Depoimento de Theodor Bittar
Entrevistado por Valéria Barbosa e Manuel Manrique
Estúdio da Oficina Cultural Oswald de Andrade
São Paulo, 3 de novembro de 1994
Transcrita por Teresa Furtado
P - Seu Theodor, eu queria começar com o senhor falando o seu nome completo, o local que o senhor nasceu e a data de nascimento do senhor.
R - Meu nome em português ou em árabe?
P - Pode falar dos dois.
R - O meu nome em português - semitraduzido, não completamente traduzido -, em português, é Theodor, Theo - Th - Theodor, não o no fim, Theodor Bittar. Bittar significa ferrador de animais em árabe, Bittar. Nas encruzilhadas a gente deixa o animal lá para trocar a ferradura. Então, quem troca ferradura, a profissão dele é bittar. Então pegaram esse como sobrenome dos Bittar, Bittar, descendência Bittar.
P - E qual que foi o local de nascimento do senhor e a data?
R - O local de nascimento chama-se Antakya, propriamente em português dizem que é Antioquia, mas é Antakya. Antakya é cidade célebre nos livros sagrados, também. (pausa) O lugar de nascimento meu.
P - Certo.
R - Antakya.
P - E a data de nascimento?
R - 11 de fevereiro de 1902.
P - O senhor nasceu em mil novecentos...
R - ...e dois.
P - Foi registrado em 1902?
R - O... eu sou mais velho um pouco, ainda. Porque o nosso... a nossa cidade era turca, então, os pais quando se tratava de meninos, escondia o menino uns dois ou três anos, depois registrava ele pra não servir muito criança, serviço militar. Essa é a razão, então, que eles sempre ah... escondem dois ou três anos do nascimento da criança masculina.
P - Seu Theodor, como que se chamava os pais do senhor?
R - Hana, Hana. Hana significa, traduzido pro português, João, João Bittar. Bittar, o... o significado já disse a vocês, ferrador, Bittar, quem ferrava os animais. Então pegou o apelido como sobrenome, como em todas as, em todas as nações tem significado a profissão, não é? (pausa) Que mais?
P - E...
Continuar leituraDepoimento de Theodor Bittar
Entrevistado por Valéria Barbosa e Manuel Manrique
Estúdio da Oficina Cultural Oswald de Andrade
São Paulo, 3 de novembro de 1994
Transcrita por Teresa Furtado
P - Seu Theodor, eu queria começar com o senhor falando o seu nome completo, o local que o senhor nasceu e a data de nascimento do senhor.
R - Meu nome em português ou em árabe?
P - Pode falar dos dois.
R - O meu nome em português - semitraduzido, não completamente traduzido -, em português, é Theodor, Theo - Th - Theodor, não o no fim, Theodor Bittar. Bittar significa ferrador de animais em árabe, Bittar. Nas encruzilhadas a gente deixa o animal lá para trocar a ferradura. Então, quem troca ferradura, a profissão dele é bittar. Então pegaram esse como sobrenome dos Bittar, Bittar, descendência Bittar.
P - E qual que foi o local de nascimento do senhor e a data?
R - O local de nascimento chama-se Antakya, propriamente em português dizem que é Antioquia, mas é Antakya. Antakya é cidade célebre nos livros sagrados, também. (pausa) O lugar de nascimento meu.
P - Certo.
R - Antakya.
P - E a data de nascimento?
R - 11 de fevereiro de 1902.
P - O senhor nasceu em mil novecentos...
R - ...e dois.
P - Foi registrado em 1902?
R - O... eu sou mais velho um pouco, ainda. Porque o nosso... a nossa cidade era turca, então, os pais quando se tratava de meninos, escondia o menino uns dois ou três anos, depois registrava ele pra não servir muito criança, serviço militar. Essa é a razão, então, que eles sempre ah... escondem dois ou três anos do nascimento da criança masculina.
P - Seu Theodor, como que se chamava os pais do senhor?
R - Hana, Hana. Hana significa, traduzido pro português, João, João Bittar. Bittar, o... o significado já disse a vocês, ferrador, Bittar, quem ferrava os animais. Então pegou o apelido como sobrenome, como em todas as, em todas as nações tem significado a profissão, não é? (pausa) Que mais?
P - E a mãe do senhor?
R - Angelina, Angelina filha de, de ourives, da mesma cidade. Os meus avós lidava com ouro, então ele comprava e vendia ouro, o meu avô. E foi a razão de nós estarmos aqui no Brasil, ele como lidava muito com o representante do consulado inglês, na minha cidade natal, o cônsul disse para ele: "Olha, nós vamos ter uma crise terrível, universal - em 1914 - você podendo salvar a sua família, tirá-la daqui, desse inferno que nós vamos passar aqui uma crise terrível." Não tinha nem capim pra comer O meu avô, o meu pai, não tinha onde cair morto. Era pedreiro, e pedreiro ganhava miséria, porque cidade pequena não tem serviço. O meu avô, homem do dinheiro, de rico, sempre foi, então ele comprou passagem pra minha família toda e mandou, disse para minha mãe: "Angelina, vai minha filha, vai. Que Deus te acompanha. Porque nós, nós vamos ter uma crise terrível aqui." O meu pai não tinha com que, não tinha dinheiro pra viajar, então, aproveitamos a... o dinheiro do avô, ele comprou as passagens, nos pôs a bordo.
P - Quantos irmãos o senhor tem?
R - Irmãos? Tinha duas irmãs, já falecidas duas. E mais três irmãos homem, todos falecidos. E eu estou na fila. Um dia chega a minha vez
P - Senhor Theodor, eu queria que o senhor falasse um pouco da infância do senhor. Como é que era, da escola, da casa que o senhor morava na cidade natal...
R - A minha casa era um rancho de gente pobre onde visitei ela agora, eu fui para lá, visitei a minha casa. Um rancho pequenino Uma sala embaixo e o dormitório no sótão em cima, todo o mundo... abria um colchão pra família inteira e todo o mundo deitava assim. Todos criança. Então, os velhos dormia num canto e as criança estendia-se... do outro lado. Era gostoso.
P - E as brincadeiras?
R - As brincadeiras, no tempo da neve, às vezes precisava; com pá; afastar a neve da porta da saída da casa pra poder sair fora. Então, no tempo da neve, a gente formava bolas de neve assim e... tchu, soltava um na cara do outro, guerreava... meninos entre um bairro e outro, combatia com neve. E... e de vez em quando a gente buscava um pouco de neve em cima do telhado, do muro, punha numa tigela, põe melado em cima e chuá
P - (riso)
R - No tempo da neve era gostoso, aquilo E agora quando eu fui pra lá, me casei lá, aproveitei e fiz a mesmíssima coisa. Na noite do casamento caiu uma neve, mas uma neve daquela Eu... eu... estava na cama com a mulher, gostosa, ela, demais, e no descer, peguei a neve assim... me recordei dos velhos tempos
P - E da escola, seu Theodor, o senhor tem lembranças da escola?
R - Tenho lembranças. Tenho lembranças. Eu estava no segundo ano da escola árabe, no momento que eu estava na porta de entrada da cidade, o meu professor, já falecido, me disse: "Sedosse - Sedosse é meu nome em árabe, eu traduzi para, para o português - Sedosse, dá-me a sua mão e me acompanha." Então ele me pegou do centro da cidade levou-me pro... para a casa do consulado que era a um quarteirão, a família toda cristã estava escondida toda lá pra não serem massacrados, e entregou-me para a minha família. O meu professor. Então, naquela época, os turcos, que estavam massacrando os armênios, pegaram meu irmão mais velho - esse que morreu aqui em São Paulo, estava na Rua São Caetano - puseram ele no chão, pegaram a faca... ia degolar e ele vendo, viu a faca e ficou... ah... empasmado, assim, veio um outro turco, disse para ele: "Não, larga, esse aqui é cristão, não é armênio." Porque o... os turcos estava matando os armênios. E eles pegaram o meu irmão por engano. Então veio o amigo deles: "Não, deixa este aqui que este é cristão" O meu irmão já estava com a passagem pronta para vir ao Brasil, ficou doente um ano Não pode sair da cama. Aquele susto com a faca na... no pescoço. Esta história Então, depois disso, o meu falecido avô, ele lidava com ouro, pode-se dizer. Ele comprou passagem para nossa família toda: "Vai com Deus acompanhe vocês."
P - E quando que é que o senhor veio para São Paulo?
R - Em 1913. Antes de começar a Grande Guerra européia. Nós chegamos em Santos e o meu pai do navio olhou assim, disse: "Puxa, nessa terra só tem macacos" Ele via gente, as mocidade, ninguém tinha bigode, então ele chamou de macacos (riso) Porque na nossa terra, ninguém tirava o bigode Moço que é moço, deixava crescer desde a infância Ele disse: "Só tem macaco nessa terra" (riso)
P - Seu Theodor, o senhor lembra da viagem, como é que foi a viagem para o Brasil, conta um pouquinho pra gente.
R - A viagem foi maravilhosa. Da minha terra até o porto marítimo, hoje leva uma hora de automóvel. Naquele tempo, de carreta, levamos dois dias Nós subimos até o cume da montanha primeiro, pra depois dar a baixada. Dois dias de viagem até o porto marítimo E do porto, em canoa, fomos tomar o navio, porque não tinha, o navio não atracava ainda, nessa cidade onde nós embarcamos. Fomos até o, o navio. Lá no navio, terceira classe, que imundície Que imundície O meu pai tirava o calção e ia na luz e sabe o que é? Como se chama, aquele bicho, como se chama?
P - Piolho?
P - Piolho
R - Piolho, ele tirava a roupa e ia lá, na luz do porão do navio, ele matava piolho O navio porco, e nós viemos de terceira classe, lá em baixo no porão. Não há limpeza nenhuma, naquele tempo não havia navios Não havia aviões
P - Quanto tempo que durou a viagem?
R - 60 dias, só. De lá pra cá, 60 dias. Nós chegamos aqui na cidade de Santos e pouco tempo depois... a esquadra alemã estava aqui no porto de Santos, ela fugiu para não ser aprisionada. Começou a Grande Guerra, de 14 pra 18, não sei se foi aprisionada depois, ela não pôde sair do Brasil. (pausa) E aviação não existia naquele tempo. Primeiro aviador que fez a maior aventura de todos os tempos... aventuras, foi Charles Lindbergh, saiu dos Estados Unidos sozinho, sozinho, até Paris. Primeiro aviador que atravessou Atlântico Sozinho Mas arriscou a vida. Mas teve peito, não é? Pôs gasolina e vumm, foi embora.
