Projeto Ponto de Cultura
Depoimento de Romero Araes
Entrevistado por Eduardo Barros e Isabela de Arruda
São Paulo, 04/05/2010
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista PC_MA_HV_274
Transcrito por Arianna Sassaroli
Revisado por Viviane Aguiar
Publicado em 03/12/2013
P – Seu Romero, a gente começa aqui fazendo a seguinte pergunta: qual seu nome completo, o local, a cidade e a data em que o senhor nasceu?
R – Bom, eu sou Romero Araes, meu nome. Nasci no ano de 1922, 20 de março de 1922, e, hoje, a minha data é 20 de março, 88 anos de idade.
P – E o senhor nasceu em qual cidade?
R – Eu sou de São Paulo, Lapa, nasci na Lapa.
P – Qual era o nome dos pais do senhor, Seu Romero?
R – Meus pais eram espanhóis. O meu pai chamava Luiz Araes, e minha mãe, Josefa Vicente Araes.
P – Eles eram de qual cidade, qual região da Espanha?
R – Meu pai era de Múrcia, na Espanha, e minha mãe da Andaluzia.
P – E o que seu pai fazia?
R – Eu que fui fazer?
P – Não, com o que seu pai trabalhava?
R – Ah, meu pai era taxista.
P – Taxista?
R – É, e desde que eu conheci ele, sempre eu sei que ele fazia táxis, né? O carro dele próprio. O carro dele primeiro que eu conheci por fotografia é aquele Ford 1922 (risos). Era o primeiro carro. Fazia táxi. Depois mudou para outros carros, mas sempre táxi.
P – O senhor sabe como seus pais se conheceram?
R – Bom, eles estavam aqui, em São Paulo mesmo, e quando eu tinha, que eu conheci lá e comecei a conhecer, eu já tinha seis anos. Que, aí, comecei a entrar na escola, tudo. Eu morava, morávamos na Vila Nova Conceição, lá no Itaim Bibi, Itaim Bibi. E como a vida foi levando e levando, até que chegou uma data deles, meus pais, que se conheceram aqui, casaram aqui, tiveram... Somos, éramos quatro irmãos. Meu irmão falecido, o maior, depois eu, a minha irmã viva e a outra minha irmã viva também. Então, agora, como meu irmão faleceu, o maior, agora somos três: eu e minhas duas irmãs, que moram aqui no Brasil. E tem uma irmã que mora lá na Espanha, em Barcelona. Ela também é brasileira, mas aqui se casaram, e o marido não gostou muito daqui. Então, depois de dois anos, tiveram uma criança. Daí, os três foram para a Espanha. E, lá na Espanha, em Barcelona, meu cunhado faleceu, e ficou minha irmã viúva, com a filhinha dele e está lá. Agora ela está passando muito mal na Espanha, uma doença do coração. Então, está viva, de vez em quando por carta, por telefone, a gente se fala.
P – Entendi. Romero, mas vem cá. Como é que foi a história dos seus pais virem pro Brasil? Eles vieram sem se conhecer, então?
R – É, não se conheciam, né?
P – Não se conheciam? Você sabe como eles vieram pra cá?
R – Eu sei que era de criança. Vieram, se conheceram aqui, se casaram, tiveram...
P – Vocês todos.
R – Os filhos e, depois, quando foi 1933, foram pra Espanha.
P – Daqui a pouco, a gente chega nesse ponto. Então, o senhor contou dos seus irmãos, mas não falou o nome deles.
R – O meu irmão? Luiz. Luiz Araes. A minha irmã da Espanha? É Iracema Araes. A outra minha irmã, Clara, aliás, Clara, que mora lá em Caraguatatuba. E a outra minha irmã mora... Uma na Espanha, essa e eu, três. E meu irmão está falecido.
P – E o senhor contou que os pais se conheceram aqui, porque vieram crianças, né? Mas o senhor não contou como. Você sabe alguma história de como foi esse encontro do seu pai e da sua mãe aqui em São Paulo?
R – Ah, não sei. Era pequenininho, não sei.
P – Não sabe?
R – Não sei. Só que, quando eu já era maiorzinho, seis, sete anos, que ia na escola, aí já sabia dos meus pais, que nós morávamos na Vila Nova Conceição, no Itaim Bibi.
P – Mas o senhor nasceu na Lapa?
R – Eu nasci na Lapa de Baixo.
P – E logo mudou para a Vila Nova Conceição?
R – Daí fomos, mais ou menos, 1933. Já entendia mais ou menos, de oito a 10 anos. Daí, quando nós fomos pra Espanha.
P – Mas, antes disso, Seu Romero, qual é a lembrança mais antiga que o senhor tem da sua casa aqui de São Paulo, da infância?
R – Mais antiga da casa?
P – É.
R – Que eu lembro?
P – É.
R – Bom, nós moramos, nós estávamos na Vila Nova Conceição, e antes de ir pra Espanha, antes, nós fomos morar na Domingo de Moraes. E lá ficamos esperando a data pra ir pra Santos, pra pegar o navio pra ir pra Espanha. Então, foi nesse daí, uma data, mais ou menos 1932, por aí.
P – E, dessas duas casas, Seu Romero, lá na Vila Nova Conceição e na Vila Mariana, descreve o que você se lembra delas pra gente. A imagem que o senhor traz guardada dessas casas.
R – Bom, uma imagem que sempre me veio à ideia é que lá em Mogi das Cruzes meu pai, de vez em quando, íamos, que ele tinha, era dele, vamos dizer, um terreno. Era um bosque, pegava um quarteirão. O muro tinha de 3 a 4 metros de altura, e era um barranco assim, eu lembro. Tinha oito anos, por aí, e íamos lá para passar o dia. Então, era um morrinho assim, em baixo tinha um lago muito bonito nesse bosque.
P – E como é que eram esses dias lá?
R – Eu tinha uma... Também, de vez em quando, íamos para a praia, Santos, São Vicente, que tenho fotografia, que eu tinha oito ou dez anos também. Não, dez anos. Não, oito anos. Naquele tempo, meu pai tinha um Fordeco, estávamos na praia e lá tem fotografia do carro, meu pai, minha mãe, uma tia minha que foi junto, meu irmão, minha irmã e eu. A menor ainda não tinha nascido. Então, lá na praia, éramos nós três: meu pai, minha mãe e minha tia. Na praia de São Vicente. Tem fotografia até disso, mas está em casa essa fotografia.
P – Como é que o senhor brincava com seus irmãos nessa época da infância?
R – Brincava? Não, de brincar, quando éramos crianças, o que nós brincávamos, o meu irmão, era jogar bolinha de gude, pião, essas coisas aí. Mas depois era mais eu, porque minha mãe ficou viúva, e era mais de eu poder ajudar a minha mãe, né? Quando eu tinha 12 anos, fui trabalhar numa carvoaria, de entregar carvão, que lá é costume, em cesta de dois quilos, um quilo, para levar na cabeça para entregar nos lares. Carvão, numa carvoaria. Trabalhei mais ou menos um ano lá na carvoaria, mas, depois, fiquei um pouco cansado daquilo lá e fui trabalhar o contrário, numa leiteria. Também tinha 12 anos, por aí, 13. Daí, fui trabalhar de entregar leite nos lares também, com uma sacola.
P – Isso o senhor já estava na Espanha. Mas, antes de o senhor ir, o pai do senhor faleceu lá na Espanha?
R – Faleceu. Nós chegamos em 33, no 34, ele foi para o hospital. E, no 35, ele faleceu. E no 36 começou a Revolução Espanhola.
P – E porque o senhor e toda sua família foram pra Espanha em 33?
