Projeto Conte Sua História - Atados e Abraço Cultural
Depoimento de Sandra Conceição dos Santos
Entrevistada por Camila Marques Torres e Juliana Bertini
Hoje, dia 28 de junho de 2018
Gravado em São Paulo
Entrevista PCSH_A_HV04
Realização: Museu da Pessoa
P/1 - Oi, Sandra. Vamos começar pelo seu nome, onde você nasceu e sua data de nascimento.
R - Eu sou Sandra Conceição dos Santos. Eu nasci em dez de agosto de 1968. Sou de São Paulo, filha de baiana, a dona Felipa, minha guerreira, minha inspiração.
P/1 - Qual era a sua relação com seus pais e sua família?
R - Eu venho de uma família grande, porém, bem pequena. Minha mãe nasceu na Bahia, veio para São Paulo e aqui conheceu meu pai. Os dois não seguiram com o casamento, namoro, relacionamento. Então, até os meus nove anos éramos eu e minha mãe a família. Eu tenho alguns tios que moram em São Paulo e que, ao longo da vida, fui conhecendo e me aproximando mais, mas no início éramos só eu e minha mãe.
P/1 - Vocês são em quantos irmãos?
R - Não tenho irmão.
P/1 - Havia algo que vocês costumavam quando você era criança? Você e sua mãe e que você se recorda gostar?
R - Então, a minha mãe veio para São Paulo. Aqui ela foi trabalhar em casa de família e conheceu o meu pai, um gentil, que me fez uma grande gentileza: me colocou no mundo e sumiu. A gente brinca com isso até hoje. A minha mãe foi trabalhar em casa de família e quando engravidou, continuou trabalhando em uma casa, que é a dos meus padrinhos. Então, até os meus oito anos, eu fui criada em casa de família. A minha mãe trabalhava com todas aquelas regras, quartinho. A mãe trabalhava e eu ia para a escola. Eu não tive, assim, aquela infância, com muitas crianças. O meu grupo de amigos era na escola, na creche e o meu brincar era com as coisas que eu encontrava pela casa e dava para brincar e com as bonecas que eu ganhava. Minha mãe foi trabalhar em uma casa que marcou muito a minha infância. Era a dona Rina e o doutor (Gim) (inint) [00:03:36] eles me fizeram ter gosto pela matemática. Eu vou me emocionar. Vou até pegar o lencinho, porque, assim que eu comecei a alfabetizar, ele comprava caça-palavras e fazia. E eu, como prêmio, assistia televisão com eles, no quarto deles. Eu achava isso o máximo. Me recordo muito disso. Tinha também a questão da tabuada, que eu tinha de saber de cor e salteado. Ele chegava: "oito vezes oito?", "cinco vezes cinco?" e eu já tinha de responder. Eu sou muito grata a isso, porque me incentivou muito.
P/2 - Eles tinham outros filhos?
R - Eles tinham um casal de filhos e era uma guerra, porque o Nelsinho era o mais rebelde e tinha o Carlos, que era mais amoroso e acolhedor. Às vezes eu jantava com eles. Eles me davam essa oportunidade de jantar e fazer algumas refeições, transitar pela casa. O Nelson não gostava muito. Ficava com ciúme, na verdade. E por eles, acho, não terem filha mulher, eles pegaram carinho por mim. Eu tinha um cabelo comprido, minha mãe fazia várias trancinhas, das quais ela gostava muito. São coisas que eu lembro. Quando minha mãe resolveu que não queria mais morar em casa de família, que queria trabalhar em empresa, ela foi trabalhar no El Dourado, que era próximo da Nove de Julho. Foi a primeira vez que ela alugou um quarto e cozinha, onde nós fomos morar. Em uma certa data ela saiu para trabalhar e deixou a vela acesa, porque ela saía às 5h. Estava escuro ainda. Essa vela virou e a casa pegou fogo. Mas Nossa Senhora sempre protege. Eu senti alguém me acordando. Eu acordei com aquela fumaça e consegui pegar a chave e sair. Aí, a minha mãe sentiu a necessidade de me colocar no colégio interno. Nesse mesmo período eu me aproximei muito do meu tio Ivo, que é uma grande referência para mim, que já faleceu. Ele é a minha referência masculina de exemplo de vida, de homem e tudo, assim, pela história dele. Esse colégio interno foi bom, porque foram dois anos da minha vida em que aprendi muitas coisas, como fazer tricô, crochê, bordar. Tinha um tal de escovão que nós tínhamos de passar, mas ele era maior do que eu. Eu lembro de entrar dentro da panela. Nós tínhamos ofício e cada uma tinha uma função. Em cada vez ficávamos em determinado local para poder contribuir com as atividades do convento, na Vila dos Remédios, que se chamava Nossa Senhora dos Remédios. Antes disso, eu tive uma passagem por um colégio, por um espaço bem curto, porque minha mãe tinha toda uma preocupação sobre como eu seria tratada. A primeira coisa que eles fizeram foi cortar o meu cabelo - o que me deixou muito revoltada - por conta de ser um colégio com muitas crianças. Meu cabelo era muito comprido e eles cortaram. Eu lembro que eu me escondi naqueles fogões à lenha. Eu me enfiei dentro do negócio para que não cortassem meu cabelo, mas eles conseguiram cortar. Quando minha mãe chegou, ela ficou furiosa.
P/2 - Quem cortou?
R - O próprio colégio. Era uma norma dele, mas não consultaram minha mãe se podia ou não cortar. E eu não queria cortar, porque a minha mãe falou para mim que eu podia cortar. Eu fui para outro colégio, que é o Nossa Senhora dos Remédios, que eu tenho como referência de aprendizado em questões coletivas, de compartilhamento. Eu tenho lembranças de uma amiga cujo nome é Consuelo e que nós chamávamos de Panacônsul. Na época, tinha aquela marca da Cônsul e nós chamávamos ela assim. Tinha o dormitório das mijonas, onde ela dormia. Ela nunca ir a passeio nenhum, porque quem fazia xixi na cama não podia ir. Nós passamos uma noite inteira com ela, conversando, para que ela não dormisse e fizesse xixi e fosse conosco para o passeio. Eu tenho lembrança desse tempo.
P/2 - Como você entrou na panela? Por quê?
R - Porque para lavá-la, ou tínhamos de passar uma vassoura, parecida com um vassourão, para que pudéssemos limpar, mas eu não tinha força suficiente. Aí eu entrei. Eu lembro da freira: "não pode entrar dentro da panela". Então, assim, eu sempre fui pequena e magra. Quando saí do colégio interno, foi em um período em que eu iniciava a pré-adolescência. Fiquei mocinha, na linguagem, muito cedo. Com nove anos. Foi a primeira conversa que tive com o meu tio. Teria de ser com a minha mãe, mas acabou sendo com ele.
P/2 - Conta dessa conversa?
R - Ele explicou que eu teria de tomar cuidado, porque agora eu era uma menina e já estava virando uma mocinha. Aquela coisa toda. Ele me deu o meu primeiro sutiã, que ele chamava de (gol) [00:10:41], junto com a minha tia ngela. O meu tio tinha uma coisa de conversas sobre a importância que nós temos de dar para o nosso trabalho, para o que conseguimos e construímos e para as oportunidades da vida. Para ele, não tinha essa questão: "ela tem dez anos e não vai ter consciência para entender isso". Ele falava e pronto. Eram as famosas reuniões de família. Não era bem uma reunião, mas ele chegava e falava. Eu lembro de uma frase dele que ele nem falou para mim, ele falou para todos: "o homem, quando negro, tem de se esforçar muito. Quando ele tem uma oportunidade, ele tem de aproveitá-la o máximo que puder: se dedicando ao estudo, ao trabalho. Em uma empresa, sendo funcionário negro, se o branco é competente, você tem de ter duas vezes mais competência para, um dia, poderem reconhecer o seu trabalho". Eu não entendia muito bem isso naquela época. Nem dei muito valor ou importância para o que ele falou, mas aí fui crescendo e vi que o que ele falou era isso. E ele falou: "e, sendo mulher negra, piorou. Então, estudem". Meu tio veio da Bahia para cá com 14 anos e foi trabalhar em uma fazenda. Lá, ele teve a oportunidade de estudar. Ele foi o primeiro engenheiro negro na Itaipu. Para mim, é uma coisa que marcou. Ele tinha um cargo, uma função que ele conquistou, embora tenha vindo para cá com muito pouco estudo.
P/2 - Ele é irmão da sua mãe?
R - Ele é irmão da minha mãe e ele faleceu lá em Manaus. Nós não tivemos o período de luto, porque não fomos. Eu, então, fico com a imagem dele de quando vivo. Em tudo na minha vida - e acho que minha tia ngela e meus primos não sabem disso -, toda vez que eu estou fraquejando, é primeiro Deus e em segundo ele e o que passou para mim.
P/2 - Conta um pouquinho sobre esse momento em que você ficou mocinha, como você falou? Como que foi, se você puder contar, e como você teve a ideia de conversar com eles?
R - Na verdade, eu não tive ideia.
P/2 - Conta como aconteceu. Onde você estava?
R - Eu menstruei e estava na casa da minha tia. Eu não sabia muito bem como lidar com aquilo. Foi a hora em que conversei com a minha tia. Ele chegou e já conversamos. Nós fomos no centro da cidade comprar algumas coisas e ele comprou esse sutiã. Ao longo desse trajeto, ele falou dessa questão da mulher, de que eu estava ficando uma mocinha, que eu teria de cuidar, de que o namorado teria de ter respeito e as coisas normais que um pai fala para uma filha. Por isso que acabei levando como referência forte da figura masculina, que eu não tinha.
P/1 - Com relação a isso, como ficou na sua cabeça o namorar? Eu não sei quantos anos você tinha. Você lembra?
R - Eu era muito criança ainda. Mas, assim, logo em seguida, eu e minha mãe fomos morar em uma rua de bairro, o que foi muito bom. Era uma rua sem saída, então nós conhecíamos todo mundo. Assim, eu sempre fui menina mesmo. Eu não tinha essa malícia com namoro. Eu só fui namorar aos 18 anos. Não tinha essa coisa de pensar em namorar, mas eu sabia que tinha de me preservar. Ele falou mais no sentido de segurança mesmo: "olha, se alguém chegar e mexer com você, você tem de saber se defender". Acho que foi mais nesse sentido.
P/1 - E como foi o seu namoro, quando você chegou aos 18? Como foi a sua juventude, adolescência?
R - Quando eu saí do colégio e voltei para morar com a minha mãe, eu saía de Osasco e estudava em Pinheiros, onde minha mãe trabalhava. Então, o meu círculo de amizades sempre foi fora do bairro onde eu morava. Na minha adolescência, isso pesou um pouco, porque as pessoas não entendem. "Você não se relaciona com o seu vizinho do lado" e, enfim. Só que, logo depois desse bairro e estudava em Pinheiros, eu fui para essa rua, que era sem saída. Lá, eu tive mais contato com os moradores e amigos. Eu ia para a escola junto com amigos, porque estudava no bairro.
P/2 - Sandra, você disse que quando saiu do colégio interno em que você
ficou dois anos, você começou a estudar em Pinheiros e sua mãe trabalhava lá.
R - Isso.
P/2 - Como era? Você ficava o dia todo na escola ou era metade do dia? E depois, como fazia?
R - Na verdade, foi assim: quando minha mãe saiu de casa de família, fomos morar em Osasco. Eu saía de lá e ia estudar em Pinheiros. Eu pulei essa parte. Aí, na verdade, não foi quando eu saí de lá, eu fui morar direto nessa rua sem saída. Agora, puxando pela memória, é isso o que aconteceu. Eu saí de Osasco e ia estudar em Pinheiros. Depois que aconteceu esse acidente, eu fui para o colégio interno. Na saída, conversa com meu tio e aí morar nessa rua sem saída. Exatamente assim.
P/2 - E como era? Você falou dessa rua sem da rua sem saída: que lembranças você tem? Uma história que tenha acontecido lá?
R - Ali foi toda a minha adolescência, porque nós tínhamos toda a ingenuidade de criança, sem malícia, de pular corda, brincar de amarelinha. Eu tinha um amigo, o Luiz, que hoje mora em Minas. Ele é radialista, enfim. Ele me chamava de azulzinha e eu a ele. Ele era bem branquinho.
P/2 - E por que azulzinha?