P - Seu Theodor, como é que se chamava o navio que o senhor veio?
R - Tomaso de Savoia. Tomaso de Savoia.
P - E, chegando aqui em Santos, o que é que o pai do senhor foi fazer, o senhor foi fazer?
R - Nós saímos logo, logo em seguida. Primeira coisa que fomos fazer, comprar uma lata grande de, de fósforos, pacotes de fósforos, e saía para a rua, duas caixas por um tostão. O meu pai pegava uma cesta grande assim, enchia, e ia para a rua com um pacote assim: "Duas um tostão, duas um tostão." Eu, então, fiz a mesma coisa. E no domingo, eu engraxava sapato por minha conta. Fiz uma caixa de sapato e ia para a rua, um tostão a engraxada. E o português me puxava a orelha: "Ô turco desgraçado, você não sabe engraxar Toma lá o tostão, vai embora"
P - (riso)
R - Isso são passagens da vida que recordar é viver, não é Que coisa maravilhosa
P - E quanto tempo que o senhor ficou trabalhando, vendendo caixas de fósforos?
R - Até, até que tive um pouco a maioridade. Aprendi a consertar sapatos, com meu irmão mais velho, aprendi a consertar e eu fiz uma caixa com ferramentas dentro, e pregos e linha etc., e saí pela rua, conserta sapato. Eu consertava sapato, de vez em quando. Quando eu não sabia eu trazia para casa para o meu irmão consertar. (pausa) E a vida é assim, minha filha Dura, dura, dura Naquele tempo a vida era muito barato, mas era barato demais que não se ganhava pra comer. Um litro de feijão, um litro de arroz, o português - era uma medida assim, de litro - ele enchia, depois pegava a mão, fazia assim, roubava metade Eh... (riso)
P - Seu Theodor, o senhor disse também que o senhor chegou a fazer... a trabalhar como mascate.
R - Perfeitamente. Eu enchia cestas de miudezas, utilidades domésticas, pras costureiras, linhas, bordados, agulhas, tudo necessidade que uma senhora pode precisar, numa cesta e a matraca na mão. A matraca era um pauzinho que batia assim, não é? Então a gente andava pela rua: "Ô, turquinho, vem cá." Chegava lá: "O que é?" "Dá um cadarço, dá um carretel de linhas 50, 40, não sei o que." E assim era a vida Saía de manhã, voltava em casa à noite. Meu pai mesma coisa. Às vezes chegava hora de almoço nem voltávamos pra casa. Entrávamos num bar que era já conhecido, os mascates ia lá sempre, e a gente pedia um pão com mortadela. Pronto Almoço Duzento réis ou quatrocento réis, não sei quanto era. Almoçava aquilo, não voltava pra casa. Só voltava pra casa... minha falecida... meu falecido pai, voltava à noite, depois que acendia as luzes da rua é que voltava para casa Mascateando A vida era dura, não é a vida que nós levamos hoje, não. Vocês não conhecem o que é a luta Vocês não conhecem, toda essa gente aí Mesmo esses varredor de rua ainda não conhece o que é luta que, que se travou naquele tempo. Naquele tempo a cidade de Santos era limitada até a Companhia dos Bondes, Vila Matias. De lá pra diante era mato, até a praia era tudo mato Quem é que passava por lá? Nova Cintra, naquele lado...
P - Aonde é que o senhor morava em Santos?
R - Na Rua General Câmara, perto da Companhia Docas. Entre a Rua Eduardo Ferreira e Paquetá... não, pra cá, Eduardo Ferreira e João Bittencourt, é, João Bittencourt. Essa rua leva até o mercado municipal. Moramos...
P - E lá...
R - Moramos num sobrado, onde embaixo era loja. Os meus irmãos puseram um pouco de tecido lá - o tecido era estrangeiro Não tinha fabricação de tecido aqui Era tudo estrangeiro - puseram um pouquinho de tecido lá e morávamos lá em cima, alugava, subalugava um ou dois quartos, para poder sustentar a nota. Depois disto, um dos meus irmãos alugou uma portinha do lado, de uma tal Filomena, uma italiana brava, e consertava sapato lá. E eu aprendi a consertar sapato com ele. Tanto é que até hoje eu tenho calos na mão, não me saiu os calos da mão. Veja os calos, nunca mais saiu os calos. Não sei o que é isso.
P - E o senhor ficou quanto tempo consertando sapatos?
R - Até que eu saí da cidade de Santos.
P - E quando foi isso?
R - Eu fui pra Europa, me casei, voltei; depois que saí de Santos fui para Rio Grande do Sul, para a cidade de Porto Alegre, ali eu deixei o ofício. Disse: "De ofício basta" Aí começou, comecei a vender mercadorias. Viajei um pouco, viajei todo o estado do Rio Grande do Sul. Eu arranjei um meio de cavar a vida boa, que entrava em todas as casas vendia. Tudo o que era casa, vendia
P - O senhor vendia o quê?
R - Eu arranjei agulhas de máquinas de tecer, quebradas. Então, eu comprava lapiseira e punha agulha na lapiseira e pegava uma meia desfiada, e com aquela agulha eu desfiava, enfiava de novo. Eu parei numa esquina em Porto Alegre, vendia centenas daquelas agulhas, porque qual é a menina ou mulher que não tem meia desfiada? Então eu pegava uma, uma caixa assim, botava uma meia dessas mais grosseiras, que a malha era grande, então eu fazia assim, meia desfiada eu enfiava de novo. Todo o mundo me comprava aquilo ali Ganhei dinheirão com aquilo ali Eu comprava por grosas essas agulhas e... uma ocasião passou quem me vendia as agulhas, passou na praça e disse: "Aí, heim Então é por isso que você compra tantas agulhas" Eu digo: "Claro, é uma cavação boa."
P - Seu Theodor, o senhor disse que antes de ir para Porto Alegre o senhor se casou.
R - Sim Perfeitamente.
P - Fala um pouco do casamento do senhor, o nome da esposa do senhor, como é que foi o casamento...
P - A minha... eu fui em aventuras, por conta própria pra minha cidade natal, Antakya. E lá, casa da minha tia, pegada casa da ex, ex-sogra. A minha tia já falecida, conversa vai conversa vem, diz: "Ó Sedosse, você vai levar uma companhia junto com você pro Brasil." "O que é que é isso, eu não vim para isso." Era pegada a casa uma da outra. "Vem cá." Entramos lá na casa, disse: "Olha, essa daqui é sua... vai ser a sua mulher." "Mas eu não vim para casar" "Mas você vai casar." Sorte Destino Graças a Deus, tenho esposa como, como poucas. Ela é dona da casa. Não é extravagante pra coisa alguma Não pede nada, só pede o que é necessário mesmo Em roupa, ela tendo, ela não usa. Tá em casa, de vez em quando nós damos uma escapadinha para Águas de Lindóia ou pra cidade de Santos onde temos apartamento lá dos filhos, e assim passamos a vida
P - Como que é o nome dela?
R - Nazira. Nazira. Ela tem 84 anos, eu 94. E ainda de pé, graças a Deus. Pouca gente com minha idade estão de pé, eu ando a cidade toda a pé, desço na Praça da Sé, de lá eu vou pro mercado municipal e vou até Rua São Caetano a pé, todo o dia. Gosto de andar. Eu contei pra você a história do médico, não é? O médico no metrô, sentado, conversando, eu disse pra ele: "Eu não gosto de vir até aqui, até à Luz de, de... de metrô. Eu costumo vir da Praça da Sé até aqui, até a Luz, a pé, eu dizia pra ele. A pé é saudável, eu me sinto cada vez mais rígido, mais duro, fazendo essa trajetória." E, depois, na despedida, eu disse pra ele: "Eu estou na Rua São Caetano, só perguntar pelo meu nome, quase todas lojas é meu ou de meus netos." Ele disse então: "Tá bom, eu estou em Santana, sou médico do hospital." (riso) E eu, aconselhando um médico Andar, faz bem. E, de fato, andando, todo o corpo funciona
P - Seu Theodor, bom, aí o senhor foi, casou-se e voltou para o Brasil.
R - Perfeitamente.
P - O senhor estava falando de Porto Alegre.
R - Porto Alegre?
P - Isso
R - Porto Alegre é depois de muitos anos eu fui pra Porto Alegre Já tinha uma filha, Maria, nascida em Santos, e os demais filhos nasceram no Rio Grande, inclusive o Eduardo nasceu em Porto Alegre. Em Porto Alegre, eu contei pra você, não é? Eu aprendi a fotografar, fazia caixas de fotógrafo de jardim e vendia. E eu trabalhava no jardim, na praça, como fotógrafo. Então eu via como era aquele negociozinho, em casa eu fazia caixas e vendia Comprava lentes no brechó e vendia Pronto Aquilo é fácil Fórmula de revelador eu, eu mesmo fazia Fixador, revelador, essas coisas conhecia tudo
P - Como é que se chamava essa praça?
R - Praça 15 de Novembro. Só tinha fotógrafo em todos os lados. E mesas no centro da praça e o bar, do lado. Então, a maior parte das pessoas, forasteiros, sentava ali naquelas mesas pra tomar um chopes ou uma cerveja. Então, vinha o fotógrafo tic, batia fotografia, já ganhava dinheiro. Praça muito boa Pessoal servia chopes ali como, como pouca gente servia. Eram alemães, não é?, e o alemão é especialista em chopes.
P - E o senhor ficou trabalhando de fotógrafo até quando seu Theodor?
R - De fotógrafo?
P - Isso.
R - Até que eu vim pra São Paulo.
P - E por que é que o senhor resolveu vir para São Paulo?
R - Porque procurava um meio melhor de vida. Aquilo ali é um ganha pão, mas não é o total Que se a gente chega, senta e não se mexe, não sai daquele, daquele movimento Então a gente tem ânimo, quer lutar, sai por esse mundo afora que tem, tem meios. É procurar um meio de melhorar.
P - E chegando aqui em São Paulo, como é que foi?
R - Chegando aqui em São Paulo, fui na Voluntários da Pátria, moradia e loja. Moradia, o quê? Criançada deitada no chão, sem cama, sem nada não Ali o meu irmão me mandou um vendedor de... que fabricava sapatos com sola de pneumático de automóvel, me mandou um saco desses, desses sapatos, punha na porta, e vendendo ganhava uma miséria daquilo ali, mas dava pra pagar o aluguel do armazém, a loja. Era de graça, quase O dono daquele armazém é um multimilionário hoje Um que vende flores na Praça da República. Ainda hoje está lá. Vendendo flores, milionário.