R – Vontade deles, que queriam os dois: “Ah, vamos pra Espanha?” A ideia era dele, que ele dizia: “Ah, vamos acabar nossa vida na Espanha.” E fomos pra lá. E lá tinha um irmão dele, na Espanha. E fomos na casa daquele irmão dele, meu tio.
P – E o senhor se lembra da viagem de navio?
R – De como fomos?
P – Vocês foram todos de navio pra lá, né?
R – De navio.
P – O senhor se lembra dessa viagem, em 33, como é que foi? Conta pra gente.
R – Foi muito bonita. Foi no navio espanhol Cabo de Buena Esperanza, o nome do navio. Então, é muito bom, e, quando passamos pelo Equador, eles fazem festa, fazem cada festa! Todo mundo no comedor lá, grande festa. Depois, toda viagem brincando com os marinheiros, os marinheiros fazendo aquelas brincadeiras de criança, tudo era só brincadeira. De vez em quando, na piscina, tinha salão de leitura, salão de baile, de manhã a missa, tudo isso no navio. O navio era grande, tinha um, dois, três, cinco andares quase, muito bonito tudo. E eu gostei demais. Fui de navio e voltei pro Brasil de navio.
P – Ah, é? Então, daqui a pouco, a gente vai ouvir essa história da volta. Por enquanto, nós estamos indo ainda.
R – Chegando na Espanha, 33, 36, 39, acabou a guerra da Espanha. Porque era uma revolução primeiro. E depois voltou guerra, porque era um contra o outro, na Espanha, ficou metade de um lado, metade do outro. E quando aquela parte já estava quase acabando, que era o Franco, o General Francisco Franco já estava quase... Ele pediu ajuda pra Alemanha e Itália. Aí, a Itália, Alemanha e Espanha contra a outra Espanha. Ainda eu passei muito mal na guerra.
P – Mas antes da...
R – Porque eu estou surdo, porque eu sou, como é que se diz? Mutilado de guerra. Estourou o vidro, por isso, eu sou surdo. Este está mais ou menos, mas deste eu estou surdo, não escuto nada. E fiquei, de medo, três anos debaixo de bomba. Então, eu fiquei com muito medo e tive a hepatite do fígado, a hepatite, aquela doença, icterícia. Fui para o hospital, duas vezes para o hospital, para curar a hepatite, mas lá era obrigado. Está bom, tem que ir. Então, a gente tinha que ir para trabalhar no porto, porque eu estava com 14 anos, fui de aprendiz mecânico no Porto de Barcelona. E lá, muitos bombardeios, dez, 15 aviões. Descarregava, voltava lá nos navios para carregar bomba, voltava. Isso ficou três anos assim. Eu passei muito medo e muita sorte. Porque eu trabalhava nos navios, e os aviões iam buscar para afundar os navios, bombas lá no porto, e nós trabalhando lá. Daí, um dos navios em que eu trabalhava, que era um navio pequeno de guerra, eu estava trabalhando embaixo, nas máquinas, com meus oficiais, aí que veio o bombardeio. Todo mundo saiu para ir para a terra, que estava amarrado o navio. Desse lado, água, desse lado, terra. A turma toda foi pra terra, num negócio para se esconder das bombas. Mas eu não tive tempo. Quando fui sair, a bomba caiu. Caiu, “uón”! E o ar da bomba me jogou lá numas cordas do navio, madeira, tudo, e arranhei um pouco. Aí a turma veio me socorrer. “Ei, mas você está ferido?” Falei: “Mas é pouca coisa”, aquele pouquinho de sangue, né? Naquela conversa, eles: “É, essa bomba caiu aqui perto.” E naquela conversa: “Ah, onde que caiu?” E a bomba caiu, mais ou menos esse diâmetro, a bomba, que é cilíndrica, e aqui é cônica, e debaixo da cônica que tem a espoleta. Então, quando caiu a bomba, porque me jogou lá nas cordas, a bomba bateu no navio e machucou o navio e fez um rombo assim no navio. “Ah, onde é que caiu a bomba?” Agora, daqui, da bomba, onde eu estava, um metro, na minha frente, um metro. Eu conto a história, um metro e quatro dedos. Porque a bomba bateu, o cônico da bomba bateu no navio, e a espoleta foi explodir a bomba lá embaixo na água, no chão do porto lá. Aquele navio ficou balançando na água. Agora, quatro dedos, se a bomba vinha mais a mim, em vez de bater a espoleta lá no chão, quatro dedos, batia em cima do navio. Aí, explodia na minha frente. Eu podia contar essa história em pedacinho (risos). Então, eu tive muito medo, muita sorte e muitas bombas. Essa foi a mais próxima, um metro, um metro e quatro dedos. Agora, depois, dois metros também, eu estava correndo, encostei numa pedra grande lá, encostei dois metros, do outro lado, caiu a bomba, da pedra. E eu estava do outro lado. Também, uma noite em que estava junto com outro aprendiz, que fomos correndo para sair do porto, quando chegamos numa avenida pra casa, naquela avenida. Tinha a avenida, desse lado era o trem, desse lado, passagem de carro. E no meio tinha uma jardineira. Caiu a bomba desse lado, e nós estávamos deste lado. Ficamos todos cheios de terra, eu e meu amigo. Que caiu daquele lá, mas não atingiu nada, só terra, por cima. Eu sofri muito lá, muito. Três anos de revolução.
P – Romero, isso tudo em Barcelona? O senhor estava em Barcelona?
R – Barcelona.
P – Quando vocês foram daqui pra lá, vocês foram direto pra Barcelona?
R – É.
P – E, antes da revolução começar, o pai do senhor faleceu?
R – No 35.
P – Ele morreu do quê?
R – Eu acho que foi do pulmão.
P – Pulmão?
R – Do pulmão, é. Do pulmão.
P – E, aí, o senhor...
R – Agora, como ele pegou a doença, não sei.
P – E o senhor teve que começar a trabalhar pra ajudar a mãe do senhor, né?
R – É.
P – Na carvoaria.
R – Aí, trabalhando.
P – Isso antes da revolução ainda, né? Como é que eles trabalham da carvoaria? O senhor era muito novo para trabalhar lá, né?
R – É, mas é serviço que podia pegar, como de carvoeiro, como falei, de leiteiro, né?
P – Descreve pra gente esse trabalho de carvoeiro, como é que era?
R – Porque lá é costume. Para fazer comida, porque a Espanha ficou sem nada, faltou tudo, tudo, faltou carvão, faltou tudo. E lá é costume fazer, porque era muito difícil gás, como aqui é gás, né? Elétrico, fogão. Mas lá, naquele tempo, nunca conheci gás. Elétrico algum, mas a maioria, carvão. Para fazer a comida com carvão. E como é tudo com carvão, então, o carvoeiro, numa carvoaria, cortava todo o carvão grande em pedaços. Tudo aquilo já preparado, tudo, até tem braseiro que chama. O frio lá é muito frio. Então, era braseiro para fazer pó de carvão, fazer bola de carvão, para pôr, para esquentar os pés, tudo isso era preparado, tudo trabalho na carvoaria. E eu entregava. E cesta, né? Era uma cesta de palha, enchia de carvão, pesava para pôr. Que aquela freguesa queria cinco quilos, outra dez quilos. Então, eu levava duas ou três, aquelas cestas de carvão, para ir. Às vezes, tinha casa, a maioria não tinha elevador, tinha que subir a escada até chegar lá na freguesa, né? E assim foi, para ajudar a minha mãe viúva.
P – O senhor ia de bicicleta pela cidade ou a pé?
R – A pé.
P – A pé. E como era Barcelona na década de 30?
