Depoimento de Francisco Sala Montserrat
Entrevistado por Cláudia Leonor e Marina D'Andrea
Estúdio da Oficina Cultural Oswald de Andrade
São Paulo, 24 de outubro de 1994
Transcrita por Carlos Alberto Torres de Mattos
P - Eu queria que o senhor começasse me dizendo seu nome completo, local e data de nascimento.
R - Meu nome é Francisco Sala Montserrat, nasci em Barcelona, na Espanha, no ano de 1931.
P - E o nome e local de nascimento de seus pais?
R - Também Barcelona. Meu pai se chamava Francisco Sala e a minha mãe Benita Montserrat.
P - Certo. E os seus avós, o senhor lembra?
R - Minha avó se chamava Josefa Sitges e meu avô Francisco Sala, também, de um lado. O outro avô se chamava Miguel Bieto e a minha avó Alberta Montserrat.
P - Certo. E descreve pra nós, seu Francisco, o bairro que o senhor morava, como é que era a cidade?
R - Maravilhoso. A cidade de Barcelona estava crescendo e fizeram um bairro após o morro né? Mas, não morro como tem no Brasil, era uma colina cheia de pinheiros. Então não havia poluição, não passavam automóveis, as pessoas não tinham televisão, rádio, as pessoas vivíamos juntos né e as crianças..., as casas eram pequenas era um bairro pobre. Como disse, meu pai era sapateiro e minha mãe era tecelã. Então a rua era um prolongamento da nossa casa e aqueles pinheiros eram lugar muito bom para a criança desenvolver a fantasia, correr é... se imaginar assim num cenário de faroeste ou de aventuras, né? E a escolinha era muito boa, ficava próxima, no mesmo bairro, então, mesmo os meninos que brincavam com a gente na rua éramos colegas da escola e acho que a vida naquele tempo era muito melhor. As pessoas precisavam uns dos outros. Então, quando meu pai, à noite, chegava do serviço, ele jantava e saia pra rua, sentava na calçada, conversava com o pai de meu amigo, com o pai de meu vizinho. Então eu via os pais contar adivinhações, histórias antigas de lobos e de bandidos do interior da...
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Entrevistado por Cláudia Leonor e Marina D'Andrea
Estúdio da Oficina Cultural Oswald de Andrade
São Paulo, 24 de outubro de 1994
Transcrita por Carlos Alberto Torres de Mattos
P - Eu queria que o senhor começasse me dizendo seu nome completo, local e data de nascimento.
R - Meu nome é Francisco Sala Montserrat, nasci em Barcelona, na Espanha, no ano de 1931.
P - E o nome e local de nascimento de seus pais?
R - Também Barcelona. Meu pai se chamava Francisco Sala e a minha mãe Benita Montserrat.
P - Certo. E os seus avós, o senhor lembra?
R - Minha avó se chamava Josefa Sitges e meu avô Francisco Sala, também, de um lado. O outro avô se chamava Miguel Bieto e a minha avó Alberta Montserrat.
P - Certo. E descreve pra nós, seu Francisco, o bairro que o senhor morava, como é que era a cidade?
R - Maravilhoso. A cidade de Barcelona estava crescendo e fizeram um bairro após o morro né? Mas, não morro como tem no Brasil, era uma colina cheia de pinheiros. Então não havia poluição, não passavam automóveis, as pessoas não tinham televisão, rádio, as pessoas vivíamos juntos né e as crianças..., as casas eram pequenas era um bairro pobre. Como disse, meu pai era sapateiro e minha mãe era tecelã. Então a rua era um prolongamento da nossa casa e aqueles pinheiros eram lugar muito bom para a criança desenvolver a fantasia, correr é... se imaginar assim num cenário de faroeste ou de aventuras, né? E a escolinha era muito boa, ficava próxima, no mesmo bairro, então, mesmo os meninos que brincavam com a gente na rua éramos colegas da escola e acho que a vida naquele tempo era muito melhor. As pessoas precisavam uns dos outros. Então, quando meu pai, à noite, chegava do serviço, ele jantava e saia pra rua, sentava na calçada, conversava com o pai de meu amigo, com o pai de meu vizinho. Então eu via os pais contar adivinhações, histórias antigas de lobos e de bandidos do interior da Espanha né e então as pessoas sabiam mais conversar entre si. Não haviam começado a ficar hipnotizados na frente de um aparelho de televisão.
P - E como é que era o dia-a-dia de uma criança?
R - O dia-a-dia de uma criança? Eu me levantava mais ou menos às oito horas, a minha mãe me dava pão com manteiga e chocolate e um copo de café com leite, daí eu ia pra escola. Eu tinha uma irmãzinha com três anos a mais do que eu, e nós passávamos num lugar onde havia um cachorro e eu tinha medo do cachorro mas minha irmã primeiro passava e depois falava: "Vem, vem ele não morde." (risos) Então, no lugar dela me acompanhar eu lembro do cachorro que me assustava. Lembro, também, que eu olhava a professora como se fosse um ser celestial né? Porque ela vinha de um outro bairro, mais bem vestida, tinha mais cultura do que minha mãe, que a mãe dos outros, então nós tínhamos um ....uma consideração muito grande. Muitas vezes os meninos estavam brincando a professora vinha passando, ela descia do ônibus pra ir até a escola, eles corriam, cumprimentavam, davam um beijo e pegavam a pasta que ela carregava e queriam carregar até a escola, por considerar a professora, naturalmente. Fazendo uma comparação o que eu vejo hoje no Brasil, pouco valor, pouco respeito que se dá aos professores, acho que isso explica as diferenças, né? Então pra nós era um bairro; veja bem, não era um bairro miserável, era um bairro pobre, papai trabalhava, mamãe trabalhava, os outros pais também, não faltava em casa nada do que era essencial.. Nós éramos extremamente felizes, mais felizes do que meus netos hoje, que têm muito mais, tem videocassete, tem brinquedos eletrônicos, mas não tem uma rua pra brincar, não tem uma árvore pra trepar, não tem um rio pra pescar, pra nadar, não tem uma vinha pra roubar um pouco de uva, certo? Que é muito importante para o desenvolvimento do garoto. Então eu, comparando, em casa não tinha geladeira, em casa não tinha rádio, mas nós éramos mais felizes, entende? Porque a vida era mais natural e minha mãe tinha mais tempo pra mim do que minha filha tem para meus netos, então acho que tive muita sorte neste aspecto.
P - Certo, e tinha alguma profissão que a sua família incentivasse, que ela desse algum apoio para que o senhor seguisse?