P - O senhor sabe o nome dele?
R - João. Ainda vende flores, vi ele esses dias por lá. Não é nada, não é nada, a gente diz: Ah, tsc, banca de flores... Sim Você chega lá, encomenda flores manda pra tal menino, para senhoras flores. Ele tem mensageiro, chega lá, e manda. Cobra bem, mas manda. Até hoje vende flores. Está milionário e até hoje tem a banca de flores lá.
P - Naquela época que o senhor trabalhava, qual era a recreação, a distração que o senhor fazia?
R - Aonde?
P - Em Santos, em Porto Alegre. O que é que o senhor gostava de fazer?
R - Em Santos, meu caro amigo, eu era mascate e depois tinha oficina de consertar calçados, por último mascateava, mesmo. E quando era... como tinha vários amigos conterrâneos que já morreram também todos eles, e eu estou agora em primeira mão, a gente sentava na balneária, em frente ao mar, era do tal Benjamim, que tinha padaria na Rua General Câmara, e depois pegou aquele bar em frente ao... em frente à praia. Então, sentávamos lá, uma turma de meia dúzia de, de amigos, e começávamos a tomar cerveja. Meia dúzia. Meia dúzia. Até às vezes meu pai acompanhava ali. Meia dúzia Meia dúzia Éramos uns cinco, seis, oito rapazes, chupávamos a cerveja e tremoços, amendoim etc., pra ajudar, não é?, e quando é lá pra meia-noite o, o Benjamim dizia: Olha, essa é a última meia-dúzia, porque não tinha mais cervejas (riso) A gente tomava cerveja até esgotar o estoque do homem
P - (riso) Qual, qual era a cerveja da época?
R - Antárctica. Antárctica. E quando não tinha Antárctica vinha Brahma mesmo, mas Antárctica era a preferência. São as mais antigas da cidade, não é? (fim da fita 034 / 01-A)
P - E em Porto Alegre?
R - Em Porto Alegre? Em Porto Alegre era o chopes lá da, da... não sei se era da Brahma, se não me engano. A gente dava preferência mais, particularmente, pinga. Se toma um tragozinho assim devagar, aquilo alegra o coração, alegra tudo. Mas não, não beber até cair de morto, feito negro Se toma um pouquinho, qualquer pessoa Põe um cálice pequeno, molha a boca. Não be... não tomar a, a pinga, senão ela toma conta de você. Molha a boca. Tem uma alface, um pedaço de pepino, um pedaço de tomate... uma pitada de sal... aprendeu?
P - (riso)
R - Qual é... a próxima?
P - E depois, o senhor estava falando da Voluntários da Pátria...
R - Exato.
P - E depois da Voluntários da Pátria, o senhor foi pra onde?
R - Pra Rua José Paulino. Eu passei agora em frente onde era minha loja. Era de meus conterrâneos, meus patrícios, eles saíram de lá, eu... xuu Vim da Voluntários da Pátria para a Rua José Paulino.
P - Vendendo calçados?
R - Vendendo calçado
P - O senhor lembra como que era a Rua José Paulino, naquela época?
R - Rua José Paulino tinha depósito cerveja, do outro lado de lá e... minha razão de sair da Rua José Paulino, chegaram as prostitutas naquela cercania toda, fecharam todas as travessas, era só prostituição. Eu com duas meninas em casa, eu disse pra minha mulher: "Vamos embora." Foi o destino Eu fui passeando pela Rua São Caetano, queria ver alguma porta. E o meu irmão, os meus sobrinhos, a gente quer muito bem, mas ninguém quer bem a você. Eles não queria que eu fosse pra Rua São Caetano pra ser concorrente, e eu não tinha capital nenhum, quase Eu passando na Rua São Caetano, um tal Jorge Nemi, que tinha casa de quadros lá em frente. Tava na porta, diz: "Ó, Bittar, que é que tá fazendo por aqui?" Esse, ele estava nas lojas onde tenho, onde está o banco etc., era minhas lojas. Eu disse pra ele: "Eu estou andando por aqui, quero ver se eu encontro um ponto pra mim. Eu estou na Rua José Paulino e puseram as vagabundas lá naquela parte, eu tenho minhas meninas, não posso fazer com que elas abre os olhos e vê isso aqui." Ele disse: "Bittar, vem cá, fica com essa minha loja" Viu o destino? "Fica com essa minha loja" Eu tinha 14 contos no bolso, dinheiro. Eu digo: "Mas eu não tenho dinheiro para ficar com a loja Loja com vitrine e tudo" Diz: "Não faz mal, você não paga nada, fica com essa loja" Me deu a loja de presente com vitrines. Um lado. Outro lado, tinha um outro patrício com tecidos - tecidos, loja fraquíssima, também não fazia negócio nenhum - ele, esse me deu essa loja, e com moradia, um quarto lá dentro, deu pra, para a turma se deitar no chão e dormir. E o outro me diz: "Bittar, vem cá, fica com essa minha parte, que eu... não me dá nada para mim" Opa Fiquei com a outra parte, e do lado de lá tinha três dormitórios, nos fundos, já melhorou a situação. E tinha as vitrines de presente De presente me deu as vitrines Antes era uma loja de calçados, veja só que destino Era uma loja de sapato. Aquele tinha tecido, não deu, não deu certo, me deu pra mim a loja. Aí comecei melhorar a situação. Eu pus uns pares de sapatos que tinha na loja ainda eu pus na frente, pra, para vender. De repente passa um camarada assim, ele viu a marca de calçado dele na porta, ele chegou pra mim, um tal de Cirilo, ele diz: "Ué, meu calçado está aqui na porta e você não calçado, as caixas estão vazias, por quê?" Eu digo: "Agora eu tomei conta da loja" Diz ele: "Vamos fazer um, uma faturazinha?" E eu sem dinheiro nenhum... "Vamos." Escreveu uma numeração, me mandou uma numeração, uma... imediatamente, ele tinha pronto da fábrica, e dali, Deus quis que melhorasse toda a situação, abriu as portas do céu, e eu progredi, criei a família, tenho a propriedade lá, o sobrado é meu e... e assim por diante. Destino é que manda. Nós dizemos em árabe: "Al maktub" - o que está escrito. Que quando a pessoa nasce, tem uns algarismos aqui que ninguém sabe decifrar, tem uns riscos... já viu crânio de pessoa? Já viu crânio, osso? Aqui tem uns riscos, quem é que sabe decifrar esses riscos? Tem riscos. Não se sabe se é hebreu ou outra linguagem qualquer, mas repara que tem. Aqui assim, os ossos têm uns risquinhos, devem ter algum significado O dia da chamada de volta... se pagou a passagem ida e volta, você tem que voltar, nessa data...
P - Está escrito, né? (riso)
R - É, Al maktub.
P - Seu Theodor, eu queria que o senhor falasse um pouco como que era a Rua São Caetano nessa época que o senhor foi pra lá.
R - Ah... Rua São Caetano, aos sábados, à noite, era assim, de gente Meninas e meninos, passeando os moços pra namorar... aquela rua toda, eh... uma beleza Passava o bonde por lá ainda. Depois mataram uma senhora lá, porque fulano abusava da filha dela e ela se... se intrometeu - filha menina, ainda - e ele matou a mulher na Rua São Caetano. Era bonita
P - E as lojas...?
R - Lá em cima na, na entrada da Rua São Caetano, tinha loja de calçado Clark, quem descia, do lado esquerdo quem desce, bem na esquina era a casa de calçado Clark. Mais embaixo, na outra esquina era o (Venezelo?), lá onde está a loja de propriedade de meu filho caçula. Hoje é loja de noiva, mas era do (Venezelos?). E... nós mandamos o pai da minha nora fechar o negócio daquela esquina, porque pra nós eles não vendia de forma nenhuma. Concorrentes... Mandamos o, o pai da minha nora, fechou o negócio depois que fechou o negócio fomos para lá, botamos o filho Oswaldo, lá. Hoje Oswaldo é dono da esquina, mas tivemos que usar o truque. Uma pessoa de fora fechou o negócio, pronto, estava feito E o Eduardo casou lá em cima, no Toscano, lá no Galeano, naquela loja de esquina, em cima sobrado, ali era um salão de festa onde ele fez o casamento lá.
P - E a maioria das lojas, seu Theodor, na São Caetano, era de calçados?
R - Não A maioria era tecido
P - Tecido?
R - É, era tecido Calçado tinha só Clark em cima e (Venezelos?) lá embaixo. O (Venezelos?) começou, o pai deles na São Caetano começou consertando sapato na São Caetano, o velho, eu não cheguei a conhecer, o velho. Hoje estão bem Tem médico, tem propriedade, tem um prédio na Rua São Caetano que é deles, sobrado. Como eu tenho meu sobrado lá também.
P - Seu Theodor...
R - Antes, antes tinha o trem da Cantareira, que a força do movimento do bairro vinha de baixo para cima. Então, vinha o trem da Cantareira até a Rua Cantareira, despejava aquele monte de gente diariamente, e de lá vinha para a Rua São Caetano fazer as compras. Depois disso aqui, tiraram o trem, veio por cima a freguesia, pela Avenida Tiradentes, pelos ônibus. Então, meu movimento embaixo fracassou completamente
P - Em que época mais ou menos que foi isso?
R - (pausa) Hoje estamos em...?
P - 94.
R - Foi em 40, mais ou menos, não é?
P - Sabe o que eu queria que o senhor me dissesse... como que era a forma de pagamento dos fregueses do senhor?
R - Toma lá, dá cá. Nunca vendi fiado
P - Não tinha caderneta?
R - Não. Uma única vez que uma pessoa se tornou muito amiga minha - se é que, que ele formou essa, essa amizade com esse propósito, eu não sei - mas ele pegou o calçado fiado e nunca mais apareceu (riso) Todo o dia estávamos conversando ali na loja, e ele morava ali na travessa, na Rua Djalma Dutra, nunca mais apareceu E era cabeleireiro de salão fino na, na rua, na Praça da República, eu fui lá procurar ele uma ocasião, mas depois eu achei que era inútil. Fui lá ele... cabeleireiro está em salão de luxo As madames freqüentavam aquele salão, tudo Sabe aquela do português que vendia leite? O português vendia leite, fez um dinheirinho, pôs num saquinho, e, foi lá pelo navio, ele começou no navio contar o dinheiro e pôr no saquinho. De repente o macaco veio, pegou o saquinho e foi pro mastro do navio E o português dizia: "Vem cá, vem cá, essa é toda a minha fortuna, vem cá, vem cá, que eu quero você muito bem... vem cá, me dá o saquinho" E o mastro do navio fazia assim, e o português com medo: "Ai, o meu saquinho vai pro mar, vai pra água, ai o meu saquinho vai pra água. ô, macaquinho, vem cá que eu te dou metade do que está aí..." E o mastro do navio assim... De repente, numa dessas o macaquinho pega e... jogou o saco com o dinheiro tudo no mar. E o português diz assim: Bendito Deus, água deu, água levou... porque ele vendia o leite misturado com água, então, "abençoado Deus, água deu, água levou..." (riso)
P - E como é que era a relação com os fornecedores? Era toma lá dá cá, também?