R – Era muito bonita, Barcelona é bonita. Eu tenho revista, fotografia, um monte de fotografia de lá, tudo. Mas diz que agora, minha irmã que está lá diz que agora está Barcelona muito bonita. E eu tenho vontade de ir lá conhecer, lembrar. Eu lembro, eu conheço Barcelona assim, na palma da mão.
P – Então, eu não conheço. Descreve pra mim como é que era a Barcelona da década de 30, os prédios, as avenidas.
R – Porque lá é mais antigo que aqui, né? Então, lá é muito bonito, Barcelona é muito. Se eu tivesse sabido, traria foto daqui, de Barcelona, quem sabe a próxima vou trazer para conhecer, para pelo menos ter conhecimento do que é Barcelona. Hoje em dia, minha irmã que escreve diz que está, que eu não vou conhecer, se eu vou lá. Tenho vontade de conhecer, que faz mais de quatro, cinco anos que não vejo mais a minha irmã lá. E, como ela está muito doente, eu quero ver se faço um pouco de dinheiro para ir fazer uma visita para ela. Porque ela está sofrendo do coração. E, antes, eu também sofri do coração, porque tenho sete operações. Eu sou aposentado por invalidez já, 43 para cá. Trabalhava na Ford aqui em São Paulo, onde eu moro, e lá caí um tombo, machuquei a coluna. Daí, me levaram para o hospital e, no hospital, me deram aposentadoria, porque não posso mais trabalhar em firma. Porque ele até falou que eu não posso operar. Se operar, que é embaixo de tudo, porque, segundo o médico, eu caí sentado e machucou toda a parte de baixo da coluna. Que operar é muito perigoso de eu ficar na mesa, numa cadeira de rodas ou na cama para toda a vida. Então, ele falou: “Não opere, aguente e viva a sua vida bem sossegada, sem fazer peso, todo o serviço pesado, deixa de lado para você viver. Se operar, você vai ficar na mesa, numa cadeira de rodas.” Então, eu estou vivendo a minha vida, eu levo a minha vida. Porque quero viver mais para poder contar histórias.
P – É isso aí. Romero, mas voltando a Barcelona da década de 30, o senhor trabalhou como carvoeiro, depois foi ser leiteiro.
R – De leiteiro.
P – Também entregando lá, andando.
R – Entregando leite a domicílio.
P – E, nessas andanças pela cidade, o senhor testemunhou alguma coisa interessante, algum caso?
R – Não. Eu me diverti bastante lá em Barcelona, eu sou muito de baile, gosto muito. Eu já ganhei prêmios dançando e meu forte é tango, tango argentino. Até me convidaram, um conjunto que veio aqui tocar aí numa festa de casamento, no casamento, era cantando e tocando o conjunto dela, e ela cantando. Aí, eu só dançava com minha irmã, a que está lá morando. Então, éramos sempre assim, né? Fizemos muito, ganhamos prêmios dançando. Aí, então, essa cantora me convidou para fazer show lá na Argentina, para dançar tangos e tudo isso. Porque eu danço muito, não é por dizer, mas ganhei prêmios dançando tango, tango argentino.
P – E começou dançando lá em Barcelona?
R – Isso, em Barcelona. Então, o meu divertimento lá, porque Barcelona é muito divertida. Lá, todo mundo se diverte. Criança, velhos, tudo, tem para todos. Aqui não tem nada. Quando eu cheguei da Espanha aqui, eu até chorava de tanta tristeza: “Não tem nada, eu quero dançar.” Eu moro lá em Osasco e, para dançar minhas danças, eu tinha que ir na cidade, naqueles salões de baile, na cidade, no centro de São Paulo. Para eu dançar naquele meio tempo, porque lá se dança. Barcelona, ninguém fica em casa, todo mundo a passear, dançar, cinema, teatro, circo, baile. É demais, é gostoso.
P – E, nessa adolescência, começo de juventude sua lá, teve alguma noite especial, de que o senhor se lembra até hoje?
R – De?
P – De alguma noite, algum passeio que o senhor fez, que marcou.
R – Bom, passeio, porque, para dizer a verdade, eu só conheço Barcelona. Cidadezinhas perto lá, tudo. Mas conhecer, por exemplo, outras cidades da Espanha, não deu.
P – Mas, e lá em Barcelona mesmo, tinha algum lugar que o senhor gostava de ir especialmente?
R – Eram dois ou três salões de baile. O que mais me divertia era um dos mais populares, mais dança popular, né? Que, naquele tempo, as meninas não iam sozinhas, iam com a mãe, a maioria. Que eram de muito respeito. Então, eu tinha dois ou três salões de baile, quando não ia num, ia noutro, ou, se não, porque eu gostava mais, em vez de jogar futebol, não gostava. De ter num time lá para jogar futebol, eu vou dançar. Então, eu dançava lá em Barcelona três vezes por semana. Por exemplo, quinta-feira, todas as quintas-feiras era já direto, com documento, para dançar no cabaré. Eu era bailarino de cabaré, que onde eu sentava numa mesa, com uma moça. A moça e eu. A mesa e um drinque, para poder aplaudir e fazer público para os que vêm no cabaré, que é gente rica, para fazer show. Então, a gente dançava bem, para fazer show. Mas eu tinha entrada livre para isso aí. Isso, quinta-feira à noite. Sábado, aí, salão de baile comum. Sábado à noite. E lá é costume também que, aqui, como os bailes começam às dez horas e vão até às quatro horas da madrugada, lá não. O máximo é meia-noite. Acabou meia-noite, fecha, cada um para sua casa. Porque, no dia seguinte, para ficar com mais saúde e passear mais ainda. Aqui não. Lá, cinco horas da madrugada, o dia perde, perde o dia todo dormindo. Então, eu tinha sábado à noite baile. Domingo de manhã, domingo de tarde e domingo de noite. Isso fica muito tempo assim, dançando. Porque lá se diverte. Futebol, cinema, teatro, tudo. Lá tem de tudo. Barcelona é alegre.
P – E, Romero, como é que o senhor ficou sabendo daquela época, ainda da adolescência, como é que o senhor recebeu a notícia do começo da revolução?
R – O começo?
P – É. O senhor já trabalhava no porto, né?
R – É. Mas aí, quando começou, veja só como... Eu lembro que foi verão, junho, julho, por aí, nós tínhamos o costume de, domingo, foi domingo, de ir para a praia. Mas levantamos cedo, e todas as fábricas tocando alarme. Aí: “Hoje, domingo, olha quantas fábricas tocando alarme. O que será?” Daí que ficamos sabendo. Dava notícias na rádio, de que a Espanha está em revolução. Espanha, revolução. Daí começou a revolução que era uma parte que, vamos dizer assim, a Espanha ficou metade de um lado, Franco, Francisco Franco, militar, desse outro lado particular, chamava Negrín, Doutor Negrín. Então, nós estávamos na parte do Negrín. “Poxa, o que tem essa sirene aí?” Vinha a revolução. Aí que começou, e tirava da rua lá perto de casa tudo, né? Barcelona, tudo. Tiravam aqueles paralelepípedos da rua para fazer uma trincheira, sacos de areia, para fazer a trincheira para guerrear contra, a maioria contra o clero, os padres, vamos dizer. Daqui contra as igrejas, e da igreja contra os de baixo. “Pá, pá!” Aquilo começou, e eu morava perto de uma igreja que era só tiro. Era perigoso atravessar a rua, só quando via que não tinha mais tiroteio, aí que nós saíamos para fazer compra.
P – Então, tinha muito combate ali na rua mesmo, de tiro.
R – Tiro, sim! Aquele encontra aqui, e a gente encontra eles.
P – E teve pessoas próximas ao senhor que morreram?
