Mestres do Brasil – Suas Memórias, Saberes e Histórias
Entrevista de Raphael Marreiros Dias
Entrevistado por Morgana Mazelli e Winnie Shoy
Rio de Janeiro, 20/09/2008
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº OFMB_HV014
Transcrito por Paula Leal
Revisado por Débora Rodrigues e Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 – Queria começar pedindo pra você dizer seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Meu nome é Raphael Marreiros Dias. Sou de Cardoso Moreira, nascido no dia 31 de dezembro de 1978.
P/1 – Raphael, qual o nome dos seus pais?
R – Luis Carlos Teixeira Dias e ngela Maria Marreiros Dias.
P/1 – E o que eles fazem?
R – Meu pai, ele é dentista e ortodontista. Minha mãe é professora.
P/1 – E você cresceu em Cardoso Moreira?
R – [Em] Cardoso Moreira.
P/1 – Conte pra mim um pouco de como foi sua infância.
R – Minha infância em Cardoso Moreira foi assim… Quando nasci tive um probleminha, eu não andava, então minha infância foi muito dentro de casa. Com o passar do tempo melhorei um pouco: comecei a andar, comecei a curtir um pouco a rua. Minha infância foi rica em brincadeira de pião, baleba, pipa.
Nos fundos da minha casa tem um rio, o rio Muriaé, muito lindo, [com] cachoeiras, corredeiras. Quando eu era pequeno meu pai me colocava nas costas dele pra me levar pra pescar, me soltava na correnteza com um “salva-vidazinho” só pra me ensinar a nadar. Foi uma infância muito rica, muito prazerosa - jogo de pique-esconde, pique-lata, corrida de bicicleta, roubar manga, apertar campainha da casa dos outros, tacar ovo em amigo que está fazendo aniversário, muito bom. Foi uma infância que me vale até hoje, porque graças a Deus eu não fui… Fiquei um pouco travado por causa do problema físico, mas não deixei de me divertir junto aos meus amigos de infância que eu tenho até hoje e convivo com eles.
Meus vizinhos até hoje têm umas brincadeirinhas: a gente, quando era criança… Tinha um filme...
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Entrevista de Raphael Marreiros Dias
Entrevistado por Morgana Mazelli e Winnie Shoy
Rio de Janeiro, 20/09/2008
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº OFMB_HV014
Transcrito por Paula Leal
Revisado por Débora Rodrigues e Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 – Queria começar pedindo pra você dizer seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Meu nome é Raphael Marreiros Dias. Sou de Cardoso Moreira, nascido no dia 31 de dezembro de 1978.
P/1 – Raphael, qual o nome dos seus pais?
R – Luis Carlos Teixeira Dias e ngela Maria Marreiros Dias.
P/1 – E o que eles fazem?
R – Meu pai, ele é dentista e ortodontista. Minha mãe é professora.
P/1 – E você cresceu em Cardoso Moreira?
R – [Em] Cardoso Moreira.
P/1 – Conte pra mim um pouco de como foi sua infância.
R – Minha infância em Cardoso Moreira foi assim… Quando nasci tive um probleminha, eu não andava, então minha infância foi muito dentro de casa. Com o passar do tempo melhorei um pouco: comecei a andar, comecei a curtir um pouco a rua. Minha infância foi rica em brincadeira de pião, baleba, pipa.
Nos fundos da minha casa tem um rio, o rio Muriaé, muito lindo, [com] cachoeiras, corredeiras. Quando eu era pequeno meu pai me colocava nas costas dele pra me levar pra pescar, me soltava na correnteza com um “salva-vidazinho” só pra me ensinar a nadar. Foi uma infância muito rica, muito prazerosa - jogo de pique-esconde, pique-lata, corrida de bicicleta, roubar manga, apertar campainha da casa dos outros, tacar ovo em amigo que está fazendo aniversário, muito bom. Foi uma infância que me vale até hoje, porque graças a Deus eu não fui… Fiquei um pouco travado por causa do problema físico, mas não deixei de me divertir junto aos meus amigos de infância que eu tenho até hoje e convivo com eles.
Meus vizinhos até hoje têm umas brincadeirinhas: a gente, quando era criança… Tinha um filme “O Predador”, e como eu sempre fui o grandão da turma, “Pô, tu vai ser o predador, tu tem que pegar a gente e tal”. Eu já era garotão, botava a máscara, pedaço de pau na mão, partia atrás da galera na rua. As ruas de Cardoso há um tempo atrás não tinham tanta iluminação, hoje é uma cidade mais moderninha, mas na época a gente brincava muito com isso. Tinha uma certa criatividade, pegava os animais na rua e brincava de rodeio. Tinha muito animal solto na rua, cavalo, jumentinho, a gente fazia acampamento também, pegava e ia pela beira do rio, pescava, comia os peixes na hora. Doideira, muito bom mesmo.
P/1 – E Raphael, você tem irmãos?
R – Tenho, uma é a Carla, que é a irmã do meio e tenho um irmão mais novo, o Marcelo.
P/1 – Você é o mais velho?
R – Sou o mais velho.
P/1 – E como era na infância a convivência de vocês?
R – Muito boa. A diferença de idade [entre] eu e o meu irmão são seis anos e da minha irmã são três, mas sempre convivemos muito bem. Sempre tive um “atritozinho” com minha irmã, com a questão do namoradinho dela, eu tinha aqueles ciúmes, mas graças a Deus o convívio lá em casa é muito harmônico entre a gente. Meu irmão então é um amigão, ele mesmo fala que quando era pequeno fazia os desenhos no caderno e falava que eu era o super-herói dele. Era legal porque os professores sempre falavam pra minha mãe: “Pô, o Marcelo tem uma adoração pelo Raphael, ele fala que é o super-herói dele”, então isso é muito gratificante.
P/1 – Conte um pouco como era essa sua casa em Cardoso Moreira.
R – Como era?
P/1 – É, descrever um pouco a casa.
R – Minha casa tem dois andares. Embaixo é o consultório, a clínica do meu pai e da minha irmã, em cima é uma casa grande com seis quartos, quatro banheiros. Casa muito grande, a frente uma rua tranquila, asfaltada, limpinha. Nos fundos da minha casa é fundos pro Rio Muriaé, acordo todo dia com aquele barulhinho de cachoeira. No verão eu sinto falta do barulho de cachoeira porque é época das chuvas, então o rio enche e aquilo se torna um silêncio até meio triste, mas lá estou acostumado, a acordar com aquele sonzinho de cachoeira, passarinho, uma delícia.
Cardoso Moreira, é uma terapia morar onde eu estou hoje - onde estou, não, onde eu nasci praticamente -, então minha casa é tudo. Tem meu cantinho da bagunça onde eu trabalho, cada um tem o seu canto, tem o seu espaço, muito bom, muito bom mesmo.
P/1 – E tinha um quintal grande?
R – Tem um quintal grande, enorme. Do lado onde ficam meus cachorros - falo que são meus filhos que tomam conta da minha casa - tem uma horta do meu pai; ele curte a terapia, gosta das plantas, gosta muito de flores, cactos, minha mãe também gosta. No quintal de minha casa tem um pé de manga rosa, tem umas mangas enormes, chegam a ter um quilo, uma delícia. É até perigoso em época de manga você passar por baixo e tomar uma “topada” na cabeça.
P/2 – A casa que você está morando hoje é a mesma em que passou a sua infância?
R – É.
P/2 – E como ela era quando você era pequeno?
R – Ela era um pouco menor, a metade, aí meu pai começou a fazer a obra, igual obra de igreja, aos poucos foi fazendo. Antes já era bem confortável, mas a família foi crescendo, a gente crescendo também e cada um tendo seu espaço, com isso ele aumentou a casa, mas pra mim a de antes e a de agora não faz diferença, é a mesma harmonia. Minha casa é tão boa que eu não tenho vontade de sair às vezes: poder ficar dentro de casa, tem um varandão onde eu estudo, uma rede muito boa. Deito na rede, é prazeroso.
P/2 – A rua da sua casa… O rio, no fundo, ele mudou nesses tempos?
R – Mudou porque Cardoso Moreira é um avanço, até minha casa avançou um pouco adentro o rio e com isso a parte ecológica foi deixada um pouco de lado em termos de poluição, conscientização de lixo. A galera joga - lá em casa não, se jogar um papelzinho dentro do rio você arruma briga com a gente, não deixo atirar lixo lá em casa dentro do rio. Mas infelizmente não são todos, de vez em quando você vê aquela sacolinha de lixo passando boiando dentro do rio, então deixa a gente triste.
P/2 – Como mudou a casa?
R – O rio, né? O rio, por causa do assoreamento, mudou muito. Antigamente tinha praia de areias clarinhas de todos os lados e no meio dele sempre tinha o que a gente chama de coroa. Meu pai me levava de barco, me deixava lá pra tomar banho de rio. Hoje em dia, pra você tomar banho de rio, dá pra tomar só no meio, que é onde a água é mais forte, então a água não para. Tem a questão do esgoto, é um rio muito rico em peixe ainda. O que mudou foram as queimadas também - o corte, acabando com aquela mata nativa, fez com que o rio começasse a assorear, [ficasse] muito raso. Hoje em dia não dá pra andar mais de barco a motor; a gente andava de lancha pra baixo e pra cima, mas agora não tem como porque o rio é muito raso.
P/2 – E os vizinhos, são os mesmos?
R – São os mesmos, a vizinhança não muda; são os mesmos caras, os mesmos amigos. Uma coisa legal nossa é que os vizinhos nunca deram problemas, são todos amigos. Alguns são mais fechados, outros são mais conversadores, tenho vários amigos de infância que moram ali do lado, mas a vizinhança não mudou, é a mesma coisa. Só mudaram as casas, os estilos, mas a cara de todo mundo ali é a mesma, só envelheceu um pouco, né? (risos)
P/1 – Você estava contando das brincadeiras, que pescava com seu pai, tomava banho de rio. Qual era a que você gostava mais? Tinha uma brincadeira preferida?
R – Brincadeira preferida? Nossa, são várias, mas eu curtia muito ir pra dentro do rio pescar, eu gostava de pegar tarrafa. Esqueci um detalhe, eu gosto muito de desenhar, então desde pequeno eu também desenhava. Era um tipo de brincadeira que eu tinha, fazia desenho de tudo. Tudo que fazia eu retratava em desenho. Dentre eles, eu gostava mais de pescar. Até hoje, mas...