R - Tinha o negro Zulu na rua, que era um menino que já se chamava assim. Aí, brincavam, ficavam tirando sarro: "ai, você vai gostar dele" e todas aquelas coisas. Mas não tinha nada a ver. Em uma brincadeira, um dia, eu falei: "você que é o azulzinho da história". Enfim, acabamos nos apelidando. Nós tínhamos amiga na rua, da qual o pai trabalhava no Play Center e nos levava lá. Eu adorava. Tinha também festa junina. Tinha uma igreja na sua. Foi lá em que eu fiz a primeira comunhão e crisma. Então, foi muito forte. Tinha a casa da dona Emília, em que nós não podíamos entrar porque ela uma portuguesa bem brava, sabe? Então, quem conseguia entrar na casa dela, tinha um mérito. Eu lembro do primeiro dia em que eu entre na casa e foi muito lega. Ela tinha um tipo de pomar na casa e nós éramos loucos por entrar lá e pegarmos frutas e as coisas. De lá, nós mudamos para um outro bairro. Foi difícil para mim porque foi a primeira perda que eu tive. Fomos morar no Taboão, o que não foi muito bom para nós, porque fomos assaltadas. Levaram todas as nossas coisas. Eu acabei indo morar em um outro bairro, que é o mesmo em que a minha tia mora. Só que na família tinha muito essa questão de aceitação. Então, talvez por mágoa da minha mãe com a minha tia, alguma coisa acabou interferindo. A minha prima fazia ballet, estava na faculdade, então me via diferente: "não é para eu ter tanto vínculo de amizade".
P/2 - Por que que vocês mudaram, saíram daquela rua que era tão (era isso que você estava contando) [00:20:53].
R - Porque a minha mãe foi trabalhar em uma outra empresa e acabou que tivemos de mudar. Acho que foi alguma coisa nesse sentido. Não me recordo muito bem qual foi o motivo, mas lembro que era pela distância. Então, com a minha prima, não tivemos muito contato. Como eu comecei a trabalhar - o meu primeiro emprego foi a minha madrinha quem arrumou -, fui trabalhar no escritório em uma das fábricas dela, uma empresa de tubos aletados. Eu estava com 17 anos e foi muito triste para mim, embora tenha sido um momento legal, porque foi o primeiro emprego. Ao mesmo tempo, foi muito difícil porque um dos diretores tinha um anel com aquela pedra vermelha, que antigamente se usava muito. Por algum motivo, ele tirou esse anel e colocou em cima da mesa. O anel sumiu e eu era a mais nova na empresa. Foi uma coisa que marcou muito porque todo mundo ficou procurando esse anel. Veio polícia, aquela coisa toda e todos os olhares se voltaram para mim. Eu me senti um pouco - como posso dizer? -, magoada, sentida, porque não fui eu. Eu queria que achassem logo para que pudessem logo descobrir a verdade. A faxina geral do prédio era feita no sábado e aí uma das mulheres da limpeza virou a mesa. As pernas da mesa eram ocas e o anel entrou ali e ficou preso. Ela viu um brilho e era o anel. Aí ganhei caixa de bombom e um monte de coisa, mas já era tarde. A partir dali eu fui procurar outro emprego e trabalhei na Faria Lima. Aos 17 comecei a namorar com um menino que era branco e foi a primeira vez que eu vi o preconceito. "O que que o Marcelo viu naquela neguinha?". Eu ouvia muito isso.
P/2 - Quem que falava?
R - Os amigos dele, as meninas que gostavam dele e aquela coisa toda. Namorei com ele e ele foi o meu primeiro namorado. Eu larguei ele quando conheci o pai da minha filha.
P/2 - Então, antes: você gostou bastante dele?
R - Bastante.
P/2 - Como foi esse encontro?
P/1 - Como que vocês se conheceram?
P/2 - Não tenha pressa. Conte em detalhes essas coisas que foram acontecendo. Pode contar um pouco mais.
R - Indo no caminho de escola, trabalho e tal, eu o conheci na escola e nós nos aproximamos. Ele gostava de uma menina e eu comecei a ajudá-lo para conquistá-la. No final, acabou que nós começamos a namorar porque ela namorava com um rapaz e não tinha pretensão de terminar com ele. Eu ficava consolando ele e acabou que começamos a namorar. Foi muito engraçado porque a minha mãe tem uma coisa com tênis. "Homem não pode usar tênis, porque homem que usa tênis é bandido". Minha mãe achava isso. Ela nem fala "tênis", ela fala "conga". Eu falei para ele: "se você for conhecer a minha mãe, você não pode ir de tênis, porque se você for de tênis ela não vai te aceitar". Era aquela coisa de primeiro namorado. Eu falei: "mãe, eu estou namorando". E ela: "traz que eu quero conhecer. Quero saber quem é esse rapaz". Pois ele comprou um sapato, comprou uma calça de veludo, foi com uma camisa, todo comportado, para conhecer a minha mãe. Foi um namoro muito bom.
P/2 - Ela gostou dele?
R - Nossa, era Deus no céu e o Marcelo na terra.
P/2 - Conta os detalhes desse encontro, como ele chegou.
R - Ele chegou. Eu falei: "mãe, esse é o Marcelo". Ela já perguntou se ele trabalhava e aquela coisa. O Marcelo trabalhava. Ele ia me buscar. Ao sábado ele não trabalhava, então ele ia me levar ao trabalho e depois ele ia me buscar. Foi um namoro bem saudável e gostoso. Aí eu conheci o pai das minhas filhas. Foram 17 anos de relacionamento.
P/2 - Mas e aí, como é que ficou o Marcelo?
R - Eu terminei como ele através de uma carta.
P/1 - Uma carta.
P/2 - Mas por que que vocês terminaram?
R - Porque eu gostava do Marcelo, mas eu vivia a vida dele. Eu não vivia a minha vida. E depois eu me arrependi.
P/2 - Mas como é isso de que você vivia a vida dele?
R - Porque era tudo com ele. Eu não saía mais sozinha. Era tudo com ele. Os amigos dele, a família dele. Eu acho que a coisa entrou na rotina.
P/2 - Como foi com a família dele quando soube que você era a namorada? Você falou que teve preconceito dos amigos.
R - Isso. Na primeira vez que eu fui lá, foi assim: "pode comer à vontade". Sabe, essas coisas assim? Às vezes, era por educação, mas era assim: "come mais", e eu comia pouco. Tiveram perguntas sobre a minha família e mãe, mas acho que foi mais por parte dos amigos do que da própria família.
P/1 - Por que você decidiu terminar por carta?
R - Porque na época era mais isso mesmo. A gente não tinha WhatsApp, Facebook, Orkut. Era papel mesmo. Eu tenho várias cartas guardadas - não, não tenho tantas mais.
P/1 - E ele ficou muito bravo? Como é que foi isso?
R - Na verdade, não.
P/1 - Não?
R - Porque a gente já vinha discutindo e discordando de algumas coisas. Então acho que já estava meio preparado para isso.
P/1 - E como foi com o pai das suas filhas?
P/2 - Como que conheceu?
R - Ele eu conheci na escola. Eu tenho uma coisa para contar.
P/1 - Então conte.
R - Na minha adolescência, com a minha turma da rua sem saída, nós íamos muito ao Pico do Jaraguá e tinha um clube lá em Pirituba que nós frequentávamos também. Era o clube da prefeitura. Nós fomos ao Pico do Jaraguá e eu tinha acabado de ganhar um brinco da minha mãe - que vocês não vão saber o que é - com cores que eram new wave. Tinham aqueles verdes fluorescentes, laranja e, enfim, eu ganhei um brinco. No Pico do Jaraguá, naquela época, tinha muito cigano. Uma cigana falou assim para mim: "me dá esse brinco", "não, eu ganhei da minha mãe. Eu não vou te dar", "então tá bom. Você não vai me dar?", "não". Aí, enquanto estava andando no parque: "cadê meu brinco?". O brinco tinha sumido. Eu fiquei triste, mas continuei brincando. Na hora que eu estava indo embora, encontrei com a cigana na porta do parque. Ela falou: "guria, vem cá. Eu não falei que você ia me dar esse brinco?" e colocou o brinco. Eu fiquei impressionada com aquilo. Como assim? Ela falou: "eu vou te devolver esse brinco porque foi a sua mãe que te deu, mas eu quero ler sua mão". Eu dei a mão para ela ler. Ela falou: "você vai trabalhar, vai estudar e você vai casar. Com 20 anos você vai engravidar e com 21 você terá uma menina". Eu comecei a dar risada e fui embora. Cheguei em casa e falei que a louca da mulher tinha dito que eu casaria com 20 e teria filho ao 21. Ficou como motivo de piada. "Como é que você vai casar com 21 anos, grávida?". Nem pensei na possibilidade. Ela falou que eu teria dois amores e em um momento eu ia optar pelo certo ou o errado. Quando eu me separei do Marcelo, já estava para completar 19 anos e aí conheci o pai das minhas filhas. Realmente, eu engravidei com 20 e tive a Ane com 21. Eu fiz aniversário em agosto e ela nasceu em janeiro. Eu lembrei da história. Falei: "tomara que eu tenha escolhido o certo". Escolhi o errado. Ele sempre foi um bom marido, muito cuidadoso. Mas ele vinha de uma família muito sofrida, de 11 irmãos. Imagino que ele tenha passado por várias dificuldades na vida dele.
P/1 - Quando você era criança, você queria ter alguma profissão? Você acha que isso influenciou nas suas decisões sobre o que você queria ser e o que você se tornou?
R - Eu sempre gostei de desenho e de cálculo. Eu queria ser arquiteta, só que eu perdi ano de escola por conta dessas mudanças todas e quando incluí o Ensino Médio já estava trabalhando. Depois, eu logo casei, filhos, enfim. Quando eu prestei o concurso público, foi muito engraçada a minha entrada no funcionalismo, porque eu estava chegando de um encontro de jovens e três amigas estavam conversando na rua. "Amanhã nós vamos nos encontrar". Eu perguntei onde elas iriam: "a gente vai fazer uma prova para um concurso", "eu vou junto com vocês também. Estou procurando emprego e vou com vocês". Eu fui e passei. Nem sabia para o que era a vaga. Tinha uma prova, eu a fiz e passei. Fui chamada e aí descobri que era para trabalhar em creche e com criança. Aí que pensei como seria aquilo. Nós passamos por um ano de estágio pelo (Sersas) [00:33:25] que na época se chamava Ersa e pelo CCI, que é o Centro de Convivência Infantil, do Estado. Aí eu me descobri.
P/1 - Nisso você não fazia Pedagogia.
R - Não, nem sonhava em fazer pedagogia. Só que eu sou muito espoleta e sempre fui uma profissional fora da caixinha. Quando eu saí da empresa da minha madrinha, fui trabalhar em uma gráfica. Eu era notista. Na época tinha aquele negócio de nota fiscal. Depois eu fui trabalhar em uma loja em que eu era a ponta dela - a que vendia mais. Eu era extremamente bagunceira. Eu disputava a ponta com a Elenice. Nós disputávamos e eram coisas de centavos o que uma ganhava da outra. A gente brigava, mas já tivemos um Natal em que saímos da loja faltando pouco para a meia-noite, compramos um frango assado, um vinho e comemorarmos na rua mesmo. Uma coisa que eu não contei: eu falava para a minha mãe que quando casasse teria muito filho, porque eu achava lindo a casa cheia de gente no Natal, com árvore de Natal imensa, cheia de presente.
P/2 - Você passava com a sua mãe?
R - Sempre com a minha mãe. Natal e Ano Novo sempre foram com ela e até hoje, graças a Deus. Eu estava falando...?
P/2 - Da loja, que você era muito bagunceira.
R - Então, eu sempre fui uma profissional fora da caixinha. Nunca fui de seguir muitas regras, nunca fui disciplinada.
P/2 - Mas era uma boa vendedora. O que fazia você ser uma boa vendedora?
R - Eu gostava. Eu achava o máximo conseguir fazer com que a pessoa levasse o maior número de peças de roupa. Você via a pessoa vestir a roupa e cair bem nela. Eu achava aquilo muito legal. E poder comprar à vontade. Essa é a melhor parte. Quando eu fui trabalhar na creche, eu me identifiquei muito, porque eu vi possibilidades ali. Embora eu estivesse fazendo estágio, eu fui observando como era o trabalho. Com algumas coisas eu concordava, com outras não e se fosse eu, faria diferente. Quando fomos para a creche, descobri meus talentos, como fazer painel de aniversário, festa junina, decoração. Eu adorava mexer com essas coisas e adorava ver as crianças livres e brincando. Eu falava: "vamos para o refeitório". Eu não precisava pedir que eles fizessem fila, porque os deixava bem livres.