R - Não, não, não. Os fornecedores davam prazo. Eu tinha bons fornecedores, tinha os Nicoletti, tinha os Catamachia, tinha... o Nápoli, marcas de calçados conhecidíssimas aqui. Eles davam 30, 60 dias de prazo. Bom, o freguês, era só telefonar e a mercadoria vinha. Mas, para começar a luta, em qualquer uma atividade requer paciência e insistência e honestidade, porque se você toma e não devolve, você perde o crédito e nunca mais se apruma E eu tinha os melhores fabricantes de calçados, me forneciam. Tinha o Nápoli e o Nicoletti, os maiores fabricantes e os Catamachia, maiores fabricantes de calçados do Brasil, me fornecia mercadoria.
P - Seu Theodor, naquela época já existia caixas de sapato, como eram os embrulhos?
R - Caixas, em caixas de sapato. Caixas, todas as caixas eu punha o meu rotulinho: "Bittar". Um rótulo amarelo assim, com Bittar atravessado, era caixa de sapato, toda a freguesa levava caixa de sapato Um detalhe bom: balconista ganhava pouco salário. Todo o sapato levava selo, obrigatório, para o governo. Então, o balconista vendia o sapato e... enquanto, enquanto eu estava vendendo sapato, eles com as unhas arrancavam o selo que valia um bom dinheiro, arrancava o selo sem o freguês saber, embrulhava o sapato. Aquele selo ele revendia outra vez para o fabricante e lá vinha de novo o sapato selado... ele vendia pela metade do preço, mas... dava.
P - O senhor chegou a ter muitos funcionários?
R - Tenho até hoje... três ou quatro balconistas. Mas eu tinha um balconista lá que hoje é gerente da Casa Fidalga, na Rua Quintino Bocaiúva. Ele é gerente lá, era meu balconista, hoje é gerente da Fidalga, ainda é, um tal Paulino. Ainda nos cumprimentamos, nos... conversamos, de vez em quando eu compro sapato dele lá. Bom balconista, ele é gerente na Fidalga. Aprendeu a trabalhar comigo... o, o balconista que trabalhava comigo ele aprendia a servir a freguesia. Aprendia, eu ensinava o modo delicado de... onde a freguesa saía bem servida. Eu tinha reservatório para a freguesa sentar e experimentar o sapato, que ela de pé desaparecia. Aquilo ali foi serrado, até sentada mesmo ela aparecia pra fora, porque o balconista é malandro. A freguesa fechada, ele passava a mão ali à vontade. Com um modo de... de calçar o sapato ele pegava na perna, assim, da freguesa e, e pegava o sapato com a outra, dizia: "Estou experimentando." Algumas se queixavam, outras gostavam, mas então eu cortei aquilo ali. A freguesa fica livre, tem que aparecer que é ela que está servindo sapato, não a perna dela
P - O senhor vendia só calçados femininos?
R - Tudo, tudo Feminino, de criança, pra homem, tudo Eu tinha as duas lojas, onde tem o prédio hoje está o banco, era duas lojas, então eu usava os dois lados.
P - E quando, em que momento que o senhor, que a loja sai do ramo de calçados e entra no ramo de noivas?
R - Ah Mas depois de derrubar o prédio
P - Conta um pouquinho dessa história. Como é que aconteceu?
R - Eu saí da loja de sapato, liquidando tudo, liquidando tudo, passou um pouco de... de sapato pras lojas de baixo, da outra esquina que nós tínhamos também outra loja de sapato, onde era o (Venezelos?), e aí derrubaram pra construir, não é? Três andares, sem elevador, tá lá, tá alugado, dá para a gente comer o pão de cada dia
P - E o senhor acabou com os calçados e... na verdade foram os filhos do senhor que começaram a...
R - Vestidos de noivas, já o ramo de vestidos de noivas dava mais dinheiro. Hoje não, hoje é porcaria. Hoje a baianada começou fabricar vestidos de noiva e levar para o interior vender, para vender pros lojistas pelo preço de atacado. Eles ganhando uma miséria, soltam a mercadoria
P - E naquela época como é que era, qual que é a diferença com hoje...
R - A diferença é que vendendo, vendendo vestidos de noiva, a freguesia tinha que esperar muito para levar um vestido pronto porque tinha muitas encomendas, as lojas. Eu esperava na loja até duas, três horas da tarde para ir para casa almoçar, porque tinha freguesia assim Eles não tinham tempo de atender as encomendas. Hoje não, hoje... você chega lá, encontra tudo pronto. Mas essa turma aí, de baianada, puseram lojas e casas nas travessas, onde fazem o vestido e vendem por qualquer preço Um dia que você quiser comprar vestido, vai lá Você já casou, não?
P - Já... (riso)
R - Tem filhos?
P - Ainda não.
R - Há pouco tempo casada? Então faz força, heim Traz herdeiros porque... casal sem filhos não é casal
R - Os meus netos, são trinta e tantos netos, filhos e filhas... todo o mundo tem prole, cada um tem a sua prole... Me enchem de alegria quando vêm para casa todos Ah As paredes da casa espicha, ela cabe tudo É gostoso. Na... Esse negócio de ficar só homem e mulher na casa não... não tem graça. É melhor ver as paredes da casa do que ficar os dois juntos assim, sem nada. Precisa é família grande, quando é dia de festas assim que a minha patroa faz almoço para a turma toda, ah, a minha casa fica cheia de alegria, aquelas paredes se abrem todas, vêm tudo, 33 pessoas, já imaginou, numa casa pequeninha?
P - Atualmente o senhor mora com quem?
R - Minha senhora mora comigo. Eu não moro com ninguém Minha senhora é que mora comigo
P - E quantos netos que o senhor falou que tem, e bisnetos?
R - Trinta e três, se eu não me engano. Precisa contar de novo, procurar o Eduardo, aí, que ele faz a lista.
P - O que é que...
R - Uma filha foi ontem para o Chile, passear com o marido, vai para os Andes, esses estão bem. Aliás, todos estão bem de vida, graças a Deus Tenho, a minha neta é médica, médica e parteira, ao mesmo tempo, se não engano é parteira. Tenho a filha Maria que sofreu operação na, nas juntas, aqui. Agora ela está andando, já dirige automóvel, também. Esta tem um dom de natureza, é artista mesmo, de fato. Em pinturas, o que ela pega, com perfeição Há uns vinte e tantos anos ela fez um quadro na minha casa, a santa ceia, ela tem um dom para pintura
P - E o senhor tem filhos comerciantes?
R - Tinha, tinha um quadro, tinha um quadro na casa dela, quando ela morava na Rua Madre Cabrini, que eles agora venderam aquilo ali, venderam para a escola pegado. Um dinheirão Uma fortuna Eu comprei para eles por quatro contos, naquele tempo, ou 40 contos, hoje pegaram uma fortuna, distribuiu para os filhos, as filhas, cada uma seu quinhão? e compraram um apartamento, a dinheiro, com essa casa que eu comprei para eles naquela época, na Rua Madre Cabrini. Poxa vida
P - Seu Theodor, o senhor tem filhos que continuam no comércio?
R - O Eduardo, o Oswaldo, todos os filhos homens continuam no comércio, o Theodoro.
P - São os três?
R - São os três homens. Agora, quem está, quem desenvolve mais o comércio é o mais velho, o Eduardo está confirmado e o Oswaldo está conformado... (riso) O outro, tem uma indústria que, que ganha quanto quer, o mais velho.
P - Bom, a gente já está com o tempo meio apertado, eu queria concluir com o senhor me dizendo o que é que o senhor acha desse trabalho que a gente tá fazendo, do senhor deixar o registro da sua história de vida, da história do seu trabalho também, no caso o comércio, do senhor deixar esse registro aqui para a gente, para o Museu da Pessoa. O que é que o senhor acha disso? (pausa técnica)
R - O trabalho que vocês estão fazendo é um trabalho digno e merecedor de todo o apoio, porque...
P - ... Só um instantinho, seu Theodor... (pausa técnica) o que é que o senhor pensa disso?
R - Eu acho que o trabalho de vocês é digno de confiança e de apoio. O esclarecimento sobre a minha vida... é um livro aberto Porque eu esclareci a minha vinda ao Brasil, desde a pequena infância, o que eu passei para lutar e vencer na vida Eu deixei tudo como, como um livro para vocês, não é? Então, desde a minha infância até a minha, a minha velhice, está aí um... um livro aberto. Hoje não faço nada porque não preciso de fazer coisa alguma, os meus filhos cresceram, estão ricos graças a Deus, os meus netos estão ricos graças ao bom Deus, graças à árvore, árvore que é minha e... e deixei tudo por encaminhar, essa gente toda estão até hoje vivendo pelo caminho que eu tracei pra eles Se bem que eles não seguem diretamente a mim, mas o caminho que eu tracei pros pais e pros netos está servindo A gente, diz o ditado: "A gente conhece a árvore, a árvore por seu fruto." E o meu fruto está aí: o Eduardo está aqui... Vocês conhecem o Eduardo, não é?
P - Conhecemos.
