje você está numa posição que reflete muita coisa, mas você tem uma vida de muita sobrevivência quando você fala em instinto, né? Aí está na Europa e vai lá, eu vou pra lá, vou pra lá. Você lembra nesse momento de ficar tendo um diálogo de você com você sobre... Eu vou fazer isso porque sou eu, ou isso não estava nem passando dentro de você? Percebe, esses momentos onde você foi reagir fazendo a vida. Você se sente diferente nesse momento ou você sempre teve um diálogo de você com você?
R – Ah, eu tenho, mas eu sou muito esquizofrênico. Eu percebo isso. O Freud dizia que a consciência da doença é o caminho pra cura mesmo que ela não exista. Então eu acho que eu faço auto análise há muito tempo. Mas eu sou dialético, completamente dialético.
P/1 – Em que sentido?
R – Que eu estou sempre pensando na tese, na síntese e na antítese, refletindo o tempo todo. A questão é que isso não me congela, ter consciência da minha mediocridade ou do meu fracasso ou da minha impossibilidade pra entender algumas coisas e fazer algumas coisas que eu gostaria ou que eu acho, na minha loucura, que seria o ideal, isso não me impede de fazer as coisas. Porque a minha vida me tornou assim, eu nunca tive tempo pra hesitar, entende? Na minha história de vida, se eu tivesse hesitado eu estaria morto ou morando na periferia com cinco, seis filhos, sendo empregado numa fábrica. Nenhum problema se essa fosse a minha história, mas eu nunca hesitei. Nunca pude hesitar, adoraria hesitar, ficar em dúvida. Eu sempre reagi, sabe, eu nunca agi, eu reagi. E isso é interessante porque na prática, no dia a dia, isso tem a ver com o meu trabalho também. Quando eu vou fazer um filme eu nunca vou com uma ideia pronta sobre a coisa. Claro que eu vou, eu penso, tem um processo mental ali, mas eu sempre estou esperando a reação, o imponderável das coisas. O ser humano é um animal muito estranho, a gente nasce sabendo que vai morrer, mas não pensa nisso. Num dado momento você tem contato com a morte, com o luto, talvez seja a dor mais profunda pro ser humano, é a consciência da finitude das coisas e do imponderável. Isso faz você mudar a perspectiva da sua vida completamente. Não sei se pra pior ou pra melhor, mas muda, definitivamente.
P/1 – Mas então, você disse pra mim que gosta de viver, né?
R – Gosto.
P/1 – Você sente, se você pensar agora, a gente falando muito da sua história, agora você está nem no meio talvez, ou no meio.
R – Já passei, já virei a curva (risos).
TROCA DE FITA
P/1 – Antes da gente continuar sobre o futuro, uma pessoa que você menciona é o Jean Claude. Ele tem um símbolo, uma importância na sua vida? Especial.
R – Tem. A gente se reconhece não é no cinema, é numa certa dor, é numa certa loucura. Todos os meus parceiros, em geral, tem esse lugar. Eu me reconheço nele e a recíproca é verdadeira porque a gente já falou sobre isso, por isso que a gente brinca tanto com o tema, que algumas pessoas fogem, mas é a morte. Como meio, não como fim. Eu reconheço nele uma certa loucura, uma certa dor que eu tenho. E ele também já falou isso pra mim.
P/1 – Você reconhece isso em outras pessoas também?
R – Também. Boa parte dos meus parceiros, um monte de louco. Mas entenda a loucura como uma possibilidade de não compreensão das coisas. A gente vive uma época onde ensina tu definir, esquadrinhar e rotular tudo, né? A possibilidade do imponderável e do desconhecido é meio assustadora pra muita gente, né? Esses dias um amigo meu que foi uma pessoa muito rica e de repente, com 45 anos, ele está separado, volta a morar com a mãe porque ele decidiu ser ator só, coisa que ele é há cinco anos. Ele estava deprimido e eu falei: “Cara, isso é tão bonito, admiro muito isso em você. Aos 45 anos você mudar completamente a sua vida e recomeçar”. Hoje em dia a necessidade de ganhar um milhão antes dos 22. Correr risco. É que pra mim é fácil, eu não tinha opção, eu tive que correr risco a vida inteira, mas eu achei que é muito difícil alguém depois de ter dois filhos criados mudar completamente a vida.