P/1 – E quem fazia o peixe que vocês pescavam?
R – A gente mesmo ou minha mãe, mas ela falava: “Você tem que limpar o peixe. Tem que pegar, mas vocês limpam.” Dentro do rio a gente limpava o peixe, porque era do lado, então limpava e rapidinho chegava a casa. Não tinha problema, era muito bom.
P/1 – E quando você era mais novo, sua mãe cozinhava?
R – Sim, ela é a guerreira, faz tudo. Ela é a pessoa que sempre teve “uma espada e um escudo do outro lado”, ela que faz tudo dentro de casa.
P/1 – E tem uma comida que pra você tem o gosto de infância?
R – Tem nhoque. Eu brigo lá em casa quando ela demora, falo: “Poxa mãe, faz um nhoque aí.” E ela: “Só posso fazer final de semana porque é muito trabalhoso.” Tem a lasanha também, não é à toa que eu sou grandinho, [é] por causa disso, lasanha e nhoque. Mas tem um “quê” que é importantíssimo, que ela sempre lembra quando as pessoas perguntam pra ela, é o famoso mexido no fim de noite. Eu chego em casa, antes de chegar em casa já falo: “Mãe”, ligo pra ela e: “Pô, estou chegando aí, faz aquele mexidão?” É tiro e queda.
P/1 – Ela já fazia esse mexido pra você quando era criança?
R – Já. Quando eu era criança não era muito “bom de boca", era meio teimoso, mas na infância já fui pegando o gosto. Quando eu era pequeno ela fazia mexido para meu pai também, então eu passei a ter esse gosto. Mexido [é] muito bom.
P/1 – Qual é o temperinho especial do mexidão?
R – Ah! Ela mistura o arroz, o feijão com um ovinho, aí ela põe… Esqueci o nome daquilo que põe em pizza, aquele... Orégano, um queijinho. Nossa! Nem fala que eu já estou até com fome, dá um “quê” a mais, muito bom.
P/1 – Raphael, e quando foi que você começou a estudar?
R – Eu lembro que comecei em Cardoso. Fiz meu jardim de infância em Cardoso, as primeiras séries também, só que quando cheguei à quarta série, Cardoso sofria muito com a questão de greve no estado. Ficava um mês, dois meses parados, então minha mãe me colocou pra estudar no município vizinho, em Italva; na quinta série fui estudar lá e nunca mais voltei a estudar em Cardoso. Estudei da quinta à oitava em Italva e desde pequenininho já entrava em um ônibus pra estudar em outro município. A gente tinha sorte porque meu pai era dentista lá, foi um dos primeiros dentistas nesse município também, então já tinha certo conhecimento de que era seguro, mas estudei em Cardoso, em Italva e depois fui para Campos. Terminei em Campos.
P/1 – Antes de você ir pra escola como era a relação com os estudos na sua casa? O que você aprendia em casa?
R – Em relação à minha casa, meu pai era muito caladão, ele não era muito de conversar, mas minha mãe, por ser professora, era quem sempre estava junto com a gente. “Ó, vamos estudar. Desliga a televisão.” A mania horrível de fazer tudo com a televisão ligada… Mas o interessante é que adaptamos a ferramenta ao estudo. No início atrapalhava um pouco, mas depois eu passei a ter mais concentração no estudo e acho que a televisão ficava um pouco de lado, mas tinha a questão do desenho também. Eu tinha uma técnica, vamos dizer assim, aprimorada por minha pessoa, mas o professor falava e eu estava desenhando, ficava desenhando no caderno, e o pessoal achava que eu estava “viajando”. Até minha mãe, dentro de casa, achava ruim comigo. Eu lia uma parte da matéria e começava a desenhar, depois voltava a ler novamente. Aquilo ia facilitando.
P/1 – Você desenhava sobre a matéria?
R – Não. O caderno ficava ao lado, sempre tinha um caderno de rascunho, lia a matéria e começava a desenhar.
P/1 – Mas desenhos que não correspondessem às matérias?
R – Eu desenho coisas que sonho, tenho algumas pinturas que eu sonho. Eu pinto também; de vez em quando dou um quadro de presente, o último eu dei pra minha mãe. Procuro fazer isso de madrugada.
A maioria das pessoas gostam de falar: “Desenha meu rosto.” Não desenho. Eu desenho coisas fictícias e coisas que surgem no sonho. Mas em casa, sobre a minha educação, até hoje Dona ngela “bate em cima”.
P/1 – E tinha muitos livros na sua casa, com sua mãe sendo professora?
R – Tem muitos livros lá.
P/1 – E você gostava de ler quando era criança?
R – Gosto, [ela] sempre incentivou a gente a ler muito. Sou uma pessoa que procura sempre estar por dentro das novidades na literatura, sempre procurando ler. A gente sempre assinou muitas revistas, todos os tipos de revistas, desde revistas de fofoca de TV até revistas do meio, tem uma revista sobre escola que eu gostava de ler. Acho que peguei o gosto pela educação por vê-la trabalhando e por ler muito essas revistas de depoimentos de profissionais nessas matérias. Jornal lá em casa não falta. A gente sempre está por dentro.
P/1 – Raphael, essa escola que você estudou até a quarta série em Cardoso… Conta pra mim um pouco como era a escola.
R – Colégio Estadual Balthazar Carneiro. [Uma] escola muito boa, foi uma infância maravilhosa lá dentro. Meu jardim de infância, minha tia a gente chamava de Bombom - tia mesmo, irmã do meu pai, ela foi a minha primeira professora. É a famosa tia Bombom de Cardoso Moreira, todo mundo conhece, todo mundo passou por ela.
Foi legal. Eu era um pouco bagunceiro; minha mãe chegava à escola, por exemplo, pra trabalhar e encontrava comigo dentro da secretaria: “Devo respeitar o professor.” Eu sempre fui um pouco hiperativo, aquele garoto agitado, mas é o que minha mãe falava: eu era bagunceiro, mas sabia respeitar. Desde o momento que o professor pedia, eu parava.
Eu provoquei um pequeno incêndio uma vez nas cadeiras velhas que tinha lá. Lembro que tinha uma professora, Solange, ela falava sobre o descobrimento do Brasil, que foram os portugueses e na hora, dentro de sala eu perguntei a ela: “Quem descobriu Portugal?” Eu tenho essa ideia até hoje. Essa professora pirou comigo, me colocou pra fora da sala, pois eu estava debochando da cara dela. Fiquei na secretaria uma semana e minha mãe todo dia chegava lá e estava o Raphael sentado na secretaria: “Devo respeitar o professor. Devo respeitar o professor.” Mas foi muito prazeroso, muito gostoso. O meu sonho era ter voltado a estudar em Cardoso por causa dos meus amigos, mas depois fui me adaptando a outra cidade.
P/1 – E essa escola em Cardoso era perto da sua casa? Como você ia?
R – Perto. Eu ia a pé ou de bicicleta, mas eu ia mais a pé. Era legal porque a gente ia junto com os amigos, ia junto com a galera fazendo bagunça na rua. Em frente [à escola] tinha uma praçinha - hoje é uma praça bonita. Uma praçinha velha onde a gente jogava bola, parava lá pra ficar jogando toião - toião era uma baleba desse tamanho assim, ó, ficava tampando pra quebrar a baleba do outro. Era legal.
P/2 – Baleba é bolinha de gude?
R – É, bolinha de gude.
P/2 - E qual a história desse incêndio que você falou?
R – Ah! Fui eu e um amigo meu, Máximo Guetti. Tinha um monte de cadeiras empilhadas, tinha chegado cadeiras novas na escola, aí pegaram as cadeiras velhas e colocaram em um canto. O Máximo Guetti falou: “Pô, vamos...” Não lembro, mais ou menos… Fomos com um rolo de papel e botamos fogo. Foi num canto, hoje em dia fizeram uma sala nesse local… E deixamos as cadeiras velhas pegando fogo. Aquela madeira fácil de pegar fogo, nossa...
Viramos as costas e tinha uma professora nossa que chamava Maria Helena. Eu lembro direitinho disso, quando entramos na sala começamos a sentir aquele cheiro de madeira queimada e o pessoal correndo, passaram as merendeiras com balde na mão jogando [água], aí veio a Inês, Inesinha, uma baixinha que trabalhava pra puxar a nossa orelha: “Foram os meninos. Foi o Raphael e o Máximo Guetti, eu os vi botando fogo aqui.”
Nossa, tomamos uma semana também. [Quando] acabava a aula tinha que ficar na secretaria pra [escrever]: “Devo respeitar a professora. Devo respeitar a professora.” Não tinha noção do perigo. A professora Maria Helena sofreu com a gente também; tinha a Maria Helena e tinha a Silvana, que foi minha última professora lá, mas eu era um bom aluno.
P/1 – (risos) Aprontava, mas...
R – Aprontava, mas sabia chegar ao final a trancos e barrancos. Passava tranquilo, dava pra levar. Ficava para recuperação em alguma coisinha, mas no final, na hora do desespero, sempre dava certo.
P/1 – E quando você mudou pra Italva e pra essa outra escola, como era lá?
R – Escola Municipal Glicério Salles - foi um choque, não conhecia ninguém. [Era] pequeno, lugar novo. Eu fui bem recebido porque meu pai era muito querido. “Ah, é filho do Luís Carlos dentista?” “Sou.” O pessoal começou a me tratar muito bem pelo conhecimento.
No princípio foi um choque porque na minha sala não tinha ninguém de Cardoso, então no início eu fiquei meio caladão. Mas eu tenho uma facilidade muito grande pra fazer amizade, sentar, conversar, brincar; foram passando semanas e fui me enturmando com a galera. Consequentemente, ter ido pra Italva foi um êxito; de Cardoso pra Italva, porque o ensino na época era um pouco mais qualificado, em relação à questão de greve e falta de profissional na época.
Foi muito bom estudar em Italva. Hoje eu chego lá e encontro meus amigos, a gente saí às vezes, porque é perto - dez minutinhos, doze quilômetros.
P/1 – Você ia pra Italva de transporte escolar?