R – Não, só quem morreu foi meu pai, mas de doença, antes da revolução. Agora, depois que veio a revolução, que eu tinha 14 anos já, aí parou. Lá, parou tudo, que não tinha nada, a Espanha ficou... Que, para comer, vinha tudo com tíquete. Para comer, tinha que entregar um tíquete lá, para comer feijão, arroz, era para um dia só. E tinha que ficar uma semana com aquilo lá. Se passou muita fome... Espanha, Barcelona pelo menos, se passou muita fome. A maioria, como minha mãe, que era forte, gorda, ficou magra. Nem comia! Tudo Espanha, mas tudo Espanha. Eu, em casa, o que mais comia era eu, porque eu trabalhava nos navios, e os marinheiros lá comiam bem. Então, eu comia com eles. “É, me dá um prato aí de comida!” Trabalhando, né? Trabalhando e ia lá. “Vocês estão comendo?” Passando fome também. Ah, não, me servia um prato lá de comida e assim eu comia. Na minha família, tinha vezes: “Ah, vai sobrar?” “Ah, vai!” Porque eles iam passear, e sobrava naquelas panelas. “Ah, posso levar?” Eu pegava minha marmita lá e levava para minha casa.
P – Contando das dificuldades do período da revolução, da falta de comida.
R – É.
P – Os tiroteios.
R – É.
P – E como é que era esse dia a dia lá? Tinha bombardeio todo dia?
R – Todo dia. Assim que, no começo da revolução, eram mais ou menos cinco, dez aviões, um dia sim, um dia não, na semana. Mas quando eu... Com o tempo, depois de um mês, depois de um ano, e cada vez mais forte, cada vez mais forte, cada vez mais bombardeio. Até que chegou uma hora que os bombardeios eram dia e noite, sem parar. Ficou mais ou menos um mês, mais ou menos, antes de acabar a revolução, que são três anos, mas quase no fim para acabar, então, eles puseram tudo por tudo, para acabar mesmo. Então, iam dez, 15 aviões. Aviões por cima, embaixo, as metralhadoras, e era um inferno. Guerra é a coisa mais triste da vida, muito triste uma guerra. Eu, como já passei, sei. Eu fiquei doente, estou doente, sou mutilado de guerra, tudo isso aí. Guerra não é bom. Assim como tem muito que é voluntário...
P – E a vida na casa do senhor, com os irmãos do senhor mais novos? Estavam todos lá vivendo com a sua mãe, né?
R – Estão. Veja só como era na revolução, né? E eu trabalhava no porto. Onde que eu morava era num lugar alto de Barcelona e lá embaixo, que tem fotografia, mas não dá para... Teve uma explicação mais ou menos. E lá embaixo que seria o mar, né? E no fim de lá é a Montanha Montjuic, onde fazia a corrida de carro, Montjuic. Lá na ponta, e nós trabalhando nos navios. E minha mãe e meus irmãos aqui, ele não ia, eles trabalhavam lá perto de casa. Mas eu era o que mais morava, trabalhava lá no porto, tinha que pegar o ônibus, e era longe. Daí, então, quando vinha bombardeio, a minha mãe e meus irmãos saíam na sacada, e se viam longe assim os estrondos das bombas, a fumaça. E minha mãe chorando, chorando, que eu estava lá, debaixo da bomba. Mas tinha que esperar a noite, eu trabalhava 12 horas por dia, obrigado, lei, porque estávamos militarizados. No porto, éramos todos militarizados. Eu estava militarizado também. Na oficina em que eu trabalhava, era militarizado. Então, não podia faltar. Se eu faltava por doença ou por qualquer coisa, eles vinham em casa e viam: “Você pode ver, para andar. Vai, não pode, vai!” “Ah, mas estou doente.” “Ah, não pode.” Tinha uns, para se salvar, davam um tiro no dedo (risos). “Pá!” (risos) “Ah! Você deu um tiro para você se salvar? Vai agora com o pé amarrado, vai pra lá, pra frente.” Muitos punham alho no sovaco, sabe que é? Para dar febre. Um alho no sovaco dá febre, poxa! “Ah, você pôs o alho no sovaco, né? Vai pra frente, vai.” E se falar duas vezes, fuzilado.
P – E cheio de militar na rua, tudo barulho de tiroteio, como é que era para dormir? Era muito barulho de bomba à noite?
R – Acontece que também está escrito na História que nós, o povo, para se salvar dos bombardeios, das bombas, nós fizemos subterrâneo, seis, sete metros. Nós mesmos, o povo, naquele lugarzinho: “Vamos nos reunir, fazer um buraco aí para...” “Ah, vamos, vai!” E era um com picareta, outro com a pá, e foi, foi, foi, seis, sete metros, fazer um túnel lá dentro para a gente se esconder das bombas.
P – E você se...
R – Vinham os bombardeios: “Ah!”, todo mundo, “Ah, alarme!”. Todo mundo saía de suas casas para correr para ir debaixo. Mas se ajuntava tanta gente que a metade ficava fora. Mas quem podia entrava, quem não, ficava fora. Mas foi. Agora, perigoso era no porto. Na cidade, por lei internacional, não podia bombardear a cidade. Então, os criminosos tinham que bombardear lugares de objetivo militar, que era o porto. Então, iam todos os bombardeios de sua cidade, e foi para bombardear o porto. Daí que sofremos. Era só bombardeio e o porto. E eu trabalhava nesse navio, ficava uma semana, um mês: “Ah, agora vocês têm que pegar aquele navio lá, naquele lá. Prepara ferramenta, tudo, para consertar lá.” Nós pegávamos a ferramenta para ir naquele. E tinha. Trabalhei também, ficamos seis meses trabalhando num navio lá. Veio carregado e descarregou petróleo, um petroleiro. Aí, ficou um navio vazio, e um navio vazio é mais perigoso que um navio cheio, porque aí estoura. E nós trabalhando lá naquele navio, e os bombardeios lá, para derrubar ele, e não atingiu nós. Então, o último em que eu trabalhei, aquele que eu falei, que a bomba bateu no navio, esse foi o penúltimo navio. O ultimo navio que já... Que o governo deu ordem para deixar o porto livre, porque não aguentava mais de tanto, desde de manhã até noite, sem parar. O governo: “Ah! Todo mundo do porto sai do porto, vai para sua casa, deixa o porto livre.” Eram navios afundando. E o último navio foi um submarino. E, nesse submarino, que estava lá atracado no porto, veio o bombardeio batendo no submarino e afundou. “Ih, afundaram o submarino! Vamos tirar ele para consertar.” Porque o submarino era para fazer vigia, né? Aí, então, tiramos o navio do fundo, pusemos em terra, para consertar. Quando já consertou o buraco lá do navio, já pôs para fazer vigilância. E depois que fez a vigilância? Outra vez caiu, bombardeou e caiu, bateu no navio, no submarino. Esse foi o navio mais que atingiu, o submarino. E eu trabalhando no navio, nesse submarino. Mas não atingiu nós.
P – E o problema do seu ouvido foi daquela bomba lá, que caiu a um metro?
R – Foi vários. Várias bombas.
P – Não, mas o problema do ouvido...
R – O estrondo. Não é que bateu a bomba em mim, foi o estrondo: “Bum!” Porque cada bomba que caía, mais ou menos a uns 100 metros, a gente dava um pulo dessa altura, porque eram bombas enormes. Então, o estrondo é que me estourou.
P – Ah, entendi.
R – Estourou o “tingue”, “timbe”... Como é que é o nome?
P – Tímpano.