P/2 - A senhora ainda era solteira?
R - Não, já tinha casado e já tinha a Ane e a Elen veio depois. A Ane tinha quatro ou cinco anos. Quando houve o concurso mesmo, descobrimos que teve esse preparatório antes e depois abriu para todo mundo, porque eram outras creches. Essas pessoas que entraram não precisaram fazer estágio. Eu fui para esse CADI, que era o Centro de Acompanhamento e Desenvolvimento Infantil, que era o projeto do Fleury. Terminando, eu fui para o Emílio Ribas e quando cheguei lá foi maravilhoso. Eu olhei e pensei: "gente, eu vou trabalhar em um instituto. Olha isso. É enorme. São várias oportunidades". E aí foi uma grande decepção, porque a creche ficava dentro do hospital. Foi aí que eu descobri que funcionário público é muito dentro da caixinha.
P/1 - Dentro da caixinha.
R - E eu e Luciene viemos de um lugar onde era para construir, para fazer a coisa se desenvolver. Aí chegamos em um lugar em que tudo era regrado. A primeira coisa que olhamos, é que tinha uma prateleira de brinquedos intactos. Eu falei: "mas por que esses brinquedos estão...", "é porque tem o dia do brinquedo. Só esses brinquedos debaixo que podem pegar. Aí quando ficar bem velho, troca por outro". Nós fomos mudando isso aos poucos. Uma outra coisa é que as crianças dormiam de sapatos. Isso, para mim, era o fim. Eles almoçavam às 11h30 e aí, como tem o plantão de seis horas, as enfermeiras saem, pegam os seus filhos e vão embora. Então, para ficar mais prático, já dormia com o sapato para pegar sem ter de mexer na criança sem acordar. Só que não é legal. Como é que você vai dormir de sapato? Nós fomos mudando algumas coisas, o que incomodou muita gente. Primeiro: nós estávamos chegando. "Estão querendo roubar nosso lugar". Segundo: "como assim? Elas vão dar ordem aqui? Não vão". Surgiram alguns conflitos no começo, mas depois fomos bem aceitas.
P/2 - Você lembra de uma situação nessa creche, alguma criança, algum causo?
R - Tenho e eu vou contar ele. Quando eu prestei concurso, nós podíamos levar o filho para a creche. Foi nesse período que estava com a história de entrar ou não na faculdade. Eu resolvi que não ia mais engravidar, mas acabei engravidando. Aí eu falei: "agora vou atrás dos meus direitos, porque não vou colocar o meu filho em qualquer creche, sendo que posso trazê-lo para cá. Vai ficar perto de mim e vai ficar mais fácil. É um direito meu e o concurso diz". Aí uma funcionária falou: "Sandra, eu tive os meus quatro filhos aqui e nenhum veio para a creche, porque é uma regra do lugar". Aí eu falei: "você é você e eu sou eu. Eu vou atrás dos meus direitos. Fui no sindicato, falei. Fui a outro lugar e conversei: "você tem direitos. O seu filho vai com você para a creche. Voltei com o papel, dizendo que eu tinha direito. "Não, você não tem". Eu fui conhecer o diretor do hospital, que não sabia dessa regra, que foi interna, da creche, porque achavam que a mãe ia interferir na educação, mas nós somos preparadas para isso. A Elen, quando nasceu, ficou na creche. Então não tinha razão de naquela creche não poder ficar. Aí, em resumo, ele pode entrar na creche. A diretora não gostou disso, porque eu a afrontei. Aí ele mastigou e me mandou para a copa e eu não podia mais trabalhar com as crianças. Assim, logo em seguida, ela saiu de férias e quando ela voltou, eu fiz o painel da primavera. Ela arrancou tudo. Ela tinha de arranjar um jeito de me punir. Foi aí que entrou a Sandra, que acabou se tornando minha melhor amiga e com a qual até hoje tenho amizade. Ela falou que quando ela chegou lá, encontrou um zumbi, porque era assim que eu estava lá dentro. Eu sofria muito, porque as crianças me chamavam e ela não queria que as crianças falassem comigo. Eu não podia fazer nada, porque o meu cargo poderia ser colocado à disposição e aí eu iria para qualquer lugar que quisessem mandar. Uma funcionária à disposição em um cargo público é péssima. Ela precisa aprontar muita coisa ruim para chegar a esse ponto. Resumindo a história: a Sandra entrou e falou que eu desenvolveria o que eu gostava. Ela perguntou o que eu gostava de fazer. Ela começou a mudar as salas, porque tem desde o berçário até o maternal dois. Eu sempre gostei do maternal dois em diante, até o pré. Eu falei para ela que eu preferiria ficar no maternal. Ela perguntou o que eu pretendia desenvolver e eu respondi que tinha comprado alguns livros e que eu ia atrás de coisas que eu pudesse desenvolver com as crianças, como cantar, contar números. Eu queria mostrar e fazer alguma coisa. Eu comprei uma coleção que era para trabalhar o desenvolvimento da criança - e isso sem faculdade - através da expressão e do teatro. Vinha todo o passo a passo e eu fiz. Tinha um menino - eu não vou falar o nome dele, porque, como é para rede social, não fica legal - que era rotulado desde o minigrupo um, quando ele começou a andar e falar, ele era o rebelde porque se jogava no chão. Só que ele tinha toda uma história. A mãe se separou do marido, que era músico e ela, enfermeira. Ela trabalhava em dois empregos. Ela saía da enfermagem e deixava ele lá. Por várias vezes eu tive oportunidade de conversar com ela antes que ele fosse para a minha sala. Ela me contava e desabafava. Eu já fui tendo carinho por ele nesses encontros de ônibus e de espera para bater o ponto. Quando ele veio para mim, pensei que teria de fazer alguma coisa para mostrar a diferença que foi feita nele, porque ele era muito rebelde. No primeiro dia - o nome dele será Chiquinho: "Chiquinho, você, a partir de hoje, será meu ajudante". "Está bom". Só que ele testava mesmo. Sabe? "Vou ver até onde ela vai me aguentar". Chegou uma hora que eu sentei com ele na minha frente. Segurei ele e falei que ele iria ficar ali e veríamos quem tem mais força, se ele ou eu. Se ele conseguisse sair dali, ele mandaria na sala sozinho, mas se eu conseguisse segurar, ele iria me ajudar. Ele concordou. Foi assim que eu o conquistei. Ele me ajudava. Foi assim que fizemos a história do chapeuzinho vermelho. Ele foi o caçador. Ele participou da peça inteira, decorou a fala dos outros meninos. "Não é assim que fala, é assim". "Não, você tem de fazer o jeito. Você não está fazendo".
P/2 - Que idade tinha essa turminha aí?
R - Eram quatro anos até cinco anos. Depois vai para o pré. Foi muito gratificante. Marcou para mim. A partir daí, eu vi a importância do diploma. Não adianta ter a prática sem a teoria, porque sem ela não se conquista nada. Depois veio a questão da obrigatoriedade e logo fui atrás de fazer a faculdade. A Sandra me incentivou muito a ir e fazer a faculdade.
P/2 - O que você achou do que você encontrou na faculdade? Você já tinha tanta prática.
R - Então, eu gostava das aulas didáticas. Eu nunca gostei de português porque sempre gostei de exatas. Eu não gosto de ler. Então, foi um período bom de crescimento, porque me obrigou a conhecer outras coisas que eu acabei tomando gosto e outras que eu ainda não tomei gosto e, quem sabe um dia, eu goste. Ainda tem chance. Até 100 anos deve dar. É brincadeira. Tinha a professora Zaqui, ela dava aula de didática. Então, tudo o que ela falava, eu pensava que inconscientemente eu já fazia isso. Eu falava: "poxa, que legal, eu posso melhorar aqui". Foi muito rico esse período de faculdade, embora tenha sido em um momento bem difícil, porque foi no momento da minha separação.
P/2 - Você conseguiu concluir, Sandra?
R - Concluí.
P/2 - Mesmo com toda essa situação.
R - Aí eu ia com o Pedro e ele ia comigo. Eu fazia estágio, ele ia comigo. Eu consegui um estágio bom. Tem uma outra coisa: quando você pensa positivo, o universo conspira a favor. Eu consegui um estágio no Balneário, em Cambuci. Era uma brinquedoteca. Foi muito bom, uma experiência maravilhosa. Aí, novamente eu falo que Deus dá os direcionamentos, certinhos. Você não questiona. Tudo o que você for fazer, você não tem de questionar. Tem de aceitar. Dói, mas tem de aceitar. Eu fui trabalhar na brinquedoteca e o Pedro ia comigo. Aí, em alguns momentos, ele lembrava do pai porque tinha visto o campo de futebol e ele perguntava. Depois ele parou. Outra coisa que ele não conhecia era pipa. Ele foi conhecer quando mudamos para a Zona Norte, porque em Pinheiros ninguém empina pipa. Lá, quando ele viu a pipa, ele ficou desesperado. Aí eu vejo o quanto a criança perde.
P/1 - E alguém ensinou a ele como empinar pipa?
R - Ele não gostou.
P/1 - Não gostou.
R - Ele tentou e cortou a mão, porque deram um negócio com cerol. O negócio dele é bola. Hoje não é mais bola, agora é game. Foi esse o período de faculdade, o que fez com que eu tivesse olhar para outras coisas também e quisesse buscar mais.
P/2 - Até que ano você ficou na creche? Só para situarmos.