R – Não, ia no ônibus de linha mesmo. Minha mãe fazia aquele copão de café com leite pra dar aquela sustância, tomava, ia pra rodoviária e [às] seis e quinze pegava o ônibus. Chegava lá entre seis e meia, e seis e quarenta, [às] sete horas entrava.
A merenda lá era maravilhosa, eu me lembro de que tinha sempre sobremesa. Tinha um cara que vendia salgadinho, o Ciro. Nossa, a gente, pô… Aquela amizade com esse Ciro. A turma arrancava cabelo e enfiava no salgadinho: “Pô Ciro, tem cabelo no salgado. Quero outro.” Aí ele dava outro salgado.
Eu fiz uma brincadeira com um amigo meu. Eu ficava bravo demais: toda vez que eu estava comendo [ele] falava “Dá um pedaço, Raphael.” Dava o pedaço. Eu ficava bravo com aquilo, todo mundo pedia um pedaço e eu quase não comia nada. Uma vez e enchi um enroladinho de ketchup, bem cheio mesmo, e tapei. Na hora que um amigo meu veio dar a mordida eu apertei, foi tudo nele; ele nunca mais me pediu. Fabiano Bambam, ele até hoje se lembra disso quando a gente se encontra. A camisa dele ficou toda manchada, ele falou que chegou em casa e ainda tomou uma chibatada da mãe - chibatada assim, deu uma palmada porque ele manchou a camisa de uniforme dele.
P/1 – E esse uniforme como era?
R – Uniforme branco, gola azul. (risos) Com a logomarca da Prefeitura aqui do lado: Escola Municipal Glicério Salles. Tá achando graça, né? (risos)
P/1 – (risos) E Raphael, além de fazer bagunça você estudava lá também, e como eram as aulas?
R – Estudava. As aulas [eram] maravilhosas. Eu tinha uma professora de matemática, a Ivone, ela era sinistra, a mulher era “show de bola”. Excelentes professores.
Eu me lembro de um professor que me espelho muito nele até hoje: Júlio César, um professor de geografia que chegava a sala com nenhum livro. Ele chegava e dava aquela aula de geografia maravilhosa, então até hoje eu falo que eu me espelho muito nele, pela dedicação e pelo carisma dele junto aos alunos.
Eu tinha uma professora também muito legal que era a Cárita, de português, a Irmani, Manigmara. Tem um monte de professor, eu me lembro de todos eles com o maior carinho. Lá de Italva tinha a tia Bete também, professora de matemática; como saí falando, “só filé mignon”, só gente boa.
P/1 – Qual era sua matéria preferida?
R – Minha matéria preferida, por incrível que pareça, era biologia. Eu também gostava de geografia por causa do professor. Eu não fazia muita questão com português, sempre foi meu carrasco quando eu estudava, mas minha preferência era biologia, sempre foi. Gostava de educação artística também, mas não era tanto, era uma aula por semana, então não era como a biologia, que sempre trazia algo de novo.
Eu sempre gostei dessa questão de mundo animal, mundo selvagem. Eu lembro uma vez que falei pro meu pai que queria ser biólogo. Ele quase me matou, quase morreu. (risos) “Você vai morrer de fome, menino!” Mas é aquela coisa de adolescente, eu era apaixonado pela National Geographic.
P/1 – E tinha alguma aula diferente que fosse fora da sala?
R – Na época, acho que pelo fato do sistema de ensino ser um pouco padronizado, não tinha aquela questão de fazer uma aula externa. Tinha a aula de educação física que era feita no pátio, jogava queimado, mais nada. Em Italva, de vez em quando eles pegavam a gente e levavam, por exemplo, na indústria de calcário e mármore da cidade, por curiosidade, para ver como era a produção; fora isso, pra conhecer a própria cultura de Italva. O legal de Italva, que eu sempre valorizei, era que duas vezes por semana cantavam o hino nacional e o hino da cidade. Até hoje cantam o hino da cidade lá, coisa que minha cidade não tem ainda. Aquela filinha bonitinha, uma mãozinha em cima da outra, no ombro do outro, cantando o hino nacional e depois o hino da cidade. Isso me marcou muito.
P/2 – Em Cardoso Moreira e em Italva você lembra-se de ter feito alguma viagem, de ter feito alguma...
R – Com a escola?
P/2 – É.
R – Em Italva fiz sim. Quando terminamos a oitava série fizemos uma viagem para Guarapari. Fomos pra lá em um ônibus lotado, no andar de cima ficavam as meninas e no andar de baixo os meninos. Foi aquela bagunça.
Ficamos quatro dias; no último dia ninguém dormiu, foi uma guerra de ovo, farinha, de resto de comida, deu até polícia. Uma professora nossa desistiu, Ana Lúcia. Ela juntou as malas, foi ao ponto de ônibus pegar ônibus pra Italva porque não estava aguentando a gente mais, uma bagunça mesmo.
Eu lembro que uma noite, um saudoso amigo nosso, que não tenho mais aqui hoje, o Caqui, ele faleceu. Nós chegamos primeiro que todo mundo e tinha um panelão de sopa. Jogamos Limpol e sabão em pó dentro da sopa e misturamos. (risos) A turma chegou da rua com fome; poxa, a gente era moleque, não tinha dinheiro pra ficar lanchando na rua, então era só pra fazer bagunça. Todo mundo comendo a sopa, chegava a babar, e eu e o Caqui lá na janela, pocando na risada.
Na época eu levei uma filmadora que era o máximo, aquela Panasonic enorme. Eu filmando aquilo e a turma comendo. No outro dia falamos que eles tinham comido sabão em pó com limpol. A polícia foi atrás da gente; ela subiu, viu a situação do apartamento e o cara riu. Eu lembro que o sargento ria, ele falou: “Gente, só não grita. Pode tacar ovo à vontade.” O cara não quis mais alugar a casa, cobrou uma taxa maior porque teve que pintar o lugar inteiro, de tanto ovo que quebramos dentro da casa, mas foi muito bom.
P/1 – E essa professora foi corajosa, né, de...
R – Foi. O Sérgio - poxa, esqueci-me de falar do Serjão, ele era um professor de geometria “filé”. O cara era amigão mesmo, vascaíno… Eu lembro que o Sérgião sempre ficava do nosso lado, ele atiçava pra fazer a bagunça e ao mesmo tempo se zangava, mas virava a cara pra rir. Teve uma noite que tentamos escalar a varanda pra ver as meninas dormindo de baby doll. Conseguimos, botamos… Me lembro de que o Marcos - eu era o maior - botei ele aqui, eu aguentei. O Cáqui, que era o pequenininho, ficou com ciúmes do Marcos, em tempo de um bater lá embaixo. [Eram] três andares praticamente. O Caqui subiu, abriu a porta, a galera subiu. Na primeira foto as meninas acordaram (risos) - aquelas máquinas antigas da Kodak, então acordaram, mas foi muito bom.
P/2 – E os seus pais ralhavam muito com você por causa de suas...
R – É. Graças a Deus, lá em casa, meu pai e minha mãe… Minha mãe dava uns tapinhas, mas nunca foram de bater. Sempre com uma boa conversa, mas quando minha mãe abre a boca, “sai de baixo”. Quando ela começa a falar eu prefiro tomar um tapa. O meu pai não é de falar muito, ele é bastante quieto, mas quando ele abre a boca fica muito bravo. Tem um bigodão, sério, barrigudo. Ele chega muito calmo, mas quando ele “sai do trilho” dá os gritos dele. Minha mãe também, ela não altera muito a voz, mas quando altera também o negócio está feio de cara. Faz muito tempo que não acontece isso, só naquela época.
P/1 – Naquela época você ficava de castigo, como era?
R – É, castigo que não podia ver televisão. Eu fui um cara muito apegado a brinquedo, gostava muito, fazia castelo de livros, esses “Comandos em ação”, então ficava trancado no quarto. Mesmo quando era grande eu ainda brincava. Castelo de Greyskull, He-man, Esqueleto, então o meu castigo era ficar trancado no quarto ou: “Não vai sair pra brincar na rua.” Eu ficava na janela escutando a galera jogando pique, só lata batendo no chão. Quando ouvia já era um tédio, eu ficava nervoso. Era mais castigo nesse tipo, tirar alguma coisa da gente pra não cometer mais o erro, mas não adiantava muito.
P/2 – E as paquerinhas, você lembra-se de algumas?
R – Lembro. Eu tinha uma paquera, Elvinha. Foi uma das primeiras paqueras que eu tive. Depois tive a Luana. Paquerinha só de ficar mesmo, eu não me lembro de muito, mas naquela infância não tinha tanto.
Eu era o mais bagunceiro, o “cabeça” da turma, por ser o mais fofinho, o maiorzinho, então a galera sempre me botava, não tinha essa questão de ligar... A gente tinha um clube do Comandos em Ação e não permitia meninas. Essa questão de paquerinha foi pouca, foi mais pra frente, mesmo.
P/2 – Nesse clubinho de Comandos em Ação, o que vocês faziam?
R – A gente brincava, tinha um grupo de amigos… Por exemplo, um tinha o avião, um companheiro meu tinha um tanque e juntava. Só brincavam os meninos. Quando ia brincar de pique a gente fazia arminha de madeira com cabo de vassoura e botava uma caixa nas costas pra falar que era uma mochila de arma e saía (risos), fazendo aqueles “G.I. Joe!” Ia para a rua, o pessoal ficava olhando a gente correr.
As meninas sempre queriam brincar; a gente não deixava, a gente brigava.
O nosso centro sempre foi na casa da minha avó - ela mora perto, uma casa grandona, varandão, um jardim enorme, era ali o nosso centro estratégico.
P/2 - Você se lembra de algum sonho de infância?
R – Sonho de infância? Ah! Eu tinha muitos sonhos, sonhos de viajar, ir pra lugares exóticos como a África, ver os bichos. Por gostar muito de National Geographic, eu me via visitando esses lugares, esses bichos, tendo esses bichos como de estimação. Os meus sonhos eram esses. Tinha também a questão da polícia, ser policial também. Alguma coisa do exército, filme de guerra. Hoje não, a realidade mudou, mas foi só isso.
P/1 – Você tinha falado antes, Raphael, que foi estudar em Campos [dos Goytacazes].