R - Não, não. A única coisa que acho que teve alguma influência é o seguinte: um determinado dia minha mãe me mandou numa venda fazer uma compra e, quando eu voltei, ela olhou o troco assim e disse: "Acho que o homem se enganou", e eu bem pequeno, isso aconteceu com quatro ou cinco anos, eu expliquei pra ela que a conta estava certa, ela ficou admirada, falou assim "Que garoto inteligente, esse aí vai ser doutor", a única, porque a profissão de meu pai não ganhava muito, meu avô também era sapateiro, meus tios eram sapateiros, sapateiro de consertar sapatos né? Então não houve nenhuma influência no sentido que seguisse. Depois eu perdi meu pai...na guerra de 1936, né? Então, a última vez que eu vi meu pai, que eu me lembre, tinha uns cinco anos.
P - Bom, senhor Francisco, eu queria que o senhor falasse o que a escola influenciou na atividade que o senhor exerce hoje?
R - Apenas no sentido assim de cultura em geral, né? Aliás, a minha situação escolar é muito complicada, que quando eu tinha seis anos eu abandonei a escola por causa da guerra e fomos parar na França. Ficamos dois anos na França. Voltei. A Espanha, estava destruída depois da guerra, né, e ficamos muito tempo em Barcelona e fomos para Maiorca, voltamos, minha mãe me colocou num colégio interno e... para filhos de órfãos de guerra... né, porque eu não tinha pai. Então, eu não deixei de ter algum contato com a cultura, mas não havia um programa. Tanto que até hoje nunca ninguém me deu um diploma, nem de primário, nem de secundário, nem de coisa nenhuma. Quer dizer, a coisa mais parecida com diploma que eu tenho é uma carteira de motorista (risos). Então, a escola me serviu num sentido claro, a pessoa pra exercer uma profissão precisa ter conhecimento de matemática, e etc. Aliás, eu estudei mais no Brasil, embora tenha chegado ao Brasil com 20 anos. Eu fiz um curso de madureza e... apesar da precariedade de estudo que é feito quatro anos num só, etc. Isso me permitiu adquirir uma cultura bastante razoável, graças a que eu tenho uma memória muito boa, né, e aprendo com uma certa facilidade. Com relação à Franita, e à minha atividade como empresário e etc., foi tudo improvisado, foi tudo se aprendendo com, andando, né? Tanto que eu estava comentando há pouco que as coisas que estavam acontecendo naquele tempo nós não compreendíamos. Se hoje acontecer alguma coisa semelhante, teremos condições de aproveitar muito melhor, certo? Que nós éramos operários, que resolvemos, de repente, por contingência, fazer camisa, fazer uma pequena empresa, mas não tínhamos preparo. Ninguém de nós havíamos trabalhado numa fábrica de camisa, nenhum de nós tinha conhecimento de administração e de comércio em geral.
P - Senhor Francisco, retomando um pouco, né, eu queria saber quando que o senhor veio pra São Paulo e por quê?
R - A vinda ao Brasil? Sem dúvida. Bem, a Espanha teve um processo político radical, saiu de uma monarquia, tentou uma democracia mas não conseguiu porque a democracia exige um povo politizado, culto, etc. ... e a Espanha, creio que antes de meu nascimento etc., não tinha isso. Então, a luta de classe se tornou tão radical que culminou numa revolução que o Franco pretendia que fosse apenas um golpe de estado, né? Que duraria 48 horas. Só que ele não contava com a resistência do sindicalismo, das esquerdas espanholas muito aguerridas, conseguiram resistir durante 3 anos ao Franco. E esse processo custou um milhão de vidas, de espanhóis e ... a ruína nacional, porque três anos, revolução dentro de um país, a agricultura, a indústria, o comércio, as escolas, fica tudo fora né? Então, a Espanha ficou extremamente miserável, né, depois de 39, aí começou imediatamente a Segunda Guerra Mundial. E a Espanha estava pagando o dinheiro que Franco havia tomado emprestado pra comprar tanques, aviões, armas, etc. Então, a Espanha estava realmente muito ruim, todo espanhol queria sair da Espanha. Como acontece hoje em Cuba. Pela fronteira da França, todos os dias, milhares de pessoas tratavam de atravessar a cordilheira dos Pirineus e ir pra França. E naquele momento, em 1950, 51, o Brasil tinha um projeto de industrialização e estava admitindo imigrantes, mas com determinadas profissões. Então, minha família resolveu vir para o Brasil. Minha mãe veio primeiro porque só havia dinheiro para comprar uma passagem, e depois eu e minha irmã. Então, a causa é que a Espanha não oferecia naquele momento perspectiva e o Brasil parecia Eldorado, e parecia e realmente era muito melhor do que este que nós temos hoje.
P - Qual era a expectativa que o senhor tinha do Brasil?
R - Ah, eu imaginava assim, uma coisa completamente diferente, né? Eu conhecia muito pouco o Brasil e geralmente os espanhóis conhecem o México, a Argentina os outros países onde se fala o espanhol, né? Então, eu imaginava assim aquelas selvas, aliás eu conheci o Brasil pela Carmem Miranda, então essa era a idéia que nós tínhamos. E eu, em 1950, quando se jogou o campeonato mundial de futebol no Brasil, eu ouvi falar de São Paulo, até essa altura eu não sabia, sabia que tinha uma cidade que se chamava Recife, sabia que tinha uma cidade que se chamava Salvador, Rio de Janeiro, Pão de Açúcar, mas eu não sabia que existia uma cidade que chamava São Paulo e muito menos que eu iria ficar nela o resto da minha vida, né? Então eu cheguei ao Brasil em 1952 e fui morar em Santo Amaro. Arranjei logo os documentos pra poder trabalhar, aí tem que explicar porque que eu sou corinthiano, né? (risos) Colega que me acompanhou disse: "Olha, aqui em São Paulo todos os espanhóis são corinthianos", e eu falei: "E eu também." (risos) Então, desde 1952, no dia 29 de março, eu me tornei corintiano (risos). Aí, com o documento fui trabalhar numa empresa chamada Indústria Têxtil Gabriel Calfat. Me ensinaram o serviço e eu comecei a trabalhar das seis da tarde às seis da manhã do outro dia.
P - E o que o senhor fazia?
R - Eu era urdidor.
P - Era o quê?
R - Urdidor. Eu fazia o que é uma parte do tecido, metade do tecido é o urdume e a outra metade é trama, então era urdidor. E eu achava tudo fantástico, tudo ótimo e tem uma coisa: o salário mínimo havia sido implantado naquele tempo por Getúlio Vargas. Uma pessoa que não sabia fazer nada, um salário mínimo ganhava mil e duzentos cruzeiros. Com mil e duzentos cruzeiros comprava-se mil e duzentos guaranás, faça a conta hoje e veja quanto dinheiro é. Uma cerveja custava quatro cruzeiros, dava pra comprar trezentas cervejas, dava para fazer mil e duzentas viagens de ônibus, então era outra coisa. Na fábrica onde eu fui trabalhar tinha muito nortista. E eles chegavam do norte e três meses depois compravam terreno a prestação no Jardim São Luís, na Vila das Belezas e começavam a construir sua própria casa sendo tecelão, que não é uma grande profissão. Então, realmente, naquele tempo, os imigrantes vinham ao Brasil pra se arrumar, pra arrumar a vida, não que queriam ficar ricos. Queríamos comer pão, manteiga, leite e essas coisas eram abundantes, né? Então, nós estávamos muito satisfeitos naquele tempo.
