Projeto: Memória dos Brasileiros - Brasil que Muda
Depoimento: Kaká Werá
Entrevistado por: Marc-André Delorme
Local: Florianópolis, 24/05/2007
Realização: Museu da Pessoa
Código: MB_HV007
Projeto Colaborativo Ashoka
Transcrito por: Maria da Conceição Amaral da Silva
P – Primeiro eu gostaria que você me desse o seu nome completo, o local e data de nascimento, por favor.
R – Meu nome é Kaká Werá Jecupé, o nome completo. Eu nasci em São Paulo, eu sou de São Paulo.
P – E a data de nascimento?
R – E nasci no dia primeiro de fevereiro de 1964.
P – Pode falar um pouquinho da sua família? Dos seus, vamos começar com os seus avós, por exemplo.
R – Meus avós. Pouquíssima memória, quase nenhuma, tenho dos meus avós, que eu não cheguei a conhecer, com exceção da minha avó que é mãe da minha mãe, por um curto período de tempo, na minha infância. Mas meus avós são natural de Minas Gerais, do norte de Minas. De uma região que hoje é chamada de Campo Redondo, onde também nasceram os meus pais. A única memória que eu tenho assim da minha avó, é, não é uma memória física, não é uma memória assim...
P – Imagem?
R – ...é, é uma memória de imagem de referências, assim. Na verdade é uma memória até lendária, até mítica.
P – Pode elaborar um pouquinho essa...
R – é, porque, na verdade minha avó cuidou de mim em alguns momentos mas eu era criança, bebê e pequeno. E eu tenho uma imagem dela já uma anciã, cabelos negros assim, longos. E de uma amorosidade grandiosa, assim com relação a mim. E ficou o calor dessa amorosidade assim na presença, né? E como quando eu era pequeno nós não vivíamos com nossa família antepassada, meus pais migraram para São Paulo eu ainda não tinha nascido, eu nasci em São Paulo. Então quando eu perguntava assim da minha avó, e aí eles assim: "Ah, sua avó é um beija-flor, que de vez em quando ela aparece por aí." Então é uma imagem mítica. E depois com alguns anos de idade eu tive contatos, poucos contatos com a minha avó, mas é sempre essa coisa, esse aconchego, esse calor, essa amorosidade assim de receber. E então tenho poucas referências assim.
P – E os seus pais?
R – Meus pais...
P – Pode dar os nomes dos seus pais e...
R – Han, han. Meu pai se chama Miguel, e minha mãe se chama Maria. Nomes portugueses. Meus pais, eles vieram de Minas Gerais, dessa região do norte de Minas, para tentar uma nova vida, um novo ciclo em São Paulo. E para isso eles se submeteram a diversas situações assim. Então uma das situações era um pouco de ocultar justamente os seus valores e a sua cultura indígena. E outra assim, naquela época, como hoje também para viver em uma cidade um pouco maior, então eles também se submeteram a se adaptar ao modo de vida da cidade grande. Nós morávamos na periferia de São Paulo, no extremo sul de São Paulo, quase no início da Serra do Mar. E em uma região onde ainda era um pouco inóspita. Hoje não é. Hoje é uma região super populacionada. Então uma região tranqüila mas que já tinha um outro modo de vida. O modo de vida de uma cidade comum. É muito diferente o modo de vida do campo, ou do lugar onde eles habitavam, e muito diferente também de um modo de vida de uma tribo, de um povo tradicional. E, na verdade, meus pais negaram um pouco essa vida e essa cultura tradicional para se adaptar a esse modo de vida. Então eu tive uma infância assim é, onde a minha percepção é sempre dos meus pais batalhando, trabalhando, buscando, buscando formas de sobrevivência.
P – Que é que eles faziam?
R – Então, aí meu pai já trabalhou no, em sítios, em fazendas, próximo aonde morava. Depois deixaram de ter esses lugares assim, sítio, fazenda, se tornou bairros, né? E meu pai trabalhou em diversas coisas. Trabalhou lavando pratos, trabalhou na cozinha de restaurantes, ele teve diversos tipos de trabalho para sobreviver.
P – E a sua mãe?
R – E a minha mãe, como uma mãe tradicional, né? O, na verdade o trabalho dela de casa, minha mãe é a curadora. No nosso quintal ela vivia cuidando das ervas, das plantas no quintal. A memória que eu tenho da minha mãe é cuidando dos filhos, né? Eu sou mais velho. Eu tenho mais três irmãos, e cuidando das plantas, cuidando das ervas. E então a vida da minha mãe foi a vida caseira assim.
P – Qual a lembrança que você tem do trabalho dela de curadora? Tem uma coisa especial, uma lembrança específica em volta do trabalho?
R – Eu tenho uma memória, uma memória profunda da minha mãe, porque eu tive uma convivência com ela até os meus oito anos. Porque ela fez a passagem, ela morreu cedo. Mas uma memória que me fica é assim uma imagem assim dela observando nascer uma determinada planta e ela olhava assim e dizia: "Bom, se essa planta está nascendo, essa planta é uma planta boa para asma, então aqui alguém pode ficar um problema de asma. Então deixa eu fazer um chá." (RISO) Entendeu?Então ela tinha uma memória assim bem, hoje já frágil, se perde no tempo porque eu não, eu devia ter uns seis ou sete anos, e ela é uma pessoa muito, muito silenciosa, muito quieta. Então essa presença silenciosa também assim é uma memória que eu tenho assim dela.
P – Entendi.
R – E depois dos meus oito anos aí minha, eu tive um tipo de vida que onde a presença dessa minha mãe já não se fazia mais, então é a memória mais antiga que eu tenho é na infância mesmo.
P – Você pode falar um pouquinho dos seus irmãos? Dar os nomes e um pouquinho a relação que você tinha da infância?
R – Hum, hum. Bom, eu tive uma irmã também que morreu cedo, que é, o nome dela é Rose, né, Roseli. E ela também foi embora muito cedo. E eu tenho dois irmãos homens que seguiram caminhos muito diferentes dos meus, mas que na nossa infância nós vivíamos assim, como toda, toda criança. E por morar ainda dentro de uma região assim de mata, então nós vivíamos assim sumidos, caminhando por trilhas, brincando de coisas da mata, caçando palmito, como a gente fala. Caçar palmito, quer dizer, é sair, buscar árvores, identificar árvores de palmito que poderiam ser retiradas, identificando qual que era a árvore mãe. Quer dizer, aquelas que deveriam permanecer. E ao mesmo tempo utilizando as trilhas, os caminhos, os labirintos da mata como uma, como uma brincadeira, né, de esconde-esconde, de pega-pega, são brincadeiras das crianças aqui, nossa, né? Então a gente teve uma infância muito próxima, assim. Muito próxima do que tinha restado de floresta e muito identificado com a mata. Que conforme nós fomos crescendo a mata foi sumindo, as brincadeiras foram se transformando. Aí nós fizemos amizade com pessoas que chegavam e que ia aumentando ali no vilarejo. Naquela região de São Paulo recebeu muitas migrações assim do Nordeste do Brasil, do Norte. As brincadeiras foram modificando. Uma determinada área virou um campo de futebol. E aí o futebol virou nossa principal brincadeira. Na verdade virou nossa respiração. Minha então, né? Era o nosso ponto de convívio com todas as outras pessoas, com todas as outras crianças. Muito diversas, assim, de muitas origens, muito diferentes de nós, mas ali no futebol nós éramos assim grandes amigos. Assim se fez muitas amizades, nós fizemos muitas amizades a partir dos campos de barro, os campos simples de futebol. E a partir de uma determinada idade, lá pelos 10, 11 anos, o futebol, o jogo de futebol foi nossa principal brincadeira, depois virou paixão e depois virou alimento. (RISO) Então foi crescendo, e foi isso que firmou nossa relação com muitas outras pessoas também. A gente tinha, a gente sempre andava a partir de um momento, eu e meus irmãos, junto com as pessoas da comunidade ali, andávamos sempre em bando. Em grandes grupos de 10, 12 pessoas. Tudo que, levantávamos de manhã, tudo que ia fazer já juntava o grupo e se reunia em grupo. E é claro, isso compartilhado com a escola, né? Se instalou também uma escola na região, era relativamente próximo. Andava pelo menos assim uns dois quilômetros todo dia para ir para a escola, e voltava. Então como começava muito cedo a vida escolar, sete da manhã a gente já estava na escola, ia até meio-dia. Comia alguma coisa e era da tarde à noite era em bando. A gente vivia em bando assim.
P – Os mesmos colegas da escola?
R – Os mesmos colegas, é.
P – O dia inteiro juntos.