R – É. Então, o médico falou que está furado. “O que foi?” “Foi no bombardeio.” “Ah, então é isso.” O estrondo da bomba furou, e fiquei doente do fígado, hepatite. De medo, medo. O meu oficial, que eu era aprendiz dele, ajudante, estava falando assim, ele na hora: “Ai, olha, ai! Ficou... Ah, estou ruim, me leva lá para cima!” Estávamos lá embaixo, e levei ele junto com outro. “Ah, ele está doente, ficou doente na hora de medo”, o meu oficial. Na hora, ficou doente, ficou amarelo, de medo. É triste, viu? Guerra é triste, mas tínhamos que estar lá, no pé do canhão. Então, vivemos assim.
P – E, Romero, quando acabou a revolução, já começou a Segunda Guerra Mundial, né?
R – É.
P – Foi mais ou menos junto ali, não foi?
R – É, foi 36 ou 39. Deu 39, já começou a Guerra Mundial.
P – Como é que a Segunda Guerra Mundial chegou até a vida do senhor? Como é que o senhor ficou sabendo da guerra?
R – Pelos rádios, tudo, né?
P – E o senhor se lembra?
R – E ainda falavam: “Quem quiser ir voluntário venha se inscrever para ir de voluntário para a guerra.” Lá na Europa, lá com quem, depois da Revolução da Espanha. Teve alguns que foram voluntários na guerra de 39 a 45, né? Por aí.
P – Mas o senhor se lembra de quando ficou sabendo da guerra? O senhor ficou sabendo quando a guerra tinha começado?
R – Antes de começar?
P – É, quando foi anunciado o início da guerra, o senhor se lembra?
R – Não, foi direto. Acabou mais ou menos a revolução na cidade, então, vamos dizer assim, como falei, que a Espanha ficou a metade de um lado e de outro. Do nosso lado, estava a turma avançando, de Barcelona foi para outra cidade, e foi, foi, e o Franco militar já estava quase no fim da Espanha. E, como a Espanha é um país de pouca guerra, não tinham mais bala. Até isso daqui foi uma operação que teve que fazer e precisava de anestesia. Então, eu falei: “É, mas a anestesia para eles não pode.” Falei: “Faz ao vivo mesmo.” E que fez ao vivo, porque anestesia é para os que iam trabalhar, lutar lá. Faltou de tudo. Aí, começou a guerra. Aí, guerra. Primeiro revolução, mas depois foi guerra. Guerra, Espanha, Itália e Alemanha contra a outra Espanha. Ah, tem muitas mortes, muitos eu assisti, que dava no começo. Era, por exemplo, contra o clero. Se vinha uma família com santinho, tudo isso, ela metralhava. Entrava dentro. Se via que estava com santinho pendurado no pescoço, “au!” As igrejas tiraram todos os santos, tudo. Foi lá no meio e puseram fogo. E eu assisti isso daí. Foi triste, muito triste, só de pensar. Depois, teve vingança. Daquele outro lado. “Ah, você matou aquela família, porque tinha um santinho, um santinho pendurado, agora você também.” E fuzilava. Foram muitos padres, no campo de concentração lá, no paredão. Era um paredão que, uma vez, sem querer, com outro. “Vamos ver lá o que é?” “Ah, é um paredão, olha, quantos padres.” E aqueles lá: “pá, pá, pá, pum!”
P – O senhor viu?
R – Isso eu vi. Por isso que eu digo, me dá pensamento hoje, que eu não quero nem pensar de tanto sofrimento que eu passei, não quero nem lembrar. Em casa, tocava um apito, era alarme, qualquer coisa era alarme. Eu, só de escutar um apito, já ficava verde, amarelo, vermelho, de todas as cores. Minha mãe: “Ai, calma.” “Não, não, não!” Eu fiquei meio bobeado, sabe? Aí: “Vamos nos esconder, vamos debaixo da cama.” “Não, o bombardeio é longe, aqui estamos seguros.” “Não, mas vamos debaixo da cama, é perigoso.” Eu fiquei meio “tontuado”. Mas, depois, com o tempo, foi tirando, tirando, agora eu estou bem. Só penso, né? Um pouquinho de lembrança, ainda lembro. Mas no começo foi duro para eu poder tirar aqueles sofrimentos que passei.
P – E no dia a dia da sua vida, quando começou a Segunda Guerra, foi pior no seu dia a dia lá em Barcelona, ou não?
R – Por um lado, não foi sofrimento de guerra, mas sim sofrimento de fome. De fome, porque como eu não tinha nada, não tinha dinheiro, e se tinha dinheiro, não podia comprar. Chegar lá para comprar um pão, um quilo de feijão, um quilo, não podia. Com dinheiro, não podia comprar nada, tinha que ser com o tíquete. A lei, vamos dizer assim, dava esses tíquetes para a família para comprar. Mas com tíquete, com o dinheiro, não valia mais. Então: “É hoje!”, saía no jornal, “hoje tem para vocês arroz, feijão e batata”. Leva o tíquete de arroz, feijão, você destaca um para comprar arroz. Destaca outro para comprar feijão, e assim. Coisa que aquela comida que a gente pegou já tem que guardar para uma semana. Tinha que comer naquele dia e guardar para uma semana. E para um dia não dava. Pão, era um pãozinho assim, era feito de _____, quando estava quentinho, ainda amassava. Mas ficava uma ou duas horas lá fora do forno, ficava duro que nem... Era de uma farinha, sei lá que farinha, farinha de milho, não sei que farinha que era, que na hora ficava duro. E tinha que aguentar uma semana aquele pãozinho. Para cada um, se éramos cinco, cinco pãezinhos. Tinha que guardar para o dia seguinte, porque era... Eu, para não passar a fome, eu punha um pedaço de pão na boca, chupar ______, para passar a fome. Ui, se passou muita fome. Então, foi o sofrimento que falou, depois da guerra. Assim que era, mas, pouco a pouco, foi normalizando. Amanhã, já dava um pouquinho mais, até que Espanha ficou normalizada.
P – E, Romero, o senhor continuou trabalhando no porto. O senhor estava lá no porto, ainda?
R – Depois da guerra, eu trabalhei um ano e pouco mais, ainda depois.
P – E como é que foi a festa do final da guerra? Deve ter tido uma comemoração, como é que foi esse dia, o senhor se lembra?
R – Então, mas acontece que... Eu vou contar também um pouquinho mais de que, quando, uma semana, vai? Antes deles, aqueles do Franco, para pegar Barcelona. Porque eles vinham, cada cidade ia pegando. E, quando chegou em Barcelona, que foi uma cidade quase ao fim da guerra, Barcelona, que foi a mais forte, né? Então: “Franco ia estar naquela cidade, daqui a pouco estão aqui em cima de nós!” Bom, então, como estávamos livres, porque a Espanha ficou livre na nossa parte, onde que nós estávamos, estávamos livres. Então, como é que se fala? De avançar nos armazéns...
P – Saquear?
R – Saquear.
P – Houve saque.
R – Então, aí, todo mundo ia nas lojas, nas firmas, para saquear, pegar o que podia. Eu quase fiquei molhado de óleo, porque tinha um lugar que vendia, que fazia óleo, né? Óleo para engarrafar e óleo para vender. E tinha um tanque assim, mais ou menos, e uma senhora caiu dentro daquele tanque de óleo. Aí, todo mundo salvando ela. Foi todo mundo (risos). Eu fiquei “olado” também, mas só que não caí. Só de ajudar, uma coisa e outra, e aquela turma jogando óleo assim. Então, eu fiquei mais de uma semana, que ficava com óleo.
P – E a Segunda Guerra Mundial, em 45, quando terminou, como é que foi essa comemoração, como é que foi esse dia, você lembra?