P - E como que era o bairro de Santo Amaro, nessa época?
R - Santo Amaro era cidadezinha do interior. Eu adorava, nunca tinha visto aquilo. Aos domingos o trânsito na... Rua Capitão Tiago Luz, chamada também Rua Direita de Santo Amaro, era lá pelas ... duas da tarde o DSV fechava o trânsito, as meninas iam passear pelo meio da rua e a rapaziada como eu que tinha 20 anos ficava encostado nas paredes olhando pra elas. Se alguma sorria, já sabe, tinha namoro (riso). Então eu nunca tinha visto isso na Espanha, isso era coisa mesmo de Santo Amaro, ainda tinha alguma coisa do meu bairro lá, de Barcelona, né, eu me sentia muito bem, parecia uma cidade do interior, as pessoas se conheciam e ... a vida era, nós éramos convidados freqüentemente, um grupo de espanhóis que morávamos, pras casas é ... domingo a tarde vamos fazer um bailinho aqui com as filhas das, das proprietárias da casa, né? Que ele preferia ver as filhas dançando na sala, fazia bolo, fazia salgadinho, então, não havia essa preocupação, ofereciam bolos, guaraná e pra se distraírem. Então, a receptividade assim das pessoas para o estrangeiro era maravilhosa, bem melhor do que para os próprios brasileiros que vinham do norte, né? Pro estrangeiro, o Brasil sempre nos recebeu muito bem. E eu fico sentido quando vejo que hoje que o brasileiro sai por ai afora, que não precisaria né? Procurar emprego, é maltratado nos aeroportos, em Barcelona, em Roma, em Paris. Porque ele vai lá pra disputar o mercado de trabalho com os nacionais, mas o brasileiro não fazia isso quando nós viémos. Em 50, 52, 54 veio muita gente da Espanha e da Itália e da Grécia, de todo lugar, da Alemanha, portugueses e eram todos muito bem recebidos. Então, eu acho assim muito injusto o que está acontecendo hoje. Mas a culpa não dou aos habitantes lá de Roma e etc. ... a culpa é dos dirigentes, dos dirigentes do Brasil que permite que isso aconteça. O Brasil tem todas as condições para ter mercado de trabalho pro seus filhos, não precisar que nenhum brasileiro vá lá trás mendigar trabalho. Encontrei em Barcelona um rapaz em 91, formado em Física, trabalhando de servente de pedreiro, ganhando 1200, 1200 dólares como servente de pedreiro; um rapaz que fez faculdade, com uma cultura geral extraordinária. Por que que isto acontece? Isto não acontecia quando Getúlio Vargas era presidente. Não sei se era mérito de Getúlio Vargas ou é demérito dos que mandaram depois. Certo. E quantos anos o senhor trabalhou nessa firma?
R - Um ano apenas. Depois eu fui trabalhar no interior, aliás eu era meio nômade né, meio inconformado, sempre achava que não me davam o que merecia, etc., sempre procurando alguma coisa, né?
P - E pra que cidade o senhor foi?
R - Fui pra um lugar chamado Morungaba; cidadezinha muito pequena, e eu conheci algumas coisas do Brasil lá, por exemplo, na cidade havia apenas uma tecelagem. O homem botou um anúncio no jornal, aqui em São Paulo, e levou gente pra lá. As pessoas que estavam lá, a maioria não tinha dinheiro pra pegar um ônibus e voltar, mas naquela fábrica eles nunca iam ganhar a vida, ganhavam por produção, só os muito espertos é que conseguiam ganhar. Então, ele nos colocou nos hoteizinhos da cidade, nas pensões e garantiu o pagamento. Antes de nós recebermos o dinheiro, pagava-se a despesa; e não sobrava dinheiro suficiente pra pagar a Viação Cometa, o ônibus custava quarenta, quarenta cruzeiros. Porém eu, que sempre fui um pouco mais prevenido, eu tinha dois mil escondido que era o meu último pagamento (risos) no Calfat. Então eu disse: o dia que me der vontade eu faço minha mala e me mando. Vim pra São Paulo, fui mascate, trabalhei na companhia telefônica, trabalhei descascando batata no Hotel Esplanada, inclusive lá aconteceu um episódio que eu acho interessante: havia um espanhol, formado em Direito, lavando pratos (risos) e eu descascando batata e um rapaz que era de Sergipe que era analfabeto; e nós dois conversando ficamos assim abismado: "Mas rapaz, você tem que aprender a ler e a escrever. Como é que pode?" Aí, ele dizia assim: "E vocês dois que são tão sabidos e estão aqui, lavando pratos e descascando batata, não vale a pena." (risos). Mas evidentemente ele não tinha nenhuma perspectiva, não tinha oportunidade, né? Enquanto continuasse analfabeto.
P - Eu gostaria que o senhor falasse um pouco mais da época que o senhor foi mascate. Que bairros o senhor percorria aqui em São Paulo, como que o senhor pegava mercadoria?
R - Como eu disse, eu tinha dois mil cruzeiros; gastei a passagem e o que sobrou achei uns amigos, uns patrícios em São Paulo, que já estavam fazendo isso, né? E então disseram: "Olha, quanto você tem?" "Eu tenho, sei lá, mil e setecentos." "Ah É o bastante pra começar a trabalhar por conta própria." Me levaram lá pra Maria Marcolina, pro Brás, e comprei uma colcha, duas calças de brim, uns dois lençóis ... sei lá, umas bugigangas que dava pra comprar e tomei um trem e desci em Mauá. Desci e comecei a subir uma ladeirinha lá, e tinha uma senhora na porta de um bar com dois garotos. Eu disse: "Minha senhora, a senhora quer comprar alguma coisa?" Eu nunca tinha feito isso, eu era meio acanhado. "Deixe ver", ela disse. "Eu, com o bar aqui, não posso sair quando tenho que fazer compras", me comprou cento e vinte cruzeiros, eu fiquei superfeliz. Falei: "Mas é muita sorte, o primeiro lugar que eu bato." E sempre me dei muito bem naquela parte de Mauá, Ribeirão Pires e aquela parte. E já quando pegava o subúrbio da Central, que eu ia até Mogi das Cruzes, não me dava tão bem, teve alguns problemas, eu gostava mais da Santos-Jundiaí, né? Eu pegava sempre o trem, mas também não cheguei a fazer grandes sucessos. Aí eu ficava ... Foi tudo aprendizado, né? Mas eu era um pouco acanhado pra ir batendo nas portas, fazia amizade com alguns e depois ficava só visitando os mesmos clientes sempre, né? Eu tive um problema com uma senhora que me fez umas compras, e ela disse: "O senhor me deixa isso aqui, a semana que vem o senhor passa que eu lhe pago." Aí, a vizinha me chamou e disse assim: "Ela não paga ninguém, ela é uma caloteira." Eu disse: "Tô ferrado, meu capital de giro, tá tudo na casa da mulher." "Minha senhora, eu arrependi, eu quero levar minha mercadoria." Ela falou: "O senhor aqui não entra de jeito nenhum." Eu ameacei ela com guarda-chuva, entrei, ela pegou uma tesoura, me ameaçou com uma tesoura, começou a gritar - "Ladrão, capitão" Eu sabia lá quem que ela tá chamando, mas eu peguei o que era meu, pus na trouxa e falei: "Acho que essa profissão não vai dar pra mim." Fui trabalhar na companhia telefônica e depois um emprego assim que durou mais, eu fiquei três anos trabalhando lá e lá eu conheci a minha mulher, a avó dos meus netos e, depois lá eu já ganhei um pouco de dinheiro pra poder abrir algum negócio meu, né? Primeiro eu tive um bar na Rua Joaquim Floriano, foi quando eu comecei a entrar em contato com o bairro do Itaim e com a Rua João Cachoeira.