P/1 – Vamos voltar então pra essa coisa do futuro, ou da sensação do futuro, que você está começando a completar, começando a trilogia, peça, quer dizer, você está em plena... E aí não é uma pergunta tipo Marília Gabriela não, é mais aqui, assim. Qual é a sua sensação da vida? Ter uma porrada de coisas pra fazer, cansar, o que é quando você pensa nisso? Quando você acorda você pensa nisso além das coisas...
R – O meu maior medo sabe qual é?
P/1 – Qual?
R – É que amanhã eu acorde e tenha algo que me impeça. Por exemplo, uma doença. Eu prefiro morrer de maneira seca, sem pensar nisso do que ficar impossibilitado de fazer o que me mantém vivo. A minha força vital é o meu trabalho, o dia que eu não puder mais fazer isso não tem sentido.
P/1 – Então o seu trabalho é o que te...
R – É.
P/1 – O quê do seu trabalho?
R – Tudo, tudo. Eu acordo, eu não sei o que é felicidade, mas talvez próximo disso é mesmo indo para uma escola reclamando dela que eu sou mal pago e sou maltratado, ainda eu vou pra lá falar sobre filmes. Hoje eu passei um filme de três horas pros alunos, uma aula do Scorsese falando do cinema italiano no neorrealismo. E aí o brilho nos olhos dos alunos, aquilo é apaixonante pra mim. Então o meu trabalho é falar sobre filmes. Ou fazer filmes, ou fazer teatro. Tudo o que eu sempre quis na minha vida. E agora chegou um momento que às vezes eu sou pago pra isso, isso era uma coisa que era impensável pra mim. Se tem alguma felicidade nisso talvez seja isso. Agora, eu conheci muita gente que falava que era fodão e que não tinha medo da morte. E eu conheci muita gente próximo da morte, é estranho quando você vê um corpo sem vida, eu vi isso muitas vezes, mas as pessoas se apegam à vida, no último instante. Pelo menos as experiências que eu tive. Agora sempre que eu entro num avião eu acho que ele vai cair.
P/1 – E o que você sente?
R – Ah, esses tempos aí eu peguei um voo que o negócio foi tão violento que caíram as máscaras, né? E eu achei que eu fosse ficar apavorado, gritar e eu só pensei: “Pô, será que dá tempo de um whisky?” (risos). Mas a comissária estava apavorada lá, agarrando as coisas, o povo achou que ia cair o avião mesmo. Era um voo da Air France, a coisa foi tensa. Mas toda vez que eu entro no avião eu acho que eu vou cair. Aí me dá uma paz tremenda. Eu não sei se no último segundo ali eu vou ficar apavorado e vou gritar também, vou querer me apegar à vida, mas a sensação é que eu estou no lucro há muito tempo já, estou no lucro há muito tempo. E eu estou tentando controlar a minha ansiedade por querer fazer muita coisa. Eu queria poder puxar o freio de mão e curtir um pouco a vida. Mas ao mesmo tempo também, se eu não estiver filmando, fazendo uma peça ou dando aula, que sentido vai ter a minha vida, né?
P/1 – Então isso não é o curtir a vida pra você?
R – É, com certeza! Curtir a vida.
P/1 – Qual o espaço dessas outras coisas? Tipo, você está casando, outras coisas. Tem?