R - Ah bom. A fundo? (riso) E a vida é maravilhosa Digna, digna, digna de ser amada, a gente ama a vida Aquele que diz "não, não ama a vida", é porque é ingrato por aquilo que Deus lhe deu. Não faz mal que, que seja um picareta, um varredor de rua, um... qualquer que seja a posição, tem que amar a vida porque ela, ela é boa Deus criou o ser amado para amar e viver. Então, deve-se amar a vida. Não aquele amor extravagante, que a gente quer, quer entender. Amar a vida, e amar a Deus, sobre todas coisas. Eu mesmo sigo o conselho do que Cristo deixou: Quando quiseres rezar, não precisa freqüentar templo nenhum. Entra pro seu quarto, te fecha e eleva o seu pensamento ao seu criador e peça o que você quiser dele que ele te dá Não precisa ir para a Igreja, porque aí você está fazendo uma extravagância, está perdendo tempo Porque não tem um ser que, um ser que não tira o pecado do outro Fecha no seu quarto e deixa passar aquela fita, que tudo se passou contigo durante o dia. E você separa o bem do mal. Pro dia seguinte não seja repetido os mesmos atos. Este é o que nos ensina o mundo. Fulano vai pra igreja para tirar pecado? Ah Santo Deus Se uma menina bonita vai pra igreja, está perdida O padre não tira pecado de ninguém O próprio indivíduo tira seu próprio pecado. Chega à noite, se concentra, se concentra, vê os atos que fez de bem e de mal. Os que fez de mal, que não se repita no dia seguinte e o de bem você fica com eles. Esse é o verdadeiro... Adianta alguma coisa apelar pra Pedro ou pra Paulo? Santo nenhum te tira os pecados Você mesmo tem que tirar seus pecados. A nossa mente é uma coisa maravilhosa Maravilhosa Sabe selecionar É só deixar ela à vontade, livre que ela te traz tudo o que você precisar
P - Muito obrigado senhor Theodor, a entrevista foi muito boa...
R - Meu nome é Sedosse
P - (riso) Muito obrigada, senhor Sedosse
R - Aí Belárabe, belárabe, Sedosse. Ialá P - Seu Theodor, eu queria começar com o senhor falando o seu nome completo, o local que o senhor nasceu e a data de nascimento do senhor.
R - Meu nome em português ou em árabe?
P - Pode falar dos dois.
R - O meu nome em português - semitraduzido, não completamente traduzido -, em português, é Theodor, Theo - Th - Theodor, não o no fim, Theodor Bittar. Bittar significa ferrador de animais em árabe, Bittar. Nas encruzilhadas a gente deixa o animal lá para trocar a ferradura. Então, quem troca ferradura, a profissão dele é bittar. Então pegaram esse como sobrenome dos Bittar, Bittar, descendência Bittar.
P - E qual que foi o local de nascimento do senhor e a data?
R - O local de nascimento chama-se Antakya, propriamente em português dizem que é Antioquia, mas é Antakya. Antakya é cidade célebre nos livros sagrados, também. (pausa) O lugar de nascimento meu.
P - Certo.
R - Antakya.
P - E a data de nascimento?
R - 11 de fevereiro de 1902.
P - O senhor nasceu em mil novecentos...
R - ...e dois.
P - Foi registrado em 1902?
R - O... eu sou mais velho um pouco, ainda. Porque o nosso... a nossa cidade era turca, então, os pais quando se tratava de meninos, escondia o menino uns dois ou três anos, depois registrava ele pra não servir muito criança, serviço militar. Essa é a razão, então, que eles sempre ah... escondem dois ou três anos do nascimento da criança masculina.
P - Seu Theodor, como que se chamava os pais do senhor?
R - Hana, Hana. Hana significa, traduzido pro português, João, João Bittar. Bittar, o... o significado já disse a vocês, ferrador, Bittar, quem ferrava os animais. Então pegou o apelido como sobrenome, como em todas as, em todas as nações tem significado a profissão, não é? (pausa) Que mais?
P - E a mãe do senhor?
R - Angelina, Angelina filha de, de ourives, da mesma cidade. Os meus avós lidava com ouro, então ele comprava e vendia ouro, o meu avô. E foi a razão de nós estarmos aqui no Brasil, ele como lidava muito com o representante do consulado inglês, na minha cidade natal, o cônsul disse para ele: "Olha, nós vamos ter uma crise terrível, universal - em 1914 - você podendo salvar a sua família, tirá-la daqui, desse inferno que nós vamos passar aqui uma crise terrível." Não tinha nem capim pra comer O meu avô, o meu pai, não tinha onde cair morto. Era pedreiro, e pedreiro ganhava miséria, porque cidade pequena não tem serviço. O meu avô, homem do dinheiro, de rico, sempre foi, então ele comprou passagem pra minha família toda e mandou, disse para minha mãe: "Angelina, vai minha filha, vai. Que Deus te acompanha. Porque nós, nós vamos ter uma crise terrível aqui." O meu pai não tinha com que, não tinha dinheiro pra viajar, então, aproveitamos a... o dinheiro do avô, ele comprou as passagens, nos pôs a bordo.
P - Quantos irmãos o senhor tem?
R - Irmãos? Tinha duas irmãs, já falecidas duas. E mais três irmãos homem, todos falecidos. E eu estou na fila. Um dia chega a minha vez
P - Senhor Theodor, eu queria que o senhor falasse um pouco da infância do senhor. Como é que era, da escola, da casa que o senhor morava na cidade natal...
R - A minha casa era um rancho de gente pobre onde visitei ela agora, eu fui para lá, visitei a minha casa. Um rancho pequenino Uma sala embaixo e o dormitório no sótão em cima, todo o mundo... abria um colchão pra família inteira e todo o mundo deitava assim. Todos criança. Então, os velhos dormia num canto e as criança estendia-se... do outro lado. Era gostoso.
P - E as brincadeiras?
R - As brincadeiras, no tempo da neve, às vezes precisava; com pá; afastar a neve da porta da saída da casa pra poder sair fora. Então, no tempo da neve, a gente formava bolas de neve assim e... tchu, soltava um na cara do outro, guerreava... meninos entre um bairro e outro, combatia com neve. E... e de vez em quando a gente buscava um pouco de neve em cima do telhado, do muro, punha numa tigela, põe melado em cima e chuá
P - (riso)
R - No tempo da neve era gostoso, aquilo E agora quando eu fui pra lá, me casei lá, aproveitei e fiz a mesmíssima coisa. Na noite do casamento caiu uma neve, mas uma neve daquela Eu... eu... estava na cama com a mulher, gostosa, ela, demais, e no descer, peguei a neve assim... me recordei dos velhos tempos
P - E da escola, seu Theodor, o senhor tem lembranças da escola?
R - Tenho lembranças. Tenho lembranças. Eu estava no segundo ano da escola árabe, no momento que eu estava na porta de entrada da cidade, o meu professor, já falecido, me disse: "Sedosse - Sedosse é meu nome em árabe, eu traduzi para, para o português - Sedosse, dá-me a sua mão e me acompanha." Então ele me pegou do centro da cidade levou-me pro... para a casa do consulado que era a um quarteirão, a família toda cristã estava escondida toda lá pra não serem massacrados, e entregou-me para a minha família. O meu professor. Então, naquela época, os turcos, que estavam massacrando os armênios, pegaram meu irmão mais velho - esse que morreu aqui em São Paulo, estava na Rua São Caetano - puseram ele no chão, pegaram a faca... ia degolar e ele vendo, viu a faca e ficou... ah... empasmado, assim, veio um outro turco, disse para ele: "Não, larga, esse aqui é cristão, não é armênio." Porque o... os turcos estava matando os armênios. E eles pegaram o meu irmão por engano. Então veio o amigo deles: "Não, deixa este aqui que este é cristão" O meu irmão já estava com a passagem pronta para vir ao Brasil, ficou doente um ano Não pode sair da cama. Aquele susto com a faca na... no pescoço. Esta história Então, depois disso, o meu falecido avô, ele lidava com ouro, pode-se dizer. Ele comprou passagem para nossa família toda: "Vai com Deus acompanhe vocês."
P - E quando que é que o senhor veio para São Paulo?
R - Em 1913. Antes de começar a Grande Guerra européia. Nós chegamos em Santos e o meu pai do navio olhou assim, disse: "Puxa, nessa terra só tem macacos" Ele via gente, as mocidade, ninguém tinha bigode, então ele chamou de macacos (riso) Porque na nossa terra, ninguém tirava o bigode Moço que é moço, deixava crescer desde a infância Ele disse: "Só tem macaco nessa terra" (riso)
P - Seu Theodor, o senhor lembra da viagem, como é que foi a viagem para o Brasil, conta um pouquinho pra gente.
R - A viagem foi maravilhosa. Da minha terra até o porto marítimo, hoje leva uma hora de automóvel. Naquele tempo, de carreta, levamos dois dias Nós subimos até o cume da montanha primeiro, pra depois dar a baixada. Dois dias de viagem até o porto marítimo E do porto, em canoa, fomos tomar o navio, porque não tinha, o navio não atracava ainda, nessa cidade onde nós embarcamos. Fomos até o, o navio. Lá no navio, terceira classe, que imundície Que imundície O meu pai tirava o calção e ia na luz e sabe o que é? Como se chama, aquele bicho, como se chama?
P - Piolho?
P - Piolho
R - Piolho, ele tirava a roupa e ia lá, na luz do porão do navio, ele matava piolho O navio porco, e nós viemos de terceira classe, lá em baixo no porão. Não há limpeza nenhuma, naquele tempo não havia navios Não havia aviões
P - Quanto tempo que durou a viagem?
R - 60 dias, só. De lá pra cá, 60 dias. Nós chegamos aqui na cidade de Santos e pouco tempo depois... a esquadra alemã estava aqui no porto de Santos, ela fugiu para não ser aprisionada. Começou a Grande Guerra, de 14 pra 18, não sei se foi aprisionada depois, ela não pôde sair do Brasil. (pausa) E aviação não existia naquele tempo. Primeiro aviador que fez a maior aventura de todos os tempos... aventuras, foi Charles Lindbergh, saiu dos Estados Unidos sozinho, sozinho, até Paris. Primeiro aviador que atravessou Atlântico Sozinho Mas arriscou a vida. Mas teve peito, não é? Pôs gasolina e vumm, foi embora.
P - Seu Theodor, como é que se chamava o navio que o senhor veio?
R - Tomaso de Savoia. Tomaso de Savoia.
P - E, chegando aqui em Santos, o que é que o pai do senhor foi fazer, o senhor foi fazer?
R - Nós saímos logo, logo em seguida. Primeira coisa que fomos fazer, comprar uma lata grande de, de fósforos, pacotes de fósforos, e saía para a rua, duas caixas por um tostão. O meu pai pegava uma cesta grande assim, enchia, e ia para a rua com um pacote assim: "Duas um tostão, duas um tostão." Eu, então, fiz a mesma coisa. E no domingo, eu engraxava sapato por minha conta. Fiz uma caixa de sapato e ia para a rua, um tostão a engraxada. E o português me puxava a orelha: "Ô turco desgraçado, você não sabe engraxar Toma lá o tostão, vai embora"
P - (riso)
R - Isso são passagens da vida que recordar é viver, não é Que coisa maravilhosa
P - E quanto tempo que o senhor ficou trabalhando, vendendo caixas de fósforos?