R – É, era uma continuidade. E nós vivemos juntos até a nossa adolescência, até a fase de adulto com esse bando, com esse grupo. Quando nós tirávamos férias, eles gostavam, mesmo não sendo de origem indígena, naquela época não tinha esse negócio assim, a gente não via diferença entre índio, não índio, essas coisas assim. Embora meu apelido, a maneira como me chamavam era de Índio. Como eu era magrinho, fininho, pequenininho, todo meio quietão, então como uma brincadeira o pessoal me chamava de Índião. Na verdade eu era pequenininho. "Ô, Índião, Índião, vamos..." E o que eles mais gostavam os meus amigos, os meus irmãos, nas férias a gente descia a serra e íamos procurar uma cachoeira para ficar acampando. Ficávamos três, quatro dias no mato. Depois voltava. Nosso programa de férias era ficar perto de cachoeiras. Não levava quase nada de comida, de alimento, porque o nosso, a gente tinha uma relação assim, então o nosso alimento a gente achava na mata, na floresta. E não era nem amigos assim índios. Era muito orgânico, né? A gente achava até divertido.
P – Pescava.
R – Pescava, não caçava. Ou era fruta da mata, ou era palmito, ou era peixe. A gente não tinha o hábito de caçar. E também caçar às vezes era uma atividade de destreza que exigia toda uma relação, na época já não se caçava mais, o não indígena usava espingarda. Então não era uma coisa que jovem, que criança utilizava. E também a gente não tinha muito espaço no nosso, na nossa convivência para pensar nisso. A gente na verdade se divertia. Então minha relação, minha memória com os irmãos, em um certo momento, está muito ligada com a memória desse bando, desse grupo que me acompanhou e que eu acompanhei até a minha formação na escola.
P – Vamos falar um pouquinho da escola, do primário. Você tem umas lembranças de professores, matérias? Um pouquinho de sua atitude também na escola?
R – Tenho. Eu tenho assim umas lembranças interessantes. Porque na época que eu estudava, a década de 70 aqui no Brasil era uma década do militarismo. Então tudo era muito, tudo tinha que ser muito certinho, tudo era muito rígido. Então hoje nas escolas as pessoas vão de qualquer jeito, de qualquer roupa. Naquela época você tinha um uniforme padrão e tinha que ir com aquele uniforme. Calça azul escura, azul-marinho, sapato preto, meia branca, camiseta branca impecável. E uma, tinha um tipo de uma gravata que a gente usava, quem estava no primeiro ano a gravata tinha um risco, no segundo ano tinha dois riscos. Então ia, riscos brancos, a gravata era azul. Então a minha memória de estar usando aquelas gravatinhas, aqueles, você via na gravata de um amigo, de um companheiro,de um colega de escola mais velho, você sabia em que grau que ele estava pelos riscos na gravata. "Ah, aquele lá está no quarto ano. Tem quatro riscos. Aquele está no quinto ano." Então eu tenho essas memórias de estar dentro desse uniforme, e ao mesmo tempo me sentindo meio destoado, meio fora de, fora de contexto. Mas quando você chegava na escola tudo era igual. E eu tenho uma memória, uma das minhas tarefas na escola era, quando nós chegávamos se cantava o Hino Nacional, isso não existe hoje mais em escolas, mas se cantava todo dia o Hino Nacional, e minha tarefa era segurar a Bandeira. Então segurava a Bandeira Nacional. Ela tinha um jeito de dobrar. Tinha um jeito de desdobrar. E aqueles que hasteavam, e a Bandeira na sua mão ia se desdobrando, se levantando. Aquilo ali era um ritual, né? E ia subindo no mastro. E eu sempre gostava quando tinha vento. Porque eu detestava ver bandeira parada, né? Eu gostava de ver a Bandeira quando ela estava batendo vento. Então essa é uma memória de primeiro ano, segundo ano, terceiro ano primário. Uma memória assim que me acompanha.
P – Já tinha, a gente passa para outro assunto, mas já tinha uma tradição de rituais na sua família, pelas origens assim indígenas?
R – Então, pelas origens indígenas e, não existia uma tradição de ritual na minha família, presente. Eu acredito que assim, como os meus pais tiveram que se adaptar e tiveram que meio que se esconder, assim,v amos dizer assim, para conviver com a, com as pessoas, com o sistema de vida, então naquele momento, nessa primeira parte de infância eu não tive acesso, nem a rituais, nem à própria língua.
P – Mas você tinha consciência que existia isso?
R – Mas eu tinha consciência, né? A gente, eu fazia lanças, fazia arco, fazia flecha, mas era uma coisa assim, minha, né, pessoal. E algumas coisas já começavam a me incomodar. Por exemplo, na escola, quando tinha comemoração do Dia do Índio. Então a maneira como lidava o Dia do Índio, como se fosse uma coisa no passado que não existia mais. E aquilo me incomodava. E aí quando os professores falavam assim: "O índio pescava, o índio caçava." É como se as coisas não mais existissem, e como se não houvesse mais índio. E eu ali estudando. Então eu achava, comecei a ter uma certa estranheza disso daí. E a estranheza era maior porque a poucos quilômetros da minha casa existia, e existe até hoje, a poucos, vamos dizer assim, uns 15, 20 quilômetros um povo ainda, uma comunidade indígena, que é a comunidade dos Guarani. Naquela época eu não tinha um relacionamento ainda com os Guarani como eu passei a ter depois. Mas eu pensava, como a gente saía para as matas, os meus amigos, as gente cruzava, aí eu pensava: "Tem alguma coisa errada aqui." A gente recebendo uma aula no Dia do Índio, se pintava, se desenhava, se colocava representações indígenas, mas era uma coisa muito distante.
P – Folclórica.
R – É, muito folclórica, assim, né? E isso eu achava um pouco estranho. Ao mesmo tempo o meu apelido era Índio. Na escola era esse o meu apelido que me chamavam. Então assim, mas eu não tinha nenhuma consciência do índio como eu vim a ter depois. Para mim era uma coisa extremamente natural. Mas eu achava algumas coisas meio estranhas.
P – A gente pode voltar sobre esse assunto depois, mas se a gente volta para a escola, a gente falou da bandeira e tal. Mas você lembra de um professor que te marcou, que ficou uma pessoa especial para você ou não?
R – Bom, lembro sim. Mas isso começou a acontecer já quando, o que? Na minha, no meu, quinta série, sexta série. Dois professores assim. Um professor era um negro, alto, forte que era justamente o professor de Educação Física. Esse professor, tem que lembrar o nome dele, me veio a figura assim. Porque o que ele mais estimulava, sendo professor de Educação Física estimulava muito o esporte. E ele estimulou muito a nós formarmos um time de futebol que transcendesse a escola. Que saísse, que não ficasse só ali na escola. Que ficasse, que fosse uma coisa do bairro, da comunidade. E ele se propôs a ser o nosso treinador. Então esse é uma memória muito interessante. Esse professor ele ia nos finais de semana treinar a gente, orientar a gente, enquanto um treinador mesmo. Orientar a gente fisicamente, etc e tal. E ele estimulava muito as habilidades, né? E esse professor é marcante porque ele deu um sentido de organização para uma turma de meninos de, muito crianças ainda assim, né? E um, e depois no final já do meu primeiro ciclo, que a gente chama de oitava série na época, sétima, oitava, um professor bem marcante é o professor de artes. Existia um professor de Educação artística que era um professor muito diferente, porque ele tinha cabelos longos, tal. E sempre mais, procurava, ia muito à vontade para a escola. Não ia, né, certinho. E ele levava a gente para determinados lugares, excursões, com o objetivo didático: "Ah, vocês vão aprender arte. Eu vou levar vocês para a Bienal de Arte." E levava todo o grupo para a Bienal. Toda a classe. E era marcante porque era uma coisa, saía daquela, de dentro da sala de aula e te estimulava a aprender outras coisas. Ver pintura, escultura, abriu o, a nossa consciência. Te estimulava a conhecer novas possibilidades. E dentre essas novas possibilidades ele identificava nas pessoas o que elas mais simpatizavam. Eu tenho um amigo que virou, amigo de infância, que virou um desenhista de história em quadrinhos por conta desse professor. Que ele já tinha isso na natureza dele.
P – O professor estimulou.
R – E o professor estimulou, direcionou, eu, minha, eu adoro a escrita. Eu adoro a leitura. E isso só permaneci nesse, nesse gosto, nesse prazer, evoluí esse prazer por causa dele. Ele estimulou ainda mais. Ele falou assim: "É muito bom, é muito bom você lidar com as palavras, se você gosta disso mergulhe. Vá fundo." E me dava livros, diversos livros de presente. Então são duas figuras bem marcantes.
P – E depois você fez, depois do colegial continuou para a faculdade?