P - Como é que chamava o bar?
R - O bar chamava Adega Bibi. Era uma adega, vendia vinho. Foi até um certo sucesso, porque a gente começou com 30 mil cruzeiros. No dia da inauguração, chegou um gaiato lá, mas parece que estava falando sério: "Se você quer 80 mil te dou agora". Ganhei muito dinheiro já, só que não quis. Permaneci lá. Nesta altura, a minha sogra, mãe da minha esposa, havia resolvido que deveria trabalhar, fazer alguma coisa, embora a casa dela estivesse bem, ganhava o suficiente. E.... ela tinha uma mãe doente na Espanha e o irmão escreveu uma carta pedindo ajuda. Ela achou que não deveria mexer no orçamento doméstico, nós morávamos juntos, né? Era tudo uma economia só, uma casa só. Que ela deveria ganhar dinheiro, já que a mãe era dela, deveria ganhar dinheiro por conta dela. Então, ela começou uma busca que culminou com a Franita. Quer dizer, primeiro ela comprou uma banca na feira, me convidou pra ir junto. Então, eu comecei a trabalhar por conta própria, que é o sonho do imigrante, não? Por mais que seja um bom emprego, a gente quer ser dono do seu nariz e etc. Então, nossa primeira experiência comercial, de um lado foi o bar, que não me agradou muito porque as pessoas entravam boazinhas mas ficavam bêbadas lá e brigavam. Eu tenho um gênio meio esquentado e tal, não tinha paciência pra esse tipo de negócio, né? Então, fomos à feira, trabalhamos um tempo. Ela achou que a feira ficava muito na intempérie, abriu uma lojinha na Avenida Santo Amaro, que era uma continuação da banca da feira. Uma loja humilde, uma loja simples, também sem grande experiências.
P - Como é que era o espaço físico da loja?
R - Ela seria menos que metade deste espaço que nós temos aqui e além do mais era meio enviesado, né? Parece que quando construíram a Avenida Santo Amaro o local já estava construído, então ele ficou cortado, de um lado mais estreito e o outro mais largo.
P - Tinha prateleiras, balcão, como é que era?
R - Exato, um balcãozinho de madeira que eu mesmo pintei, amarelo e preto. Horrível, mas era o que nos ocorria, né? Uma vitrininha assim bem, muito simples, né, de madeirinha, e tinha saia, bermuda, um monte de coisa. E começamos a ter algumas pequenas experiências, parece que preparação, né, fazíamos saias. E... a minha sogra dona Dolores teve a idéia de comprar tecidos de forrar poltrona pra fazer saia e colocar uma blusa combinando. Ficava muito bonito, e eu era o técnico, eu olhava pras moças e dizia: "Vem cá vou te medir a cintura", pra saber o tamanho da saia, né? Precisava matemática pra fazer as pregas. Eu era o técnico na matemática. Então eu deixava marcado com os alfinetes, minha mulher costurava, minha sogra vendia e nós estávamos indo bem, mas, era uma moda passageira. Entre os diversos artigos que havia lá, havia umas camisas duráveis, baratinhas, simples, cores firmes e vendia muito bem. Um belo dia o fabricante dessas camisas, o senhor Lago, disse à minha sogra que ele não poderia mais fornecer as camisas porque ele iria viajar. Ele sofria de algum problema de saúde e ele e a esposa iam se transferir para Poços de Caldas. Isto seria o ano de 1962, por aí, ainda não tinha começado a revolução de 64. Então, ela disse: "Ah, e agora como é que eu faço sem as suas ..." Ele disse: "Por que a senhora não faz as camisas?" "Eu, eu não sei nada." "Você manda aqui seu genro, que eu vou dar uma explicação e ele vai..." Marcamos um dia, chegamos, cheguei às oito da manhã e ele se limitou a fazer o serviço dele, porém, me explicando o que estava fazendo. Então, ele iniciou um corte de camisas. Aliás, ele tinha uma oficina bem pequena também. Ele cortava as camisas, mandava fora pra costurar, acabava e vendia e num lugarzinho pequeno, só ele e a esposa. Não tinha empregadas e... era uma coisa muito simples.
P - Aonde que ficava essa...
R - No Cambuci.
P - No Cambuci?
R - Não. Não era o Cambuci, meu Deus, que bairro era aquele?
P - Não tem problema.