R – Em Campos.
P/1 – Porque foi isso?
R – É a questão de qualidade de estudo também. Fui estudar no Centro Educacional Nossa Senhora Auxiliadora, escola de freiras. (risos) Foi lá que eu ganhei um grande apelido que uso até hoje, “o pirata”.
Fui estudar na Auxiliadora, cheguei lá… Campos é uma cidade [que] pra quem vem de fora o pessoal é um pouco ressabiado, então quando cheguei lá me senti um pouco isolado, mais que em Italva, porque eu não conhecia ninguém mesmo, ninguém da minha família. Cheguei lá como o caipira, eu era da turma dos excluídos, sentava no fundão com a galera.
Essa escola é particular, onde a alta classe de Campos estudava; meu pai tinha condições de pagar pra mim, só que eu não me sentia como poderia, era questão de sobrenome. Tinha uns bolsistas que eram sempre os esportistas da escola, era uma galera mais humilde. Eu sentava sempre com eles: o Denete, um amigo meu que joga basquete, [tem] 2,03 de altura; o Ítalo, um goleiro de handebol; Tiagueiro, jogador de futebol de salão; Luis Flávio…
Comecei a treinar handebol com eles. Foi lá que eu comecei a mancar, esse probleminha meu na perna foi puxando, tinha um técnico e tem até hoje, o Hamilton, ele falava: “Pô, vamos correr, seu perna de pau, seu pirata.” Aquilo me matava. Teve uma hora que eu parei no meio da quadra. Eu me lembro de um jogo intercolegial, parei no meio da quadra, olhei na cara dele e saí. Poxa, ele me esculachando de pirata. Aquilo pegou: “pirata” por causa disso e pela área que eu exerço hoje em dia, mas depois a gente entra nesse assunto.
Lá em Campos fui muito bagunceiro também. Tinha uma piscina enorme lá. [Em] época de aniversário - a gente descobria que era aniversário, nossa turma, depois fui enturmando com a galera. Começaram a puxar mais o meu saco porque teve uma vez que chegou um envelope pra entregar ao meu pai. Era pra uma Feijoada da Folha da Manhã; Folha da Manhã era um jornal regional muito famoso, as irmãs foram lá e botaram em cima da minha mesa, era pra eu entregar.
O pessoal estava no intervalo. Quando chegamos do intervalo, o envelope lá parado; as meninas, todas patricinhas, chegaram assim: “Nossa, um convite da Folha da Manhã.” Aquele negócio, lá em Campos a gente pouco se importava com aquilo. Falaram assim: “Quem é Luís Carlos?” Eu falei: “Meu pai.” “Seu pai? Seu pai foi convidado?” “É, acho que foi.” Embaixo estava escrito que meu pai foi vice-prefeito de Cardoso. “Vice-prefeito?”
Ah, mudou o tratamento. Começaram a me tratar melhor, meninas que nunca falaram bom dia pra mim estavam me abraçando, beijando no outro dia. Mas eu continuei sendo o mesmo, eu esculachava. Tinha um amigo meu, o Ítalo, que falava assim “Poxa, Pirata, tu é maluco. A garota veio falar contigo e você nem...” Eu falei: “Nunca falou comigo, agora vem falar? Não estou nem aí, esculacho mesmo.”
Tinha outros amigos meus, nós falávamos que éramos os mosqueteiros: Pudim, que era o Diego, Pablo - “Parmalat”, Bruno - “Cereja” e eu, os quatro dentro da Auxiliadora. [Quando] chegava na hora do intervalo tinha uma molecada jogando bola. Esse Diego, o “Pudim” - maior que eu, tipo alemão, mesmo - pegava a molecada. O moleque trombava nele, ele jogava dentro da lixeira. De vez em quando a gente encontrava um dentro da lixeira.
Há pouco tempo eu tive uma experiência não muito boa. Um desses garotinhos, eu chamava de “Coelho”, pequenininho, dentucinho… Eu estava em Campos, na praia, curtindo, veio um cara por trás e me cutucou. Quando eu olhei, [eu disse] assim: “Pode passar.” O cara: “Pô Pirata, não está me reconhecendo?” Eu arregalei o olho e falei: “Pô, será que eu fiz alguma coisa, pisei no pé de alguém?” “Sou eu, rapaz, Coelho.” Nossa, o garotinho que a gente tampava dentro da lata de lixo estava maior do que eu! (risos)
Minha raiz em Campos foi forte também. Eu estudei com um baiano; ele era meio louco, meio revolucionário, adorava Che Guevara, brigava com as irmãs. Tinha uma irmã, Carmelita, que dava aula de filosofia, ela até ligou pra minha mãe e falou: “ ngela, esse menino precisa de um psicólogo.” (risos) Durante as aulas dela eu fazia umas caveiras, aquela coisa meio sinistra. Na aula de filosofia fazendo caveira. As irmãs ficavam aterrorizadas comigo.
Até hoje, quando eu passo lá de vez em quando, encontro a irmã: “Raphael, quanto tempo!” “Ê irmã, quer que eu volte? Vou arrumar uns dois filhos pra botar aí.” E ela: “Pelo amor de Deus, meu filho.” (risos) Fiquei feliz no dia que encontrei uma irmã, a irmã Aparecida. Ela veio e falou: “Raphael, a turma de vocês, a tua turma alegre como era, a Auxiliadora não teve mais.”
Há pouco tempo fizemos um encontro de dez anos. Foi em 97, ano passado, fizemos um churrasco. Não deu pra vir todo mundo porque infelizmente alguns faleceram, acidente e tal, mas 60% da turma foi. Até hoje tenho contato com a galera, com os quatro mosqueteiros a gente está conversando, trocando ideia, mas se observar cada um seguiu seu objetivo e está difícil encontrar...
Estava falando que estudei em escola de freira, elas sofreram um pouquinho comigo, mas foi muito cativante. Teve uma época que me sacanearam muito porque todo mês de maio é mês de Maria, Nossa Senhora, então sempre tem um evento grandioso na escola e eles sempre convidavam os maiores pra fazer o teatro. Eu lembro que falaram assim: “Pô, Raphael, vamos fazer parte do teatro pra gente matar a aula.” “Vamos, se é pra matar a aula é comigo mesmo.”
Fui fazer parte do elenco. No dia descobri que eu tinha que carregar um bailarino nas costas, na hora que eu vi aquele rapaz de quase dois metros de altura, mas com aquela calça apertadinha, com aquilo nas minhas costas eu falei: “Não, não vou, velho.” A irmã ficava assim: “Não, você tem que levar. Você tem que levar.” Eu botei aquele cara, fui correndo com ele; só sei que na outra semana eu queria chegar na Auxiliadora com uma máscara porque todo mundo: “Pô, olha lá, Pirata, você carregou um saco nas costas.” (risos) E eu, sempre com sangue quente, pegava uma pilha danada. São fatos assim.
Eu lembro também quando o Zico esteve na Olimpíada Estudantil. Eu era do time do segundo ano de handebol, então eu estava com o uniforme apertado e falei: “Vou ao banheiro.” O Zico não tinha entrado ainda, ele ia entrar com a tocha. Quando eu fui entrar, dei uma trombada no cara e era o Zico. Coitado do homem, primeira vez que ele vai a Campos eu dou uma trombada com ele e quase o joguei no chão. Apertei a mão dele e “Desculpa, desculpa.” Eu até brinquei: “Sou vascaíno, mas gosto muito do senhor.” (risos) Na hora que ele começou a falar até comentou que foi bem recepcionado, a primeira trombada com um vascaíno em Campos. Foi muito engraçado, hilário.
Teve uma vez que eu estava com um sono danado e lá tem um ginásio enorme, eu ficava marcando. Teve um dia que eu parti pro ginásio, aproveitei que estava aberto, fui lá dentro, deitei e dormi. O Hamilton fechou o ginásio e só ia voltar [às] três horas da tarde - isso era [às] onze e meia, eu fiquei desesperado igual aqueles gorilas na grade, e as irmãs ficavam assim: “Já que entrou pra dormir vai esperar o Hamilton chegar.” “É, irmã? A senhora não vai pro céu, hein.”
Cada situação! Tinha um barzinho que chamava “dois quatro quatro” - era o Pias Bar, só que era o nosso código: “Ó, vamos pro dois quatro quatro, galera. Vamos embora.” Saíamos, todo mundo uniformizado: “Centro Educacional Nossa Senhora Auxiliadora”, bebendo... De repente parou aquela van da Auxiliadora, só via a galera arrancando a blusa no desespero. As irmãs descem: “É esse o famoso dois quatro quatro?” Aí começou. Nós saíamos cedo pra tomar nossa famosa “loira gelada”, muito bom. Claro que estudávamos - tomávamos umas “bombas”, mas estudávamos. Cheguei ao objetivo lá.
P/2 – Como você ia pra lá?
R – Ônibus de linha, às cinco horas da manhã - [às] cinco não, cinco e meia saía de Cardoso. Chegava [às] seis e meia porque o ônibus é parador, se tivesse um fantasma no meio da estrada fazendo sinal ele parava. (risos)
Esse ônibus que eu ia carregava caixote de tomate, caixote disso, carregava galinha, porque tinha um Ceasa [Centro Estadual de Abastecimento S/A] lá em Campos. Carregava isopor de peixe, motor de barco, tudo que você imaginar, era o ônibus da alegria. De vez em quando vinha um bolo de jornal, jornal de esporte, um jornal rosinha na época; pegava um daqueles e enfiava na mochila. Jornal O Globo, sempre pegava um emprestado, tinha compromisso com nada.
P/2 – E como foi sua formatura em Campos?
R – Ah! Em Campos eu perdi um ano, então minha mãe me mandou voltar pra Italva. Perdi o segundo ano, ela se zangou, pois eu não estava querendo compromisso com nada. Mas não perdemos o elo, a galera me ligava, e toda festa que tinha estava o Raphael em Campos. Só fiquei triste uma vez que eles foram pra Porto Seguro, como castigo minha mãe [disse]: “Você não vai pra Porto Seguro com eles.” Isso me incomoda até hoje porque de vez em quando eu vou à casa de um amigo e tem uma foto lá. Acho que foi a única festa que eu não fui, o único evento que eu não fui com eles, mas aí: “Pô, minha mãe fica pagando coisa cara.” Eu não tinha juízo mesmo, perdi por bagunça, então voltei a estudar em Italva, no João Guimarães.