R – Então, aí veio o período do colegial. Então aquele bando da minha infância quando chegamos no colegial esse bando ficou um pouco menor. E ficou um grupo de pessoas, um grupo menor, quatro, cinco pessoas. Só que nós éramos, quando nós entramos no colegial nós éramos mais críticos. Nós éramos mais reflexivos. Então esse bando, esse grupo se tornou um grupo meio que deu muito trabalho no colegial. Nós demos muito trabalho. Porque dentro do grupo tinha negros que começaram a refletir sobre a questão do negro, (RISO) do meu grupo. Nós tínhamos umas reflexões assim, umas dúvidas. E eu comecei a ter então uma reflexão sobre a minha condição. E nós fundamos um grupo dento do colegial chamado Raízes. Que era um grupo, e por sorte ou por não sorte, no colegial eu comecei a ter professores que estimulavam ainda mais o questionamento. O professor de Filosofia, tinha um professor de História que na verdade era um sociólogo, que começou a apontar algumas coisas sobre: "Olha, você já pensou sobre a sua condição? Sobre a sua cultura? Da onde que você veio? Que comunidade você pertence? O que você é?" Começou a colocar umas perguntas. Então no colegial nós demos muito trabalho. Não, o colegial você conclui em três anos, e a gente ficava tão envolvido, nós entramos no movimento estudantil. No movimento, não era movimento, era o chamado grêmio, na época chamava-se grêmio aqui no Brasil. Então tínhamos uma atuação política dentro da escola muito grande. E eu com, nos ocupávamos mais da atuação política do que de estudar. E isso nos custou alguns anos (RISO) de repetência assim. Nós fizemos em muito mais tempo do que as pessoas normais. A gente repetia de ano porque vivia envolvido em questões políticas.
P – Política em termo de política nacional, né?
R – É, política nacional e a política interna da escola. Saíamos para congressos políticos, para estudo de formação política. E então eu tive um colegial meio conturbado.
P – Foi interessante.
R – Foi interessante, assim. E aí foi no colegial que eu comecei a procurar os Guarani, e interagir com os Guarani, de uma maneira que eu pudesse servir à comunidade como uma ponte. Porque aí eu fui descobrir os problemas que a comunidade tinha: legalização de terras, a questão ambiental. Eu morava perto de uma represa que é extremamente poluída, aí comecei a ter reflexões já naquela época sobre essa questão da poluição. Então isso tudo aconteceu no colegial. Então eu comecei a ter uma ação, vamos dizer assim, política com esse pequeno grupo. E tudo isso acontece no colegial, no meio de um período que o Brasil ainda tinha coisas complicadas do ponto de vista da política. Foi um período bem conturbado, não é?
P – Hum, hum. Continuou a sua ação depois? Você se formou no colegial? Continuou assim atuando praticamente, socialmente com esses grupos?
R – É, meus pais, o meu pai quando eu estava quase concluindo o colegial o meu pai também faleceu. Ele fez a passagem. E eu me senti, meus irmãos tomaram rumos diferentes. Meus irmãos foram para, é, é a companhia de famílias, de pessoas que eram mais afins, de amigos que eram mais afins com eles. Eu me senti assim, eu tinha uma liberdade, eu não tinha mais uma família que eu pudesse me fixar. Então eu fui trabalhar com os Guarani. Naquela época eu não tinha essa noção que era um trabalho com os Guarani. Mas eu fui conviver mais profundamente com os Guarani com o objetivo de ser um voluntário, de ajudar alguma coisa. Em alguma coisa que eu não tinha claro o que é. Mas eu dividia essa, esse voluntarismo pelos Guarani com as questões do meu grupo de reflexão, do meu grupo de estudos. Do meu grupo, todos jovens, né? E os meus amigos mais, vamos dizer, mais íntimos se envolveram profundamente nessa questão política. Da política estudantil, da política acadêmica. Então eu tinha trocas sobre o que estava acontecendo no Brasil, sobre o militarismo, sobre essa, naquela época era a época que começou a vir a questão da anistia, por etapas. Então os que tinham sido exilados na década de 60 voltavam. Depois teve o momento que era o momento da, os governos passaram a ser eleitos de novo democraticamente. Aquilo foi uma vitória política da época. Meus amigos me informavam e eu acompanhava. E diziam que aquilo representava um grande passo. Que ia ter conseqüências assim, se esperava que tivesse conseqüências positivas melhores. Mas a gente já tinha uma preocupação com dois pontos, talvez por causa da nossa condição. A gente tinha preocupação com a questão da cultura, e uma preocupação com a questão do ambiente. A gente já tinha uma, não era o grande, a gente não era o ponto que se focavam, que nosso grupo, nossa turma, ou mesmo os políticos que estavam retornando e a política estava nascendo. Não existia preocupação ainda. Assim, a gente era meio assim, considerado ainda uma preocupação menor dessas transformações. Então eu nesse final do colegial eu divido a minha atenção um pouco assim com a comunidade. Mas eu tive uma vida toda fora da comunidade. Isso era uma, para mim, na época, serviu de facilidade para comunicar determinadas necessidades da comunidade. Era...
P – Eles não tinham representantes assim...
(PAUSA)
P – Então, a gente estava falando sobre a sua ação dentro da comunidade. Que você começou a meio que representar, ou comunicar as necessidades aí...
R – Da comunidade.
P – ...da comunidade.
R – É, talvez seja interessante essa maneira como começou. Eu em meados da década de 80, eu conheci uma liderança guarani que tinha vindo do Rio de Janeiro para São Paulo dentro da Aldeia Guarani de São Paulo. E essa liderança é um, foi o primeiro guarani que se tornou, na região Sudeste, na região entre Rio e São Paulo, foi o primeiro guarani que se tornou um professor, professor de História. E então ele tinha uma habilidade diferente da comunidade Guarani. Ele tinha a habilidade de também fazer as pontes. E ele reuniu um grupo na época da aldeia próxima aonde eu morava, e junto com os chefes locais, que nós chamamos o cacique, o pajé, eles criaram uma, um projeto de ter dentro da comunidade um centro de cultura. Um Centro de Cultura Guarani. E para haver esse centro de cultura eles tinham uma clareza de que tinham que trabalhar com o resgate da memória da cultura. E essa memória estava com os mais velhos. Bom, o que é que eu fiz na época? Eu comecei a me envolver com esse projeto que era um projeto deles, então eu viajava. Como eu tinha uma liberdade muito grande, assim, né? Eu viajava em algumas aldeias, eu peregrinava. Então em meados da década de 80 eu saio de São Paulo e eu venho para cá. Eu venho para o Sul do Brasil, procurar a Aldeia Morro dos Cavalos, que é uma Aldeia Guarani que fica na entrada da Ilha de Florianópolis. Eu tenho uma relação aqui com esse lugar onde nós estamos fazendo a entrevista. E depois eu tive a oportunidade, eu fiquei um período aqui, procurando identificar os velhos, porque eu queria ouvir os velhos. Mas, simplesmente, ouvir e identificar. E a idéia era convidar os velhos depois para ir para a aldeia de São Paulo e eles lá em São Paulo, na aldeia de São Paulo, fazerem o trabalho que na época eles queriam fazer, que era com que esses velhos ensinassem novamente algumas coisas. Então eu procurei identificar alguns sábios, curadores, pescadores. Então nessa viagem e nesses diálogos e convivência com os velhos, eu conheci pessoas extraordinárias. Eu conheci pessoas de grande sabedoria, ao mesmo tempo muito simples, assim. E quando eu estive em uma aldeia aqui próximo a, aqui tem uma região que chama São Francisco do Sul, é uma região próximo a Joinville, próximo a, conheci um cacique que me indicou um pajé que era um pajé que tinha muita sabedoria. Que era, que se chamava Werá. Só que esse pajé era um líder, um chefe também, da região de Angra dos Reis, próximo a Angra, próximo a Parati. Então eu procurei fazer o caminho de volta. E esse pajé vai parar na aldeia de São Paulo, na Aldeia Morro da Saudade, e ele tem o nome de Werá. E é uma pessoa assim de muita sabedoria. Na época que eu conheci ele já tinha lá quase 90 anos, embora não parecia. O nome português dele era Alcebíades, e o nome indígena dele era Werá. E eu convivi com ele e sua esposa, um casal de velhos, convivi alguns anos com eles. E eles não só me falaram, me passaram, na época eu não tinha como gravar, tudo era aqui e ficava no coração, não só me passaram muitas coisas da cultura Guarani como me formaram, assim. Eu uso bem essa palavra: eles me formaram, me deram uma formação de cultura. Ele era uma pessoa que vivia na aldeia dele, não se recebia coisas de fora. Na se recebia cestas básicas. Ele detestava uma coisa que ele detestava era ser tratado como um mendigo, ele sempre falava: "Nós temos a floresta e a floresta é nossa mãe. Eu planto milho, eu planto mandioca, eu faço a farinha, eu planto frutas e a gente produz sacas de grãos de feijão que serve para a comunidade toda." Então ele me ensinou isso: que se alguma coisa tinha que, se alguém tinha que dar algo para nós era a mãe Terra. Então eu, isso foi muito forte assim. Porque na comunidade à qual eu era voluntário, era uma comunidade que vivia de uma extrema dependência do que os outros lhe ofereciam. Então vinham as instituições das igrejas e levavam coisas, e a comunidade ficava ali esperando o próximo mês para poder receber mais coisas. Vinha as instituições não governamentais, levavam coisas, e a comunidade ficava esperando pelo próximo mês.
P – Ficou em uma dependência...