R - O que aconteceu: a creche acabou saindo de dentro do hospital e foi para um espaço fora dele. Já tinham muitas mudanças no Estado. Eu não vou lembrar o tempo certo, mas nós saímos e logo em seguida eu me formei. Logo que eu me formei, veio a obrigatoriedade das brinquedotecas hospitalares. Por isso que eu falo que o direcionamento de Deus sempre tem alguma coisa que lá na frente você vai entender. Aí veio a obrigatoriedade, montaram a brinquedoteca e precisavam de um pedagogo. Eu e a Sandra, a minha chefe, brigamos por causa de um guarda-chuva de cinco reais. Foi uma briga feia por causa do guarda-chuva e ficamos de mal. Cheguei em casa e falei: "mãe, como pode eu e Sandra brigarmos por um guarda-chuva de cinco reais? Ela não quer mais que eu trabalhe na creche. Ela não me quer mais como funcionária dela". A gente não se respeitava mais como funcionária e empregada. Era mais por conta da amizade. Nós tínhamos liberdade de falarmos coisas uma para a outra. Com respeito, mas tínhamos a liberdade. Brigamos por causa do guarda-chuva porque eu achei que ela estava brincando. Eu entrei na brincadeira, provocando-a. Ela ficou muito brava. Ela é bem branca e ela ficou muito vermelha. Ela falou: "Sandra, vou te mandar para o hospital". "Como?". "Amanhã você já começa lá". Eu falei: "nossa, ela colocou meu cargo à disposição e na semana que vem estarei em outro lugar". Ela me colocou à disposição e me indicou para ir à brinquedoteca. Ela falou que eu era uma ótima profissional e que eu desenvolvia muito bem, mas que com ela não era mais possível trabalhar. Por isso a indicação na brinquedoteca, já que precisavam de um pedagogo. Eu fui. E foi o maior ganho da minha vida, mesmo. Quando eu cheguei ali, pensei: "o que eu vou fazer em uma ala de internação?". Eu sabia que todo mundo tinha medo do Emílio Ribas, mas eu nunca quis saber o que se tratava lá. Não era uma curiosidade para mim. Eu trabalhava na creche e não queria saber o que acontecia lá. Para mim, era um hospital geral. Eu vi que um hospital de infectologia é totalmente diferente de um hospital geral. 70 por cento dos pacientes atendidos no Emílio Ribas são soropositivos para o HIV. Aquele lado egoísta que você tem, o seu lado ruim, de não querer certas coisas ou preconceitos - e é por isso que eu falo que nisso de falar sobre preconceito racial e social, a gente deve tomar muito cuidado, porque podemos não ter preconceito sobre aquilo. Então, quando as pessoas perguntam se eu participo de algum movimento negro, eu falo: "depende. Se for para defender que se tenha mais visibilidade e oportunidade é uma coisa. Agora, ter uma diferença entre o vitimismo e o que se quer alcançar". Lá no hospital a questão do preconceito ficou muito clara. Eu não sabia sobre o HIV, então era para mim indiferente. Era uma doença infecto, como uma tuberculose. Aí você vai conhecendo profundamente e vê qual é o preconceito e não só na questão do HIV, porque também tem outras doenças infecto. Aí vemos lá a placa de proibido entrar e aquela coisa: "não vou entrar". Só que, ao mesmo tempo, como sou muito curiosa, eu queria conhecer e fui investigar para saber o que era. Começou por minhas amigas: "nossa, Sandra, você vai trabalhar dentro do hospital? Você é louca? Você está preparada? Tem HIV, tuberculose". Eu respondi: "mas os profissionais que trabalham lá estão vivos. Por que que eu vou morrer?". Quando cheguei em casa e falei para a minha mãe que eu ia trabalhar na área de internação, que era do HIV, que tinha morrido uma pessoa com AIDS - eu falei AIDS porque na época não se falava em HIV -, ela respondeu: "minha filha, não vai lá não porque fulano morreu de AIDS". Aí, mais curiosa eu fiquei. Como o setor de brinquedoteca era novo na ala infantil, a criança vai preferir o quê? Entre ficar no leito e brinquedoteca, brinquedoteca, não é? Tinha um conflito com as equipes, então pensei em montar um projeto multidisciplinar para fazer a integração do andar e conversarmos a mesma língua. Conversamos eu e os professores, porque aí também veio a obrigatoriedade da classe hospitalar. Isso foi em 2004. Tinham duas professoras dentro da brinquedoteca. Elas entraram e começaram a explicar como seria o projeto delas, eu também estava entrando para trabalhar com a parte lúdica e tudo era novo. Eu tinha acabado de me formar, netão estava cheia de ideias. Elas também tinham várias ideias. Aí, por que não sentar e montar um projeto multidisciplinar? Montamos. Eu sempre gostei de bagunça. Falei que precisávamos colocar alegria naquele andar. Nós tínhamos uma sala que tinha computadores. Nós tirávamos os meninos do leito e uma médica falava: "essa mulher quer transformar isso aqui em uma lan house. Essas crianças voltarão para lá e nunca mais terão acesso à internet". Eu falava: "gente, hoje nas comunidades tem os telecentros". Essa foi a primeira briga. Quando apresentei o projeto, por três meses íamos trabalhar um tema porque tinha voluntariado; nós, os educadores; a enfermagem; psicologia e as especialidades. E como trabalhar tudo em conjunto? Nós definíamos um tema. O primeiro foi água. Tem uma menina, uma profissional incrível na área de musicoterapia. Nós trabalhamos o tema da água. Saiu "Águas de Março". A gente fez todo um tema e finalizava com almoço temático. Uma das crianças queria uma festa de aniversário, porque ele nunca teve uma. Ele queria uma feijoada e nós fizemos feijoada com pagode. Eu levei um grupo de pagode para dentro do hospital. Foi onde eu conheci o Cauê, que vai colocar no filho dele o nome de Bento. Ele já era voluntário do hospital e aí eu fui procurar. Eu procuro mesmo. Não tenho vergonha de perguntar por quem poderia me ajudar. Perguntei para os voluntários e o Cauê falou do grupo dele. Eu achei interessante e fizemos a feijoada com pagode. Depois veio a cozinha mineira e cantina italiana. Essa médica que bateu de frente comigo, em um primeiro momento falou que era um absurdo. A gente tinha, infelizmente, muitos óbitos e principalmente dos jovens, por falta de aderência ao tratamento clínico. Foi onde eu conheci o Paulinho. Eu falo dele porque ele tem toda uma história com o Emílio Ribas. Ele ficou muito tempo internado no hospital. Ele falava que as pessoas eram falsas e hipócritas. As pessoas ficavam lá, mas ninguém queria saber dele, como ele estava. Era a situação para dizer que fez alguma coisa. Ele era fechado, já tinha a questão da rebeldia, angústia. Não era com todo mundo que ele se abria. Na primeira vez que eu o visitei, ele já não foi com a minha cara. Foi uma conquista e depois nos tornamos amigos, mas até conquistá-lo foi difícil. Um dia, eu peguei essa médica dando uma resposta atravessada para ele. E naquela hora eu julguei. "Puxa vida, mas por que ela falou desse jeito com ele? Mulherzinha amarga, mal amada", aquela coisa, tal. Mas a gente só vai entender depois por que o médico tem essa dificuldade de trabalhar com a morte, com essa questão de perda, principalmente paciente. E o Paulinho, nos últimos dias de vida dele, se descobriu na pintura. Uma voluntária ofereceu a pintura para ele e ele fez um autorretrato dele adulto. A gente tem certeza. Porque até a parte, assim, que era mais escura, das olheiras, de tanto remédio, tanta coisa, ele fez na figura da pessoa que ele desenhou. A gente fez uma exposição, ele vendia os quadrinhos. Porque o sonho dele era ter no teto um símbolo do Corinthians. Então, assim, ele conseguiu bastante coisa, levaram ele para a praia, conseguiram, uma médica levou, a doutora Socorro levou ele para a praia, enfim, sabe, foi para o estádio e eu fui participando de tudo isso e eu fui conhecendo o lado de que é trabalho voluntário, de humanização. E eu fui me identificando muito com isso também. A doutora Glória Bruneti, para mim, foi toda minha referência. Tenho muito a agradecer por toda oportunidade que ela me deu, de liberdade para trabalhar, de poder mostrar meu potencial. E a partir daí que veio a ideia de fazer um trabalho mais efetivo com os jovens. A gente ganhou um prêmio por conta desse trabalho no andar. E aí eu falei: "bom, agora acho que já dá para a gente fazer outras coisas, vamos ver como é que vai fazer com a questão dos jovens, que é muito óbito".
P/1 - Então, você falou que essa médica que deu uma resposta atravessada, depois você começou entender...
R - Ah, sim. Porque quando o Paulinho faleceu, ela ficou muito brava, sabe? Ela falou assim: "que Deus é esse, que me dá o dom de... sabe, de clinicar, de cuidar e não consigo curar, tirar o sofrimento". E ela acabou aliviando o sofrimento dele, porque ele partiu. E como é que fala? Foi um descanso para ele, de tanto sofrimento. Mas para ela foi muito difícil. E aí você começa a se colocar no lugar do outro, falar: "nossa, agora que eu estou entendendo". E aí, quando passou alguns dias, ela: "Sandra, não vai ter outra festinha, não?", "vai, calma, que vai ter". E aí foi onde a gente fez cozinha mineira, levou uma banda de forró, acabamos com o hospital, porque forró faz barulho, né? Acabou que desceu lá para o refeitório, os funcionários dançaram, foi bem legal.
P/2 - E os pacientes e os funcionários, ia todo mundo?
R - Não, no andar só a pediatria mesmo e os funcionários da pediatria. E naquela época, eu te falei que eu tenho um negócio com foto, que eu gosto de registrar tudo, então eu tinha muita foto. Mas aí depois vocês vão entender por que eu perdi todas as fotos, que vai chegar nessa parte. E aí, por que não montar uma sala para os jovens e por que não entender os jovens? Porque os jovens não tomam a medicação? E aí, conversando com a doutora Glória, falei: "doutora Glória, eu estou pensando num projeto porque muitos jovens que eu conversei, ele diz que é a primeira vez que ele se sentiu inserido na sociedade, não como o Joãozinho doente da escola, mas o aluno da escola, quando a escola deu oportunidade de ele fazer uma peça de teatro. E foi a primeira vez que ele se viu como aluno da escola, e não como o doente da escola. E aí eu pensei: por que a gente não põe aula de teatro e dança aqui dentro do hospital?". Aí a doutora Glória falou: "não sei. Põe aí no papel". Porque isso ela me ensinou, quando a pessoa quer fazer, você manda ela colocar no papel, porque se ela não colocar no papel é porque ela não vai fazer. Aí cheguei em casa... e eu adoro escrever à noite. Ah, fui buscar e fui ver se já tinha alguma coisa relacionada a isso. Não tinha muita coisa, mas, enfim, e aí fui construindo o projeto, fiz, apresentei para ela, ela fez algumas correções e, enfim, e apresentamos para a diretoria do voluntariado, porque a brinquedoteca, como era um setor novo, não tinha um setor específico para a brinquedoteca, pertencia ao voluntariado. Aí ela perguntou para a diretoria do hospital, o hospital aprovou e depois foi apresentar para a diretoria do voluntariado. E um dos diretores falou assim para mim: "ah, esse projetinho, que se resume em samba", porque eu fiquei famosa, eu levei o samba para dentro do hospital, então, "esse projetinho se resume em samba e pagode, não vai dar em nada. Porque precisa fazer um projeto de mais impacto, porque eu fui diretor não sei das quantas lá nos escoteiros e lá a gente pegava e levava o jovem lá na Febem, para eles verem como que...", eu falei assim: "tá, o senhor está sugerindo o que? Que eu pegue eles e leve lá na UTI e fale: 'oh, você vai morrer assim'? É isso que o senhor está querendo? O senhor leu o projeto?", aí ele falou assim: "não", eu falei: "então está bom. Então o senhor, por favor, leve o projeto, leia, depois o senhor diz se vai resumir em samba e pagode ou não, está bom?", pronto, acabou, foi. Montamos a sala multidisciplinar, montada para adolescente. E aí assim, a Kibon fez uma doação para o hospital, para montar outra brinquedoteca com uma sala multishow. Multishow não, como que chama? Que tem só aparelho de... é multishow, não é?
P/1 - Multimídia?
R - Multimídia. Isso. Aí montar essa sala multimídia. Aí eu falei: "por que não montar a sala para o adolescente, aí fica uma brinquedoteca e a sala do adolescente?", aí a gente montou. O doutor da época falou: "olha, Sandra, a Kibon deu essa doação, eles já vieram instalar e amanhã eu preciso estar com esse projeto pronto, porque a Globo, Record, não sei, vai vir aqui e eu preciso ter o projeto pronto", aí eu falei: "está bom", cheguei em casa, escrevi o projeto, porque ele sabia que eu já tinha... eu fiz um curso na Uninove, de brinquedista, depois eu fui fazer especialização em brinquedoteca hospitalar na PUC, aí eu escrevi um projeto, baseado tudo dentro dos critérios de brinquedoteca ambulatorial, apresentei o projeto, ele nem leu, na verdade. Aí foi, quando eu cheguei já tinha televisão e: "o que a senhora acha?", "eu acho?", "você é a coordenadora...", "ah, eu sou a coordenadora da brinquedoteca?". Está bom. Bom, resumindo, veio uma pessoa, pegou o meu projeto da sala, eu não sabia como que era antes, porque no estado é assim, você tem um projeto, você escreve esse projeto, apresenta, você recebe um protocolo de que você apresentou esse projeto. E eu não fiz isso, eu entreguei. O que a pessoa fez? Foi lá, assinou o nome dela, bonitinho, pegou o projeto. Cheguei, fui colocar a chave na porta, trocaram a chave, trocaram tudo. Aí está bom. Aí foi uma briga, aí começou as brigas tudo, aquela coisa toda de disputa mesmo. Mas eu sou persistente até o último, eu falei: "não", aí já fui para a doutora Glória, já fomos falar com o diretor, enfim, a sala voltou, aí ele ficou com a brinquedoteca e eu fiquei com a sala do adolescente. Meu negócio era os adolescentes. E o projeto começou a caminhar com os jovens ao sábado, porque durante a semana não podia desenvolver, porque sou funcionária. E aos sábados era voluntária, e aí eu assumi que eu ficaria lá aos sábados. Só que era muito pouco.
P/1 - Com funcionária você continuou na brinquedoteca?
R - Não, aí da brinquedoteca eu fui para a sala do adolescente, porque tinha que ter um espaço de escuta para eles. Aí saí da brinquedoteca e fui para a sala do adolescente ambulatorial.
P/1 - Durante a semana?
R - Durante a semana.
P/1 - Só fala um pouquinho dessa sala, porque você falou também que os jovens não aderem ao tratamento.
R - Isso.
P/1 - E aí você disse que vinham os óbitos mais de jovens.
R - Então, até chegar nessa sala, o que aconteceu? Foi esse período de escuta, para entender quais eram essas dificuldades, aí o projeto, que ainda não era Poder Jovem, era adesão do adolescente vivendo com HIV/AIDS ao tratamento clínico através da sua interação sociocultural, lúdico e pedagógico. Nome grande, né? Que virou até um projeto de pesquisa que não se concluiu. Mas, enfim...