P/2 – Outra escola?
R – Outra escola. Fiz faculdade em Itaperuna também, eu fui pulando de cidade em cidade.
P/2 - E essa outra escola, foi difícil entrar?
R – Na João Guimarães, não. Pela base que eu já tinha na Auxiliadora eu me dei muito bem. Saí de Campos como se eu fosse o líder da turma, tudo vinha comigo; cheguei a Italva e já tinha umas amizades, conhecia o pessoal por ter estudado no ensino fundamental.
Na minha turma tinha eu e o Luciano, os únicos homens. Rsse Luciano, eu tinha uma birra com ele por ter sido paquera da minha irmã. Eu queria dar uns cascudos nele uma vez, e hoje é “o cara”, um dos melhores amigos que eu tenho. Ele mora aqui no Rio, é da Aeronáutica. É um cara que eu tenho um carinho danado, sempre me liga, deixa mensagem pra mim na internet. Na época éramos os únicos homens, vivia junto e tudo éramos nós dois. Acho que tinha umas trinta meninas na turma e só ele e eu de homens, então a gente era sempre os “cabeças”, tudo batia em cima de Raphael ou Luciano. Fiquei triste porque estudamos juntos, fizemos o segundo ano e na metade do terceiro ano ele teve que vir embora pro Rio, mas nunca cortamos o elo, essa amizade. Antes éramos inimigos, hoje verdadeiros amigos.
P/2 – Conta mais sobre Italva, aí foi passando o segundo ano...
R – No início eu fiquei meio triste. Saí de Campos, perdi aquela oportunidade, meus pais tristes com a situação. Fui estudar em Italva, eu chegava e olhava pra cara de todo mundo e sentia uma saudade, tinha dia que eu chorava sozinho na minha cama, deitava e chorava de saudade porque foi uma fase difícil pra mim. Foi difícil porque eu procurei, não foi um acontecido que eles tiraram de mim; eu mesmo não me perdoo, até hoje eu tenho essa coisa dentro de mim, porque lá em Campos eu deixei muitos amigos, professores.
Tem uma professora que ainda pergunto por ela, que é a Maria Quitéria, essa professora sempre me valorizou. O que me magoa… Não é mágoa, mas aquilo que quando toca na ferida dói até hoje, foi essa ida pra Italva, mas é assim mesmo. O tempo foi me mostrando que eu poderia gostar de lá, gostei. Tinha umas amigas da minha sala muito loucas; tinha uma menina, não vou falar o nome dela, mas teve um dia que a professora não queria deixar sair pra fazer xixi, ela foi por detrás da porta com uma sacolinha e fez xixi na sacolinha, uns loucos assim, entendeu? Tinha uma inteligentíssima, vivia batendo boca com a gente, mas foi legal, foram muito bons os dois anos que eu fiquei em Italva também.
P/2 – E você se formou?
R – Formei. Fiz o ensino médio, terminamos. Fizemos a formatura, uma festa, aquela questão de segundo grau, fizemos uma festinha entre as meninas, um happy hour entre nós mesmos e depois teve uma cerimônia, entrega de diploma e aquela coisa mais simbólica. Então fui fazer vestibular pra… Eu gostava de informática, gostava de mexer com computador, pode entrar nessa história?
Lá em frente da minha casa existia um SEBRAE [Serviço Nacional de Apoio às Micro e Pequenas Empresas], então tinha uns computadores velhos, preto e branco, e eu me amarrava naquilo. Um companheiro meu me botava na frente, o André, amigão meu de Cardoso. O cara é crânio em informática, ele me colocava em frente àqueles computadores pra ver os ‘bannerzinhos’ da Disney. Eu me amarrava, tinha uns joguinhos que botava bolinha e quicava, então eu comecei a adquirir certo gosto pelo equipamento, pela ferramenta informática.
Fui fazer vestibular. Meu pai na época ficou meio triste. Por ser dentista, o filho tem que acompanhar aquela cultura, mas minha mãe sempre falou: “Raphael, faz o que você quiser, o que você gosta de verdade.” Fiz vestibular pra UFF [Universidade Federal Fluminense], passei na primeira fase. Quando eu fui fazer a segunda fase… Num final de semana a gente foi pra Varre-Sai, é um município muito bom. Eu estava num hotel-fazenda andando a cavalo. Sou meio metido a peão; eu dei a famosa rosetada no cavalo, ele me deu uma “polpada” e me jogou no chão, em seguida me deu um coice no fêmur e trincou, mas eu continuei andando, fui embora - [com o] corpo quente, não senti na hora. No outro dia ficou tudo inchado, até hoje eu tenho um tipo de afundada aqui por causa disso, aí eu perdi a prova da segunda etapa da UFF.
Então fiz outro vestibular, na faculdade de Itaperuna. Passei em Ciências da Computação, mas na faculdade foi coisa séria. Entrei, não fiquei de dependência em nada, eu sempre procurava ser o “cabeça” da turma, não ficar dependendo de prova final.
Foram quatro anos: grandes amigos, grandes professores, grandes experiências, altas festas, muitas festas. Lá não tive praticamente decepção nenhuma, foi muito prazeroso mesmo. Faculdade é faculdade, né? Não tem o que falar.
Fiz minha pós lá também, em Itaperuna, terminei há pouco tempo.
P/1 – Você foi morar lá em Itaperuna?
R – Não, é pertinho. Tinha um ônibus escolar, o famoso “cata-corno”, chovia mais dentro do ônibus do que fora dele. (risos) Ônibus velho - claro, de graça até injeção na testa. Tinha um ônibus que carregava aquela galera, lotado de aluno, e eu ia pra faculdade à noite. Fazia faculdade à noite porque eu trabalhava de dia já. Saía [às] cinco horas de Cardoso, chegava às seis horas em Itaperuna, ia e voltava. Até hoje eu faço isso, trabalho lá também, mas chegava em Cardoso às onze e meia, meia noite, todo dia. Mas era prazerosa a bagunça. A galera: “Ah, é cansativo”, mas a conversa dentro do ônibus, a brincadeira… Era legal em época de chuva porque você abria o guarda-chuva dentro do ônibus pra baixo - não é pra cima, porque batia água por baixo e jogava na cara da galera.
P/2 – E na faculdade? Conta alguma história pra nós.
R – Vamos lá. Na faculdade eles descobriram que meu apelido era pirata por causa do meu… Pude desenhar, peguei um fichário, fiz uma caveira enorme e botei “pirata”. “Pô, porque pirata?” “É meu apelido.” Pirata vai, Pirata vem, no dia do trote da nossa turma entrou um cara chamado Audama, cheio de sotaque carioca. Olhou pra minha cara: “Meu irmão, vai ser você.” E eu quietinho, de cabeça baixa, com um medo danado. “Eles vão acabar comigo.” Eu sempre chamei atenção por causa do meu tamanho. Quando eu levantei: “Brow, relaxa, faz nada com a gente não.” Eu falei: “Não, não vou fazer nada. O que vocês vão fazer?” “Não, relaxa.”
O primeiro dia foi ovo, deram um banho de ovo na gente. No segundo dia brincamos de tartaruga ninja, abrimos um bueiro de Itaperuna e botaram a cabeça da gente lá dentro pra chamar as tartarugas ninjas. No outro dia foi raspar a cabeça, fizeram o moicano em mim. Na época não era moda, hoje é, podiam ter deixado.
Foi passando o período, a galera chegou pra mim: “Pô, Pirata, quer pegar a frente dessa parada de trote não?” “Vamos embora.” Arrumei um taco de beisebol, uma máquina de pilha. Tinha o João Batista, um professor da faculdade. A primeira aula dele sempre era pros calouros, ele botava o maior terror. Nesse dia o João Batista me chamou, peguei a máquina e passei no vidro assim da sala, “zuuummm”, e tinha aquele taco de beisebol, ficava do lado. A galera ficava, tinha um que puxou um canivetezinho e ficava assim pra mim, eu falei: “Relaxa, meu irmão, eu corto sua mão e corto esse seu canivete fora.” Botava o maior terror.
Um dia peguei o extintor de incêndio e botei por baixo do vidro, “shiii”, foi um desespero. Eu também não era flor que se cheira na faculdade, era sempre o “cabeça” dos trotes. “Chama o Pirata.” No final do trote arrancava o tênis, um tênis ficava com a gente. “Olha, amanhã você traz dez ‘contos’ pra cerveja, hein?” Teve um dia que foi a maior furada. O cara era policial federal, mas arranquei o tênis dele na boa. Fui com a máquina na cabeça dele e ele “vupt”, arrancou o distintivo dele, eu falei: “Pô meu irmão, relaxa, não vou fazer nada com você.” E ele: “Eu só estou mostrando porque eu não posso raspar a cabeça, se eu raspar eu posso até perder.”, mas foi lá e pagou dez reais de cerveja pra gente.
Na época, eu sempre fui o “cabeça”. Até no meu depoimento no Orkut o André colocou: “O Pirata, o pesadelo de todas as turmas de calouros de Ciências da Computação.” Eu era o cara que sempre chegava na sala e falava: “Galera, o negócio é o seguinte, é um trote que vocês vão tomar e durante os quatro anos vocês vão dar sete trotes, então relaxem e vamos participar.”
A marrava cordinha aqui do lado na calça, onde amarra o cinto, e a galera: “Ah, mas não tem..” “Passa por dentro da cueca.” As meninas passavam por dentro da calcinha. Tinha a brincadeira do chiclete: pegava um Trident, cortava ele pela metade, fazia trocar com a boquinha. Língua de boi então, pegava aquelas línguas de boi e “Dá uma mordidinha aí.” Vinha o pessoal todo em fila no centro de Itaperuna: “Vai pro sinal agora pedir um real em moeda de dez centavos cada um. Só pode chegar aqui com moeda de dez centavos!”
Tem uma menina lá em Itaperuna que eu encontro com ela até hoje, a Tatiane. Ela fala: “Pirata, você foi meu pesadelo durante seis meses.” Hoje é amigona minha. Foi uma época que eu estava… Claro, falei que estudei bastante, mas na época de trote...