R – Criou uma dependência e aquilo geralmente me incomodava. Porque eu venho de uma família que batalhou, que trabalhou de várias maneiras para não depender de outras pessoas, que procurou trocar o seu trabalho, ou que procurou, nós não plantávamos. Minha família não plantava, não era família de roceiros. Aqueles que cuidam de roça, que fazem a roça, mas era uma família que trocava o seu trabalho. E já o Werá veio de uma tradição, tradição Guarani. Que lidava com a terra, que plantava, que tinha roça, que também não dependia. Então eu tive um aprendizado muito grande com ele. Ele dizia que os Guarani tinham que recuperar a dignidade, e a dignidade vem da terra. E isso me influenciou muito, essa convivência com o Werá. Quando ele foi passando o tempo, ele, eu dizia para ele que meu trabalho era então tentar juntar essas fontes de sabedoria para os Guarani resgatar, ele falou que não, que meu trabalho também era de cura. E aí eu lembrei da minha mãe que curava. Mas assim, aquela lembrança vaga que eu disse a você. E foi ele que me batizou, que me deu um nome Guarani. Ele em uma determinada ocasião, no alto de um morro chamado, perto de um rio chamado Krucutu, que é onde existe também uma aldeia, uma comunidade. Ele disse: "Seu nome também é Werá." não porque era ele que estava dando o nome, não. Porque na tradição Guarani os nomes vêm por uma intuição. Ele falou: "Teu nome também é Werá." E isso foi feito no alto desse morro dentro de uma pequena cabaninha que nós chamamos de opy, né? Opy, que é a Casa de Reza, Casa de Orações. E ele me deu o nome: Werá Jecupé. "E você também tem um espírito de cura." E eu disse assim: "Não, mas o meu trabalho é de mensageiro." Ele falou: "Pode ser, você pode, continua como mensageiro. Você traduz as nossas palavras e traduz os nossos sentimentos para o juruá - juruá é o não índio - você continua nesse trabalho. Mas você também tem uma missão de cura."
P – Como foi esse cerimonial, você lembra?
R – O cerimonial ele é típico guarani. Então teve dois tipos de cerimônia. Teve uma cerimônia que foi um diálogo em volta de um fogo, onde ele disse, estávamos só nós, onde ele disse: "Seu nome é Werá, seu nome vem do Leste, e também é Werá. Werá Jecupé." Esse foi um tipo de cerimônia, sempre dentro de uma conversa, onde estava buscando ouvir e aprender coisas. E foi dentro de um momento assim, ele mudou o assunto, e disse isso. Então se, em janeiro, quando tiver o Nimongaraí, que é um ritual próprio para nomes. É um ritual onde você recebe os nomes, não importa se você é criança, adulto ou velho. Às vezes os nomes mudam, e você vai participar do Nimongaraí. E aí eu participei do ritual do Nimongaraí. Acontece em uma determinada época, normalmente em janeiro, e é ritual onde os guaranis se reúnem, fazem um arco,dois arcos assim, né? Tem os cantos, e as pessoas que vão receber nome ficam em filas, e depois que o pajé canta muito, canta, canta, canta, muitos cantos assim em guarani. Esses cantos são cantos invocativos. São cantos que invocam a mãe Terra. São cantos que invocam o Grande Espírito. São cantos que invocam as forças da natureza. Depois desses cantos invocativos, aí os pajés pedem para as pessoas que querem receber nome ficarem em fila. E cada pessoa que vem até o pajé ele sopra o nome no ouvido. Então eu recebi o sopro do nome no ouvido também nesse ritual. Aí ele me disse assim: "Quando você for para a outra aldeia, você participa de outro ritual como esse. Outro pajé vai te dar a confirmação desse nome." Eu falei: "Tudo bem." Então assim, três anos depois eu participei de um outro ritual na aldeia de baixo. Que era chefiada por Guirapepó, e eu estava com dois, três grandes amigos de outras tribos. Um desses amigos é o Ailton Krenak, ele é do povo Krenak. O Daniel, né, Munduruku, e o Karaí Mirim que é um Guarani assim, um líder Guarani, que é esse professor de História também. E nós estávamos lá, aí o Guirapepó, eu entro na, me chama para entrar na fila. A gente estava ali, na verdade, acompanhando o ritual. Porque você pode participar do ritual como acompanhante. Mas ele me chamou e falou: "Werá Jecupé." Eu falei: "Ah, a confirmação do nome." Então a partir daquele momento eu tive uma, uma, já não era mais uma afinidade com a cultura guarani, e nem era mais assim um voluntarismo que eu fazia. Já era uma coisa muito mais...
P – Se sentiu fazendo parte, né?
R – É. Muito mais forte. Como parte mesmo, assim. Eu tenho um respeito muito profundo pela cultura Guarani e, particularmente, por esse mestre, por esse grande sábio que é o Werá. Porque ele me ensinou que a cultura Guarani é sustentável. Ele me ensinou que a cultura Guarani ela tem uma relação com a natureza e tem uma relação com a vida, de profundo respeito. E sustentável. Que não precisa ninguém ficar pedindo, ou esperando favores. Isso foi muito forte. Porque ele mostrou na prática, porque ele vivia assim a comunidade dele de Bracuí, na época, onde ele chefiava, era comunidade que não precisava de nada de fora. E ele chefiava essa comunidade na década de 60, na década de 70, a comunidade de Bracuí fica perto de Parati. Na divisa de São Paulo com o Rio. Então ele foi um exemplo de uma comunidade sustentável. E como na região onde nós morávamos aqui em São Paulo é uma região onde a periferia já tinha se alastrado, batido na porta da divisa da aldeia. Era uma, a aldeia hoje fica em uma área praticamente urbana, então essa relação da dependência foi se agravando. Essa relação da dependência de favores, a dependência de favores foi se agravando. De um lado a dependência e de outro lado o que foi aumentando foi a discriminação, com relação à população, à comunidade Guarani. Vivia pressionada, por um lado a área urbana que crescia, e por outro lado a represa, porque a divisa com a represa que se poluía cada vez mais. Porque a ponto de ter cheiros horríveis. Então era uma situação bem delicada essa situação que foi uma paisagem com que eu convivi durante muito tempo. Então isso daí, até o final da década de 80, até o ano, o começo dos anos 90, 91, 92.
P – E tinha ação política e social para tentar mudar isso? Você entrou em uma...
R – Então, aí eu entrei em uma ação política para tentar mudar isso, e aconteceu uma coisa muito interessante. Os meus amigos de escola e de colegial, em 89 teve uma eleição na prefeitura, né, no município, e foi eleita em São Paulo uma mulher. A Luiza Erundina. E quando ela foi eleita alguns amigos meus fizeram parte desse governo, na área da Cultura e na área da Educação. Principalmente na área da Cultura. Aí eu fui convidado a participar da área da Cultura, dentro da Secretaria de Cultura, justamente para desenvolver uma ação cultural e uma ação social junto com as comunidades Guarani. Então de 89, e por isso que o marco é 89 até 92, nós trabalhamos politicamente, e dentro de uma estrutura de governo aquilo que foi possível trabalhar. Então, o sonho Guarani era criar um centro de cultura. Que é que nós conseguimos naquele momento, então? Que a Secretaria de Educação do município bancasse esse sonho. Materializasse esse sonho em uma forma, em uma escola. Então a Secretaria de Educação criou, ofereceu as condições materiais para a escola acontecer. E o secretário de Educação na época era um grande educador, um ancião também. Que foi o Paulo Freire. Ele ficou na verdade um ano e meio, porque ele veio a falecer depois. Mas ele deu a abertura para que acontecesse a fundação desse Centro de Cultura Guarani, que tivesse um sistema de educação bi cultural. Quer dizer, esse sistema de educação seguia os padrões oficiais, os padrões não indígenas de uma escola, mas respeitando o modo cultural Guarani. Isso aí foi uma coisa inédita, assim.
P – Um tipo de inversão da cultura tradicional.
R – É, e isso só foi possível porque eu tinha, nós tínhamos essa, nós estávamos dentro desse governo ao mesmo tempo fazendo da ponte fora. Então esse amigo meu, o Toninho, que é um negro que me, daquele bando da infância, desde os sete anos nos conhecíamos, e ele foi se envolvendo também nessa questão política. Claro, especificamente a questão do negro, mas com amplidão para a questão cultural. E quando houve essa possibilidade eu entrei, ele me convidou para trabalhar dentro dessa área da Cultura. E nós fizemos assim, esse trabalho na Educação de criação desse Centro de Cultura. O Karaí Mirim, que era um líder Guarani da época, porque os líderes guarani vão se revezando, vão se mudando a cada tempo e necessidade. Ele conseguiu um apoio do governo alemão, da Universidade de Berlim. E aí para construir uma outra parte do Centro de Cultura. Ele que coordenou esse trabalho, ele teve todo um apoio. Então a comunidade naquele momento conseguiu se estruturar no sentido social de ter esse ponto, né? E eu, dentro da área da Cultura, nós criamos as Casas de Cultura, fora da, então as Casas de Cultura eram lugares nas periferias de São Paulo para que pudesse acontecer eventos e atividades culturais. Então foi criada as Casas de Cultura, nós estimulamos dentro das comunidades as apresentações culturais como uma forma de atrair recursos, inclusive. Então as comunidades guarani passaram a criar os grupos de Canto Guarani. Então eram grupos de crianças, grupos de jovens que unia a comunidade em torno da cultura. Eles apresentavam, faziam as apresentações culturais, ganhavam por estar apresentando uma expressão cultural, ganham até hoje. E isso virou uma coisa assim, passou a fazer parte de tradição de comunidade. Porque outras comunidades passaram a fazer também.