P/1 - Com essa escuta que você estava falando, deles?
R - Isso, que eu montei o projeto para poder incentivar eles ao tratamento clínico mesmo.
P/1 - E o que você lembra de ouvir deles? Você conseguiu entender o que...
R - Então, isso me trouxe uma angústia, porque eu não tinha resposta. A única resposta que eu tive, assim, concreta, que eu falei: "nossa, dá para fazer alguma coisa", foi o depoimento desse menino do teatro. E aí eu falei: "não, eu tenho 40 jovens cadastrados, tenho o Gerson, que é um grande parceiro, que começou também, ele já veio de um outro projeto, que estava acabando. Ele me ajudou muito nesse começo. Mas ainda faltava coisa, eu precisava conhecer esse jovem. E aí eu comecei a acompanhar a vida desses jovens. Acompanhar a vida, que eu digo, é ir para a balada, ir para o parque, a vida deles. Abria a porta da minha casa, enfim, e eu fui conhecendo cada um deles. Porque eu tenho jovem que mora na área nobre de São Paulo, que tem uma estrutura de vida, todo um acolhimento da família e tal, e tenho o jovem que mora no extremo da periferia. E qual que é a dificuldade desse jovem daqui, para esse jovem daqui? Que ele também não adere ao tratamento? Esse daqui não tem nada, mas esse aqui tem. Por que ele não adere? Então eu precisava entender isso. E aí, acompanhando todo esse processo, aí eu cheguei à conclusão assim, para falar com propriedade, que viver com HIV, existe as três fases, diagnóstico, quando se descobre que é soro positivo para HIV. A segunda é a negação, eu não quero ter essa doença, eu não vivo com isso, não quero isso para mim, não pedi para nascer com isso. E a terceira é a aceitação, que é hoje Poder Jovem, você vê jovem dando entrevista para televisão, falando com propriedade, eu tenho a doença, mas eu me cuido. Então aí eu digo que é o que você conquistou. Mas foi um grande aprendizado para mim. Todos esses dez anos de dedicação ao Poder Jovem foi muito rico para mim. Como é que eu falo? Muitas coisas contra, mas que não conseguiram atrapalhar a vontade que eu tinha que isso desse certo, sabe? Determinação mesmo, de querer ver um resultado. Em 2009 nós perdemos 17 jovens. E foi um período muito difícil, porque você conviveu com aquele jovem, você teve uma história com aquele jovem, foi um período curto, que foram dois anos, mas dois anos muito intenso, que a gente foi para a balada junto, que a gente foi na casa, conheceu a história, enfim. Teve um adolescente que ela preparou a morte dela, ficou um mês preparando a morte dela. Ela sabia que ela ia morrer, mas ela não falava que ela ia morrer. E eu digo que ela literalmente preparou a morte dela.
P/1 - De que forma?
R - Porque nós fizemos uma viagem, ela não foi para essa viagem, a gente foi para Minas, que era outra coisa que eu... tudo o que podia mostrar para eles, que eles podiam fazer e conquistar, eu queria fazer. Então fomos para Minas e ela não pôde ir. Só depois eu volto nessa história dessas viagens, mas ela ligava para mim, falava comigo de madrugada, tipo duas horas da manhã, às vezes ela me ligava: "Sandra, o que é isso?", porque quando a gente chega na fase já que está sem fins terapêuticos, não tem muito o que fazer, e aceite vai morrer, que vai partir, no caso dela, aquela angústia de quero fazer tudo, sabe? "Sandra, não, hoje eu acordei, acho que dá para eu me inscrever no curso de enfermagem, acho que eu vou fazer enfermagem", daqui a pouco: "não, vou fazer...", sabe? Tudo, ela queria fazer tudo ao mesmo tempo, para dar tempo de deixar algo para ela. Só que ela vinha de um relacionamento de três anos, não tomava remédio, tinha a avó, que ela tinha uma preocupação, que é a mãe. Porque a maioria deles já perderam o pai e a mãe, então ou era tia ou é avó. E ela tinha toda uma preocupação com essa avó. Então ela fez duas adolescentes alugar uma casa perto da casa dela, do lado, literalmente, ela falava assim que ela ia ficar um mês, ela ia ficar um período muito longo internada e ela precisava de alguém cuidando da avó dela, porque ela ia precisar de ajuda. Ela namorava com um menino e esse menino, ela falava assim: "Sandra, eu vou terminar com ele porque ele não vai ter condições de seguir, entendeu? Ele não vai conseguir ficar indo no hospital me ver, então eu vou terminar com ele e vou deixar bem claro que eu estou terminando com ele porque ele não tem que acompanhar todo esse processo de internação", porque também veio o linfoma. Ela estava com um linfoma. Como é que fala? Quando o câncer é...
P/1 - Maligno?
R - Maligno, isso. Um linfoma maligno, então estava tratando tudo. Mas ela sabia que podia vir a cura e podia não ter. Bom, ela terminou com ele e falou para ele: "oh, eu estou aqui. Se você arrumar...", e ela era linda. Pensa uma pessoa, essas bolsas famosas que a mulherada usa, ela usava uma daquelas da 25, mas parecia, falava que era original mesmo, de tão bonita e estilosa que ela era. Ela era alta, até careca ela ficou linda. Tenho foto dela com a minha filha e tudo. Bom, e aí...
P/1 - Ela falava para ele?
R - Falava. "Se você arrumar uma mulher, uma menina mais feia que eu, eu saio, arranco soro, arranco tudo daquele hospital e venho atrás de você". Então ela levava tudo muito assim. Ela teve vontade de comer uma comida diferente, a doutora Glória arrumou um restaurante francês para ela, ela detestou a comida. "Ih, comida ruim, Sandra, me arrependi, deveria ter ido no brasileiro mesmo, comer uma outra comida". Bom, resumindo, ela fez toda essa preparação de um mês, chamou todos os jovens na casa dela e falou: "olha, se eu tivesse tido a oportunidade de pensar em tomar o remédio, hoje meu resultado seria outro. Então aproveite isso, falem mais sobre a importância de tomar remédio", então ela foi, deixou um recado para todos eles. E aí ela faleceu. Em 2009, quando a gente perdeu esses 17 jovens, a gente acompanhou tudo muito de perto. Velório, enterro. E quando a Grazi faleceu, os médicos: "não, que você vai levar as crianças para ver a menina morrendo, vai traumatizar, eles não vão querer tomar mais remédio, não sei o que". Aí uma das adolescentes tomou a dor, falou: "não, a gente quer, porque a gente precisa estar perto". E eles fizeram tudo mesmo, ficaram com a Grazi até o último momento, foram todo mundo para o hospital, o Poder Jovem todo, quando ela faleceu foi todo mundo para lá, foi todo mundo junto para o velório, foi todo mundo, sabe? E até hoje eu vou lá todo ano, que ela me fez prometer que todo Natal, nas datas principais, eu fosse visitar a avó dela. E eu vou, todos os anos eu vou. Já fui agora semana passada levar a minha netinha para ela conhecer. Então foi um grande ensinamento para todos nós. E hoje a minha assistente contábil na fundação, ela foi jovem do Poder Jovem, ela tinha 13 anos quando entrou, porque a mãe era voluntária. Na festa de 15 anos dela, a gente saiu da festa dela e fomos para um velório. Então foram momentos muito difíceis, mas foram momentos de superação. E levei muita pedrada, não só eu, como a doutora Glória, a gente levou muita pedrada.
P/1 - Do hospital?
R - Dentro do hospital. Eu sinto assim, não vejo como uma coisa, assim, sabe, que interferiu, porque acho que a vontade era maior de seguir em frente do que ficar dando atenção a isso. Mas em 2010 nós nos tornamos a primeira associação de sair de dentro do hospital, nos tornamos uma associação para conseguir um espaço fora. E aí tinha que ter convênio, embora o projeto acontecesse dentro do hospital, precisava ter um convênio, aí a gente deu entrada, tudo. E esse convênio não veio até hoje. E conseguimos esse espaço lá na rua Mauro, ficamos felizes da vida, achamos: pronto, agora vai sair, vai ficar maior, 541 jovens cadastrados, que nasceram com HIV, não que adquiriram.
P/1 - Esses jovens do hospital, então, todos eles nasceram com...
R - Nasceram com o vírus.
P/1 - Então eles vieram dos pais que...
R - É. E o diferencial do Poder Jovem, que eu queria que fosse um projeto que fosse não só jovens vivendo com HIV, porque era uma das queixas deles, era porque eles não tinham amigos para compartilhar. Então tinham que ser jovens vivendo e jovens convivendo. E aí, claro, seu melhor amigo que você teve coragem de contar, ou você tem vontade de contar, você pode convidar para participar do projeto e num determinado momento contar, ou tem uma família, ou algum primo mais próximo, trazer, incentivar ele para ir para o projeto. Então sempre foi jovem vivendo e convivendo. Por isso que a filha dessa voluntária participava, meus filhos participavam, participou sempre. O Pedro, quando entrou no projeto, estava com oito, acho que oito anos. Nós estamos em 10 anos de projeto, ele está com 17. Ele era pequenininho ainda, era bebê. Bom, resumindo a história, em 2014 nos tornamos a primeira fundação de HIV/AIDS no Brasil. É voltada para o público adolescente.
P/1 - Vocês querem perguntar antes de se tornar associação? No hospital, alguma coisa que ficou?
P/2 - Eu queria perguntar, você falou que quando você acompanhou esses jovens, eles frequentavam a sua casa. Como que foi esse primeiro contato com a sua família?
R - Então, para a Ane não, porque a Ane, que é a minha filha mais velha, já estava acompanhando comigo, e ela acompanhou todo processo da Grazi. Então ela se tornou voluntária, se formaram as duas junto, a Grazi e a minha filha se formaram voluntárias juntas. E elas se pareciam muito, assim, se identificaram muito por conta da mesma faixa etária, de idade, enfim, e ficaram amigas. Então para os meus filhos foi normal, porque eles já iam comigo no projeto, tal. Para a minha mãe foi mais difícil, porque ela não tem essa compreensão de HIV, de doença. "Ai, será que eu vou ter que separar copo?", isso eu fui explicando tudo para ela, essas coisas, ela foi entendendo. Mas foi acontecendo naturalmente mesmo, o envolvimento dele.
P/1 - Qual é a maior dificuldade que você vê das pessoas em relação a essa relação com as pessoas que se colocam.
R - Primeiro, que as pessoas acham que para você entrar para uma causa, você tem que ter aquilo. Ou você teve um filho violentado, ou você teve uma doença, ou você viveu a situação, senão você não faz nada. E não é uma verdade, você não precisa ter HIV para você militar por uma causa. Simplesmente é pela causa. Sem contar que, assim, as pessoas não conseguem entender um amor, um carinho pelo outro sem ter um interesse de algo em cima disso. Porque a primeira coisa que as pessoas... "quanto você ganha para fazer isso?", "não, a gente faz um trabalho voluntário", "você está louca, eu vou largar a minha vida para...", mas, gente, cada um tem... o que você quer constar para a sua vida? Se é um bem material, é algo que para você vai fazer bem? Para mim foi muito bom, porque eu consegui enxergar que há possibilidade de a gente fazer coisas boas, mesmo vindo de uma situação ruim, sabe, assim? Enfim, bom, e é muito gratificante quando você vê um jovem fazer uma declaração para você, falar para você: "Sandra, pelo amor de Deus, eu não aguento mais, eu vou desistir", e aí você vê o cara entrando na faculdade. Sabe? Você quer mais ganho que esse? Não tem. E isso é difícil as pessoas entenderem. E aí tem a inveja, tem a briga, em a discórdia, tem quem são os verdadeiros amigos, quem não são, quem você se enganou, quem você... às vezes você acredita... é aquilo, você vive com uma pessoa uma vida inteira, mas você não vai conhecer essa pessoa por total. Eu tenho os meus defeitos e tenho minhas qualidades. Claro que a gente sempre quer que as qualidades aflorem mais, mas eu tenho defeito, eu grito, eu brigo, eu falo mesmo e não estou nem aí, e às vezes a gente mete os pés pelas mãos e faz um monte de besteira. E você é um ser humano e acabou. Então, da mesma forma que você vê que a pessoa não tem o entendimento por conhecimento, por falta de conhecimento, você vê que a pessoa tem um preconceito mesmo. E isso de profissionais de saúde mesmo, fala: "Deus me livre, eu vou ir com uma doença dessa", sabe?