P/2 – O que é esse negócio de língua de boi? Vocês levavam a língua inteira?
R – Comprava no açougue a língua de boi, sem limpar, sem nada, só passava uma água. A língua de boi é áspera, a turma tinha que dar uma mordidinha, a gente dava aquela balançada e “Morde, morde aí.”
E o ovo, que era maneiro. Tiro ao alvo: fazia aquele paredão de fuzilamento, chegava lá com várias caixas de ovos. Tinha um cara dono do bar - o Roda Viva, nem existe mais esse bar -, o Tatão; ele patrocinava as caixas de ovos pra gente. “Pirata, dez caixas de ovos aqui pra vocês.” Eu chegava com aquele monte de caixas de ovos, então a gente dava só uma batidinha na cabeça deles porque se tacar ele inteiro machuca, dava aquela trincada e mandava. Era delicioso ver aquela galera… Eu passei também, porque eles não poderiam passar?
Sempre aparece um revoltado. Tem um que trabalha comigo hoje, o Gláucio, ele foi um dos que: “Essa falha aqui, ó, meu cabelo não voltou como era antes.” Ele tem essa entrada aqui, desde a época que raspamos não voltou mais (risos). Eu falo: “Cara, o problema é teu, não estou nem aí.” Nós somos muito amigos hoje, mas ele falou que o cabelo dele não é o mesmo.
P/2 – O que você gostou de fazer no curso de informática, tirando a brincadeira, os amigos?
R – Ah! O que eu curto de informática é cada dia algo novo. Desde a história da informática até a linguagem, a montagem. O início, o meio e o fim, você sempre vê o resultado no final. A cada dia tinham professores que te incentivavam a estar sempre montando algo. A linguagem de programação, o seu raciocínio tem que ser rápido, algo muito lógico, exato. Não pode ter aquela história de mais ou menos, é sim ou não.
A informática é muito exata e também instiga a sua criatividade. Eu sempre gostei, tenho uma certa criatividade, então chegavam os desafios. Eu gosto de desafios. Tinha professores que chegavam em sala e: “Tem isso no livro tal, eu quero que vocês montem...” Um professor meu chegou e falou “Quero que vocês criem um show do milhão na linguagem C.” Eu falei: “Meu Deus, C não, Pascal. Meu Deus, show do milhão. Como vou fazer o show do milhão do Silvio Santos em um programinha bobo desse?” Entramos, eu e mais dois amigos, eu, o Vítor e o Anderson. O Anderson tinha uma experiência em programação, o Vítor em estrutura e eu em design, então [nos] unimos.
Chegamos ao final; data show na época era aquele “uau”, chegamos com o data show lá na faculdade, botamos no telão e a galera pirou com a gente. Fizemos o show do milhão, botamos um milhão gigante, no final eu fiz uns efeitos no flash, porque quando você ganhar caem os milhos, então foi muito interessante, a gente uniu ferramentas um do outro, entende? Eu odiava matemática, lógica, cálculo, quando eu entrei na faculdade de informática. Eu falo isso pros meus alunos até hoje: “Galera, quando eu entrei na faculdade de informática eu achei que ia sentar na frente de um computador e ficar ali quatro anos só mexendo nele.” Tinha um laboratório enorme, cheguei lá tinha um tal de Eugênio mexendo no laboratório. “Qual é calouro, vai pra sala. Calouro só desce aqui depois de um ano.” Ficou um ano e meio [em] cálculo, lógica e por aí foi. Hoje sou apaixonado também por matemática por causa disso, que é matemática pura. Eu tinha um professor, Cláudio Pillar, o cara só sabia falar das vacas de leite dele. Aula que era bom, nada, e tinha que se virar pra aprender.
P/2 – Você foi chegando mais próximo do design então, na sua atuação profissional?
R – Foi. Eu me aproximei mais do design. Gosto da programação, só que hoje até os meus amigos que trabalham com programação me ligam: “Raphael, estou mandando um layout pra você analisar pra mim.” Eu analiso e falo “na lata”, não tem esse negócio de [dizer]: “Ah, tá legal. Está bom.”
Comecei a trabalhar mais nessa área de design, desenvolvendo com marketing, propaganda. Tive uma experiência longa na Companhia do Rodeio, onde eu iniciei essa carreira de design. Antes eu fazia uma coisa amadora, dentro de casa, só pros amigos, igual cartão de Natal - fiz uma caveira com o chapeuzinho do Papai Noel, as bordas dos ossinhos cheio de lacinhos de Natal e mandava pros meus amigos, por e-mail ou por cartão mesmo, imprimia e mandava, então a galera se amarrava nisso. Eu mesmo fiz uma agenda pra mim. Não compro agenda, faço agenda todo ano pra mim. Tenho uma agenda grandona que tem uma capa. Eu não gosto, os cadernos eu mesmo monto os meus. Imprimo, faço, eu gosto do meu jeitinho.
P/2 – Essa Companhia de Rodeio em que você trabalhou, você entrou antes de se formar?
R – Foi depois que me formei, no mesmo ano que terminei eu entrei.
P/2 – Você terminou e já entrou?
R – Entrei. Eu trabalhava na área de saúde, na Sucam [Superintendências de Campanhas de Saúde Pública], era agente de saúde. Andava na rua com aquela bolsona amarela, de casa em casa, com fichinhas atrás da porta, no interior de Cardoso. Foi uma época muito boa porque ali eu levei um choque, casas que não tinham quase nada pra comer, não tinham banheiro, aquela coisa que eu não imaginava que teria na minha cidade ou nos distritos. Achava que Cardoso era o paraíso.
Eu trabalhei três anos na Sucam [Superintendência de Campanhas de Saúde Pública], foi uma época que me deu muita experiência de vida, histórias. Na época também eu fazia parte de um grupo, [o Clube] de Castores, uma entidade que ajuda pessoas carentes junto ao Lions Club, então isso fez com que eu vivenciasse uma realidade bruta que eu não conhecia em Cardoso. Depois eu fui pro Rodeio.
P/2 – O que é Sucam, pra quem não sabe?
R – Sucam é… PEA, Programa de Erradicação do Aedes aegypti, antiga Sucam, que terminou. Eu não lembro o que significa, era do Governo Federal. Eu era do projeto PEA, do combate à dengue, quando começaram a surgir esses focos em grandes aglomerações.
P/1 – E esse trabalho na Sucam foi seu primeiro emprego?
R – Não, trabalhava no açougue do meu avô limpando carne, enchendo linguiça, varrendo chão. Meu avô me botava dentro do carro dele, me levava ao sítio e me ensinava a pagar. “Faz a conta da diária do peão.” Eu fazia, ajudava. Ele tinha um açougue em Cardoso, tem o ponto até hoje. A tradição da minha família sempre foi açougue. Meu avô falava: “Desossa isso aqui, limpa isso aqui”, então eu sempre trabalhei em açougue, [em] armazém carregando compra. Teve uma época que eu trabalhei com meu tio no Ceasa; saía de Cardoso de madrugada pra Niterói, no caminhão carregado de tomate, então eu já fiz um pouco de tudo.
P/2 – Ganhava seu dinheirinho?
R – Ganhava. Não era aquela coisa certa, mas era legal porque você não precisava chegar perto do seu pai e da sua mãe e falar: “Pô, me arruma dez ‘conto’ aí.” Você já tinha. A minha mãe, de vez em quando - mãe é mãe -, botava um dinheiro na minha carteira, mas eu sempre procurei ter essa autonomia. Eu sou o tipo de pessoa que, até uns colegas de trabalho falam, não consegue parar no trabalho durante muito tempo, procuro sempre alçar algo maior ou que possa me trazer certo prazer.
Meu pai até fica meio zangado comigo, mas não visiono muito a questão financeira. Às vezes eu visiono algo que eu possa fazer pra dar prazer. Claro, dinheiro é essencial, mas algo que me dê prazer, entendeu?
Se você falar: “Você descarta alguma coisa?” Não descarto. Tudo pra mim foi… Eu trabalhava no Ceasa. Acho o máximo, botava aquele colete. “Quanto é o metro da pedra?” Botava ali o caixote. Tocava uma sirene cinco horas da manhã. Aquele tipo de contato me ajudou muito. Na Sucam também, [o projeto] do aedes aegypti - chegar a casa, bater, pessoas te atenderem, ofereceriam um bolinho, um cafezinho. Na época fui ficando até mais gordinho, a galera sempre oferecia algo a mais pra gente.
P/1 – E quando você começou a trabalhar dentro da sua área de formação?
R – Na época da Sucam eles me transferiram pra Secretaria de Saúde. Eu já tinha certa experiência com máquina pra trabalhar no programa. Comecei a trabalhar ali pra exercer a parte de programação, mas nunca exerci, só análise de sistemas mesmo. Fiz especialização nessa área, análise estrutural. Na parte de design eu comecei na Companhia de Rodeio: montar layout, planta, propaganda de mídia, cartaz, outdoor e por aí foi.
P/2 - Você viajou junto com esse pessoal?
R – Praticamente o Brasil todo, viajamos bastante.
P/2 – Conte como aconteceu, você foi contratado e aí?
R – Ele é de Cardoso. Pode falar o nome dele? É Companhia de Rodeio Tom Nascimento. Ela é muito famosa, a segunda maior companhia de rodeio móvel hoje no país, e a sede é em Cardoso. Na época estava tendo aquela novela Coração de Estudante, da Globo, ela sempre trouxe Toni pra cá. Foi uma época que ele estava precisando de alguém pra editar na parte de design e receber os roteiros. Eu lembro que ficava louco de madrugada, recebendo os roteiros em Cardoso pra ele preparar o material e trazer aqui pro Rio - pro Rio não, foi em Xerém, onde tem uma vaquejada e lá que faziam as externas, então nessa época comecei a me envolver com ele, ele é de Cardoso e conhece a minha família. Tinha um filho dele mais velho, que falou: “Pô, pai, o Raphael mexe muito bem nisso e você está precisando.”