P – O modelo que foi replicado.
R – É, foi o modelo que foi reaplicado, e começou nessa época. Então começaram, de repente os Guarani gravam um CD. E eles próprio que se organizaram para gravar esse CD com apoio de, até de estudiosos, antropólogos, mas eles próprios se mobilizando. Então é, depois das apresentações culturais eles começam a se mobilizar e utilizar ferramentas que, embora não sejam tradicionais, mas ferramentas que ajudaram eles a se firmar como cultura. Então os Guarani de São Paulo, por exemplo, lança o Ñande Reko Arandu, que é um CD, e que significa, Ñande Reko Arandu é: A expressão da nossa sabedoria. Cantada, musicada. Os Guarani passam a ser convidados por escolas para fazer apresentações. Passam a ser convidados em instituições culturais.
P – Fora também?
R – Fora. Vão apresentar fora. Foi uma coisa assim que hoje faz parte do cotidiano ter um grupo de canto. Você chega em uma aldeia mais remota, Guarani, tem um grupo de canto. Uma coisa vai passando para outra, a gente nem, nunca nós estivemos lá, não, vai passando a...
P – A comunidade se apropria.
R – Se apropriou, a comunidade se apropriou desse, já faz parte. Lança os CDs. Então tem CDs dos Guaranis de Porto Alegre, tem CDs dos Guaranis do Paraná, tem CDs dos Guaranis de São Paulo, dos Guaranis do Espírito Santo. Foi uma coisa assim, foi uma conquista daquela época. Então esse aspecto cultural foi muito interessante. Só que o que é que aconteceu? A gente teve uma grande desilusão. Porque quando terminou o governo terminou, terminou...
P – A Luiza Erundina era do PT, é isso?
R – Era do PT. E a gente não teve, o governo que entrou imediatamente após, ele destruiu todo o trabalho. Então, por exemplo, na escola, a escola tinha toda uma, um convênio onde os professores eram todos remunerados. Depois que entrou esse governo, foi quebrado esses acordos, esses convênios e ficou, ficou uma situação...
P – A escola era financiada, primeiro financiada pelo governo...
R – Pelo governo...
P – ...e após a saída do governo da Erundina aí cortaram as verbas.
R – É, aí cortaram-se, a pós o final do governo cortaram-se verbas, cortaram a continuidade do processo. Aquilo que era um processo embrionário, aquilo que era uma semente, cortar a continuidade do processo. Isso chegou a provocar conflitos internos, porque quem vive dentro da comunidade e só com a visão de dentro não sabe destas questões burocráticas e políticas, etc e tal, e de movimentação de recursos. Então criou um conflito entre a comunidade e suas lideranças. De achar que o problema eram dessas lideranças.
P – Teve o papel assim explicar...
R – É, embora as lideranças procurassem explicar e colocar como é que funcionava, por parte da comunidade não houve uma total compreensão de que essas coisas funcionam, como que funcionam as mudanças políticas, as mudanças de governo. Houve uma dificuldade, houve um espaço grande de conflito, de tempos assim de conflito, de anos para recuperar isso. Hoje elas andam por si própria. Nós nem, porque depois desse período em 92 eu saí da comunidade e migrei para outras regiões. Mas, enfim, teve esses benefícios, teve coisas boas ,, assim.
P – Originalmente os guarani, eles são sedentários ou são nômades?
R – São nômades. Originalmente os guarani são nômades. Uma aldeia Guarani é como um rio, está sempre mudando. Então você chega a aldeia naquele local tem determinadas famílias que se fixam mais. E mesmo essas que se fixam mais com o decorrer do tempo mudam. Então existe uma, de tempos em tempos, às vezes 10, 20 anos, toda uma mudança assim de liderança, de famílias, porque embora eles estão, aquelas áreas são fixas hoje entre uma aldeia, outra eles estão sempre trocando, procurando um melhor lugar para, mais adequado para viver naquele momento. Então existe um fluxo migratório que começa lá do Paraguai, da Argentina, da região Sul, e vai subindo pela região, assim, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, por esses estados, São Paulo, até o Espírito Santo. Isso é uma rota de migração Guarani que se faz assim, milenarmente. Então, embora as comunidades, as aldeias sejam fixas hoje, as lideranças a cada período longo de tempo mudam, as famílias mudam.
P – A sua aprendizagem de rituais dentro desses anos que você, você se fixou na comunidade nos anos 70, mais ou menos. Você pode explicar um pouquinho a aprendizagem da cultura o que é que mudou em você? Qual que foi a transformação, com é que foi? Não sei se eu fui claro...
R – Hum, hum.
P – Teve uma mudança?
R – É, eu não sei se uma mudança, mas uma, eu convivi mesmo fora da aldeia, eu sempre tive uma convivência muito forte com a natureza. Mesmo quando a natureza estava acabando no lugar onde eu morava eu já tiinha criado um vínculo forte com a natureza na minha infância. Mas quando eu convivi com os Guarani essa relação que já existia, que não tinha sido tirada, ela ganhou uma dimensão e uma consciência cultural, um consciência profunda. Então, por exemplo, o hábito de você chegar em uma floresta, se você tem que tirar alguma coisa da floresta não é chegar lá e ir tirando. Se você tem que tirar, por exemplo, um palmito para se alimentar você não vai tirar de qualquer árvore. Você vai tirar aquele que você precisa para se alimentar e nunca da árvore que é mãe de todos os palmitos, que vai semear e expandir. Então esse cuidado foi sendo depurado com a convivência com os Guarani. E uma outra coisa, o relacionamento com a natureza como parte da sua família. Você observar uma árvore, um animal e reconhecer aquele animal como parte da sua família. Não ter medo dos animais, uma cobra, uma jaguatirica, ter o respeito. Você tem aquele sentimento, claro, que te alerta, mas medo a ponto de agredir, de matar, de ferir, então isso veio da convivência com a comunidade. E uma coisa que veio assim mais profundamente foi entender a linguagem silenciosa das plantas, entender a linguagem silenciosa das árvores, entender, a gente olha uma nuvem passando no céu não é um fenômeno. É um povo que está passeando. Entender isso, isso veio da convivência. Se sopra o vento, a cultura não indígena, é um fenômeno que está acontecendo assim, assim, assado. Não, está soprando vento é uma migração desse povo, desse ser que está saindo de um lugar, que era sua casa, indo para outro lugar que também é sua casa. Entender a natureza desse jeito é um aprendizado que veio da convivência com a cultura Guarani. Entender a vida não como um fenômeno, a vida no sentido assim, as forças da natureza, mas entender as forças da natureza como seres que são parte da sua família, que ele é parte da família humana. E esse veio assim como, não foram os rituais que educaram, mas foi a convivência que educaram. Os rituais, o guarani ele ritualiza todo dia. Os rituais, toda noite assim quando aí as estrelas vêm aí os guaranis se reúnem no opy e cantam. É um ritual diário. Que é que eles cantam? Eles cantam gratidão ao sol que orienta o caminho deles. Os guarani sempre têm um canto para o sol que orienta o caminho deles: "Nós seguimos o caminho do sol." "Obrigado sol que nos dá vida, nos dá força." Cantam para a lua que orienta o caminho da alma, de noite quando dormem. Cantam para os rios, cantam para o mar, que é um misterioso, para os grandes rios que exercem um mistério. Então os rituais que eu aprendi primeiro foi os rituais de gratidão. E é diário, cotidiano. Você tem que agradecer todos os dias. Esse é o principal ritual que você aprende. Talvez não só principal como acho que é o único ritual. Porque o que variam são os passos, os cantos, os movimentos. Foi o que eu aprendi com os guarani. E depois assim é que meu espírito era muito curioso, eu queria aprender os rituais da minha família. Depois de conviver até o ano de 92 com a Mata Atlântica, com a Serra, com a periferia de São Paulo, com a cidade de São Paulo. Em ter conhecido diversas pessoas, eu queria conhecer, e depois de ter despertado essa conexão, eu queria conhecer, recobrar a minha história. E aí eu descobri que meus pais eram Tapuias. Tapuia ainda era uma coisa muito genérica. Se você chegar para um estudioso e dizer assim: "Olha, a minha família é Tapuia." um estudioso vai dizer assim: "Bom, Tapuia é muito genérico. É tudo aquilo que não é Tupi, é Tapuia." Então, ou seja, a minha família não era da mesma linhagem dos Tupi-Guarani. Os Guarani são Tupi. Eram de outra linhagem. Eu falei: "Bom, mas Tapuia", a primeira coisa que eu descobri. Mas especificamente o que é que é? Eu não sabia. Então um indigenista, na época, me convidou para conhecer um povo de tradição Tapuia na região do Xingu. E ali eu conheci na região do Xingu o povo Ka'apor, né? Porque dizia-se que era da mesma, talvez da mesma linhagem. Eu falei: "Vamos conhecer então." Conheci os Txucarramãe, conheci Megaron, Txucarramãe. E aí eu conheci na cidade de Santos o Orlando Villas Bôas, é um grande indigenista, ele me disse que os Txucarramãe tinham em Minas, tinham em vários lugares. E Txucarramãe significava guerreiro sem armas. Eu falei: "Ah, então eu sou um Txucarramãe. Porque eu sou um guerreiro sem armas. Eu acredito muito numa luta pelo coração, por despertar consciências." ele falou: "Não, mas não é bem assim que são os Txucarramãe. Eles são Txucarramãe simplesmente porque eles não usam arco e flecha." Eu falei: "Poxa, mas deve ter uma coisa maior dentro disso. Não é Txucarramãe porque só usa arco e flecha." Gostei dessa história de Txucarramãe aí quando alguém perguntava: "Eu sou Txucarramãe." E isso causou muita confusão. Porque como eu tinha uma atividade social, já na época, então eu passei a ser, os jornalistas escreviam: "Não, Kaká Werá..." Eu falei: "Poxa, tenho que desfalar isso. De que isso é um sentido figurado, um sentido simbólico de me sentir um guerreiro sem armas." Tive que passar um tempo desfalando o que eu tinha...