P/1 - Assim, é isso que a gente queria entender, eu, no caso. O que faz as pessoas terem tanto isso que você acabou de falar?
R - De preconceito?
P/1 - Não, "Deus me livre", então, o que é o "Deus me livre"?
R - O "Deus me livre" é morrer, ter diarreia... porque não é fácil você viver com HIV.
P/1 - As pessoas têm medo de se contaminar?
R - De infectar, que hoje não usa mais o termo contaminar, hoje se usa infectar. Então as pessoas têm medo da infecção, têm medo das pessoas, do convívio, como vai ser minha vida social, como vai ser minha vida em família, acabou para mim. E hoje a realidade é outra.
P/1 - E fala por que não fala mais contaminar e fala infectar?
R - Porque ninguém contamina ninguém. Veio de uma discussão do movimento AIDS. Porque contaminar parece que você está contaminando todo mundo, não, você infectou uma pessoa para você.
P/2 - Até por ser uma doença infecciosa...
R - Infecciosa e sair desse negócio de contaminação. Porque o movimento para amenizar toda essa questão de entendimento, que as pessoas acham que eles ficam causando à toa, não, não é, gente, de aidético para pessoas vivendo, o que é melhor falar, não é? Vivendo, né? Uma pessoa vivendo com HIV, não uma pessoa aidética. Então teve um jovem que a gente perdeu na mesma época que a Grazi, que quando a gente ia administrar palestra nas escolas, ele falava assim: "a palavra aidético é tão feia, que ela nem existe, porque ela é muito feia, então não sei por que ficar falando aidético, tem que mudar", e aí mudou para pessoa soro positivo... eu esqueci o outro nome, agora é vivendo, vivendo e convivendo é o que eu mais gosto. Então as pessoas não conseguem, sabe? E a falta do conhecimento leva a pessoa a ter várias desconfianças e achismos, que não tem nada a ver. Às vezes até o próprio médico mesmo, tipo, "nossa, mas será mesmo?", tipo, teve todo um estudo, tal, mas será que é isso mesmo? E se, de repente, eu me arrisco e...", né? Só que eu vou falar, nós moramos num país que nós não temos a cultura de prevenção. Nós não nos prevenimos para nada. A gente ministra palestra nas escolas, são 400 a 800 alunos. Aí você pergunta: "quantos passaram protetor solar hoje?", "Sandra, o que tem a ver protetor solar com HIV?", tudo a ver, porque você passa o creme, mas você não passa o protetor. Aí quatro, seis pessoas da plateia levanta a mão dizendo que passou protetor, você pergunta: "por que você passou o protetor solar?", ou é por orientação dermatológica, ou porque a família, a mãe é vaidosa e está cuidando, a pessoa tem a pele muito clara, enfim, fora isso... aí vai falar de prevenção para uma coisa de prazer? Então, quando vai na roda e você fala assim: "você usa preservativo?", gente, todo mundo sabe que primeiro, segundo dia que saiu, pode até usar, mas depois não usa. E aí você decide ter filho, você vai fazer inseminação artificial? No nosso país que é rico para caramba. Então, sabe, é muito louco isso. E tudo isso você só vai ter esse olhar quando você convive mesmo, se vive a realidade, você vai entendendo essa situação. Então essas pessoas não conseguem ter esse olhar. Então vem o preconceito, vem o "Deus me livre". É igual o caso, quando souberam que a minha filha estava namorando com menina, aí: "nossa, mas ela é tão linda", eu: "o que tem a ver ela ser bonita e gostar de menina?", "ah, e a sapinha da sua filha, está bem?", "sapinha?", não, "e a sapinha, está bem?", eu: "sapinha? Mas que sapinha?", na época ainda não sabia muito os termos, que é sapatão, sapa, não sei o que, tal. Bom, enfim, aí eu falei: "ah, está falando da minha filha? Ah, ela está bem. Não, porque ela está namorando com uma menina, ela não está...", "ah, então agora eu estou entendendo, está falando da minha filha?", então, aí você vai desconstruindo isso. E aí eu não vou falar, eu virei até para a pessoa e mexi na ferida dela também. Não vou contar o que eu falei para ela, se não vai ficar triste. Não é palavrão, mas não vou expor a situação. Mas então são essas coisas que te faz olhar diferente. Então, dentro do movimento AIDS, a gente vê muito isso, dessas questões de recortes, porque tem a população negra vivendo com HIV, tem a população periférica vivendo com HIV, tem a pessoa da área nobre, os HIV elitizados. Gente, não existe isso. Tudo bem, ele tem uma condição melhor? Tem. Mas a dor é a mesma, o sofrimento é o mesmo. Então eu não consigo, então você acaba gerando um conflito com um monte de gente. Mas a minha mãe sempre disse que árvore que dá fruto não leva pedrada, então deixa...
P/1 - Sandra, eu vou perguntar como que o projeto Poder Jovem... vocês iam perguntar, porque você falou, começou a falar do Poder Jovem, mas você tinha falado da sala, que você...
R - Sim.
P/1 - Então só conta resumidamente, porque são 5:10...
R - Está bom.
P/1 - Só para falar do nascimento do projeto.
R - Então aí a sala, ela ficou totalmente à parte do Poder Jovem. Porque o Poder Jovem, a gente pensava em outras coisas e era uma atividade voluntária minha aos sábados. E eu precisava firmar o projeto enquanto profissional do hospital. Então aí veio a sala multidisciplinar, voltava para o adolescente. A ideia do projeto era que as especialidades se conversassem, para fazer a melhor aderência do adolescente, mas isso é muito difícil, você conseguir implantar dentro de um órgão público, porque não é todo profissional que... "ah, está bom, eu vou, é um trabalho a mais". E também falta muito funcionário dentro do órgão público. Então a sala continua hoje, até hoje, ela foi fechada, foi aberta, foi fechada, foi aberta, eu recebi um denúncia em 2009, de uma profissional, uma colega de trabalho que tinha interesse também em implantar um projeto para adolescente, aí para acabar com o meu ela tinha que... aí eu recebi uma denúncia grave, que quando eu abri o e-mail e vi aquela denúncia, eu falei: "meu Deus do céu". A doutora Glória estava na Argentina, ela já me ligou e falou: "Sandra, está tranquila, porque a gente conhece seu trabalho, não vai dar em nada". Então está bom.
P/1 - A doutora Glória, ela era o que?
R - Ela é médica infecto, do PS, e ela é presidente do voluntariado do hospital. E acabou que quando eu fui chamada lá, ela caiu em contradição várias vezes, a pessoa. Que foi a chefe dela que foi, ela não foi. Primeiro, porque eu tinha feito o aniversário de um jovem na minha casa e aí a família dele foi, tal, e tinha um adolescente que queria entrar no projeto. Foi o primeiro sábado dele, foi justamente no dia que tinha que fazer a surpresa para ele da festa, porque ele não estava sabendo, ele queria fazer a festa, não tinha lugar e aí combinei com a família, a gente fez uma surpresa para ele na minha casa. E eu falei para ele: "oh, nós vamos numa festinha", que a gente tinha combinado com o aniversariante que a gente ia levar ele para uma festinha. E ele pegou e chamou o menino para ir. Só que o menino estava entrando no Poder Jovem e o menino vinha de uma dependência química. E eu tinha acabado de falar para a mãe que eu não ia poder receber o menino no projeto, porque eu não tinha um profissional para cuidar dele e eu não tinha lidado com nenhum jovem com dependência química, eu não iria saber lidar com a situação. Mas como ele já tinha feito o convite, eu falei: "oh, se a senhora aceitar, eu levo ele para a festa, aí amanhã eu me comprometo de ele voltar com os meninos". E ela deixou o menino ir para a festa. Aí minha casa é comum, não é um palacete. Teve a festa, tudo, foi tudo lindo, maravilhoso. Dez horas, como eu faço com todos os outros jovens, liguei para a mãe dele, falei: "oh, ele está tomando o remédio, tomou o remédio bonitinho, ali na minha frente, tal". Beleza. Quando foi no outro dia um dos meninos levou ele até o metrô, aonde ela falou que era para levar e ela morava aqui na Sumaré. E ela adotou esse menino. Então ele tem de todo cuidado dela. Aí deixou, tal, quando foi umas 11 horas ela me ligou. "Como você deixou meu filho vir sozinho?", e não sei o que, começou a falar: "você deixou meu filho dormir no chão?". Gente, adolescente é colchonete, é todo mundo junto. Única coisa que eu deixo, eu separo, é menina de menino, isso até hoje, não importa, eles estão com 20... meu mais velho está com 32 anos, do Poder Jovem, professor de educação física. Vai viajar comigo? Nós vamos viajar. Mas menina vai dormir num lugar, menino vai dormir no outro. "Ah, mas somos casal", está bom. Já estão morando junto? Não. Cá, cá. Aqui é uma coisa, lá é outra coisa, pronto. E eles respeitam e acabou. Aí quando abri o e-mail, menina se insinuando para menino, dançando para menino sem calcinha, se insinuando, não sei o que, droga, álcool, era uma denúncia cabeluda. Eu falei: "vai chegar lá, vai estar Globo", porque já pensou? Funcionária de Emílio Ribas leva adolescentes para casa e faz uma orgia. Bom, enfim, e nisso a dona Terezinha é uma pessoa muito justa, foi e falou: "não, espera aí". Eu estava implantando uma parceria do Senac com o Emílio Ribas para curso profissionalizante para os jovens. Bem nesse dia que veio a denúncia, a dona Terezinha não falou nada para mim, porque ela viu que ia interferir na dinâmica toda, ela esperou passar a conclusão para depois ela contar para mim. E aí ela me contou, mandou o e-mail, tal, e lá ela falou assim: "então...", quando ela viu que não tinha jeito de ela me acusar, a Terezinha falou: "olha, nem na minha casa, que vamos considerar que eu sou privilegiada, moro numa casa bem estruturada, quando o meu neto faz festa, ele leva os jovens, não tem aonde todo mundo dormir, então cada um se joga num lugar". E aí ela não tinha argumento. Aí ela falou: "olha, dona Terezinha, mas o pior foi no dia do curso, que a Sandra já tinha contado para os jovens dessa denúncia e chegou os jovens a bater nesse jovem e eles iam bater nele lá no metrô. Aí agora o jovem não consegue nem vir para a consulta, porque os jovens estão insultando ele". Aí a dona Terezinha ficou assim: "que feio. Parar um hospital por uma denúncia que não é verdade. E a Sandra só ficou sabendo desse e-mail depois de toda...", graças a Deus que foi assim, né? Porque foi... aí pronto, aí nunca mais mexeram comigo lá.
P/1 - Pois é, e acabou tudo tranquilo?
R - Tranquilo. Aí a sala está lá até hoje, hoje eu não estou ativa no hospital, porque eu faço mais projetos extra-muro, porque não dá para conciliar os trabalhos da fundação com o hospital, então tudo o que é relacionado a prevenção e HIV, eu estou desenvolvendo junto com os jovens que fazem tratamento no hospital. Hoje os jovens que foram acolhidos, hoje fazem acolhimento no leito do paciente, acolhi os jovens, tal, ministramos palestras nas escolas, fizemos 55 escolas, 22 mil alunos impactados o ano passado.
P/2 - Eu não sei se você vai ter quantidade, mas desses jovens, teve muitos, por exemplo, que começaram ou recomeçaram o tratamento? Ou os jovens que estão hoje são só... ainda tem jovens que não têm o tratamento? Como que é esse...
R - Eu vou te falar que uma das maiores dificuldades e que não existe receita pronta e que não vai existir, é a coisa mais difícil, eu vou fazer uma pergunta para você, você me fez uma pergunta, agora eu vou te fazer outra, qual doce que você gosta mais?
P/2 - Nossa.
R - O que você gosta mais de comer?
P/2 - Eu gosto de chocolate.