R - Não, não tem. Ficava entre o Brás e o Bom Retiro. Como se chama... no Pari. Era Pari. Então esse seu Lago foi importante, nos deu um empurrãozinho, né? Então, realmente fui lá e eu havia terminado de vender o barzinho na Joaquim Floriano, tinha um pouco de dinheiro. Não tinha vontade de arranjar emprego. Então, era o momento propício pra se começar alguma coisa, certo. Então, resolvemos fazer uma sociedade com a sogra, né? Foi feito com bastante cuidado, sabíamos que no início não iríamos ganhar dinheiro, porém, meu sogro continuou trabalhando fora. Ele trabalhava na Mercedes Benz, tinha um ótimo emprego. Nos sustentou por um ano, todos nós quatro, nós três, né, a minha esposa, a minha sogra e eu tentando fazer camisas, e ele trazendo envelope todo mês para que não faltasse comida em casa. No início, a sala de casa seria deste tamanho, era a nossa oficina. Procuramos um senhor pra costurar fora, o mesmo sistema que usava o senhor Lago, né? Tivemos muita dificuldade, porque quando íamos à Vinte e Cinco de Março, comprávamos tecidos de primeira que agradava nossos olhos, agradava nossos olhos, agradava nosso coração, né? Mas as máquinas que nós tínhamos eram muito fracas, muito ruins, e a camisa não ficava boa, como o tecido era caro, tínhamos que vender a camisa cara e não funcionava. A nossa falta de experiência, as costureiras tudo nova, então passamos um tempo pastando mesmo, né, cometendo erros e tal mas aprendendo, nos preparando, até que um dia eu disse: "Não adianta, com estas máquinas temos que fazer camisa barata. Camisa de carregação. Tem tecido baratíssimo na Vinte e Cinco de Março que tem bom aspecto, não vai durar muito mas o comprador pelo menos já sabe, né?" Então, fizemos camisas que eram vendidas a 500 cruzeiros. E o metro do tecido custava 80, cada metro. Gastava 1 metro e 60 numa camisa de manga curta e pagávamos 35 a costureira pra fazer uma camisa. Pra costurar, fechado como se diz, né, que a gola já estava feita. Então, com essas camisas de carregação fomos nos mantendo um certo tempo aí, começando a obter um pequeno lucro. Trabalhando, trabalhando, aí liberamos o senhor André da responsabilidade de nos sustentar, né? Até que um dia aconteceu um fato extraordinário. Eu acho que esse fato merece ser bem explicado. Na década de 60, os jovens, no mundo todo, ficaram de certa forma com raiva dos adultos, dos coroas, dos burgueses quadrados, no Dante Alighieri, no Mackenzie, no Bandeirantes. Os professores falavam dos erros que havia acontecido com os adultos na Segunda Guerra Mundial, a guerra da Coréia, a bomba de Hiroshima, a poluição do planeta, tudo isso era culpa de quem? Dos adultos, dos pais deles. As músicas, as poesias, os filmes, tudo colocava eles, porque o que eles viam, porque, por exemplo, uma música como aquela daquele italiano, era um garoto que estava vivendo a vida muito bem, não fazia mal a ninguém, foi mandado pra guerra, pra cortar o cabelo dele. Deixou de tocar a guitarra, deram uma metralhadora e morreu na guerra. Onde havia um coração, colocaram as medalhas mas, ele já estava morto. Estas coisas influenciaram tremendamente o pensamento dos garotos. Então, o garoto não queria se vestir como o pai. Não queria falar como o pai e principalmente não queria se vestir como o pai. E até aquele momento fazia-se uma camisa azul grande e uma pequena, pro pai e pro filho, idênticas, mas naquele momento o garoto nunca iria se vestir igual ao pai. Houve grandes problemas, eles respondiam pros pais. Eram malcriados mesmo e eu notava isso nos clientes. A senhora: "Querido, essa camisa azul é bonitinha", "Vista a senhora". Assim, nunca tinha visto. Eu compreendi isto mais tarde, eu sei dizer que me chegou um garoto com uma camisa e me disse assim: "O senhor é capaz de fazer uma camisa como esta?" Eu propriamente nunca fui camiseiro, né? Mas era muito atrevido. Olhei a camisa assim, ela era enorme, era de enfiar pela cabeça, tinha botões aqui que nunca havia usado antes, a gola era redondinha, a manga curta chegava um pouco pra baixo do cotovelo, e o fraldão quase no joelho. E o tecido? Branco e azul, xadrezinho que até aquele momento só tinha sido usado pra fazer uniforme de empregada. Quer dizer, mais uma maneira de agredir o pai e a mãe, o professor... não tem uma música que dizia assim "não confie em ninguém com mais de 30 anos? Era pra não confiar mesmo." Então, o importante pra Franita é que todo adolescente de São Paulo e até do Brasil queria uma camisa como aquela. Eu não sabia tudo isso, mas o garoto disse assim : "O senhor é capaz de fazer uma camisa como esta?", eu disse "mas claro, deixe a camisa aí e volte depois de amanhã". O garoto foi embora, esse garoto estudava no Mackenzie. Eu devia ter guardado o nome, (risos) então peguei de noite, depois que fechou a loja, eu falei: "Eu vou copiar essa camisa." Não podia desmanchar, porque não era dele, era emprestada. Fui passando para um pedaço de papel cada uma das diversas peças sem abrir, sem desdobrar, tinha que adivinhar quanto tecido tinha lá pra dentro, enfim fiz todo molde. Ele me trouxe um pano horroroso, era uma flanela estampada, escura que não pegava risco, então, eu peguei cada pedacinho de papel, prendi com alfinetes, mas valia a pena, depois descobri, prendia com alfinete e fiquei até a meia-noite pra cortar uma camisa, coisa que qualquer garoto que trabalha numa fábrica, vinte minutos, meia hora, faz, com os moldes, né, mas não tinha molde. Muito bem, então, fiz aquela camisa, no dia seguinte levei pra uma senhora mais experiente costurar pra corrigir algum erro que eu tivesse cometido e, no outro dia, a camisa estava pronta. O garoto chegou: "Tá pronta a camisa?" "Tá." Vestiu, se olhou no espelho, falou: "É isso mesmo, posso deixar mais tecido?" "Pode." Aí ele me deu dois cortes com o padrão que ele queria, isto é, branco e azul, branco e vermelho, igualzinho o uniforme que a empregada da casa dele usava. Aí, pois não, fiz a camisa pra ele. "Quando eu venho buscar?" "Depois de amanhã." Ele vinha buscar, trazia dois colegas do Mackenzie. Os colegas também traziam dois cortes cada um. Vamos fazer mais camisas, cortada a mão, etc. Aqueles vieram buscar e