Eu tenho um grande amigo, eu digo que ele é meu mestre, produtor também - Francisco Militão, devo muito a ele. Ele é produtor também de vídeo, o cara. Eu digo que ele é um monstro, no sentido que me ajudou muito. Era um cara que sempre me direcionava no que tinha que mostrar pra não fazer uma coisa tão “papagaiada”. Com o rodeio, uma vez ele produziu um teatro de arena, com mais de 700 pessoas, um rodeio gospel que teve em Búzios. Ele fez aquela abertura do mar de Moisés, e fez as pessoas fazerem o movimento do mar, foi maravilhoso! O cara transformou o rodeio em um palco de teatro.
Na época, o nosso rodeio tinha umas atrações com padrões de rodeio, só que ele acrescentou a questão do teatro. Tem um cavalo dançarino que já foi até na televisão, ele falou: “Olha, não entendo nada de cavalo, mas vamos tentar fazer isso, isso e isso.” Hoje o rodeio mudou com a nossa criatividade, com a questão teatral dele. O rodeio não é só animal pulando, já é um espetáculo, isso o Toni trouxe pra gente.
Até hoje o Toni liga pra mim e fala “Poxa, Reiph” - ele me chama de Reiph - “Reiph, cadê você? Estou precisando de você, cara.” Eu o enrolo porque eu não tenho tempo pra mais nada. Ele sempre me liga pra sairmos, pra ir à fazenda ver os animais, que eu curto também. Até montei algumas vezes, de tanto ver a galera montar em touro um dia eu experimentei, foi uma adrenalina maravilhosa.
P/2 – O que você mais gosta no rodeio nesse tempo em que trabalhou?
R – O que eu mais gosto é a comunicação do público, as culturas, e a montaria em touro - deliciosa, uma adrenalina fora do comum. Você encarar um animal de quase uma tonelada e em cima dele ter que domá-lo durante oito segundos. Você, com 60, 70, 80 quilos ter que dominar um animal daqueles com sua mão amarrada… Oito segundos é uma eternidade. Eu tive essa experiência por quatro segundos, mas parecia que o tempo não passava. É um espetáculo que você não sabe como vai ser o fim.
P/1 – Depois que trabalhou nessa Companhia de Rodeio você foi pra onde?
R – Aí veio o projeto junto com o CEFET [Centro Federal de Educação Tecnológica]. A gente trouxe uma unidade móvel do CEFET pra Cardoso Moreira. Disseram: “Raphael, só vamos poder continuar com essa unidade dentro de Cardoso durante quatro meses.” E a procura foi grande. Cardoso não tinha essa ação de informática, era uma coisa muito de casa, pela questão financeira da região também, equipamento caro - hoje é mais acessível, mas na época era caro. O pessoal não tinha condições de ter um curso, todo curso era pago, então foi uma procura gigantesca; ficamos três meses com quase 120 alunos dentro de um carrinho, com dez computadores.
Estava já chegando a data pra terminar e ficamos: “O que vamos fazer? Tem que ‘mexer os pauzinhos’.” Foi quando descobrimos um laboratório da Oi em Cardoso Moreira. Esse laboratório estava parado na época; minha mãe é secretária de educação do município e falou “Raphael, vê o que vocês podem fazer.” Nós fomos à escola e encontramos uma papelada da Oi. Eu liguei pra Oi - na época era Telemar ainda, Telemar cartão digital, algo do tipo. Eles ligaram e disseram: “Consta ainda que o laboratório está [funcionando], mas não sei há quanto tempo não mandam um relatório.” Eu falei: “Poxa, é porque estou pegando o laboratório aqui.” Fui explicando.
Um outro colega meu, o Jean, ele é técnico em informática. Eu não tenho muito conhecimento na parte de hardware, ele tem. Ele falou: “Raphael, vamos botar essa laboratório de pé.” Começamos a montar uma máquina, uns frankensteins, pega uma peça aqui, outra ali e montamos um laboratório com sete máquinas. Começamos a incorporar o projeto Amigo Computador, junto ao CEFET e à Oi.
P/2 – Raphael, antes de contar mais sobre todos e a criação do laboratório, eu queria que você explicasse pra quem não conhece o que é essa unidade móvel, como foi o projeto?
R – O CEFET tem vários cursos de extensão. Eles sempre oferecem aos municípios os cursos que… Cardoso Moreira é muito perto de Macaé, na região petrolífera. Cardoso recebe os royalties [do petróleo], por isso a mão-de-obra é um pouco defasada em relação à estrutura educacional, tem muita gente que trabalha com serviços gerais.
Com isso o CEFET viu que Cardoso precisava e perguntou qual era necessidade. Tinha uns cursos particulares de informática que o diploma era aqueles que imprimiam numa impressora comum e entregava à pessoa, não é válido em lugar nenhum. Nisso, o CEFET ofereceu pra Secretaria de Educação uma parceria. Foi quando a minha mãe disse: “Raphael, você assume isso?” Eu falei “Assumo, vou assumir.” Foi quando o Jean foi convidado também. Trouxemos esse carro Iveco, adaptado com dez computadores, bonitinho, limpinho, com ar condicionado, quadro com caneta. Tinha as apostilas que a gente não dava, mas emprestava.
Existia um carinho danado pelo carro. Eu lembro quando o carro chegou a Cardoso, a Iveco. Cardoso tem um grande defeito da natureza, que é muita enchente na região: em época de verão, dá um metro e meio, dois metros de água na rua. Na época, a Iveco chegou, a instalamos ela na praça pública. Nessa praça sempre vem água, o que aconteceu? O rio encheu, transbordou e eu fiquei quase uma madrugada inteira parado com o carro tomando conta da Iveco, com medo da enchente pegar, porque os fios já estavam ligados na rede elétrica. Eu falei: “Meu Deus, o que eu vou fazer?” Tem um companheiro meu que na época trabalhava na Empresa de Energia e ele falou: “Raphael, qualquer coisa tu pega um pedaço de madeira e bate no cabo, na tomada, porque se você puxar você pode tomar um choque e batendo com a madeira você tira o cabo.” Eu falei: “Beleza, mas e se o cabo ficar balançando?” “Não, você pega uma sacola e amarra. Você só pode tomar choque na hora de encaixar.” Então eu e o Jean tivemos muito carinho com esse carro, a gente limpava igual dona de casa, botava pano de chão pra galera entrar, a gente comprava o produto, limpava o computador, deixava tudo cheirosinho, espirrava aquela essência de eucalipto dentro do carro. Eu botava algumas mensagens na parede pros alunos, muitos não liam, mas eu ficava feliz porque dez alunos estavam ali, se um estava lendo eu ficava feliz da vida, pelo menos alguém está buscando. Eu fui adquirindo aquele amor, vendo que o pessoal queria, com vontade de aprender e a gente com vontade de ensinar.
P/2 – E vocês decidiram expandir um pouco mais com o laboratório da escola porque a demanda foi muito grande?
R – Com o laboratório fixo, a demanda foi muito grande. A cidade de Cardoso Moreira hoje tem doze mil habitantes; [faz] três anos que estamos lá e atendemos 1.200 pessoas.
P/1 – E qual é o público?
R – Nós damos mais critério ao aluno do município, com isso o aluno traz o irmão, o pai. Eu já tive alunos de 55, 40, 45, alunos que não falavam, senhoras de sessenta anos, crianças de treze, quatorze anos. É uma mistura, então isso foi bom pra ir se adaptando ao meio. E a gente não tinha aquela turma: “Essa turma é só de quinze anos, essa turma é só de vinte anos.” Fazia aquela mistura que ficava até legal porque o que tinha mais idade e mais experiência se sentia bem. Eu me lembro que uma senhora me falou assim: “Raphael, eu chego aqui cheio de problemas, quando eu vejo essas crianças brincando, rindo, eu saio daqui leve.” Então eu ficava feliz com aquilo, até hoje fico, com algumas histórias que a gente escuta lá.
P/2 - Vocês dão aula de que, lá?
R – Informática básica, mas a nossa informática é um pouco diversificada. Foi o que trouxe certo dinamismo, diferencial, porque a gente trabalha com o dia a dia, a gente não pega a apostila e “Vai fazer isso.” Pegamos temas atuais, ensinando eles a criar documentos. Por exemplo: estamos na época de eleições, então ensinamos a buscar textos, material pra montar trabalhos.
A gente sempre dá exercícios em relação ao que está acontecendo no mundo atual, a gente sempre procura fazer esse trabalho com eles. Explicamos: “Gente, hoje nós vivemos num mundo chamado… Temos a classe, não tem a cadeia alimentar? Nós fazemos parte dessa cadeia alimentar, os mais fracos são devorados pelos mais fortes. Então aqui dentro eu quero transformar vocês nos mais fortes.”
Às vezes eu sou um pouco mais exigente com eles. Já tenho esse tom a mais na voz, o pessoal até se assusta comigo de início, mas eu sempre falo que é da minha natureza. Não que eu seja bravo, sou exigente.
Tem um aluno que falou: “Raphael, impressionante, você enxerga uma vírgula errada de longe.” Eu enxergo. Teve uma aluna que me abraçou e falou assim: “Obrigada.” Eu falei: “Por que, menina?” e a mãe dela veio me agradecer depois. Ela fez um concurso e gabaritou a prova de informática. Ela falava: “Raphael, lembrava direitinho você no meu ouvido falando.” Essa aluna era sempre aquela que ficava tremendo, e eu falava: “Não trema, não tenha medo disso aqui, é só um equipamento.” “Não, eu tenho medo de você.” “Medo de mim? Eu não estou te fazendo nada, estou te ensinando.”
Lá em Cardoso esse choque cultural atrapalhou um pouco. Hoje tem alguns que me odeiam e outros que me amam, porque alguns não se adaptaram a esse meio, mas outros se adaptaram porque já tiveram uma experiência fora de Cardoso, eu trouxe certa experiência de fora. Tenho experiências dos professores da faculdade, da época que eu estudava no segundo grau, experiência da minha própria mãe, que é uma excelente professora de formação de professores em Cardoso. Ela não está exercendo agora por ser secretária. Teve uma menina que falou: “Raphael, você é idêntico à tua mãe.” Eu não entrego nada pronto, nós criamos. Eu sempre dou algo pra eles trazerem pra mim, não levo nada pra eles, então eu tento quebrar isso, porque em cidades do interior as pessoas recebem tudo na mão e pronto, não tem esse costume de correr atrás do objetivo. Lá é diferente, no curso a gente bota pra correr atrás do objetivo.