R - Tá, você come chocolate de manhã, um meio-dia e um à noite, todos os dias. Eu te dou três semanas que você não vai nem aguentar mais ver chocolate na sua frente. Você vai sentir vontade depois de novo, você vai ficar um período sem comer, depois você vai sentir vontade. Mas se você comer todos os dias, você vai enjoar. Agora imagina você ser obrigado a tomar um remédio que tem vários efeitos colaterais, que tem toda uma questão que mexe com seu psicológico, tem toda uma questão da doença, tem toda uma questão de aceitação, porque assim, eu vejo muita cobrança e eu brigo mesmo, "ai, você mima muito eles", não, não é mimar, é entender. Porque é muito fácil eu falar assim: "ah, ele é irresponsável, adolescente é irresponsável", não, adolescente não é irresponsável. Já começa pensando errado, porque eles são muito criativos, eles constroem muitas coisas, eles são capazes de fazer muitas outras coisas, é porque as pessoas não escutam eles, não dão voz ao que eles estão pedindo e solicitando, e reivindicando e tal. E quando é uma doidera muito doidera, você conversa e mostra que não é. Mas em questão da doença, é muito difícil, gente. Começo a namorar, conto ou não conto? Vou para um hotel com a minha namorada, eu vou ter que levar o remédio? Eu vou para a balada, eu tenho que levar o remédio? Poxa, eu estou namorando e o relacionamento ficou muito sério e agora eu quero começar minha vida sexual ativa. Geralmente a menina sofre mais isso, o menino nem tanto. Ele não quer usar preservativo e eu não quero contar, ainda não está no momento de eu contar que eu sou soro positivo para ele. E aí? Como é que eu faço? Conto ou não conto? Então coisas que são naturais para os nossos filhos e amigos de vocês, que não têm uma doença que possa infectar outra pessoa, ou uma doença crônica, é fácil. Você tem todos os seus conflitos, mas você consegue administrar todos eles. Agora, você pensa você ter uma doença que é estigma de preconceito e que você já tem os seus conflitos da adolescência, aí tem todo esse peso e você tem que administrar tudo isso, aí você tem as perdas, aí você não tem ganhos, entendeu? Então você tem que mostrar os ganhos para eles, para você ter a conquista. Então é aquilo que eu te falo, o que dá para a gente saber quando está bem é quando você vê ele se inscrevendo para entrar numa faculdade, você vê namorando, você vê constituindo família, você vê chegando com o filho no colo, realizou um sonho. Aí você vê que deu resultado. Fora isso, não tem como. E quando a gente perde.
P/1 - Sandra, como pode ser um vídeo bastante acessado, por caminhos que não aqueles de pesquisar sobre, a gente vai colocar num portal, vai colocar o tema. Você falou com um filho no colo, então, aí eu pergunto: se você tem um caso, assim, como que foi sendo construída essa história dessa pessoa, que tinha que se preservar, mas traz uma criança, que foi filho, que é filho.
R - Então, eu vou contar um relato de um jovem que eu conheci dizendo... tem até vídeo dele na internet, que é o Anderson, ele tinha 16 para 17 anos e quando eu convidei ele para o projeto, ele falou assim: "ah, mais um projeto para falar de HIV? Não quero, não. Vai ficar falando de doença? Não quero, não". Eu falei: "não, vamos conversar, o que você gosta de fazer?", ele falou: "não, na minha comunidade eu lidero um grupo de hip-hop", eu falei: "então tá, 1º de dezembro vai ter a noite cultural do Poder Jovem, você vai apresentar, estou convidando você para trazer seu grupo e apresentar o hip-hop", opa. E aí eu fui conhecendo o Anderson, fui ver a vida dele, enfim, a história dele que vem de um abrigo, ele descobriu aos oito anos e ele tem todo... viu no hip-hop uma forma de lidar com a questão da doença e acabou, como é que fala, sendo referência. Porque ele fez o Profissão Repórter, fez todo um negócio com ele, ficou bem legal. E ele conheceu uma menina, casou com essa menina, mora com ela e tem um filhinho que é meu afilhado, coisa mais rica. Mas ele teve todos os processos.
P/1 - Conta um pouco, é uma história que é legal contar.
R - De não querer tomar remédio, de vir de uma família já desestruturada, que acabou indo para um abrigo e aí conhece o Poder Jovem e aquela fase de “eu não quero tomar o remédio, mas ao mesmo tempo eu preciso tomar o remédio porque eu preciso ficar bem”, então ele nunca deixou de tomar o remédio. Ele é um exemplo por isso, o CD quatro dele sempre foi bom, a carga viral dele sempre foi indetectável porque ele sempre se cuidou. E quando ele saiu do abrigo... porque hoje não, hoje o abrigo tem um outro olhar, mas na época que ele saiu... porque também todo mundo foi aprendendo conforme foi acontecendo porque ninguém esperava que o jovem que nasceu de transmissão vertical fosse tão além, fosse chegar na vida adulta, constituir família e enfim. Todo mundo foi aprendendo conforme as coisas foram acontecendo, os avanços foram acontecendo. Então o Anderson sai do abrigo sem saber como é o mundo aqui fora, porque quando você está no abrigo você fala assim: “nossa, eu vi o tênis dela, achei lindo, maravilho e eu quero um igual”, fala com o voluntário, o voluntário vai lá e dá um tênis para ele, que ele quer. Um menino que morreu no hospital ganhou quatro daqueles MP3, na época era MP3, hoje já tem até não sei o que, ganhou os quatro e ele queria usar os quatro no computador e gente: “vai ter que deixar”. Não, aí a gente vai cortando e falando que não é tudo isso. E lá não tinha isso, então tudo mundo quer ajudar e quando ele sai aqui fora a realidade é outra, volta para a família, não está acostumado com aquele ambiente de comunidade mais porque ele foi morar num abrigo que tinha cama limpinha, não está mais acostumado com os tios alcóolatras. Ele ficou um mês dormindo no terminal porque ele não queria ficar com a família, queria trabalhar e ter dinheiro para conquistara casa dele, ele ficou um mês, não faltou um dia. Ele foi morar na minha casa e depois saiu porque disse que tinha que morar na casa dele, aí ficou um mês dormindo no terminal da Lapa, não faltou nenhum dia de trabalho, juntou dinheiro e alugou a casa dele. E foi trabalhar no voluntariado do hospital e depois no Poder Jovem e está lá até hoje, hoje é professor de hip-hop no Poder Jovem, ministra palestras nas escolas e é isso.
P/1 - E aí conheceu a namorada.
R - Conheceu a namorada, começou a namorar, contou. De todos os jovens que constituíram família, eu vou falar de 16 jovens, eu só tenho um casal que os dois soropositivos, são vivendo, os outros são todos soro discordante e todos já têm filhos e todos os filhos não têm, nenhum tem. E tem uma questão também que é o I igual a I, não sei se vocês sabem, quando você está indetectável, você está intransmissível, ou seja, você não está infectando ninguém.
P/1 - Desculpa, quando ele está indetectável...
R - ...ele está intransmissível. Então quando conhecer alguém com HIV a primeira coisa é acolhimento, acolher, “você está se tratando?” é só isso. “Estou”, “como que você está?”, não vai perguntar CD quatro e carga viral, não precisa porque você não vai nem lembrar, ele vai falar: “eu estou bem, minha imunidade está acima de 500, o meu vírus está indetectável, eu estou bem”, então fique tranquilo. Porque as vezes a pessoa sai com alguém, estourou a camisinha e ela é obrigada a falar, aí a pessoa se desespera, já quer cortar os pulsos. Não há necessidade.
P/3 - E se indetectável você consegue, através do tratamento com o remédio...
R - ...do tratamento com o remédio.
P/3 - Com alimentação.
R - Exatamente.
P/3 - Fala você então como a pessoa consegue chegar nesse momento de estar indetectável.
R - É aquilo que eu falar, de tomar o remédio, é muito difícil tomar o remédio todos os dias.
P/3 - O que eles falam para você?
R - Porque sente náusea, quando você está enjoado de comer uma coisa você sente náuseas, você não consegue engolir, não passa, vai e volta, aí é sono, é nervoso, os efeitos colaterais.
P/3 - E esses efeitos permanecem mesmo ele se habituando?
R - Não, mas só que quando ele para, ele tem que começar com uma nova medicação e aí é ruim porque tem que começar tudo de novo.
P/3 - E eu falei para você falar porque a gente acabou falando que se ele fizer o tratamento, aí você... pode continuar.
R - Então, se ele fizer o tratamento coretinho, tomando a medicação sem falhar, ele vai ficar indetectável e vai ficar saudável, vai continuar a vida dele normal.
P/3 - E aí ele não infecta?
R - Não, mas tem que ter os outros cuidados também. Boa alimentação, para não pegar, porque as oportunistas estão aí, qualquer um pega, eu pego uma gripe, você pega uma gripe, todo mundo pega e eles não estão livres disso. E tomar o cuidado mesmo, então essa conscientização de cuidado entre eles que precisa se fortalecer mais e eu sempre falo, quando entra um jovem convivendo lá, que a mãe não tem ninguém na família com HIV e ela não sabe muito do universo HIV, do que é viver com HIV. O viver com HIV eu explico para ela o seguinte: que o bom é porque o filho dela está participando de um projeto em que sabe que ali tem pessoas que vivem com o HIV, na escola ele não vai saber. Então não precisa ter esse medo, de deixar esse seu filho se envolver, e se estiver namorando, é preocupar mais com a questão do tratamento dele, se o parceiro ou a parceira está se tratando. O filho conta que a mãe desespera, então tem que saber orientar para que não entre no desespero.
P/3 - Eu estou te perguntando essas coisas Sandra, porque a sua organização faz um trabalho e você está contando do trabalho que vocês fazem. Então você fala quando vem uma mãe perguntar ou preocupada com coisas, como que vocês tratam, é disso que eu estou falando.
R - E aí aquele cuidado, porque não é porque é uma instituição, vamos juntar duas instituições porque é vivendo e convivendo então pode pegar essa instituição. Não, não pode. Porque precisa ter essa consciência, isso é muito importante, de a mãe saber que o filho está participando de um projeto com pessoas vivendo com HIV e que vai ser conversado sobre sexualidade com ele, sobre prevenção. Que é diferente pegar uma instituição normal, que trabalha só cursos e só o educacional e misturar com a ONG voltada para o HIV, porque as pessoas também têm essa crença de “então dá para misturar tudo”, não dá, ainda é uma coisa que precisa ser muito conversada.
P/3 - E como a fundação ajuda esses jovens? Que atividades vocês fazem lá?
R - Tem teatro, tem dança, tem música, tem roda de conversa, a gente viaja, participa de (LINS) [01:54:02], que é a construção de universidade popular, que é bem legal, com atividades interativas, de interação. Tem várias outras coisas.
P/3 - Como foi essa saída de dentro do hospital para ser mais independente e se continua tendo alguma relação.