R - Até, até que tive um pouco a maioridade. Aprendi a consertar sapatos, com meu irmão mais velho, aprendi a consertar e eu fiz uma caixa com ferramentas dentro, e pregos e linha etc., e saí pela rua, conserta sapato. Eu consertava sapato, de vez em quando. Quando eu não sabia eu trazia para casa para o meu irmão consertar. (pausa) E a vida é assim, minha filha Dura, dura, dura Naquele tempo a vida era muito barato, mas era barato demais que não se ganhava pra comer. Um litro de feijão, um litro de arroz, o português - era uma medida assim, de litro - ele enchia, depois pegava a mão, fazia assim, roubava metade Eh... (riso)
P - Seu Theodor, o senhor disse também que o senhor chegou a fazer... a trabalhar como mascate.
R - Perfeitamente. Eu enchia cestas de miudezas, utilidades domésticas, pras costureiras, linhas, bordados, agulhas, tudo necessidade que uma senhora pode precisar, numa cesta e a matraca na mão. A matraca era um pauzinho que batia assim, não é? Então a gente andava pela rua: "Ô, turquinho, vem cá." Chegava lá: "O que é?" "Dá um cadarço, dá um carretel de linhas 50, 40, não sei o que." E assim era a vida Saía de manhã, voltava em casa à noite. Meu pai mesma coisa. Às vezes chegava hora de almoço nem voltávamos pra casa. Entrávamos num bar que era já conhecido, os mascates ia lá sempre, e a gente pedia um pão com mortadela. Pronto Almoço Duzento réis ou quatrocento réis, não sei quanto era. Almoçava aquilo, não voltava pra casa. Só voltava pra casa... minha falecida... meu falecido pai, voltava à noite, depois que acendia as luzes da rua é que voltava para casa Mascateando A vida era dura, não é a vida que nós levamos hoje, não. Vocês não conhecem o que é a luta Vocês não conhecem, toda essa gente aí Mesmo esses varredor de rua ainda não conhece o que é luta que, que se travou naquele tempo. Naquele tempo a cidade de Santos era limitada até a Companhia dos Bondes, Vila Matias. De lá pra diante era mato, até a praia era tudo mato Quem é que passava por lá? Nova Cintra, naquele lado...
P - Aonde é que o senhor morava em Santos?
R - Na Rua General Câmara, perto da Companhia Docas. Entre a Rua Eduardo Ferreira e Paquetá... não, pra cá, Eduardo Ferreira e João Bittencourt, é, João Bittencourt. Essa rua leva até o mercado municipal. Moramos...
P - E lá...
R - Moramos num sobrado, onde embaixo era loja. Os meus irmãos puseram um pouco de tecido lá - o tecido era estrangeiro Não tinha fabricação de tecido aqui Era tudo estrangeiro - puseram um pouquinho de tecido lá e morávamos lá em cima, alugava, subalugava um ou dois quartos, para poder sustentar a nota. Depois disto, um dos meus irmãos alugou uma portinha do lado, de uma tal Filomena, uma italiana brava, e consertava sapato lá. E eu aprendi a consertar sapato com ele. Tanto é que até hoje eu tenho calos na mão, não me saiu os calos da mão. Veja os calos, nunca mais saiu os calos. Não sei o que é isso.
P - E o senhor ficou quanto tempo consertando sapatos?
R - Até que eu saí da cidade de Santos.
P - E quando foi isso?
R - Eu fui pra Europa, me casei, voltei; depois que saí de Santos fui para Rio Grande do Sul, para a cidade de Porto Alegre, ali eu deixei o ofício. Disse: "De ofício basta" Aí começou, comecei a vender mercadorias. Viajei um pouco, viajei todo o estado do Rio Grande do Sul. Eu arranjei um meio de cavar a vida boa, que entrava em todas as casas vendia. Tudo o que era casa, vendia
P - O senhor vendia o quê?
R - Eu arranjei agulhas de máquinas de tecer, quebradas. Então, eu comprava lapiseira e punha agulha na lapiseira e pegava uma meia desfiada, e com aquela agulha eu desfiava, enfiava de novo. Eu parei numa esquina em Porto Alegre, vendia centenas daquelas agulhas, porque qual é a menina ou mulher que não tem meia desfiada? Então eu pegava uma, uma caixa assim, botava uma meia dessas mais grosseiras, que a malha era grande, então eu fazia assim, meia desfiada eu enfiava de novo. Todo o mundo me comprava aquilo ali Ganhei dinheirão com aquilo ali Eu comprava por grosas essas agulhas e... uma ocasião passou quem me vendia as agulhas, passou na praça e disse: "Aí, heim Então é por isso que você compra tantas agulhas" Eu digo: "Claro, é uma cavação boa."
P - Seu Theodor, o senhor disse que antes de ir para Porto Alegre o senhor se casou.
R - Sim Perfeitamente.
P - Fala um pouco do casamento do senhor, o nome da esposa do senhor, como é que foi o casamento...
P - A minha... eu fui em aventuras, por conta própria pra minha cidade natal, Antakya. E lá, casa da minha tia, pegada casa da ex, ex-sogra. A minha tia já falecida, conversa vai conversa vem, diz: "Ó Sedosse, você vai levar uma companhia junto com você pro Brasil." "O que é que é isso, eu não vim para isso." Era pegada a casa uma da outra. "Vem cá." Entramos lá na casa, disse: "Olha, essa daqui é sua... vai ser a sua mulher." "Mas eu não vim para casar" "Mas você vai casar." Sorte Destino Graças a Deus, tenho esposa como, como poucas. Ela é dona da casa. Não é extravagante pra coisa alguma Não pede nada, só pede o que é necessário mesmo Em roupa, ela tendo, ela não usa. Tá em casa, de vez em quando nós damos uma escapadinha para Águas de Lindóia ou pra cidade de Santos onde temos apartamento lá dos filhos, e assim passamos a vida
P - Como que é o nome dela?
R - Nazira. Nazira. Ela tem 84 anos, eu 94. E ainda de pé, graças a Deus. Pouca gente com minha idade estão de pé, eu ando a cidade toda a pé, desço na Praça da Sé, de lá eu vou pro mercado municipal e vou até Rua São Caetano a pé, todo o dia. Gosto de andar. Eu contei pra você a história do médico, não é? O médico no metrô, sentado, conversando, eu disse pra ele: "Eu não gosto de vir até aqui, até à Luz de, de... de metrô. Eu costumo vir da Praça da Sé até aqui, até a Luz, a pé, eu dizia pra ele. A pé é saudável, eu me sinto cada vez mais rígido, mais duro, fazendo essa trajetória." E, depois, na despedida, eu disse pra ele: "Eu estou na Rua São Caetano, só perguntar pelo meu nome, quase todas lojas é meu ou de meus netos." Ele disse então: "Tá bom, eu estou em Santana, sou médico do hospital." (riso) E eu, aconselhando um médico Andar, faz bem. E, de fato, andando, todo o corpo funciona
P - Seu Theodor, bom, aí o senhor foi, casou-se e voltou para o Brasil.
R - Perfeitamente.
P - O senhor estava falando de Porto Alegre.
R - Porto Alegre?
P - Isso
R - Porto Alegre é depois de muitos anos eu fui pra Porto Alegre Já tinha uma filha, Maria, nascida em Santos, e os demais filhos nasceram no Rio Grande, inclusive o Eduardo nasceu em Porto Alegre. Em Porto Alegre, eu contei pra você, não é? Eu aprendi a fotografar, fazia caixas de fotógrafo de jardim e vendia. E eu trabalhava no jardim, na praça, como fotógrafo. Então eu via como era aquele negociozinho, em casa eu fazia caixas e vendia Comprava lentes no brechó e vendia Pronto Aquilo é fácil Fórmula de revelador eu, eu mesmo fazia Fixador, revelador, essas coisas conhecia tudo
P - Como é que se chamava essa praça?
R - Praça 15 de Novembro. Só tinha fotógrafo em todos os lados. E mesas no centro da praça e o bar, do lado. Então, a maior parte das pessoas, forasteiros, sentava ali naquelas mesas pra tomar um chopes ou uma cerveja. Então, vinha o fotógrafo tic, batia fotografia, já ganhava dinheiro. Praça muito boa Pessoal servia chopes ali como, como pouca gente servia. Eram alemães, não é?, e o alemão é especialista em chopes.
P - E o senhor ficou trabalhando de fotógrafo até quando seu Theodor?
R - De fotógrafo?
P - Isso.
R - Até que eu vim pra São Paulo.
P - E por que é que o senhor resolveu vir para São Paulo?
R - Porque procurava um meio melhor de vida. Aquilo ali é um ganha pão, mas não é o total Que se a gente chega, senta e não se mexe, não sai daquele, daquele movimento Então a gente tem ânimo, quer lutar, sai por esse mundo afora que tem, tem meios. É procurar um meio de melhorar.
P - E chegando aqui em São Paulo, como é que foi?
R - Chegando aqui em São Paulo, fui na Voluntários da Pátria, moradia e loja. Moradia, o quê? Criançada deitada no chão, sem cama, sem nada não Ali o meu irmão me mandou um vendedor de... que fabricava sapatos com sola de pneumático de automóvel, me mandou um saco desses, desses sapatos, punha na porta, e vendendo ganhava uma miséria daquilo ali, mas dava pra pagar o aluguel do armazém, a loja. Era de graça, quase O dono daquele armazém é um multimilionário hoje Um que vende flores na Praça da República. Ainda hoje está lá. Vendendo flores, milionário.
P - O senhor sabe o nome dele?
R - João. Ainda vende flores, vi ele esses dias por lá. Não é nada, não é nada, a gente diz: Ah, tsc, banca de flores... Sim Você chega lá, encomenda flores manda pra tal menino, para senhoras flores. Ele tem mensageiro, chega lá, e manda. Cobra bem, mas manda. Até hoje vende flores. Está milionário e até hoje tem a banca de flores lá.
P - Naquela época que o senhor trabalhava, qual era a recreação, a distração que o senhor fazia?
R - Aonde?
P - Em Santos, em Porto Alegre. O que é que o senhor gostava de fazer?
R - Em Santos, meu caro amigo, eu era mascate e depois tinha oficina de consertar calçados, por último mascateava, mesmo. E quando era... como tinha vários amigos conterrâneos que já morreram também todos eles, e eu estou agora em primeira mão, a gente sentava na balneária, em frente ao mar, era do tal Benjamim, que tinha padaria na Rua General Câmara, e depois pegou aquele bar em frente ao... em frente à praia. Então, sentávamos lá, uma turma de meia dúzia de, de amigos, e começávamos a tomar cerveja. Meia dúzia. Meia dúzia. Até às vezes meu pai acompanhava ali. Meia dúzia Meia dúzia Éramos uns cinco, seis, oito rapazes, chupávamos a cerveja e tremoços, amendoim etc., pra ajudar, não é?, e quando é lá pra meia-noite o, o Benjamim dizia: Olha, essa é a última meia-dúzia, porque não tinha mais cervejas (riso) A gente tomava cerveja até esgotar o estoque do homem
P - (riso) Qual, qual era a cerveja da época?