R – Eu sinto falta de uma coisa porque é um hábito que eu tenho. Eu adoro ser vagabundo, não fazer nada. Eu adoro ir ao cinema à tarde. E faz muitos meses que eu não consigo fazer isso. Às vezes eu consigo ir no cinema de sábado à noite, quando todo mundo vai, que eu odeio. Eu gosto de ir no cinema na primeira sessão, numa segunda, terça-feira. E faz alguns meses que eu não consigo fazer isso. Ou parar um dia à tarde e ficar vendo um filme em casa. Eu sinto falta de ser vagabundo, na melhor acepção da palavra. Ser dono do seu próprio tempo, isso é muito difícil. Isso pra mim é uma liberdade.
P/1 – Bom, tenho uma pergunta também que assim, olhando a sua história tem alguma coisa que você teria feito diferente nessas suas trajetórias ou reações?
R – (silêncio) Acho que sim, mas também não sei se teria alterado o sentido das coisas.
P/1 – O que você teria feito?
R – Teria ficado mais próximo do meu irmão, da minha mãe e do meu pai. Também acho que hoje, menos uma sensação de culpa, sabe? Mas a família é um bem precioso. E quando eu vejo meus amigos maltratando os pais, sendo escroto com parente eu falo: “Pô, você não sabe, uma hora eles não vão estar mais aqui”. Eu teria sido um irmão e um filho mais presente. Só isso. O resto eu fiz o melhor que eu pude, ou não fiz. E o que eu sou hoje é o que eu fiz e o que eu deixei de fazer, não posso reclamar.
P/1 – Você achou bacana, quem eu sou hoje, você está assim...
R – Não, não gosto, eu queria ser diferente.
P/1 – Ah, é?
R – Queria ser um diretor clássico filmando em Paris, aquelas atrizes maravilhosas, bebendo champanhe e não um cineasta aparentemente marginal, sem grana, que deve no banco e tem o cartão de crédito sempre estourado, mas, tá tudo certo.
P/1 – Obrigada.
R – Obrigado você.
PAUSA
P/2 – Então Cristiano, eu queria que você comentasse como é que foi receber, se você tinha uma relação prévia com o Museu antes da Mostra e como foi receber esse convite pra participar.
R – Primeiro eu fiquei surpreso porque eu não estou acostumado a ser chamado pra trabalhos, isso vem acontecendo de uns dois anos pra cá. Eu nunca acho que alguém vai me chamar pra trabalhar e muito menos pagar por isso. Mas aí a questão é que não é uma relação de dinheiro. Primeiro porque eu já conhecia, claro, superficialmente, a história do Museu, achava muito bonito, muito interessante, estava sempre pronto, querendo, já estou há muito tempo pra vir conhecer mais profundamente o acervo e afins. E aí era um mês de férias, eu estava lá na praia, quando o Marcos me ligou eu estava no hotel olhando pro mar e eu fiquei muito feliz mesmo, fiquei muito empolgado. E a segunda empolgação veio quando eu tive contato com o material, aí eu fiquei completamente apaixonado e imaginando que talvez a coisa mais importante seja o contato com as pessoas, com as histórias, isso é força motriz para o meu próprio trabalho. Então acho que talvez aqui eu não deveria receber, eu deveria pagar, porque isso tem sido um fôlego novo pra mim como artista e como ser humano porque o que importa é o outro, né? E a gente esquece isso às vezes. Imagina um cineasta que não se preocupa, não se interessa pela história do outro, o que eu vou ter pra falar do meu trabalho? Em vez de receber cachê eu deveria pagar porque a experiência está sendo muito enriquecedora pra mim, como artista e principalmente como ser humano.
P/2 – E antes daquele processo de imersão você tinha que ideia prévia? Porque imagino que você deve ter vindo com uma ideia que pode ter sido desconstruída ou não durante aquele processo.
R – Do processo ou do resultado, assim, da experiência de fazer o processo de imersão?
P/1 – Do projeto em si, antes da imersão.