R – Não, porque foi como eu digo, de que, quando estávamos saqueando, era bem cedo da manhã, cedinho, de manhã. Que nós saímos para pegar a coisa, né? Eu estava numa loja que tinha roupa e ainda eu trouxe uma blusa de lã que eu peguei da loja de roupa. “Ó, puxa, olha que bonita! Ah, eu vou pegar!” É, estávamos livres. Qualquer um pegava, então, assim que digo. Foi saqueado, muita “saqueação”, todo mundo com saco nas costas para ir para casa. Eu peguei sem querer, que o açúcar lá, não tinha açúcar. E eu fui sem querer. “É açúcar!” Aí, fiquei sentado em cima do saco de açúcar, aquele grande, esperando uma da minha família ou conhecido para repartir aquele açúcar. “Vocês querem açúcar? Açúcar? Ah!”, e punha no bolso, punha (risos). E a turma, se sabia que tinha açúcar, ah, e avançava. “Ah, dá aqui!” Poxa vida!
P – Isso em 39?
R – Eu pus açúcar por todo lugar. Pus dentro assim, fiquei cheio de açúcar.
P – Isso foi em 1939, no final da revolução?
R - É.
P – Aí começou a guerra, foi isso? Ou isso foi em 1945?
R – Quase no fim da guerra já.
P – Ah, isso foi no final da guerra.
R – No finzinho, depois de uma semana já tinha terminado.
P – Aí acabou a guerra?
R – Acabou a guerra.
P – E como é que foi quando terminou a guerra?
R – Cada um na sua casa e viver, porque eu, depois que estava numa idade, e lá, para fazer o exército, porque eu sou filho de espanhol, então, quando eu cheguei, me retiraram documento de brasileiro e me deram documento espanhol. Por ser filho de pais espanhóis. Porque a lei, que fui até no consulado, para dizer: “Como é? Agora já não sou mais brasileiro?” “Não, daqui para frente, você vai fazer o Exército Espanhol, aí você fica espanhol mesmo.” Dois anos, que lá o serviço militar é dois anos. Bom, quando chegou uma semana antes de eu já, que o consulado até me fez dois documentos, um falso, vamos dizer assim, para eu entregar esse documento no militar e na polícia. Ainda está em casa. Para apresentar na polícia, para que eu, como brasileiro, a polícia me dava liberdade para ir para o Brasil. A polícia negou. “Não, você vai fazer.” Tirou a ficha. “Ah, mas você está aqui, a ficha. Você vai fazer exército na África.” “Mas lá tem a doença da malária.” E eu, como estava sofrendo do fígado... “Você vai para a África, lá no Marrocos espanhol.” Faltava uma semana para chegar, para ir para lá. Fui também na polícia e no exército, com os documentos que o consulado me fez, para ver se me livrava, mas não me livraram. Mas, quando chegou a hora, fui no consulado. “Então, é verdade isso? Vou fazer serviço lá em Marrocos espanhol? Quando tem a malária.” “É, por um, não vamos fazer uma guerra contra a Espanha. A lei de filho espanhol para fazer o exército aqui. Viva tua vida aqui, faz os dois aninhos de serviço militar, aí você está livre e pode viajar onde você quiser. Vai para o Brasil, que tua família está lá.” “Está bom.” Eu cheguei a dizer: “Eu vou fugir.” “O quê?” “Eu vou fugir.” “Que você vai fazer?” “Já tem uns conhecidos que eles vão me passar para os Pirineus”, porque de Barcelona aos Pirineus era perto. Perto, de trem estava lá. E tinha conhecido que passava por mar para ir para a França. “Não faça isso, porque, se você vai lá, você vai dar o dinheiro e você vai ser morto. Porque a polícia espanhola e a polícia francesa estão de metro em metro, eles não dão alto, eles já dão uma bala. Tem muitos que querem fugir e dão a bala, morto. Você quer isso?” “Então, eu vou para Portugal.” “Oh, Portugal é livre, você pode entrar quando quiser, mas acontece que o português com a Espanha são unidos. O português que passa para a Espanha ou o espanhol que passa para Portugal é fuzilado. Vai lá, você vai ter que experimentar. Chega em Portugal, o primeiro que você vai fazer é se apresentar e lá te pega e te põe para Franco, para Espanha, e você vai ser fuzilado. O mínimo, se você ficar bonzinho, menininho bonzinho, você vai pegar dez anos de cadeia. O mínimo, dez anos de cadeia, por ser desertor do exército, fugitivo, uma coisa e outra.” Dez anos o consulado me avisou.
P – E aí?
R – “Está bom. Nem para Portugal, nem para França. Agora, eu vou fazer a minha, nem para Portugal, nem para França, eu vou para o navio, vou viajar por navio.” Quando a minha mãe e meu irmão, que já iam viajar, que tinham passagem, tudo pago, eles foram para o porto para pegar o navio e vir para o Brasil. Eu fui com minha mãe, meu irmão e eu, no porto, ajudar a levar a minha mãe e as malas. Quando chegou no navio, eu falei para o meu irmão: “Vocês vão subir, e eu vou ficar.” “O quê?!” “É, eu vou ficar.” “Você sobe. Você sobe, que eu vou subir primeiro que vocês.” “Você vai subir no navio?” Falei para o meu irmão: “Quietinho, e eu vou subir e lá em cima eu vou subir.” “Mas você tem documentos?” “Eu vou subir, eu trabalhei nos navios e tem como, mais ou menos, como fazer. Eu vou subir, vou subir e vou sair bem, vou sair bem e vou chegar primeiro que vocês no Brasil.” “Não, não faça isso, a mamãe vai chorar tanto por você, eu só quero...” – Luiz, meu irmão – “que você vá fazer como eu falo.” “Eu vou subir, quando, amanhã, vamos nos apresentar, aí você fala para mamãe para não levantar, nem chorar, nem nada, faz de conta que eu não sou filho, sou um amigo, um amigo, tá? Nada de choro e alegria. Como passageiro, que, se chorar, os marinheiros, que são polícia, os marinheiros...” “Está bom.” “Comida: eu não posso comer no comedouro. Para comer, tem que apresentar documento, assim que eu não vou comer no comedouro, nem janta, nem almoço, nem nada. Eu não posso entrar nem no corredor. Vocês fazem o seguinte: vocês vão comer, façam um lanche, comam qualquer coisa e ponham na bolsinha e lá, naquele cantinho que eu vou te mostrar, a gente vai lá, você, a mamãe, eu, comemos lanche como se fôssemos passageiros, tá?” Bom, 17 dias da Espanha ao Brasil. Não foi uma semana, 17 dias assim. Eu não sabia o que era uma colher para comer, era só lanche. Lanche, lanche, todo dia de manhã, de tarde e de noite. Para dormir, no corredor, não podia entrar e, para dormir, também estavam todas as camas ocupadas. Se eu tivesse sono, e dormir em cima de uma cama, aquele marinheiro: “Essa cama é de fulano, como é que? Documento.” A primeira coisa que ele faz é “documento”. E eu não tinha documento nenhum, passei 17 dias. A primeira noite, desci no dormitório para ver como ia dormir, porque na cama não posso dormir e tem beliche. “Bom, aqui dormem dois, detrás tem as malas dos passageiros, eu acho que, se entrando por aqui assim, vou dormir lá detrás na mala. Com muito cuidado, de madrugada, eu vou descer, quando está todo mundo dormindo, e vou entrar por trás e vou dormir.” “Está bom, então, combinado tudo?” “Está bom.” Aí, eu, para dormir, quando chegou a noite, fui dormir ali e eu tive que dormir. Aqui é parede, e aqui são as malas. Era um pedacinho assim para eu dormir. Se você fazia muito assim, derrubava a mala, e o dono da cama ia acordar e ia fazer alarme. Então, eu dormi assim. Um calor, um calor, e eu com o nariz na parede. A primeira noite, eu dormi assim. A segunda noite, eu estava com um sono carregado. Fui também dormir assim debaixo e vi a cama dormindo lá. Levantei, e a cama estava livre, aí dormi. O dono foi lá em cima, vou aproveitar. Se ele foi ao banheiro, não sei onde, vou dormir um pouquinho, porque não aguento de sono. Seja lá quem for, ele vai me pegar e vai me apresentar para o marinheiro, polícia. Dormi, dormi. Deitado na cama, né? Aí ele chegou: “O que você está fazendo aqui?” Um senhor de idade sozinho, estava viajando sozinho. “Você está deitado aí por quê?” “Porque estou com sono e estou de clandestino no navio.” “Já vi, a primeira coisa que vi de você que você é clandestino no navio. Calma, eu vou te ajudar.” “Como?” “Dorme aí, dorme aí que eu vou dormir lá em cima, tá? Dorme. No dia seguinte, vamos conversar, está bom? Então dorme aí.” No dia seguinte, ele disse: “Olha, vamos fazer o seguinte”, ele me falou, “é muito perigoso”. Eu falei: “Eu sei, eu sei, é muito perigoso, eu sei que vou ficar preso.” “Mas calma, calma. Você vai fazer o seguinte: eu tenho a minha, lá em cima, lá em cima, na ala, minha cadeira de barco, de navio, que ela fecha e abre, é de lona assim. Eu vou dormir lá na cama e você dorme aqui. Como está calor e gostoso, se vier algum marinheiro, que fala: ‘Ei, está na hora de dormir’, você fala: ‘Está um calor lá embaixo, vou dormir um pouco aqui em cima só’, e você: ‘Ah, já sei levar’.” E foi assim. Ele dormia na cama e eu dormia lá em cima na cadeira, 17 dias assim. Quando chegou, que era para desembarcar em Santos, mas o navio não ia para Santos, ia de Rio de Janeiro para Montevidéu. Não ia passar por Santos. Tinha que descer no Rio de Janeiro. Bom, chegamos no Rio de Janeiro, 17 dias se passaram, digo: “Está na hora de eu descer.”