P – Você estava falando, falou da família, depois da choque do ___________
R – Bom, eu tive uma das minhas experiências assim igualmente profundas tanto quanto o Xingu, que foi essa região maravilhosa, foi uma experiência que eu tive na. Tocantins, nas margens do Rio Tocantins, quando eu fui convidado por um chefe Craô, do povo Craô, para visitar a comunidade, o povo Craô. Foi na época em que o povo Craô pediu uma ajuda para divulgar em São Paulo um documentário que eles mesmos tinham produzido, eles mesmos tinha aprendido. Isso era uma coisa muito inédita na época. Então eu fui visitá-los, e nós programamos uma reunião com as doze aldeias Craô. A área Craô é uma área enorme. É uma área que tem a mesma dimensão do tamanho de São Paulo, do município de São Paulo. E Rio Tocantins corta a área Craô, e eu acabei ficando, fui ficando lá. É um lugar tão maravilhoso, assim, uma área do cerrado. Uma vegetação diferente da que eu estava acostumado, de serra. O cerrado ele é reto, e tem um tipo de vegetação muito antiga, umas árvores retorcidas, um sol permanente. Uma coisa quente. E um rio que parece um mar. E então eu estava lá no, junto com os Craô, junto com Crocrote, que é um líder, ancião, um cacique, e aí ele falou: "Fica aí que você vai passar por uma iniciação, por um ritual aqui, porque você é parente nosso." Eu falei: "Tudo bem." E aí eu passei pelo ritual chamado Ritual da Empenação. Esse Ritual da Empenação você, é passado todo uma, um leite de, um leite que é uma cola das plantas e depois você é colocado penas de gavião, então você fica empenado, o corpo inteiro empenado. E quando você é empenado você não pode mais tocar o chão. Então você fica retirado em uma rede por três dias. E isolado ali. E eu fiquei lá, isolado, fiquei lá, lá. Falei: "Poxa." E eu fiquei, me senti muito honrado, porque como era um ritual Tapuia, e ali eu estava resgatando os rituais Tapuia, que possivelmente meus pais teriam passado, não sei, ou meus avós. E um ritual que eu deveria ter passado na infância, que eu não passei. E por ter nascido na cidade, naquele momento eu me senti assim, resgatando profundamente a minha raiz da linhagem pessoal, da linhagem da minha família. Então, e era uma coisa que complementava a sabedoria que eu tinha aprendido com os Guarani, de certa forma. Bom, depois que eu fiquei lá empenado, eu tive muitos sonhos naquele período de tempo. Aconteceram muitas coisas, assim, o meu espírito saía do corpo e eu voava. Meu espírito, eu ficava vendo meu corpo, assim empenado, eu via que, ali eu compreendi que nós não somos corpo. Corpo é a nossa casa. Isso os pajés sempre falam. Os Guarani sempre falavam. O Werá falava. Mas uma coisa é falar, outra coisa é você vivenciar. Eu falei: "Poxa, é mesmo. Olha lá. Meu corpo ali eu aqui." Eu era espírito puro. Eu no terceiro dia eles chegaram, falaram: "Bom, agora vai ser a conclusão do ritual." E aí eu não podia pisar no chão, só depois que passasse pelas águas. Aí uma tia, uma senhora forte, alta, Craô, me pega nas costas e eu com pena, falei: "Poxa, você vai me pegar nas costas?" "Não - e ela rindo - é assim mesmo que é o ritual." E aí me carrega nas costas, porque eu não podia pisar no chão, e correndo. E um monte de gente correndo assim, correndo. As crianças da aldeia, os jovens correndo pela trilha, indo em direção ao rio. E todo mundo correndo, e cantando: "Ê, ê,ê." E cantando, cantando, e eu correndo, eu lá nas costas. Quando chega na beira do rio ela me joga: "vuum." E eu: "pof", caí no Rio Tocantins. "Está batizado." E eu caí no rio, aí depois as crianças pulam tudo, o pessoal também pula tudo no rio, você se banha no rio, né? E você fica lá um tempo. Depois é desempenado, aí o Krokrote me recebeu, falou: "Agora você é Tchutuke, seu nome é Tchutuke, seu nome Craô. Tchutuke Mecanotire." Aí eu saí de lá, fomos para um centro da aldeia, do pátio. Que a aldeia reta, tudo muito plano. As casas arredondadas, meio arredondadas voltadas para o centro, assim. É todo, e ali foi feita uma reunião de conselho, e foi oferecido um alimento, que é chamado de paparuti. Que é como se fosse uma grande pizza. Um alimento que é feito, são porções assim de carne cortadas, assim, dentro de uma massa, que é uma massa de farinha. Mas muito grande. E ela é colocada assim, depois coberta, depois é coberta com folha de bananeira. Depois dessas folhas é colocada mais folhas. Aí ela, esse alimento ele é, no lugar onde é feito o fogo, fogo bem grande, é espalhado o fogo, só fica a brasa. Ele é colocado na brasa, aí é colocado brasa em cima daquela cobertura, depois é colocado cinza. Então fica lá uma noite, um dia. Depois, quando você vem do ritual é que aquilo lá é tirado do lugar do fogo. É aberto. Aí sai aquela coisa, uma pizza. Chama paparuti. Mas uma coisa enorme, assim. Aí toda a comunidade come comemorando e tal. E ali, foi ali que eu ganhei a minha maraca. Que me acompanha até hoje. Assim, tem quase duas décadas, que é a maraca de cura, de canto, de reza, de curar. Então essa foi uma experiência muito forte que eu tive fora. E aí eu voltei para São Paulo...
P – Com a sua companheira?
R – Não, é, eu tinha ido sozinho. Mas eu voltei para São Paulo, eu já tinha, já era casado. A minha esposa eu conheci, a minha esposa não é índia, minha esposa é brasileira. Tem várias, na raiz dela tem várias origens. Porque tem europeus, tem negros, ela mesma reconhece assim português, italiano, índio, negro. É bem brasileira. Então eu a conheci, embora ela não seja índia, eu a conheci porque eu já tinha um trabalho de identificação na floresta, na mata, identificação de folhas, de ervas, de plantas e eu estava acompanhando a mãe dela que também é um a curandeira, uma erveira, embora não seja índia. Então eu estava acompanhando a mãe dela em um curso que nós promovíamos, um curso de identificação de plantas medicinais. E através dessa amizade com a mãe eu também conheci a filha, que também tem toda uma relação de respeito e de profunda identidade com a natureza. Então, embora ela não seja índia a gente tem, tinha isso em comum. E aí eu me casei, eu me uni à ela e graças a força, ao apoio dela e da família, porque é uma família de curadores. A mãe dela é curadora, a avó dela é curadora, então embora não sendo índios são curadores assim tradicionais. Me ensinaram muitas coisas que também assim nas origens européias tem muitos sábios curadores, assim, né? E tal, que conhece. Porque a avó da minha esposa é uma italiana que curava, que benzia através de cantos e que curava com folhas também. Então eu falei: "Nossa, deve ter uma sabedoria universal aí, que permeia todas as culturas, não só a cultura indígena." E foi assim que eu descobri que realmente havia a sabedoria mais universal, que permeava todas as culturas, e que havia pontos de conexão entre elas. Então conheci a minha esposa nesse meio, no meio da medicina tradicional, e ela me ajudou a fundar a organização que eu coordeno, que é o Instituto Arapoti. Ela me ajudou nessa fundação, e não só na fundação mas também desde quando, antes da nossa filha nascer. Quando a nossa filha nasceu a gente vai em aldeias, minha filha nasceu a gente visitando aldeias, visitando comunidades...