trouxeram dois colegas, o outro, dois colegas e assim foi uma progressão geométrica. Todo mundo no Mackenzie queria uma camisa da Franita. Aí, a dona Dolores disse: "Pera aí, isso aí toda hora, desse jeito. Lá na Vinte e Cinco de Março tá assim de tecidos desse." "Então, a senhora compra um pouco e vamos fazer 40, 50 camisas de experiência pra ver se eles levam." Fizemos as tais camisas, quando eles chegavam com o tecido eu falava assim: "Você quer deixar o tecido ou quer levar a camisa pronta?" Eu estava vendendo a camisa a 500 cruzeiros, essas daí era 2500, mas na Rua Augusta custava 6 ou 7. E também era assim: deixava o tecido e esperava 10, 15 dias pra ver a camisa. O jovem não quer esperar. Sempre de sábado tinha um baile e ele queria estar com a camisa nova. Quem não tivesse uma camisa daquelas não dançava, as meninas não saíam. Então, aquelas 50 não deu pra nada. Fizemos mais 200. Não deu pra nada. Em breve, e essas outras camisas, ninguém levava as antigas. Todo mundo queria.... Como a primeira que o rapaz trouxe de amostra estava escrito "Made in USA", nós chamamos ela de camisa americana, camisa americana. "Olha, vamos liquidar essas outras aí. Vamos fazer só... ensinar as costureiras fazer o novo modelo", que era de enfiar pela cabeça, e fomos ensinando todas e se transformou. A sala de casa ganhou uma atividade incrível. Aos sábados, a loja era pequena, então, por exemplo, mais de dez clientes não cabiam, mas vinham 30, 40. Entrava 10 e ficava 30 na rua. As pessoas passavam e diziam: "O que que está acontecendo aqui, é camisa de graça?" "É quase de graça." Então, a nossa ... começou assim um ciclo extraordinário de crescimento ... tinha tecido em cima do armário, embaixo da mesa, na cômoda. A casa estava invadida não cabia mais gente.... metade dos funcionários, as mulheres trabalhavam de dia, e os homens pra cortar camisa à noite, pra caber mais gente. Mas, num momento, eu disse: "Não, isso não é possível." E, graças a Deus, já não precisamos mais ocupar a sala de casa. Então, peguei a minha bicicleta e fui dar uma volta pra procurar um local, nós estávamos na Avenida Santo Amaro, 1.046 e morávamos na travessa Rua Arminda. Como eu conhecia a João Cachoeira, que eu tinha... o meu negócio era lá perto... conhecia inclusive o senhor Moisés, que era o dono do imóvel e o imóvel estava vazio. "Senhor Moisés, o senhor me aluga isto daqui?" Ele disse: "Pra que?" "Pra uma confecção de camisa." "Ah, minha mulher é muito nervosa. Isso faz muito barulho e ela não vai querer", e ele morava em cima. "Vamos embora senhor Moisés. Pega o seu carro e vamos até em casa. Chegamos em casa, ele viu o pouco barulho que faz uma máquina de costura e as meninas falaram: "Ah, isso daí não tem problema." "Então, vamos fazer negócio. Quanto o senhor quer no aluguel e tal, tal, tal." Não era muito grande, eram 87 metros quadrados. Mas pra nós, acostumados na sala de casa, já era uma grande coisa. Então, o que nos levou à rua João Cachoeira foi a falta de espaço pra costurar. Até aquele momento, a rua João Cachoeira era uma rua morta, parada. Aliás lembrava... meu bairro de horta lá em Barcelona, onde não passava carros, né, e as crianças brincavam na rua. Dos dois lados da rua tinha sobradinhos, muita criança brincando fora, porque na atual, Juscelino Kubitschek, havia um córrego e uma pontezinha de madeira, os carros não atravessavam a rua João Cachoeira. E ela não era nem calçada, era de terra. Então, a criançada podia fazer aquelas brincadeiras, aqueles riscos no chão, jogar futebol etc. Então, era uma rua muito tranqüila, não havia comércio nenhum. No local, onde nós nos instalamos, anteriormente havia uma doceria, chamava Viena, e o comércio do bairro estava concentrado na Joaquim Floriano. Na João Cachoeira, pra não dizer que não existia nada, nada, nada, tinha um barbeiro, tinha o tchecolosváquio que fazia coisas de cerâmica, chamava Pátria, a oficinazinha dele e atendia o público, né, mas não era propriamente comércio, ele vendia o que produzia. Tinha um serralheiro, um barbeiro e uma venda, que chamava "Venda do Chico Preguiça". Esse era o comércio. Na esquina da Joaquim Floriano, havia dois postos de gasolina. Na esquina o senhor Moisés vendia miudezas, tecidos, zíper, essas coisas. E na outra esquina havia outro indivíduo que trocava óleo de carro... Então, a Rua João Cachoeira, até aquele momento, estava adormecida, não havia comércio nenhum. E o que causou, provocou o início da mudança, foi a vinda da Franita, que naquele momento era uma empresa importante. Ela tinha um público ótimo, classe média alta. Os adolescentes naquele momento podiam comprar roupa, né, os pais estavam bem. Aí, veio a Revolução, não atingiu nada no comércio. Pelo contrário, desenvolveu mais, né? E, assim, a história da Rua João Cachoeira tem essa divisão: antes e depois da vinda da Franita.
P - Como é que era a loja na João Cachoeira?
R - Inicialmente, era uma oficina de costura. Existe lá uma escola que chama Costa Manso, Ministro Costa Manso, e os garotos passavam na frente e ficavam olhando pra dentro, né, curiosos. Eles tinham a idade específica de nossos clientes, adolescentes. Eu falei: "Esses garotos ficam aí? Eu vou vender umas camisas pra eles." Simplesmente, virei uma prateleira que olhava pra dentro, pra olhar pra fora, botei um balcão de madeira e começamos a vender. Ao mesmo tempo, a rua .... a Avenida Santo Amaro começou a ter proibição de estacionar, que antigamente se estacionava. Aliás, ela tinha mudado de nome também, que era Estrada de Santo Amaro, então, estacionavam-se dos dois lados com a maior facilidade. Quando começaram a multar e a proibir, nós oferecemos aos clientes a oportunidade de ir para o Itaim na Rua João Cachoeira. Fizemos um mapinha e tudo e eles davam preferência à Rua João Cachoeira. Então, começamos a movimentar a rua. Os nossos clientes começaram a estacionar, também com grande facilidade, não havia nada. Não havia, não havia zona azul, não havia trânsito, não havia farol no cruzamento, nada. Então, eles achavam ótimo, né, parar na porta do estabelecimento, comprar e sair.
P - Como que as pessoas pagavam nessa época?
R - Tudo em dinheiro.
P - Dinheiro?