R - Aí eu vou te falar que foi o momento mais difícil para mim, foi uma conquista, mas foi o momento mais difícil para mim, porque foi aí que eu fui sentir o preconceito de verdade, bater. Porque é a primeira fundação de HIV e Aids no Brasil e aí todo mundo quer a fatia do bolo. Em nenhum momento eu deixei de revidar, revidei mesmo, briguei mesmo e ficou uma coisa que foi muito triste para mim, poderia tomar uma outra postura, mas talvez se eu tivesse tido outra postura, não teria chegado como está agora. A mesma pessoa que ofereceu para mim a possibilidade de tornar uma fundação, disse para mim: “desculpa, mas você sabe que a porta-bandeira desse projeto vai ter que ser a sua parceria” e eu virei para ele e falei: “não, ela vai ser a porta-bandeira pela área dela e eu vou ser a porta-bandeira pela minha área”. E aí as pessoas não gostam que você fale as coisas que acontecem com você e eu acho que a gente tem que falar, porque se a gente não fala, a gente continua, mais uma vez, sendo grata, porém não conseguindo ser crítica. A minha gratidão por essa pessoa que é minha parceria, é pegar a oportunidade que ela me deu e nela mostrar meu potencial, mostrar minha dedicação, valorizar o que ela fez para mim com o meu trabalho, com o resultado, não deixando denegrir e nem cair. Esse foi um baque para mim, porque eu esperava, nesse momento... “não, mas você tem que ser política”, política até que ponto? Você vê uma pessoa destratando uma pessoa que você viu todo um trabalho acontecer e você falar: “não, está bom é isso mesmo”, só por questões políticas? Desculpa, a gente vai mais além que isso, nós somos maiores que isso. Esse foi um ponto e aí outro ponto é: você escutar que você não faz parte de uma sociedade, que você não está dentro de um perfil que a sociedade impõe. Qual é esse perfil? Por que eu não estudei nos melhores colégios? Por que eu não tive... qual é esse perfil? E aí eu fui falar com as pessoas sobre isso, sabe o que as pessoas falaram de retorno para mim? Que eu estava sendo ingrata, que eu estava difamando e eu não estava difamando, eu estava querendo entender se as outras pessoas também tinham esse mesmo olhar. Porque se eu considero você e você fala para mim: “olha, a sua amiga falou isso de você”, eu não vou alimentar isso, eu vou chamar a sua amiga e você e vamos conversar, ver o que está acontecendo. As pessoas se aproveitaram da situação de conflito e aí a coisa virou maior, mas na verdade eu queria deixar o meu recado sim, que eu sou grata pelo que fez por mim, mas eu não posso pegar essa gratidão e desmerecer todo um trabalho que eu desenvolvi ao longo de dez anos. Então eu sou sim a primeira mulher negra presidente da primeira fundação de HIV e Aids do Brasil, por que eu tenho que ter medo de falar isso? E vou te falar, tenho receio de falar, sabia? Porque dependendo do lugar não é visto com bons olhos, infelizmente. É isso. Então eu já vi pessoas com dificuldades até, de falar. Pode ser uma coisa só da minha cabeça? Não acredito que seja só uma coisa da minha cabeça, você vê quando você não é convidada para os lugares porque não você não teve empatia, por que não teve empatia? A pessoa nem me conhece, como é que ela não teve empatia comigo? E aí você ter que declinar um projeto porque a pessoa acha que você é boba e fala: “nossa, mas é uma empresa, você está pronta para falar numa comitiva de imprensa que você está declinando um projeto dessa empresa, porque você não está de acordo”? Claro que eu estou, porque foram dez anos de trabalho para conquistar a credibilidade que tem hoje e não vai ser 145 mil dólares, sei lá, dessa empresa e o nome dessa empresa que vai fazer eu dar continuidade nesse trabalho se o que ele está propondo para me dar essa verba eu não cumprir. O foco do meu trabalho é adolescente, não é mortalidade infantil, eu não vou assinar isso. O dinheiro vai entrar, mas uma hora eu vou ter que devolver porque eu não consegui cumprir. É você ter um parceiro bancando o seu projeto, você está feliz da vida, conquistando porque você virou uma fundação. Não é virou uma fundação e pronto, você tem que comprovar que você merece ser uma fundação, ser uma fundação (de status) [02:00:33], ver essa fundação crescer. Pode ser pretensioso eu ver essa fundação ser uma fundação de excelência? Não, eu quero isso, se eu estou trabalhando para isso, eu quero. “Você é muito pretensiosa, você é muito isso”, não, não é. Eu quero que ela seja sim e que seja o jovem o protagonista dessa história, então tem que ir Brasília e não é a Sandra que tem que ir para Brasília, é o jovem que tem que ir lá para Brasília e pronto. Ele se inscreveu num programa cultural para ganhar uma verba, ele ganhar a verba, ir lá e desenvolver o projeto dele, é ganho para a fundação porque ele foi estimulado ali e está sendo protagonista da história dele. Você vê o jovem apresentar um projeto para 280 inscritos num programa, para ganhar um dinheiro e ele sair pela primeira vez inscrito, pegar décimo quinto lugar e ganhar verba e ficar desesperado “e agora como eu vou administrar esse dinheiro?”, “a gente vai te ajudar”. Então você tem que mostrar. E aí você vê as pessoas vendo as coisas tortas, por trás, para destruir o que você está construindo e você tem que saber lutar por isso, não é fácil. Fiquei um período todo sem verba e como eu vou fazer agora? Aí vem a proposta indecente: “não, para continuar você tem que passar tudo para cá”, não vai passar, então vamos lá no Ministério Público conversar. Mandou um e-mail que ia fazer e acontecer, está bom.
P/3 - Hoje a Poder Jovem é independente do hospital?
R - É independente do hospital, é CNPJ, pessoa jurídica, tudo. E você voltar para trás, hoje a gente voltou para uma salinha, aí é aquela coisa que eu falo que Deus está sempre num direcionamento. A gente voltou para uma salinha, que é a nossa sala e que por sinal é muito bonita, vocês não foram lá ainda, mas um dia vão, que a gente mobiliou, ganhou uma louça digital chiquérrima e está lá para os meninos aprenderem. Consegui um espaço lá na Rua do Carmo e estamos começando projeto de novo, ele vai, mas ainda continua sendo referência, ainda está sendo solicitado e nós vamos continuar seguindo e não vou deixar, são quatro anos, vou estar lá e vou cumprir meu papel até terminar, até ter força.
P/3 - A Camila fez uma pergunta que me deu um gancho. Você começou falando: “eu precisava entender por que os jovens não têm essa adesão ao tratamento” e hoje você fala que continua sendo difícil. E aí a Camila falou: “qual diferença a Poder Jovem faz”?
R - É aquilo que eu expliquei, não dá para mensurar.
P/3 - Explica melhor isso.
R - Não dá para mensurar em que ponto a Poder Jovem ajuda, para que ele se torne aderente ao tratamento. O que dá para perceber, as melhoras, é quando ele chega e fala: “não, eu quero estudar e para estudar eu tenho que estar bem”, “eu quero viajar e para viajar eu tenho que estar bem”. Você vê ele entrar numa faculdade e aí você entende que ele está melhorando.
P/3 - Você falou: “não vamos misturar, tem as instituições, trabalho com educação, não vamos misturar com essa ação” e fala melhor isso.
R - Por exemplo, porque tem o Poder Jovem, mas tem mil outras instituições que trabalham com jovens vivendo com HIV, certo? Então vamos supor, eu sou o projeto Adolescentes do Bairro e aqui tem o Poder Jovem, eu não posso simplesmente juntar o meu projeto com esse aqui, porque esse aqui é bom aí eu vou pôr o meu com ele e a gente junta, faz um trabalho em conjunto. Porque os jovens aqui, eles não têm o HIV e a mãe quando coloca, coloca ele para participar de um projeto, não de um projeto voltado para jovens com HIV. Eles se relacionam, pode engravidar, quem vai assumir a responsabilidade? Eu não assumo, já deixo bem claro, porque é aquilo que eu falei, o trabalho existe, ele é feito, mas o preconceito existe e ainda é muito forte. É isso, nesse sentido.
P/3 - Tem a especificidade.
R - Exatamente, isso mesmo.
P/3 - Meninas, mais alguma coisa que vocês querem sabe?
P/3 - Eu queria saber se você tem algum sonho.
R - Tenho.
P/3 - E qual seria?
R - Sonho com os meus filhos amparados, então sonho em ter minha casa, eu não quero muita coisa não, só quero ter minha casa e ver as coisas que você nem imaginava que seria capaz, tendo um bom resultado no final. É isso, só isso é o meu sonho. Porque se eu tiver minha casa, se eu fechar os olhos, meus filhos vão ter onde morar. E pronto.
P/3 - E se você pudesse trabalhar com outra coisa, você trabalharia? Ou você acha que esse é o seu caminho mesmo?
R - Olha, eu não vou falar para você assim, se tivesse possibilidade de trabalhar em outra coisa eu não iria, eu acho que eu iria. Porque eu acho que vai chegar um momento que eu vou ter outros caminhos, outras coisas para fazer, outras coisas para aprender, não sei. Mas se você me perguntar hoje, se aparecer uma proposta milionária para você sair do Poder Jovem, você largaria o Poder Jovem? Eu não largaria o Poder Jovem.
P/3 - Quem deu esse nome?
R - Os jovens.
P/3 - Como?
R - Nós fizemos tipo uma votação e nós tínhamos um logo que era tipo uns raios de sangue, que foram eles que criaram, um símbolo do Super Homem e o PJ no meio. Aí quando tornamos fundação, a pessoa que fez essa arte, que é da (Lumideia) [02:07:43], é a Vanessa e o Alder, são uns fofos. Fizeram uma entrevista com a gente e aí cada um colocou as suas ideias e em conversas com os jovens ela escutou que os jovens pensam muitas coisas, então ela fez essa explosão de sentimentos. E a andorinha é porque eu falo muito que uma andorinha só não faz verão porque realmente ela não faz. É isso. E aqui é a pessoa com a mente.
P/3 - E o nome? Poder Jovem?
R - O Poder é porque eles realmente precisam ter esse poder de acreditar que vai seguir em frente, que vai vencer essa batalha de preconceitos.
P/3 - A gente deixou de perguntar muitas coisas, mas tem alguma que você quer falar, que a gente não te perguntou? Você gostaria muito de deixar registado? Uma situação.
R - O que eu queria deixar registrado é uma coisa muito pessoa da Sandra, tipo uma mensagem mesmo. Que a gratidão, o gesto de ser grato é você receber a oportunidade de uma pessoa ou da vida, e você pegar essa oportunidade e levar com determinação, competência, dedicação para aí você tomar posse do que você conquistou, e mostrar para essa pessoa que valeu a pena ela ter dado a oportunidade. É isso.
P/3 - O que você achou de contar essa história aqui? Porque você já deve ter dado várias entrevistas.
R - Não, não dei muitas não.
P/3 - Mas como você se sentiu, o que você achou?
R - Quando ela veio com a proposta, eu gostaria muito que tivesse um jovem aqui, vivendo, falando. Eu nem pensei na hora, eu comecei a contar e elas falaram: “por que você não fala a sua história”? E eu sempre tive vontade de falar, então eu amei essa oportunidade porque depois eu vou ter a oportunidade de escutar a minha história. E lógico que eu vou lembrar de muitas outras coisas que aconteceram, porque são 50 anos que eu estou completando nesse ano. E aí eu falei: “puxa, como Deus é maravilho, eu estou completando 50 anos e ele me dá um presente desse”, tive minha neta, agora um relato da minha história. Tem um dizer que são três coisas que a gente tem que fazer na vida: escrever um livro...
P/3 - Plantar uma árvore.
R - Eu já plantei a árvore faz muito tempo, vou plantar outra. Mas não é um livro, é um registro que eu vou poder guardar para mim e vou poder deixar para os meus filhos.
P/3 - Para nós foi maravilhoso também, é uma oportunidade e tanto.
R - Eu acho que eu falei dos meus filhos, porque eu acho que eu falei muito dos meus filhos no período do acontecido, não falei deles depois, do hoje.
P/3 - Quer falar alguma coisa deles?
R - Seria bom, porque senão não vou falar nada dos meus filhos e da minha mãe? Da minha mãe eu falei.
P/3 - Você falou de uma certa forma.
R - É, da minha mãe eu falei, mas os meus filhos então, dentro de toda essa situação, eu vou falar como eu sou privilegiada. Porque são três filhos que dividem a mãe o tempo todo com outros jovens, e que poderiam ficar revoltados com isso, a gente vê os filhos revoltados com tantas coisas bobas e aí essa questão de não ter tempo mesmo. Às vezes não tenho tempo para ir na escola ver, acompanhar tão de perto e tudo, mas ter o carinho e compreensão deles, de eu estar no trabalho, para mim isso é muito rico. Eu tenho muito que agradecer a eles, por ter esse desprendimento, porque é difícil você dividir a mãe. Eu sou ciumenta, eu acho que ia ser difícil para mim dividir minha mãe. Filha única, você acha que não ia ter ciúmes? Muito difícil. É isso.
P/3 - Como você se sente sendo essa mulher com essa missão – vou chamar assim – com esses jovens?
R - Quando começaram todos esses conflitos, eu fui até procurar (coach) [02:13:16] porque eu queria resolver porque eu gosto muito da minha parceira, embora hoje a gente esteja brigada mesmo, acho que nós estamos com um conflito entre nós duas, de olhares. E quando falou do conflito eu disse: “tem tudo a ver” porque é um conflito mesmo. Eu gosto dela, sou grata pelo o que ela me fez, mas isso foi bom porque eu também fui ver umas outras possibilidades de olhar para a Sandra e valorizar a Sandra. Então eu fui fazer coach e no coach eu descobri a minha missão, que é ser resiliente... eu não vou saber ela agora de cor, porque é uma frase completa, mas eu tenho ela ali.
P/3 - Mas como você sente em relação...
R - ...então assim, a Sandra hoje eu vejo assim, o trabalhar a resiliência, o trabalhar a fé, o acreditar no outro e persistir no que acredita. Então é uma missão que na verdade é um grande ganho na minha vida, porque eu me sinto realizada, eu tenho muito amor por tudo isso. Cada conquista que as vezes para a gente é uma coisa tão boba, tipo: “ele conseguiu passar numa prova” e isso eu coloco não só os jovens, os meus filhos acompanham junto, então a maioria deles me chama de mãe. E aí eu vejo que é esse sentimento mesmo, como um todo. Eu me vejo uma pessoa forte, que não sabia dessa fortaleza toda, de resiliência mesmo e de acreditar. É isso.
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