P – Quantos anos tem a sua filha?
R – Minha filha hoje tem 11 anos.
P – Qual o nome dela?
R – Sawara.
P – Sawara.
R – Sawara. Minha filha, de pequenininha convivia com os Guarani. Sumia na mata, né, com os Guarani. Em alguns momentos assim a gente estava na aldeia de Bertioga, uma vez, no litoral, em um lugar chamado Boracéia. O pajé, o cacique lá da época falava assim: "Deixa a Sawara aqui, deixa ela com a gente e depois a gente devolve." Então ela já cresceu, nasceu no meio também da comunidade. Observando meu trabalho de visitação às comunidades. Ela já, já tem, reconhece como natural isso daí.
P – Voltando à fundação ________
R – É, voltando à fundação, essa fundação do instituto nasceu muito assim, pôxa, eu tinha passado uma experiência, quando eu estava tentando ajudar a comunidade Guarani fora da comunidade, e dentro de uma experiência de governo, tinha essa experiência que não foi muito, foi positiva sobre muitos aspectos mas não teve continuidade. E esse não ter continuidade me deixou muito reticente com qualquer coisa que fosse governamental. Por conta dessa descontinuidade, entre outros fatores, questões políticas, etc. Eu já tinha tido essa experiência. E tem três pessoas que eu admiro muito, três líderes indígenas que eu conheci quando eu ainda estava na comunidade Guarani, que foram fontes de grandes reflexões. Um deles é o Ailton Krenak. Conheci o Ailton Krenak com ele visitando a Aldeia Morro da Saudade. E na época era um período que ia ter em 1988 a Constituinte, uma nova, a Assembléia Nacional Constituinte do Brasil. E o Ailton estava muito envolvido com essa questão da União das Nações Indígenas. E então ele era uma pessoa, era e é, uma pessoa extremamente politizada, de grande conhecimento, de grande alinhamento pessoal. Então na época eu já ouvia muito as opiniões dele quando ele visitava a nossa aldeia. E um outro parente nosso do povo Terena, que é o Marcos Terena. Que já atuava a partir de Brasília com a questão dos direitos humanos, com a questão indígena. É o mais velho entre nós, assim, né? Então essas pessoas foram fundamentais para mim, depois de passado a experiência dentro de um governo, ter uma reflexão de buscar um caminho que fosse possível, e que fosse independente, vamos dizer assim. Independente de vínculos extremamente políticos, partidários. Que fosse um caminho mais nosso. Então eles me influenciaram bastante nessa reflexão. E um parente também chamado Daniel Munduruku, que já era um acadêmico quando eu o conheci. Também o conheci na Aldeia Morro da Saudade. Um filósofo, um educador que tem um trabalho muito grande com relação aos povos, estimular a leitura, de estimular que os povos escrevam. Daniel Munduruku também é um escritor indígena. Então, enfim, da reflexão desses amigos, eu falei: "Não, vamos criar uma coisa que a gente, nós mesmos tenhamos a responsabilidade de conduzir, e possamos arcar com as responsabilidades dentro do limite que nos é dado. Dentro do limite que nós sabemos qual que é." Então foi assim que nasceu o embrião, a semente do Instituto Arapoti. Arapoti significa renascimento, em Tupi. E a idéia era de ajudar no renascimento de uma cultura. A colaborar no renascimento de um povo. O que é que era renascimento para nós? Era manter as raízes mas abrindo espaço para influências benéficas, positivas, que não entrassem em conflito com a harmonia da natureza. Então era o renascimento, mas que agregasse ferramentas ou possibilidades até inovadoras. Mas que não rompesse com a raiz e com o tronco. Quer dizer, com a força ancestral. Então o Arapoti ele nasceu dessa, desse conceito. Essa palavra. E o instituto nasceu. E nossas primeiras atividades foram através das escolas. E foram procurando dar consciência diferenciada das escolas sobre o que é índio. Porque como eu vim de uma escola pública, etc e tal, eu sabia o que é que era passado nas escolas. Eu sabia que eles passavam nas escolas todos os verbos dirigidos aos índios acontecia no passado. Mesmo com as comunidades indígenas, os líderes indígenas estavam em uma efervescência de rearticulação, de organização, de fundar associações. 88 foi um marco para os povos indígenas do ponto de vista da política indígena. Porque lideranças como Ailton Krenak, Marcos Terena, Davi Yanomami, Juruna, estavam despontando. Raoni, Paulinho Paiakan, Álvaro Tucano, várias lideranças estavam despontando com posicionamentos fortes em relação à autodeterminação dos povos em relação aos direitos humanos, em relação à cidadania. E as escolas não sabiam disso. Continua acontecendo assim Dia do Índio,vamos fazer uma festinha folclórica. Então nós começamos a atuar nas escolas mostrando o que é a cultura indígena, quais são os seus valores essenciais, quais são as suas premissas, como se formaram, o que aconteceu com eles no decorrer dos séculos 16, 17, 18, 19, 20 e o que está acontecendo enquanto transformação. Porque até então a idéia que se passava é que os povos indígenas estavam extintos. A própria mídia, livros, estavam mostrando isso. Mesmo porque aqueles que acreditavam nisso tinham uma visão estratificada, uma visão limitada, uma visão do índio congelado no tempo e no espaço. Índio é aquele povo do Xingu. E o Xingu é um parque temático. Então índio era uma coisa meio que, um animal humano visto de um zoológico. Então eu parti para fazer esse trabalho com escolas para mostrar a diversidade e a complexidade que é a cultura e os povos indígenas. Então o Instituto Arapoti nasceu assim: vamos primeiro fazer esse trabalho com os educadores porque são eles que multiplicam. Dentro da sociedade. Se a gente não mudar a mentalidade da sociedade em relação ao índio a gente não vai conseguir ter o apoio, um apoio verdade, um apoio real, ou um compromisso real. A gente vai ter sempre o compromisso ideal, ou idealizado. As referências de índio que tem nas escolas são de índios idealizados. Índios que vêm da literatura. Índios que vêm assim dos romances de José de Alencar, idealizado, mitificado, ou folclorizado. Índios que não correspondem ao que estava acontecendo nos anos 80, 90. Então nós partimos, vamos fazer esse trabalho com as escolas. Então o Instituto Arapoti nasceu com a proposta de educação mesmo, em valores humanos, inspirado e fundamentado na cultura indígena. Essa é a base do trabalho do instituto, na verdade, até hoje. É que enquanto nós fazemos isso outras questões que são emergentes, muitas vezes, a gente acaba tentando colaborar também. Por exemplo, problemas nas aldeias de fome e de saúde. Então de alguma maneira procurar estabelecer pontes, elos, com voluntários, com organizações para ajudar determinadas aldeias. Foi assim que nós criamos um dos primeiros programas do Instituto Arapoti que chama De Aldeia em Aldeia. Que é sensibilizar voluntários de diversas áreas, desde áreas assim: Economia, arquitetura, Medicina, Veterinária, ou nada disso, sensibilizá-los para desenvolver um trabalho de apoiar as comunidades, mas sem viciar as comunidades no assistencialismo. Apoiar mas reeducando, ajudando a comunidade a se reerguer e resgatar a sua dignidade. Foi assim que nasceu esse programa, o De Aldeia em Aldeia.
P – Já dá para ver benefícios?
R – É...
P – Ou é um trabalho a longo prazo?
R – É trabalho muito, é ingrato às vezes para ver benefício. Porque desde o início dos anos 90 que a gente trabalha com algumas comunidades, por exemplo. E ele avança e retrocede em muitos aspectos. Por exemplo, o ideal mesmo de ver uma comunidade auto-sustentável como a gente queria ver, ainda não dá para ter, mas tem algumas experiências. Recentemente uma das aldeias que a gente colabora, que fica em Piraquara, no Paraná, a cerca de duas horas de Curitiba, ela ganhou a sua autonomia. Ela se tornou, depois de 10 batalhando, reconhecida como uma terra indígena. E agora, por exemplo, já a alguns anos de assistência dentro do nosso jeito de assistir, né? Ajudando mas ajudando a pessoa a se ajudar, inúmeros voluntários colaborando, eles estão, por exemplo, tem uma cooperativa de mel. Então através do mel eles estão adquirindo, começando, não estão adquirindo ainda, mas começando a adquirir uma sustentabilidade. A gente desenvolve muito uma ação nessa questão do artesanato. É pegar o artesanato, e através do artesanato fortalecer os padrões culturais, mas também utilizar o artesanato de uma maneira mais eficiente na sustentabilidade. Porque eles já trabalham com artesanato, mas não têm uma eficiência. São dois pontos: uma é que antes se utilizava a matéria-prima que vem da natureza e a maneira extrativista de utilizar acaba desequilibrando a natureza. Então a gente está com o desafio de reeducar essa maneira de lidar com a matéria-prima da natureza através da criação de viveiros de determinadas mudas e recursos de matéria-prima que precisa. E o outro lado é o lado da venda, de vender isso de qualquer jeito, na beira de estrada, de não ter um padrão de valor econômico, de não ter um padrão assim que dignifique o padrão da qualidade cultural daquele povo. Então a gente está trabalhando nessa direção. Ainda não temos os resultados que nós gostaríamos, né? Porque são, são flutuantes. Há evoluções e há involuções. Há mudanças de humores, há mudanças de líderes, há mudanças, e volta. Há pressões contrárias a nós, por incrível que pareça, né? Há pensamentos divergentes, organizações e pessoas que têm o pensamento do passado, que viciou os grupos a dependerem das suas relações, dos seus vínculos com o poder, dos seus vínculos com financiamentos. Nos agridem, nos caluniam. Procuram tirar a nossa qualidade de ação. Não é fácil.