R - Dinheiro. Três mil cruzeiros uma camisa. E nós, que não tínhamos assim uma tradição de comércio, nem sabíamos o que era, eu não sabia o que era um cartão de crédito, basicamente. Então, não aceitava cartão de crédito, não tinha cheque pré-datado, não sabia o que era. O preço era muito barato e as pessoas compravam à vista. Não tínhamos nenhum incentivo às vendedoras, porque vendíamos mais depressa do que éramos capazes de produzir. Então, assim, depois de 15 anos, fomos descobrir que não sabíamos vender, que aquela fase maravilhosa tinha passado e que tínhamos que aprender, e não sabíamos. Nós não vendíamos, o cliente é que comprava, que é diferente, sabe. Um dia, uma cliente me chamou e disse assim: "Ah, já me avisaram, disseram que vocês aqui são grossos, antipáticos, não estou achando tão grosso." "Tá bom, isso é casual. Mas eu não sou comerciante, sou fabricante de camisa que atende o público." Mas eu não, a verdade é a necessidade que faz, eu não tinha necessidade... Aos sábados, à uma hora, a minha sogra começava a bater palma e a botar os clientes pra fora: "Vamos, vamos, segunda-feira às oito horas tem mais, vamos." Ela expulsava os cliente e eu fico admirado quando me lembro que agora a gente faz tudo: "O senhor quer uma camisa com três mangas? Nós fazemos. O que que o senhor quer, do avesso? Cinco bolsos?" Aí, naquele tempo o sujeito dizia: "Escuta, eu queria uma camisa de manga comprida." "Não tem." "Eu deixo paga." "Não, não faço, não sei fazer, não quero fazer." É terrível (risos). Mas é que a procura era muito maior que a oferta e nós éramos improvisadores. Estávamos lá vendo o que acontecia, e era o tempo do milagre brasileiro, corria muito mais dinheiro do que hoje. Então, mais tarde eu fui descobrir algumas coisas que eu acho, assim, interessante sobre a Rua João Cachoeira. O bairro do Itaim era uma chácara, nas plantas antigas ele ainda consta como chácara Itaim, proprietário Magalhães ... como chamava ele? Couto Magalhães, a família Couto Magalhães eram proprietários da chácara. Fizeram o loteamento e as ruas principais ganharam os nomes dos membros da família. Tinha a rua Bibi, tinha a rua Joaquim Floriano, Renato Paes de Barros e a nossa rua ganhou o nome de um escravo. João Cachoeira era assim o escravo querido da família porque tocava violão, cantava e contava histórias, causos antigos. Então, a rua que era do escravo foi a que tem maior sucesso, né, a que cresceu mais. Com a vinda da Franita e com a grande freguesia que nós tínhamos, outros comerciantes ficaram admirados, e resolveram se estabelecer perto de nós, pra aproveitar aquele fluxo, né? A rua era barata, não se pagava ponto, não havia nada disso e depois de algum tempo abriu uma loja bem na nossa frente com o nome de ( Traksdervil. Traksdervil vendia calças, e uma das calças que eles vendiam chamava-se "Calhambeque". E eles patrocinavam um programa da Record, Jovem Guarda, com um jovenzinho com a perna assim meio defeituosa que se chamava Roberto Carlos e Wanderléia e todos outros. Então, de outro lado veio um rapaz com esposa que faziam camisas de fios de viscose que chamava Balan. Depois veio Porto Belo, depois veio a Le Quinar e foram vindo. Mas o importante que acho que nos deu crescimento, é que a rua tinha característica própria. Todo mundo fazia camisa moderna, direto da fábrica, barato, garantido e atualizado. Todas as lojas vinham com a mesma característica. Naquele momento, a classe média de São Paulo podia comprar na Barão de Itapetininga alguma coisa sofisticada, podia comprar carregação na José Paulino, podia comprar também carregação no Brás, na Vinte e Cinco de Março, ou na Rua Augusta. Augusta era o comércio chique de São Paulo. Ainda no Brasil não havia sido inventado o shopping center. Então, surgiu a João Cachoeira como opção nova, vigorosa, sempre novidades. Voltava duas semanas depois, era outras cores e tal. E cada vez era uma loja nova, outra loja, outra loja nova. Não tinha problema de estacionamento, não tinha problema de zona azul, não tinha nada. Era próximo do Morumbi, do Brooklin, do Jardim Paulista, do Jardim Paulistano. Então, a localização era excelente e ninguém havia descoberto antes como aquela rua era boa. Então, ela cresceu rapidamente, não parava toda hora, aqueles sobradinhos foram todos vendidos para comerciantes. Os donos das casas encantados porque achavam os preços que nunca tinham achado antes. De certa forma foram expulsos, mas quem tinha uma propriedade ganhou dinheiro. O movimento imobiliário foi fantástico. E cada vez mais gente, cada vez mais comerciante e a rua foi crescendo, foi crescendo, foi crescendo até que chegou melhor do que ela é hoje. Ela já foi mais importante, mais ... maior movimento, mais lucratividade. Chegou um ponto que ela parou de crescer, eu entendo por três motivos: fim do milagre brasileiro, construção de shopping centers, principalmente do Iguatemi que é muito próximo, em seguida o Ibirapuera, depois o Morumbi e outros mais. Quer dizer, a classe média teve outras opções de comércio. E a rua se descaracterizou um bocado. Aqueles jovens que tinham vontade de fazer coisas novas e tal começaram a ficar mais velhos, acomodados. Alguns deve ter ganhado muito dinheiro, já não precisava tanto. Vieram os coreanos, vieram outros tipos de comércios diferentes. Então, a rua perdeu aquela característica que era importante pra ela. As modas se mudaram e tal. Até hoje é uma boa rua de comércio. Mas ela já foi melhor.
P - Da onde saiu, como foi formado o nome Franita?
R - Ah, isso é muito simples. A minha esposa chamava Anita e eu chamava Francisco, então juntei uma, o nome inteiro dela com duas ou uma sílaba só do meu, né? Fran-Anita, Francisco e Anita.
P - Agora, eu gostaria que o senhor dissesse, explicasse rapidamente, uma passagem que é, o senhor disse que o senhor não precisava vender, as pessoas compravam. E essa passagem para o vender, como é que foi que o senhor descobriu?
R - Ah. sim, vou explicar. Como eu disse, a nossa camisa ela tinha uma finalidade, não só vestir, né? Os jovens queriam agredir os pais deles, os adultos com a camisa. Porém as mães começaram a ter em casa essas camisas, que deixaram, como se fosse um capricho, porque uma camisa custava como se um sanduíche e uma Coca-cola, né? Então: "Você quer comprar uma camisa dessa filho, deve ser porcaria filho, mas vai, toma três mil cruzeiros e compra." Mas depois a passadeira lavava e passava e a camisa estava sempre nova, isto a senhora é testemunha, né?
P - Pois é...
R - O que que aconteceu: as mães foram apreciando as camisas e comprando também pra si mesmas, para os maridos, pros filhos mais pequenos e nós ficamos encantados, porque o nosso movimento aumentou. Mas, devíamos ter nos preocupado porque estava se descaracterizando. Nós tínhamos uma freguesia, que foi a que nos fez crescer, que era de adolescentes. Os próprios adolescentes quando se formaram e começaram a trabalhar, deixaram de ser agressivos, né? Então, eles envelheceram, nós envelhecemos, etc. A camisa perdeu a importância. Porém, nós vendíamos mais, porque vendíamos agora para toda a família. Então, continuamos, até que, um belo dia, caímos do cavalo. Percebemos que: "Ah, parece tá caindo a venda, ah é, os tempos são outros. Mas tem gente que está vendendo bem." Ellus vendiam muito bem, Gledsom vendia muito bem, eles vieram atrás, vieram na cola nossa e outros muitos que eu não conhecia. Nós havíamos envelhecido. Nosso produto tinha se tornado comum. Então,... um belo dia fomos olhar o estoque, tinha 30 mil camisas que ninguém queria. Então, depois de mais de 20 anos de trabalhar, Franita fez a liquidação. Camisa a preço de sanduíche, dizia a propaganda. O cara mandou fazer um pão, tamanho disso daqui, cortou no meio, encheu de camisas e fotografou (risos). Camisa a preço de sanduíche. Chamamos uma empresa pra nos ajudar, porque estávamos, e realmente não sabíamos o que estava acontecendo, estávamos em sérios problemas. Então, esta empresa disse: "Olha, você, primeira coisa que tem que fazer é distribuir as funções dentro da empresa. E tem que estimular, e tem que modernizar essa loja, está horrorosa." Ele disse com franqueza: "Isto aqui parece uma loja de faroeste. Essas meninas que trabalham para o senhor, nem sabe quem é o chefe delas. Elas obedecem a todo mundo. O que é mais brabo consegue ser obedecido e o outro fica pra depois." Então, eu fiquei com a parte de vendas e naquele momento eu comecei a me interessar seriamente por esse problema das vendas. O meu cunhado, que havia entrado com a morte do pai dele, herdou uma parte da.... então ele foi cuidar de banco, pagamentos, impostos, salários, etc. Minha esposa cuidou da costura. Eu fiquei liberado para cuidar exclusivamente de vender. Então, eu comecei a me preocupar em motivar as vendedoras, em dar comissões, que nós não pagávamos, pagávamos só salário. Não havia nenhum motivo pra que elas tratassem de vender mais.