R - Antárctica. Antárctica. E quando não tinha Antárctica vinha Brahma mesmo, mas Antárctica era a preferência. São as mais antigas da cidade, não é? (fim da fita 034 / 01-A)
P - E em Porto Alegre?
R - Em Porto Alegre? Em Porto Alegre era o chopes lá da, da... não sei se era da Brahma, se não me engano. A gente dava preferência mais, particularmente, pinga. Se toma um tragozinho assim devagar, aquilo alegra o coração, alegra tudo. Mas não, não beber até cair de morto, feito negro Se toma um pouquinho, qualquer pessoa Põe um cálice pequeno, molha a boca. Não be... não tomar a, a pinga, senão ela toma conta de você. Molha a boca. Tem uma alface, um pedaço de pepino, um pedaço de tomate... uma pitada de sal... aprendeu?
P - (riso)
R - Qual é... a próxima?
P - E depois, o senhor estava falando da Voluntários da Pátria...
R - Exato.
P - E depois da Voluntários da Pátria, o senhor foi pra onde?
R - Pra Rua José Paulino. Eu passei agora em frente onde era minha loja. Era de meus conterrâneos, meus patrícios, eles saíram de lá, eu... xuu Vim da Voluntários da Pátria para a Rua José Paulino.
P - Vendendo calçados?
R - Vendendo calçado
P - O senhor lembra como que era a Rua José Paulino, naquela época?
R - Rua José Paulino tinha depósito cerveja, do outro lado de lá e... minha razão de sair da Rua José Paulino, chegaram as prostitutas naquela cercania toda, fecharam todas as travessas, era só prostituição. Eu com duas meninas em casa, eu disse pra minha mulher: "Vamos embora." Foi o destino Eu fui passeando pela Rua São Caetano, queria ver alguma porta. E o meu irmão, os meus sobrinhos, a gente quer muito bem, mas ninguém quer bem a você. Eles não queria que eu fosse pra Rua São Caetano pra ser concorrente, e eu não tinha capital nenhum, quase Eu passando na Rua São Caetano, um tal Jorge Nemi, que tinha casa de quadros lá em frente. Tava na porta, diz: "Ó, Bittar, que é que tá fazendo por aqui?" Esse, ele estava nas lojas onde tenho, onde está o banco etc., era minhas lojas. Eu disse pra ele: "Eu estou andando por aqui, quero ver se eu encontro um ponto pra mim. Eu estou na Rua José Paulino e puseram as vagabundas lá naquela parte, eu tenho minhas meninas, não posso fazer com que elas abre os olhos e vê isso aqui." Ele disse: "Bittar, vem cá, fica com essa minha loja" Viu o destino? "Fica com essa minha loja" Eu tinha 14 contos no bolso, dinheiro. Eu digo: "Mas eu não tenho dinheiro para ficar com a loja Loja com vitrine e tudo" Diz: "Não faz mal, você não paga nada, fica com essa loja" Me deu a loja de presente com vitrines. Um lado. Outro lado, tinha um outro patrício com tecidos - tecidos, loja fraquíssima, também não fazia negócio nenhum - ele, esse me deu essa loja, e com moradia, um quarto lá dentro, deu pra, para a turma se deitar no chão e dormir. E o outro me diz: "Bittar, vem cá, fica com essa minha parte, que eu... não me dá nada para mim" Opa Fiquei com a outra parte, e do lado de lá tinha três dormitórios, nos fundos, já melhorou a situação. E tinha as vitrines de presente De presente me deu as vitrines Antes era uma loja de calçados, veja só que destino Era uma loja de sapato. Aquele tinha tecido, não deu, não deu certo, me deu pra mim a loja. Aí comecei melhorar a situação. Eu pus uns pares de sapatos que tinha na loja ainda eu pus na frente, pra, para vender. De repente passa um camarada assim, ele viu a marca de calçado dele na porta, ele chegou pra mim, um tal de Cirilo, ele diz: "Ué, meu calçado está aqui na porta e você não calçado, as caixas estão vazias, por quê?" Eu digo: "Agora eu tomei conta da loja" Diz ele: "Vamos fazer um, uma faturazinha?" E eu sem dinheiro nenhum... "Vamos." Escreveu uma numeração, me mandou uma numeração, uma... imediatamente, ele tinha pronto da fábrica, e dali, Deus quis que melhorasse toda a situação, abriu as portas do céu, e eu progredi, criei a família, tenho a propriedade lá, o sobrado é meu e... e assim por diante. Destino é que manda. Nós dizemos em árabe: "Al maktub" - o que está escrito. Que quando a pessoa nasce, tem uns algarismos aqui que ninguém sabe decifrar, tem uns riscos... já viu crânio de pessoa? Já viu crânio, osso? Aqui tem uns riscos, quem é que sabe decifrar esses riscos? Tem riscos. Não se sabe se é hebreu ou outra linguagem qualquer, mas repara que tem. Aqui assim, os ossos têm uns risquinhos, devem ter algum significado O dia da chamada de volta... se pagou a passagem ida e volta, você tem que voltar, nessa data...
P - Está escrito, né? (riso)
R - É, Al maktub.
P - Seu Theodor, eu queria que o senhor falasse um pouco como que era a Rua São Caetano nessa época que o senhor foi pra lá.
R - Ah... Rua São Caetano, aos sábados, à noite, era assim, de gente Meninas e meninos, passeando os moços pra namorar... aquela rua toda, eh... uma beleza Passava o bonde por lá ainda. Depois mataram uma senhora lá, porque fulano abusava da filha dela e ela se... se intrometeu - filha menina, ainda - e ele matou a mulher na Rua São Caetano. Era bonita
P - E as lojas...?
R - Lá em cima na, na entrada da Rua São Caetano, tinha loja de calçado Clark, quem descia, do lado esquerdo quem desce, bem na esquina era a casa de calçado Clark. Mais embaixo, na outra esquina era o (Venezelo?), lá onde está a loja de propriedade de meu filho caçula. Hoje é loja de noiva, mas era do (Venezelos?). E... nós mandamos o pai da minha nora fechar o negócio daquela esquina, porque pra nós eles não vendia de forma nenhuma. Concorrentes... Mandamos o, o pai da minha nora, fechou o negócio depois que fechou o negócio fomos para lá, botamos o filho Oswaldo, lá. Hoje Oswaldo é dono da esquina, mas tivemos que usar o truque. Uma pessoa de fora fechou o negócio, pronto, estava feito E o Eduardo casou lá em cima, no Toscano, lá no Galeano, naquela loja de esquina, em cima sobrado, ali era um salão de festa onde ele fez o casamento lá.
P - E a maioria das lojas, seu Theodor, na São Caetano, era de calçados?
R - Não A maioria era tecido
P - Tecido?
R - É, era tecido Calçado tinha só Clark em cima e (Venezelos?) lá embaixo. O (Venezelos?) começou, o pai deles na São Caetano começou consertando sapato na São Caetano, o velho, eu não cheguei a conhecer, o velho. Hoje estão bem Tem médico, tem propriedade, tem um prédio na Rua São Caetano que é deles, sobrado. Como eu tenho meu sobrado lá também.
P - Seu Theodor...
R - Antes, antes tinha o trem da Cantareira, que a força do movimento do bairro vinha de baixo para cima. Então, vinha o trem da Cantareira até a Rua Cantareira, despejava aquele monte de gente diariamente, e de lá vinha para a Rua São Caetano fazer as compras. Depois disso aqui, tiraram o trem, veio por cima a freguesia, pela Avenida Tiradentes, pelos ônibus. Então, meu movimento embaixo fracassou completamente
P - Em que época mais ou menos que foi isso?
R - (pausa) Hoje estamos em...?
P - 94.
R - Foi em 40, mais ou menos, não é?
P - Sabe o que eu queria que o senhor me dissesse... como que era a forma de pagamento dos fregueses do senhor?
R - Toma lá, dá cá. Nunca vendi fiado
P - Não tinha caderneta?
R - Não. Uma única vez que uma pessoa se tornou muito amiga minha - se é que, que ele formou essa, essa amizade com esse propósito, eu não sei - mas ele pegou o calçado fiado e nunca mais apareceu (riso) Todo o dia estávamos conversando ali na loja, e ele morava ali na travessa, na Rua Djalma Dutra, nunca mais apareceu E era cabeleireiro de salão fino na, na rua, na Praça da República, eu fui lá procurar ele uma ocasião, mas depois eu achei que era inútil. Fui lá ele... cabeleireiro está em salão de luxo As madames freqüentavam aquele salão, tudo Sabe aquela do português que vendia leite? O português vendia leite, fez um dinheirinho, pôs num saquinho, e, foi lá pelo navio, ele começou no navio contar o dinheiro e pôr no saquinho. De repente o macaco veio, pegou o saquinho e foi pro mastro do navio E o português dizia: "Vem cá, vem cá, essa é toda a minha fortuna, vem cá, vem cá, que eu quero você muito bem... vem cá, me dá o saquinho" E o mastro do navio fazia assim, e o português com medo: "Ai, o meu saquinho vai pro mar, vai pra água, ai o meu saquinho vai pra água. ô, macaquinho, vem cá que eu te dou metade do que está aí..." E o mastro do navio assim... De repente, numa dessas o macaquinho pega e... jogou o saco com o dinheiro tudo no mar. E o português diz assim: Bendito Deus, água deu, água levou... porque ele vendia o leite misturado com água, então, "abençoado Deus, água deu, água levou..." (riso)
P - E como é que era a relação com os fornecedores? Era toma lá dá cá, também?
R - Não, não, não. Os fornecedores davam prazo. Eu tinha bons fornecedores, tinha os Nicoletti, tinha os Catamachia, tinha... o Nápoli, marcas de calçados conhecidíssimas aqui. Eles davam 30, 60 dias de prazo. Bom, o freguês, era só telefonar e a mercadoria vinha. Mas, para começar a luta, em qualquer uma atividade requer paciência e insistência e honestidade, porque se você toma e não devolve, você perde o crédito e nunca mais se apruma E eu tinha os melhores fabricantes de calçados, me forneciam. Tinha o Nápoli e o Nicoletti, os maiores fabricantes e os Catamachia, maiores fabricantes de calçados do Brasil, me fornecia mercadoria.