P – E através de qual programa que você chegou a ser fellows da Ashoka? Através da Fundação? Ou através de um projeto da Fundação? Como que aconteceu essa, esse contato com a Ashoka?
R – A Ashoka, né?
P – É, exatamente.
R – A Ashoka, a Ashoka foi um grande marco mesmo na nossa maneira de lidar com a organização. Porque nós fazíamos esses programas mas era muito passional, muito sem planejamento, sem ordem, sem uma... E o que aconteceu? A Ashoka nos procurou tinha dois aspectos: um é o _______ escola, que é esse trabalho que nós fazemos com escolas. E nós levamos as escolas até o nosso espaço, o nosso núcleo, e lá há toda uma reeducação de valores. E outro, é exatamente esse programa de um artesanato, de sustentabilidade pelo artesanato. Isso despertou de alguma maneira, assim, também um interesse da Ashoka em nos conhecer. Quando a Ashoka chega até nós e começa a expressar e colocar como é que é eleito, como é que é apontado, eu passei por uma série de entrevistas. Que eu pensei, eu até expliquei: "Olha, se acontecesse só isso..." Porque começou, a Ashoka começou a apontar e exigir que a gente expressasse como que a gente realiza nosso trabalho, como que a gente planeja, como que a gente pretende aplicar, coisas que a gente não tinha imaginado antes. Foi um grande aprendizado, assim, só o contato. Depois do contato, quando teve as entrevistas mais profundas então, e quando nós passamos por um período de imersão ali, de reconhecimento daquele grupo que estava sendo associado naquele ano, naquele momento, foi em 2005, foi uma coisa para mim assim incrível. Porque eu falei: "Olha, na verdade nós não tínhamos organização até agora. Agora que a gente vai começar a sonhar ter uma organização." É assim, bem organização enquanto organização mesmo. Não enquanto trabalho, ou enquanto ação, a gente já, então foi assim uma coisa incrível. Maravilhoso. A gente teve que mudar e reaprender toda a nossa trajetória. E estamos indo nesse processo. Na verdade ainda estamos nesse processo de maturidade. Então o que aparentemente impressionou a Ashoka foi, primeiro, a visão porque na nossa visão quando a gente trabalha o De Aldeia em Aldeia, e pelo artesanato fazer com que um povo readquire a sua dignidade não é só uma assistência que a gente está prestando a uma aldeia. Não é, isso não verdade não é o que mais importa para nós. O que mais importa é a aldeia ser colocada de volta com seus valores, com seus padrões, com seus símbolos, com a sua força, com a sua maneira de expressão. E a partir dali ela encontrar um caminho para se auto-determinar também enquanto comunidade. Esse é o nosso maior desafio. E aí, na seqüência disso tem a questão ambiental, que para nós não anda separado da questão da comunidade. Na seqüência disso a comunidade assumir o seu local e trabalhar para manter a harmonia do seu local como os antigos faziam. Só que antigamente por ser nômades tinha todo um modo de fazer diferente do desafio de hoje. Que hoje as demarcações são fixas, o povo tem que ficar fixo em uma região. Então tem que descobrir outras formas a partir da sua própria essência de manifestação. Outros desafios. Então acho que foi isso que impressionou a Ashoka. Nosso desafio a gente chama de ecosustentabilidade. E ao mesmo tempo manutenção do seu padrão cultural. Então isso é uma coisa que para nós é muito simples, na verdade, assim, simples assim: você encontra fundamentos na cultura. Mas existe uma dificuldade de mudar o paradigma antigo, da dependência, do assistencialismo. Vê bem, eu não condeno o assistencialismo, eu não condeno o filantropismo. Eu acho que houve um momento na história do Brasil, que não é na cultura indígena que isso só acontece, que isso foi necessário. Mas esse momento acabou. Porque é um saco sem fundo. Isso provoca problemas, problemas sociais enormes. Problemas políticos gravíssimos. Eu creio que grande parte dos problemas que a Europa está passando hoje é porque ou teve uma postura excessivamente capitalista de um lado, ou excessivamente social, socialista assim de uma maneira como se o povo tivesse que ficar acomodado em uma determinada situação. E não é. A natureza é dinâmica, a vida é dinâmica, muda, existem valores imateriais e profundos que sustentam essa dinâmica e nós temos que descobrir tanto aquilo que é profundo e imaterial que não muda, quanto aquilo que tem que ser transformado. Então esse é o ponto assim, das reflexões do nosso instituto, da nossa organização.
P – E o encontro que a gente está aqui em Florianópolis, de fellows? O que você acha dos fellows, justamente, se encontrar em volta de uma temática que é o meio-ambiente? _______
R – Bom, o que eu acho desse encontro? O que eu acho o encontro é assim: quando eu entrei na Ashoka e a Ashoka falou que existia um incentivo para ações colaborativas eu achei magnífico. Porque antes de conhecer a Ashoka todas as coisas que deram certo na nossa organização, que é pequenininha, as coisas que nós tivemos que fazer para causar realmente uma mudança, nós só conseguimos fazer porque nós encontramos parceiros. Muitas vezes nós temos uma dificuldade na nossa organização para a gente conseguir o dinheiro para conseguir as coisas, mas parceiros supera as crises e as dificuldades, muitas vezes, do dinheiro. Então nós tivemos assim muitas ocasiões na nossa organização que esses parceiros fizeram a diferença. Então esse momento aqui eu faço um paralelo com as experiências anteriores. Aqui a gente tem parceiros, mas não são só parceiros comuns, são parceiros que tem uma fibra, um sonho e uma convicção muito grande daquilo que faz. E que quando a gente se junta com as experiências diferenciadas aqui, principalmente assim, um grupo trazendo a questão ambiental, outro grupo trazendo a questão da tecnologia, e nós trazendo a questão das comunidades, está aí três laços que tem que serem firmados. Três pontes que tem que serem firmadas. E quando a gente conseguir achar um caminho onde a gente possa se entrelaçar e realizar algo, vai fazer uma grande diferença. Porque existem muitos problemas de organizações que têm um foco ambiental mas não sabem reconhecer as culturas que estão dentro de determinados ecossistemas. Não sabe como lidar com isso. E vice-versa. A maneira como o ambiente é visto, a maneira como se luta pelo ambiente por parte de técnicos, por parte de pensadores, por parte de acadêmicos, é muito diferente. Tem que ter, tem que haver uma abertura para entender como que essas populações e as comunidades lidam, vêem. Porque dentro, no seio dessas comunidades existe uma determinada memória, e essa memória sabe como lidar com a sustentabilidade verdadeira. Só que ela tem que ser buscada, ela tem que ser ouvida, ela tem que ser acolhida. E vice-versa. Determinadas tecnologias elas podem ser apropriadas, acredito sim, mas existe uma coisa de cultura, de percepção, de sentimento, de acolhimento, de troca e de partilha que esse projeto colaborativo, que essa ação de um colaborar com o outro pode propiciar. Como uma gestação, como um berçário mesmo. Eu acredito, tenho uma convicção que daqui vai sair alguma coisa que vai colaborar mesmo, efetivamente lá fora.
P – Eu acho que é o ponto final. Tem uma questão, alguma coisa que você gostaria, um assunto que a gente não tratou que você gostaria de acrescentar?
R – Eu creio que fechou.
P – Fechou, né?
R – Fechou. Eu talvez, assim, o que eu gostaria de falar, eu acho até que é redundante. Talvez para completar. A cultura indígena é uma cultura de memória, de memória oral. E por dentro dessa cultura de memória oral tem uma força poderosa que é poder unir pelos sentimentos. E os sentimentos são as coisas que dão a amálgama como se fosse assim o cimento de, para alguma coisa se tornar realidade. Então eu preso muito o trabalho do Museu da Pessoa, porque ele abre esse espaço.
P – E o que é que você achou de fazer o depoimento? De contar sua vida, a gente fez um exercício ontem também de _____ tempo.
R – Eu achei, eu achei, nesse momento da minha vida eu achei importante para mim, inclusive, me relocalizar e rever alguns aspectos que estavam adormecidos e, como eu falei assim, quando a gente põe um sentimento em ordem, porque trazer a memória é trazer sentimentos e raízes em ordem, de coisas que embora o tempo tenha se encarregado de deixar em um determinado lugar, mas a força...
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