R – Ah não, do projeto eu já tinha uma ideia que primeiro eu me sinto, eu não acho que é um trabalho comum, existe uma responsabilidade ali, estou me cobrando muito por isso, estou sofrendo também. Como qualquer outro trabalho eu já poderia ter terminado e mostrado várias versões do trabalho. E se eu estou hesitando um pouco de fazer como eu costumo trabalhar que é muito rápido, esse trabalho precisa de uma elaboração e de uma... eu preciso escutar mais essas pessoas. Eu estou hesitando chegar ao fim ou apresentar um resultado já porque eu preciso de uma depuração. Em respeito até a essas próprias histórias. Eu não posso ser um artista truqueiro, sabe? A forma pela forma, senão seria um esteta, né? Então eu estou escutando essas pessoas, aí tem essas imagens e isso tem uma reverberação dentro de mim. Depois vem um processo, tecnicamente até, de dialogar com o material e com a história dessas pessoas. Acho que tem uma responsabilidade sobre isso. Mas mesmo assim vai ser um ressignificar isso, aí que está a minha responsabilidade. Então está sendo sempre um recomeço. Quando veio o convite eu fiquei muito empolgado, depois a experiência aqui. E depois da frustração de que talvez o trabalho seja uma responsabilidade e uma capacidade que eu não tenho ainda, falando com maturidade, como ser humano e como artista mesmo, eu não tenho uma relação frívola com o cinema, já tive, hoje em dia não tenho mais. Pra mim existe um ritual. E é diferente de eu ter uma ideia, uma ficção ou filmar as histórias que são pessoais e ter que elaborar a partir de histórias de outras pessoas que eu nem conheço, estou conhecendo ali através da imagem, do som, da voz, do discurso delas, então me sinto muito responsável por isso.
P/2 – E de que forma você acha que esse material do Museu e o trabalho do Museu em si, mas falando mais especificamente das histórias de vida, se relacionam com o seu trabalho como documentarista?
R – Vão de encontro, muito forte. Muito forte mesmo porque é sempre um recontar, um ressignificar. E essa coisa de trabalhar com a memória. E eu acho lindo, tem uma coisa muito plástica, o rosto das pessoas quando elas estão buscando o seu passado, ressignificar a sua própria história ali através da palavra, do verbo, ou até dos silêncios também. E é luminoso mesmo. O ser humano acaba sendo um animal muito triste, das coisas que afetam ele. Mas é como se fosse renascer quando você busca o seu passado, a sua história, quando você tenta verbalizar isso, né? Então tem alguns instantes assim, tem uma dupla, casal, que foi muito importante pra minha formação, dois cineastas, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet. Tem um filme deles que chama... não é um filme deles, é filme de um cineasta português que fez sobre um processo de montagem de um filme deles que é Gente da Sicília. E o filme chama Onde Jaz o teu Sorriso? e é sobre uma discussão que eles têm num momento de montagem, que tem um sorriso no olho de um personagem. E ela acha que é uma coisa intelectualizada dele, que ele foi professor na Sorbonne, e ele diz: “Não, existe um sorriso ali”. E depois de algum tempo ela encontra o sorriso no olho do cidadão. Então não são só as vozes, mas essas imagens. Quando você começa a percorrer seus olhos sobre uma face você tem muito signo ali a encontrar. E aí o seu trabalho se torna muito menos o que eu quero fazer, mas como eu sou instrumento pra que isso aconteça. Então o processo não é lá e construir alguma coisa, mas é revelar as coisas que já estão lá. E pra isso você precisa de tempo, você precisa de uma certa humildade, diminuir a sua vaidade como artista pra que o outro apareça, para que as coisas se revelem. Eu já perdi muito filme porque eu não tive a sensibilidade necessária pra ouvir o material, pra ouvir as pessoas, pra ver as coisas. E também acho que é um momento de reeducar os sentidos. O momento que eu me encontro agora como artista, como realizador, como cineasta, eu tenho vontade de ver com os ouvidos e escutar com os olhos, uma subversão dos sentidos. Porque é uma época muito difícil pra se trabalhar com audiovisual, com cinema, porque é um excesso de imagens e de sons, é um excesso de discursos. É um grande trabalho aí que eu tenho pela frente.