P – Romero, retomando aqui, o senhor estava contando do seu retorno ao Brasil de navio, após 17 dias de viagem.
R – 17.
P – Ele parou no Rio?
R – Daí paramos no Rio e, quando estávamos entrando já dentro, para entrar no porto, você tinha que ver a alegria do povo do navio, a população do navio, chorando de alegria. Por acaso conhece o Rio de Janeiro?
P – Conheço.
R – De noite, a entrada? Como é bonito. Como é bonito o Rio de Janeiro! Poxa vida! E escurecendo, e o navio entrando, e escurecendo pouco a pouco, e aquelas luzes do Rio de Janeiro, poxa vida! Que bonito, coisa linda! Bom, daí, posso contar?
P – Claro!
R – Quando estávamos já no navio atracado, chegou todo mundo lá na varanda, olhando lá embaixo: “Eh, eh!” Chegou o marinheiro: “Ei, separa aqui, separa aqui.” “O que é?” “Vamos abrir uma porta aqui.” Abriram uma porta, chegou uma escada, bem em frente de onde eu estava. “Então, separa aqui, que aquela escada, que vão subir os estivadores”, aqueles que descarregam o navio e carregam e descarregam. Então, abri, e começaram a subir os estivadores, os trabalhadores, para descarregar. Meu tio estava sabendo aqui em São Paulo que a minha família ia chegar, e o meu tio chegou no Rio de Janeiro para fazer companhia a nós. E eu, estando lá assim, vi que era meu tio. Com o tempo, muito tempo, eu reconheci, e ele estava bem vestido, com uma capa. Naquele tempo, se usava uma capa assim, no ombro, não vestido, no ombro. Eu olhei: “Ih, parece o meu tio.” Lá embaixo, e eu lá em cima. Aí, então, eu falei para ele assim: “Eu!” Ele compreendeu que eu estava em perigo, que eu estava preso, que não podia descer do navio, que, se não, me pegam para ir para a cadeia. “Ah, está bom.” Quando subiram os estivadores lá, ele subiu junto, e lá embaixo falaram: “Ei, como é? O senhor é...” “Eu sou chefe deles.” (risos) “Eu sou chefe deles”, e subiu. “Fazer, rápido.” Subiu. Quando chegou lá na porta, que estava com o marinheiro lá, separando. Então, chegou o meu tio: “E o senhor estava lá embaixo.” “É, eu estava lá embaixo, eu vou descer já.” E veio, me pegou no braço, me empurrou e me levou lá embaixo. E o marinheiro: “Ei, vocês dois estavam...” “Não, não.” Já estávamos lá embaixo. Meu tio me pegou e me puxou lá para baixo. Ficamos lá embaixo. Meu tio foi na saída do navio, onde que passa para entregar os documentos...
P – Alfândega?
R – É. Daí, então, meu tio foi lá, e eu não. Eu peguei uma avenida, uma rua, e fui andando todo o porto, olhando para trás. “Ninguém está me seguindo, nenhum marinheiro está me seguindo.” Fui andando, quando eu vi que uma rua que atravessava para ir na avenida. Avenida... Não lembro, lá do Rio de Janeiro, que está próxima ao porto, deve ser, essa avenida deve pegar. Aí, fui. E aquela avenida, eu fui onde estava meu tio esperando a saída da minha família e das outras famílias. E estava lá: “Ih! Oh! O senhor está aqui?”, eu disse. “Estou esperando.” “Ei, você se saiu bem?” “Estou aqui!” “Oh!” Abraço, tudo bem. “Poxa vida, muito bem, se saiu bem?” “É, estou aqui!” “Uh, que bom, que bom!” Daí eles chegaram: “Ei, vocês, agora que estão chegando?” “Ih, já faz tempo que estou com o tio aí, titio, esperando vocês, e vocês chegando agora. Falei para vocês que ia chegar primeiro no Brasil que vocês, agora está chegando.” “É, está bom!” Pegamos o trem, trem do Rio para São Paulo, toda a noite. Tivemos que viajar ainda de trem para São Paulo.
P – Qual era esse ano? Que ano era esse?
R – Eu cheguei, então, 1947. 1947, cheguei aqui no Brasil.
P – E como é que foi esse retorno a São Paulo, em 47? O senhor já era um moço, né? De 25 anos.
R – Aqui em São Paulo? Bom, à noite, chegamos na casa da família. Dormi. E no dia seguinte, de manhã, já fui me apresentar na polícia de São Paulo. Era, então, naquela época, no Parque Dom Pedro II, num palácio lá da polícia. Fui lá, para me apresentar, para me entregar como desertor do Exército Espanhol e clandestino no navio. Com muita sorte, muita coragem, cheguei lá. Quando eu cheguei na polícia, disseram: “O que é?” Eu disse: “Eu gostaria de falar com uma pessoa, um comandante da polícia.” “Por quê?” “É um caso muito especial, por isso que eu preciso falar com um...” “Está bom, eu vou te levar falar com o diretor”, um major era, da polícia. “Ah.” “Esse senhor quer falar com o senhor.” “A que respeito?” “Sei lá. Disse que é interessante.” “Então, entrega aí.” “O senhor, o que é?” Eu disse: “Olha, eu queria me apresentar, porque eu sou brasileiro, mas estou chegando da Espanha e eu sou, para dizer a verdade, estou me apresentando aqui na polícia brasileira para que o senhor fique sabendo que eu fugi da Espanha. Sou desertor do Exército Espanhol, que era para fazer o Exército Espanhol, mas eu não gostei e não quis perder a minha nacionalidade. Por isso que eu fugi. Sou desertor do Exército Espanhol, que ia fazer no Marrocos espanhol, e clandestino no navio.” “O senhor fez isso? Chegou aqui para se apresentar? O senhor pensou que ia ser preso?” “É o que pensei, por isso estou aqui, que os senhores da polícia brasileira me prendam, ou sei lá.” Levantou-se da cadeira e me deu a mão. “Meus parabéns! Isso é ser um patriota legítimo. Meus parabéns!”, me deu a mão e até me abraçou. “Um grande brasileiro, e pela tua coragem de desertor do Exército Espanhol, de uma doença que está pegando lá, a malária no Marrocos espanhol, e ainda clandestino no navio, não ter prendido eu, 17 dias, e você se livra?!” “É.” Sei lá, uma grande sorte minha, quem me ajudou não sei. “Estou aqui para me apresentar.” “Meus parabéns!” E chamou um de lado, disse: “Ó, faz uma inscrição dele para que ele faça todos os documentos como brasileiro, para ser um brasileiro, para começar a trabalhar no Brasil. Para deixar tudo documento próprio como brasileiro”, porque eu apresentei documento espanhol, né? “Tá, muito bem. Agora você é brasileiro, está no Brasil. Aí, só tem uma coisa, você vai ter que jurar bandeira brasileira. Amanhã, depois de amanhã, você vai lá no quartel tal”, e dá um documento para eu me apresentar lá, para eu jurar bandeira. “Só, porque tua idade já passou. Você vai ser terceira categoria.” Acho que é terceira categoria que não precisa servir. Já fiz bastante (risos). Então, aí comecei já a trabalhar aqui no Brasil, e até hoje trabalhando, trabalhando, trabalhando, fazendo os meus inventos e alguns me roubaram.