P - Senhor Francisco, infelizmente o nosso tempo está acabando. O senhor gostaria, assim, de falar de alguma coisa que o senhor gostaria de realizar ainda rapidamente?
R - Muito bem, então eu estava contando que repentinamente nós descobrimos que não sabíamos vender camisas e a empresa sofria alguns problemas. Não podemos esquecer que a Franita era uma empresa familiar. Os acontecimentos familiares, a estrutura da família se projetava sobre a empresa. Inicialmente, o senhor André, que era meu sogro, dona Dolores, Anita e eu estávamos trabalhando. Senhor André faleceu e entrou no lugar o filho dele, de certa forma isso começou a nos trazer alguns problemas, porque a formação técnica desse cunhado, a situação dele, na empresa, sendo sócio minoritário trazia alguns problemas. A empresa de consultoria entendeu isso e separou as funções. Até aquele momento, todos os funcionários sabiam que éramos proprietários e obedeciam a todo mundo. E mesmo as funções misturadas, às vezes, uma conta que havia de ser paga e cada um imaginava que o outro haveria pago e não estava paga ou eventualmente poderia se pagar duas vezes também. Então, foi feito um trabalho e chegou a conclusão de que: para sustentar uma fábrica em novos tempos era importante abrir algumas lojas mais e estimular as vendas. Ensinar às vendedoras técnicas novas e motivá-las principalmente. Como esse trabalho foi colocado sob a minha responsabilidade, eu comecei a me preocupar especificamente com isso. Cometi um erro também, porque esqueci que a empresa era um todo e eu agi com se fosse quatro empresas. A minha era uma empresa de vendas que cuidava exclusivamente de vendas, né? Então, exclui a administração que era superimportante e havia assim uma relação ruim com meu cunhado, que era quem carregava o dinheiro com ele. Mas ... logo na primeira conversa com as vendedoras expliquei a situação pra elas. Eu disse que iria premiar as vendas, por isso queria que anotassem toda vez que fizessem uma venda, o nome delas pra saber quem vendia mais, quem vendia menos. Só dessa conversa a venda já começou a aumentar. E, com infinitas coisas que fomos aprendendo, procurei livros, cursos, etc. Então, conseguimos melhorar essa parte. Hoje, eu penso que o nosso atendimento é muito bom, e se a empresa tem problemas está mais situada em outros setores, não no de vendas. Você me havia feito uma pergunta?
P - Aí, qual foi a correção de rota, digamos assim, em termo de produto, mercadoria?
R - Certo. A correção foi se dando aos poucos, mas principalmente mudamos aquela orientação de fazer uma determinada camisa e descobrir quem quer. Depois, saber quem é nosso cliente e saber o que é que ele quer. Aí então começamos a nos preocupar, saber que: sem o cliente a empresa não funcionava, então começamos a descobrir o que o cliente deseja, né? E então fomos abrindo lojas em diversos pontos e sempre, antes de colocar uma moça atrás do balcão, havia uma seleção, um treinamento, como até hoje estamos nos preocupando com isso. Entretanto, algumas coisas ainda não estão bem resolvidas, ainda não temos. Nunca mais voltamos a ter um produto forte, como aquela camisa que os jovens queriam, que era uma coisa específica, que é um apelo muito grande. Então, hoje somos uma empresa que faz camisa, que vende ao público, mas estamos comparadas com outras do mesmo nível, né? Porém, houve uma coisa positiva, né? Os filhos foram crescendo e eu, durante muito tempo, queria que meu filho nos substituísse, mas ele fez Belas Artes, tinha outras... queria fazer serigrafia, e tal, e repentinamente surgiu a menina do meio, que havia estudado Enfermagem, mas ela também chegou a conclusão que como enfermeira não iria ter grande sucesso. Ela disse: "Pai, eu assumo a responsabilidade por dirigir a empresa." "Vamos ver." E aos poucos foi havendo... uma das coisas que trás problemas nas empresas familiares é essa mudança dos mais velhos para os mais jovens, e isso nós fizemos sem trauma. Ela ficou ao meu lado por um certo tempo e depois ela disse: "Pode deixar que eu assumo." Tanto que, hoje, eu cuido duma parte de treinamento, de implantação de um programa de qualidade total, mas os problemas mais sérios, a minha filha Rosana que resolve. E, infelizmente, os outros filhos também não quiseram, que eu tenho mais dois né, se interessaram. Eu achava o filho, que a turma jovem deveria assumir a direção e deixar os mais velhos descansar, ou fazer uma função menos... com menos responsabilidade.
P - E com relação aos preços, que vocês sempre foram muito competitivos, coisa boa e barata, como é que ficou essa relação depois de passar por essa, vamos dizer, modernização da empresa?
R - Nós continuamos vendendo direto da fábrica, né, então o preço é sempre bom. Mas não estamos sós no mercado, que durante tanto tempo estivemos. Então, hoje temos fortes concorrentes, aliás empresas com capital maior e etc. Mas ainda continuamos tendo um artigo de confiança acima de tudo, né, acho o que nos mantém alguns cliente que as vendedoras comenta isso, o cliente entrou e disse: "Ah, sou cliente da família há 30 anos." Então, o cliente há 30 anos já é uma figura, né? É uma pessoa que quando tinha 16, 17 anos começou a comprar, se tornou adulto, etc. e continua confiando em nós. Porque, em 30 anos, jamais vendemos gato por lebre. Então, se naquela oportunidade tivemos um produto fortíssimo e hoje não é tanto, embora nos preocupemos muito mais em modernizar, em qual é o padrão que se utiliza, etc., é muito mais difícil. Mas uma coisa sempre conseguimos: o cliente confia na Franita, porque nunca enganamos ninguém, sempre: "Ah, uma camisa deu um defeitinho? Pois não, leve outra." Então essa reposição pronta é que nos trouxe esta adesão, esta confiança do cliente de 30 anos que graças a Deus temos muitos.
P - Tá ok, acho que a gente vai acabando por aqui seu Francisco e agradeço muito a ajuda do senhor.
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