P/2 – E nessas histórias foi essa paisagem de rosto que te chamou mais a atenção ou teve alguma coisa assim, no conteúdo, em termos narrativos que te...
R – Ah, são muitas, são muitas histórias. Às vezes eu vou dormir com essas histórias. Eu estou fazendo vários trabalhos ao mesmo tempo, mas sempre que eu estou trabalhando no projeto do Museu pra mim é muito mais estimulante, é muito mais estimulante. Aí eu vou dormir mais tranquilo, fica voltando como se fosse flashback, uma hesitação, uma palavra aqui, uma história que foi contada ali. Porque é bonita a história dos outros, a vida, né? Tem uma peça do Shakespeare que chama Rei Lear, tem um personagem que entra pra falar uma frase só: “Há um mundo lá fora”. E o universo do cinema acaba se tornando muito antisséptico. Aí você faz filmes e anda com gente que faz filmes e só fala sobre cinema. E aí de repente ter contato com histórias reais de pessoas, com histórias distintas, vidas distintas, isso é muito estimulante, é muito prazeroso também.
P/2 – Como foi pra você vivenciar esse processo, do processo da imersão, né, aqueles três dias aqui no Museu que foram bem intensos e poder conhecer os outros curadores e as linhas que o Museu estava pretendendo seguir com essa Mostra, esse processo todo mundo construiu junto, né?
R – Pra mim, eu sempre me coloco numa aventura, mas uma aventura de linguagem, que tem a ver com forma também. Porque o trabalho tem que ter um resultado, no meu caso vai ser um filme. Então, experenciar as coisas ou o processo, ele faz parte do trabalho, tão importante quanto o resultado. Então a imersão pra mim foi muito interessante porque eu não sei, eu acho que eu estou mais abusado depois que eu fiz 40 anos, eu estou adorando fazer experiências e experimentar de maneira diferente. Então achei do caralho. E olha que e usou uma pessoa muito reservada, estou ficando mais facinho, acho que estou perdendo a fibra de bandido (risos).
P/2 – Você comentou o fato do cinema ser um mundo fechado em si mesmo e no caso da Mostra isso vai ser bem diferente, totalmente o caminho oposto porque tem, por exemplo, o Diógenes trabalha com fotografia, tem a Vivi que tem um outro background diferente do seu. E tem a própria equipe do Museu, então é um grupo multidisciplinar, digamos. Como você acha que isso pode funcionar? O que isso pode agregar para o que você tem, pra sua construção.
R – Primeiro eu acho que as escolhas foram muito boas, eu me senti numa casa de malucos então me sinto muito bem aqui, me sinto à vontade. Não são em todos os lugares e nem em todos os projetos que estou envolvido que eu me sinto tão bem assim. E tem uma buena onda, né, você sente isso. Eu já fiz trabalhos que foram insuportáveis, eu não via a hora que terminasse. Aqui não, eu queria que demorasse mais tempo, porque eu gosto muito de vir pra cá, encontrar as pessoas, falar. Uma turma muito boa mesmo. Eu estava muito receoso, que eu fosse chegar aqui e os outros curadores fossem muito artistas, né, e cada um ficasse querendo puxar a corda prum lado. Eu não sei, parece que tem uma unidade, uma boa onda mesmo. Eu acho que vai ser muito interessante. E é sempre... eu faço um exercício na escola que eu coloco um objeto e peço pras pessoas descreverem esse objeto. Às vezes eu tenho turmas com 25 alunos e ninguém descreve aquele objeto da mesma maneira. Eu tenho fé no olhar único, individual. Por isso que eu não acredito em geografismo quando a gente fala de cinema, fala do cinema do Pernambuco, da Bahia, o cinema francês, brasileiro. Tem o cinema do João, da Maria, do Antônio, do Zé, da Joana. São olhares diferentes sobre a mesma coisa.