P/1 – Você estava falando com tanta emoção da sua prática na educação. Você já tinha pensado alguma vez na sua vida em trabalhar como professor?
R – Em momento algum. Eu trabalho com design, surgiu essa oportunidade e aquilo foi crescendo, aquela vontade de mais e mais; por essa facilidade de falar em público comecei a cativar e chamar a atenção. Você sempre escutava coisas boas e coisas ruins, então isso foi me formando, isso me fez com que [eu pensasse]: “Será que é isso mesmo que eu quero?”
Eu tenho vários projetos, estou em casa sozinho e começo a elaborar. Hoje eu também sou docente no SENAC, trabalho no SENAC. Do nada, o pessoal percebeu que eu tenho esse dom. Me convidaram, fiz uma prova e passei, então acho que isso está crescendo. Até me convidaram pra dar uma aula na faculdade. (risos) Ainda está em fase de estudo, mas vamos ver. Se acontecer, vou “cair de cabeça”.
P/2 – Raphael, o que você vê de legal sobre estar dando informática pra esse público de idade em Cardoso Moreira? O que você acha que muda, que é necessário ou não?
R – Percepção do mundo, porque a maioria só conhece aquele universo de Cardoso Moreira, então a percepção de mundo deles é outra. Eles entram na internet e viajam nas situações, imagens, países, cidades; eles poderiam até ver pela televisão, mas a televisão infelizmente não mostra tanto isso. Eles têm um costume rotineiro de só ver novela, desenho animado; a internet não, ela vai mostrar algo além pra eles.
Tem aquela questão do profissionalismo, ganhar uma ferramenta a mais pra profissão, que é muito importante. Hoje quem não souber informática é leigo, é cego. Eu mesmo falo pra eles: “Olha, quem não souber manusear um computador hoje, pelo menos pra digitar, fazer um texto, escrever um e-mail, é cego.” Precisa se incorporar porque daqui a um tempo digo até que a nossa escrita está ameaçada - minha caligrafia hoje em dia é horrível, minha letra era redondinha e bonitinha. Hoje, pelo fato de tudo que eu vou fazer, eu digito. Não tem como.
P/2 – Você é casado?
R – Solteiro. Tenho uma namorada, a Roberta. Companheirona, amigona. Ficamos um ano e três meses separados, namoramos três anos, mas depois houve um desgaste, brigas. Interior também provoca isso, porque a gente fica numa certa monotonia e então tivemos um término. Foi muito doloroso pra ela; pra mim, nem tanto porque eu, nesse ponto, por ter tanta saída… Mas também senti muita falta. Ela arrumou um namorado lá, eu arrumei uma namorada aqui, mas no fim nos deparamos nas “esquinas da vida” e estamos juntos novamente e superfelizes.
É uma pessoa que me entende. Ela fala que eu sou muito carente; eu tenho muito carinho em casa, mas eu sou um cara muito carinhoso. Gosto de conversar, gosto de sentar na roda de amigos e falar, brincar, então ela é uma pessoa desse jeito comigo também, simpática. Eu gosto de pessoas simpáticas. Pra mim ela é completa e espero… Vamos ver, se Deus quiser.
P/1 – Ela é de Cardoso Moreira?
R – De Cardoso.
P/2 – Eu queria que você contasse sobre a história do aconteceu na sua perna.
R – Eu nasci com deformidade no pé. Novinho, pequenininho e com... Foi um choque na época pra minha mãe e pro meu pai. Eles ficaram sem saber o que fazer nessa situação, primeiro filho e saiu essa deformidade - não é deformidade, [é] modo de falar. Eles trouxeram meu caso aqui pro Rio, procuraram alguns médicos e ficavam um pouco com medo porque a medicina na época não era tão ativa como é hoje. Então me trouxeram pro Rio, o médico aceitou fazer uma cirurgia numa criança recém-nascida. Até me esqueci de trazer as fotos. Foram poucas fotos tiradas na época que eu tinha gesso e andava com o apoio do equipamento. Meus pais não gostavam de tirar essas fotos, mas eu tenho.
Quando eu era criança eu corria um pouco, mas caía por causa dessa deformidade no meu pé, então, quando tinha poucos meses foi feita uma cirurgia na minha perna. Minha perna teve que ser deslocada, foi um sofrimento muito grande. Isso, em certo ponto, me traumatizou um pouco porque eu tinha medo de ir pra rua, só escutava a criançada brincando… Mas eu acho que aquilo foi me dando força - contei a história sobre a janela - e foi passando.
Acho que meus pais foram muito guerreiros por aguentar. Minha mãe vinha pro Rio comigo no colo, de ônibus, vinha pra casa de uma tia minha e ficava lá. Eu já nasci um “tourinho”, então isso fez com que… Ela me carregasse pra baixo e pra cima, com o pezinho engessado. Eu ficava com gesso nas duas pernas; falo que essa perna minha aqui tem muita história, eu falo que é Raphael com ph, Marreiros de perna torta é um só. (risos)
P/2 – Raphael, você não vai contar pra gente a história do seu nome, de como escolheu o seu nome?
R – Vamos lá, foi assim: o meu pai, meio louco, tinha um professor… Não sei se era um professor que ele tinha que se chamava Sacarovsky, então ele queria me batizar, o primeiro filho, de Sacarovsky. (risos) Só que meu avô, minha mãe, o pessoal revolucionou. Mamãe ficou indignada, meu avô falou: “Vamos botar Raphael, Raphael com ‘ph’.” Porque [se fosse] Sacarovsky, eu ia processar meu pai. Sinceramente, aos dezoito anos eu ia processar, mas foi até motivo de conto, virou piada, o Tchaikovsky. (risos)
P/2 – E aí seu avô foi lá e...
R – Foi junto e colocou o Raphael Marreiros Dias, grande velho Nilo.
P/2 – Seu pai não te chama de Sacarovsky?
R – Não, é Raphael mesmo, mas de vez em quando ele troca o nome. Meu pai é aquele cara que de vez quando me chama de Marcelo, que é o nome do meu irmão mais novo, de Zé Carlos, que é o nome do irmão dele mais novo, meu tio, mas de Sacarovsky, não. Pelo amor de Deus gente, isso não.
P/2 – Raphael, quais são as expectativas de agora em diante? Você tem algum plano, vontade de fazer algo especial?
R – Olha, como eu lhe disse, sou o tipo de pessoa que não consegue ficar preso no mesmo lugar. Gosto muito da área de educação, tenho muita vontade que o projeto cresça, que eu possa trazer… Ele só trabalha num local em Cardoso, queria levar ele pra vários locais, mas a questão não depende de mim. É um sonho que eu tenho hoje, de levar esse projeto a quem precisa. Não só em Cardoso, tem outros municípios que precisariam conhecer o projeto, só que agora eu trabalho na área como técnico de segurança do trabalho também, eu sou formado.
Sou um cara apaixonado pelo mar, pela pescaria. Sempre gostei muito do mar, já tive várias oportunidades de pescar em alto mar, então [isso] faz com que eu tenha vontade de trabalhar embarcado. Acho que seria uma aventura, um alvo que ou eu preciso ter uma experiência ou seguir carreira dentro desse setor mesmo. Não é nem ponto financeiro, falo pelo pessoal; é um motivo, um Indiana Jones que está aqui dentro de mim pedindo pra sair. Não é aventura mas sim ter um trabalho onde... Mas não esquecendo educação, tá? Se eu puder trabalhar com educação pro resto da vida eu vou trabalhar, eu sou apaixonado.
P/2 – O que você achou de dar uma voltinha no túnel do tempo com a gente?
R – Nossa! Maravilhoso, são lembranças que voltaram. Meus amigos lá de Campos, situações de infância da viagem da oitava série, é interessante porque você fica feliz, tudo que já passei. Se for parar pra gravar todas as minhas histórias de vida, pela pouca idade… Mas a quantidade de coisa que eu já passei foi estupenda, maravilhoso.
P/2 – E você já conhecia o Museu da Pessoa?
R – Não conhecia o Museu da Pessoa, tive a oportunidade de conhecer naquele primeiro momento. Gostei, de vez em quando estou acessando, lendo. Eu tenho entrado lá em casa [por] curiosidade. Infelizmente não dá pra ver os vídeos legais porque a nossa internet lá ainda é aquela “amola cavalo”. Quando estou em Campos procuro ver algumas paisagens.
Eu achei legal, interessante, até mostrei pra minha mãe como é porque ela se interessa muito por essa área também. Esses dias estava discutindo com o Jean [sobre] como a história se torna um material importantíssimo na vida de cada um. Uma história que está ali dentro pode mudar a sua, então gostei muito de conhecer.
P/2 – Tem alguma história que você queira contar pra gente, caso nos esquecemos de perguntar?
R – Uma coisa que marca muito na minha vida é a questão do meu avô, que é um herói pra mim; eu falo que meu primeiro filho vai ter o nome dele, Nilo. De vez em quando a Roberta se zanga comigo: “Não, vai ser Raphael Nilo.” Tudo bem, mas tem que ter Nilo. Se meu filho tiver 70%, 50% do que o meu avô foi como homem, como pessoa, como pai de família... Eu queria ter 30% do que ele foi, um velho e tanto. Infelizmente ele já nos deixou, mas é o destino.
É o cara [em] que eu tento me espelhar. Às vezes, quando eu vejo que estou meio perdido, na hora do desespero - não do desespero, da raiva -, eu me espelho naquela calma. [Era] singelo, sempre tinha um sorriso. Eu tenho uma mania dele até hoje: ele chegava em casa assoviando, fazendo assim: “Shiuuuu”. Lá em casa eu fico fazendo assim. Teve um dia que minha mãe falou: “Raphael, parecia o seu Nilo subindo as escadas aqui de casa.” É impressionante. Eu tenho um carinho… Uuma falta muito grande dentro de mim é ele, meu avô. Acho que é só isso mesmo.
P/2 – Então a gente queria agradecer em nome do Museu da Pessoa.
R – Eu que tenho que agradecer essa oportunidade, está sendo maravilhoso conhecer, ter esse novo contato, novas amizades. Muito prazeroso.
P/2 – Obrigada.
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