P - Seu Theodor, naquela época já existia caixas de sapato, como eram os embrulhos?
R - Caixas, em caixas de sapato. Caixas, todas as caixas eu punha o meu rotulinho: "Bittar". Um rótulo amarelo assim, com Bittar atravessado, era caixa de sapato, toda a freguesa levava caixa de sapato Um detalhe bom: balconista ganhava pouco salário. Todo o sapato levava selo, obrigatório, para o governo. Então, o balconista vendia o sapato e... enquanto, enquanto eu estava vendendo sapato, eles com as unhas arrancavam o selo que valia um bom dinheiro, arrancava o selo sem o freguês saber, embrulhava o sapato. Aquele selo ele revendia outra vez para o fabricante e lá vinha de novo o sapato selado... ele vendia pela metade do preço, mas... dava.
P - O senhor chegou a ter muitos funcionários?
R - Tenho até hoje... três ou quatro balconistas. Mas eu tinha um balconista lá que hoje é gerente da Casa Fidalga, na Rua Quintino Bocaiúva. Ele é gerente lá, era meu balconista, hoje é gerente da Fidalga, ainda é, um tal Paulino. Ainda nos cumprimentamos, nos... conversamos, de vez em quando eu compro sapato dele lá. Bom balconista, ele é gerente na Fidalga. Aprendeu a trabalhar comigo... o, o balconista que trabalhava comigo ele aprendia a servir a freguesia. Aprendia, eu ensinava o modo delicado de... onde a freguesa saía bem servida. Eu tinha reservatório para a freguesa sentar e experimentar o sapato, que ela de pé desaparecia. Aquilo ali foi serrado, até sentada mesmo ela aparecia pra fora, porque o balconista é malandro. A freguesa fechada, ele passava a mão ali à vontade. Com um modo de... de calçar o sapato ele pegava na perna, assim, da freguesa e, e pegava o sapato com a outra, dizia: "Estou experimentando." Algumas se queixavam, outras gostavam, mas então eu cortei aquilo ali. A freguesa fica livre, tem que aparecer que é ela que está servindo sapato, não a perna dela
P - O senhor vendia só calçados femininos?
R - Tudo, tudo Feminino, de criança, pra homem, tudo Eu tinha as duas lojas, onde tem o prédio hoje está o banco, era duas lojas, então eu usava os dois lados.
P - E quando, em que momento que o senhor, que a loja sai do ramo de calçados e entra no ramo de noivas?
R - Ah Mas depois de derrubar o prédio
P - Conta um pouquinho dessa história. Como é que aconteceu?
R - Eu saí da loja de sapato, liquidando tudo, liquidando tudo, passou um pouco de... de sapato pras lojas de baixo, da outra esquina que nós tínhamos também outra loja de sapato, onde era o (Venezelos?), e aí derrubaram pra construir, não é? Três andares, sem elevador, tá lá, tá alugado, dá para a gente comer o pão de cada dia
P - E o senhor acabou com os calçados e... na verdade foram os filhos do senhor que começaram a...
R - Vestidos de noivas, já o ramo de vestidos de noivas dava mais dinheiro. Hoje não, hoje é porcaria. Hoje a baianada começou fabricar vestidos de noiva e levar para o interior vender, para vender pros lojistas pelo preço de atacado. Eles ganhando uma miséria, soltam a mercadoria
P - E naquela época como é que era, qual que é a diferença com hoje...
R - A diferença é que vendendo, vendendo vestidos de noiva, a freguesia tinha que esperar muito para levar um vestido pronto porque tinha muitas encomendas, as lojas. Eu esperava na loja até duas, três horas da tarde para ir para casa almoçar, porque tinha freguesia assim Eles não tinham tempo de atender as encomendas. Hoje não, hoje... você chega lá, encontra tudo pronto. Mas essa turma aí, de baianada, puseram lojas e casas nas travessas, onde fazem o vestido e vendem por qualquer preço Um dia que você quiser comprar vestido, vai lá Você já casou, não?
P - Já... (riso)
R - Tem filhos?
P - Ainda não.
R - Há pouco tempo casada? Então faz força, heim Traz herdeiros porque... casal sem filhos não é casal
R - Os meus netos, são trinta e tantos netos, filhos e filhas... todo o mundo tem prole, cada um tem a sua prole... Me enchem de alegria quando vêm para casa todos Ah As paredes da casa espicha, ela cabe tudo É gostoso. Na... Esse negócio de ficar só homem e mulher na casa não... não tem graça. É melhor ver as paredes da casa do que ficar os dois juntos assim, sem nada. Precisa é família grande, quando é dia de festas assim que a minha patroa faz almoço para a turma toda, ah, a minha casa fica cheia de alegria, aquelas paredes se abrem todas, vêm tudo, 33 pessoas, já imaginou, numa casa pequeninha?
P - Atualmente o senhor mora com quem?
R - Minha senhora mora comigo. Eu não moro com ninguém Minha senhora é que mora comigo
P - E quantos netos que o senhor falou que tem, e bisnetos?
R - Trinta e três, se eu não me engano. Precisa contar de novo, procurar o Eduardo, aí, que ele faz a lista.
P - O que é que...
R - Uma filha foi ontem para o Chile, passear com o marido, vai para os Andes, esses estão bem. Aliás, todos estão bem de vida, graças a Deus Tenho, a minha neta é médica, médica e parteira, ao mesmo tempo, se não engano é parteira. Tenho a filha Maria que sofreu operação na, nas juntas, aqui. Agora ela está andando, já dirige automóvel, também. Esta tem um dom de natureza, é artista mesmo, de fato. Em pinturas, o que ela pega, com perfeição Há uns vinte e tantos anos ela fez um quadro na minha casa, a santa ceia, ela tem um dom para pintura
P - E o senhor tem filhos comerciantes?
R - Tinha, tinha um quadro, tinha um quadro na casa dela, quando ela morava na Rua Madre Cabrini, que eles agora venderam aquilo ali, venderam para a escola pegado. Um dinheirão Uma fortuna Eu comprei para eles por quatro contos, naquele tempo, ou 40 contos, hoje pegaram uma fortuna, distribuiu para os filhos, as filhas, cada uma seu quinhão? e compraram um apartamento, a dinheiro, com essa casa que eu comprei para eles naquela época, na Rua Madre Cabrini. Poxa vida
P - Seu Theodor, o senhor tem filhos que continuam no comércio?
R - O Eduardo, o Oswaldo, todos os filhos homens continuam no comércio, o Theodoro.
P - São os três?
R - São os três homens. Agora, quem está, quem desenvolve mais o comércio é o mais velho, o Eduardo está confirmado e o Oswaldo está conformado... (riso) O outro, tem uma indústria que, que ganha quanto quer, o mais velho.
P - Bom, a gente já está com o tempo meio apertado, eu queria concluir com o senhor me dizendo o que é que o senhor acha desse trabalho que a gente tá fazendo, do senhor deixar o registro da sua história de vida, da história do seu trabalho também, no caso o comércio, do senhor deixar esse registro aqui para a gente, para o Museu da Pessoa. O que é que o senhor acha disso? (pausa técnica)
R - O trabalho que vocês estão fazendo é um trabalho digno e merecedor de todo o apoio, porque...
P - ... Só um instantinho, seu Theodor... (pausa técnica) o que é que o senhor pensa disso?
R - Eu acho que o trabalho de vocês é digno de confiança e de apoio. O esclarecimento sobre a minha vida... é um livro aberto Porque eu esclareci a minha vinda ao Brasil, desde a pequena infância, o que eu passei para lutar e vencer na vida Eu deixei tudo como, como um livro para vocês, não é? Então, desde a minha infância até a minha, a minha velhice, está aí um... um livro aberto. Hoje não faço nada porque não preciso de fazer coisa alguma, os meus filhos cresceram, estão ricos graças a Deus, os meus netos estão ricos graças ao bom Deus, graças à árvore, árvore que é minha e... e deixei tudo por encaminhar, essa gente toda estão até hoje vivendo pelo caminho que eu tracei pra eles Se bem que eles não seguem diretamente a mim, mas o caminho que eu tracei pros pais e pros netos está servindo A gente, diz o ditado: "A gente conhece a árvore, a árvore por seu fruto." E o meu fruto está aí: o Eduardo está aqui... Vocês conhecem o Eduardo, não é?
P - Conhecemos.
R - Ah bom. A fundo? (riso) E a vida é maravilhosa Digna, digna, digna de ser amada, a gente ama a vida Aquele que diz "não, não ama a vida", é porque é ingrato por aquilo que Deus lhe deu. Não faz mal que, que seja um picareta, um varredor de rua, um... qualquer que seja a posição, tem que amar a vida porque ela, ela é boa Deus criou o ser amado para amar e viver. Então, deve-se amar a vida. Não aquele amor extravagante, que a gente quer, quer entender. Amar a vida, e amar a Deus, sobre todas coisas. Eu mesmo sigo o conselho do que Cristo deixou: Quando quiseres rezar, não precisa freqüentar templo nenhum. Entra pro seu quarto, te fecha e eleva o seu pensamento ao seu criador e peça o que você quiser dele que ele te dá Não precisa ir para a Igreja, porque aí você está fazendo uma extravagância, está perdendo tempo Porque não tem um ser que, um ser que não tira o pecado do outro Fecha no seu quarto e deixa passar aquela fita, que tudo se passou contigo durante o dia. E você separa o bem do mal. Pro dia seguinte não seja repetido os mesmos atos. Este é o que nos ensina o mundo. Fulano vai pra igreja para tirar pecado? Ah Santo Deus Se uma menina bonita vai pra igreja, está perdida O padre não tira pecado de ninguém O próprio indivíduo tira seu próprio pecado. Chega à noite, se concentra, se concentra, vê os atos que fez de bem e de mal. Os que fez de mal, que não se repita no dia seguinte e o de bem você fica com eles. Esse é o verdadeiro... Adianta alguma coisa apelar pra Pedro ou pra Paulo? Santo nenhum te tira os pecados Você mesmo tem que tirar seus pecados. A nossa mente é uma coisa maravilhosa Maravilhosa Sabe selecionar É só deixar ela à vontade, livre que ela te traz tudo o que você precisar
P - Muito obrigado senhor Theodor, a entrevista foi muito boa...
R - Meu nome é Sedosse
P - (riso) Muito obrigada, senhor Sedosse
R - Aí Belárabe, belárabe, Sedosse. Ialá
Recolher