P/2 – Agora que já passou um tempo daquela imersão e você já está no processo de criação, já está um pouco mais avançado, então talvez você já consiga me responder isso. Não que não possa mudar também, mas hoje, o que norteia tanto em termos de estética, quanto narrativa, a peça que você está criando?
R – Nesse momento eu me encontro em completa contradição, porque eu fui, eu vim pra cá já com uma ideia pronta e o processo agora tem sido desconstruir essa ideia. Agora eu vou ter que voltar talvez ao que era a primeira ideia. Mas ela vai ser completamente diferente. Eu cheguei muito formalista e com uma ideia pronta, eu já sabia o que eu queria fazer. E aí depois eu esqueci isso. E agora depois de toda essa profusão, esse aprofundamento na materialidade do trabalho eu estou voltando à primeira ideia. Interessante. Mas agora pra mim ela faz um sentido, no começo ela não fazia. Nossa, você foi lá e você nem entendeu qual era o projeto ainda e já tinha ideia de como fazer. E agora estou retornando à minha primeira ideia, depois de ir por muitas ideias. E agora tem uma justificativa, aí eu consigo até articular, falar sobre isso. Porque pra mim é sempre um pensamento, não é só o resultado do trabalho em si, mas como você vai dialogar, porque fazer o trabalho é dialogar com outras pessoas também, né? E como esse trabalho vai dialogar com outras pessoas também? Porque é um lugar de muita vaidade, né? Essa coisa do eu pra mim é complexo por isso, porque no cinema a gente está sempre no eu, no eu, no eu. Mas eu acho que realmente eu estou começando a acreditar nisso, que o eu é outro, né? Quanto mais eu sou, mais eu me reconheço no outro.
P/2 – Qual você acha que é a grande busca desse projeto, além da questão do eu. Pra você.
R – Eu não sei, não só do projeto, mas do Museu, é ter um trabalho monumental de registro, um trabalho muito importante, importante mesmo. E saber que tem pessoas que estão fazendo isso. Podiam estar fazendo outras coisas, roubando banco, né? Mas eles estão registrando a história das pessoas, isso é lindo, né? O trabalho que você faz é um trabalho de bardo, né? O bardo mais conhecido, mais reverenciado é o Shakespeare, né? Essa coisa de guardar e de reproduzir e de transmitir a história das pessoas, de quem passou por aqui, isso é muito importante. Eu só posso agradecer porque eu estou muito estimulado e realmente eu acho que eu deveria pagar em vez de receber por esse trabalho. E espero que as pessoas gostem do que vão assistir. E se não gostarem não tem problema também, não. O problema é a indiferença, né, que tenha uma reação, seja pelo bem ou pelo mal, mas que tenha uma reação ao trabalho.
[entrevistadoras conversam sobre incluir a pergunta sobre como foi contar a história para o Museu]
R – Foi sadomasoquista, foi incrível mas foi muito sofrido. Foi um prazer imenso, foi uma aventura, mas foi muito dolorido também. Mas foi importante pra mim. Pra mim, falar dessas coisas é sempre, não é terapêutico, mas eu vou fazer um filme agora onde eu vou ter que encarar isso, então eu já liguei os motores, estão em aquecimento, pra mim foi muito importante. Agradeço mesmo porque vai ser muito útil pra mim. E também não sei se a minha história tem alguma relevância ou vai servir pra alguma coisa, mas está aí. As pessoas vão achar que é mentira, né? Que é tão doido isso. Eu acho que não aconteceu comigo.
P/2 – É tão cinematográfico, né?
R – É rodriguiano mesmo.
P/1 – Mas eu agradeço. Eu considero a história uma viagem combinada, né? Às vezes o avião não decola, mas quando de repente no meio a gente entra no... eu sempre aprendo muito, me faz visitar lugares, isso que você fala, do outro que é seu, então te agradeço muito também.
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