P – Nós vamos chegar lá, calma. Isso em 1947, de volta ao Brasil, com honras do delegado lá, pelas peripécias da vinda. Aí, o senhor conseguiu o documento brasileiro novamente e foi morar onde com sua família?
R – Onde eu trabalhei?
P – Não, onde o senhor foi morar. Quando o senhor voltou, nesse ano de...
R – Onde eu fui morar?
P – É.
R – De lá, na casa do meu tio. Já, em primeiro lugar, morar em Osasco.
P – Já foi direto para Osasco?
R – Fui direto, onde que morava esse meu tio, que foi na casa dele.
P – Como é que era Osasco no fim da década de 40?
R – Eu estava morando em Presidente Altino, em Osasco, não sei se você conhece Osasco.
P – Não, eu conheço muito pouco.
R – Então, é um bairro lá, não no centro. Do centro, na casa do meu tio, onde nós fomos. E moramos lá, na casa do meu tio.
P – E como é que era essa região de Osasco nessa época, Romero? Descreve pra gente. Era muito movimentado, como é que eram as ruas, as casas?
R – Onde estava meu tio morando, que nós estávamos lá, hospedados lá, tinha umas casas velhas ainda. Mas estava bom aquele lugar, não tinham muitas casas velhas, tinham casas bonitas, tudo, mas não era como no centro de Osasco, era na retirada.
P – E o senhor foi trabalhar onde?
R – Eu trabalhei numa firma de um mecânico, que lá era muito grande, Brasejo. Não, Cobrasma. Firma na Cobrasma, como mecânico ajustador. Mas eu sou mecânico ferramenteiro, é mais do que ajustador. Então, eu trabalhei nessa Cobrasma, que essa firma era muito grande, lá em Osasco, de reparos de trem, de vagões de trem. Os vagões batidos estavam tudo lá amontoados para recuperar os vagões, estavam lá. E eu estava como mecânico lá. Mas eu me machuquei e machuquei o braço, destronquei um pouco, destronquei, mas, como fazia pouco tempo que eu trabalhava na Cobrasma, e pouco tempo também no Brasil, primeiro ano, que fiquei mais ou menos um ano, nem isso, um ano nessa Cobrasma. E, como machuquei o braço, ficou engessado, então, eu não tinha direito a receber. Não estava nem registrado na firma, não tinha seguro. Então, ganhava o meu salário, mas, como eu não trabalhava, perdia os dias de trabalho. Então, cheguei e falei com o engenheiro: “Com o braço assim, eu vou perder os dias. Até ficar bom, vou ficar parado, que a firma não dá, porque faz pouco tempo, então, eu reconheço que eu não vou ganhar os dias parados até sarar o braço. E, daí, você não tem qualquer servicinho aí para eu fazer com uma mão?” “Ô, peraí! Eu sei que você reconhece o teu serviço, você é muito bom mecânico aqui, vou te dar um bom serviço para você ganhar o dia.” “Oba! Como?” “Vem aqui. Você está vendo esse monte de chapa de vagões? Está tudo amassado, nós temos que recuperar isso. Vamos ver se você é capaz de fazer, mas acredito que você é capaz para isso.” Levou-me numa prensa hidráulica, disse: “Você fica sentadinho e, na alavanca, você sobe e desce a prensa. Dois ajudantes com você, ele que pega uma chapa, toda torta, vai pôr em cima da bancada da prensa, e você põe e vai levando, conforme você vai, fala para os teus ajudantes: ‘Faz assim, faz assim’, que aí, então, ir desamassando e deixar a chapa retinha, tudo pronto para...” “Oh, deixa comigo, doutor! Deixa, eu sei.” “Está bom, então já tem serviço para você trabalhar, aí você vai ganhar o dia.” “Está bom, está bom.” Quando eu fiz um montão de chapa direitinho, que ele ia lá: “Poxa, mas como você trabalha. Mas você é mesmo mecânico, poxa vida! Muito bem, muito bom! Gostei muito!” O engenheiro gostava muito de mim. “Muito bem, aprovado. Você é bom ‘endireitador’ de chapa.” (risos) E assim fiquei trabalhando lá. Quando ficou quase um ano: “Doutor?” “O que foi?” “Eu vou embora.” “Você vai embora?” “É, porque aquela firma do lado...” – era a Semaf, fábrica de parafusos – “e lá está precisando de ferramenteiro, e eu sou ferramenteiro, e aqui não tem ferramentaria.” “Vai ter”, ele falou, “vai ter ferramentaria”. “Sim, mas quando tiver, eu venho aqui. Mas eu queria ir lá, eu vou ganhar mais e aqui já endireitei tudo, está tudo bom, gostei muito do senhor, o senhor também gostava de mim, mas só que eu vou lá para ganhar um pouco mais e fazer o meu serviço de ferramenteiro.” “Está bom.”
P – O que faz um mecânico ferramenteiro?
R – Mecânico ferramenteiro? O mecânico ferramenteiro faz de tudo. Até de beber. É um molde, esse é um molde. Vidro e vidro é de areia, o vidro é feito de areia. Bom, então, tem um molde, esse molde tanto como é um copo, como aquilo lá, tudo é um molde. Esse molde feito por ferramenteiro, injeta o líquido, abre e sai aquilo lá. Sai aquilo, sai aquilo, sai tudo, tudo por molde que o ferramenteiro faz, por isso que é ferramenteiro. Para fazer o molde, para injetar, tanto no plástico, como no vidro, como em outras coisas, como também, barbeador também, feito de “isamaq”. Sabe o que é “isamaq”? É o metal das maçanetas de carro. Aquele metal brando, aquilo é “isamaq”. Então, aquilo é fundido num molde também. Eu tenho uma invenção de um barbeador que eu fiz, de “isamaq”, o molde fui eu mesmo que fiz. Então, um barbeador, de invenção minha, que por ser um barbeador, faz barbeador, navalha e afiador. Ele usa como navalha, como barbeador e afia lâmina. É invenção minha.
P – Vamos chegar nas invenções daqui a pouquinho, Romero.
R – Então, eles me roubaram também.
P – Mas o senhor estava lá na fábrica em Osasco, passou para a fábrica vizinha, onde o senhor foi trabalhar para ganhar mais.
R – De parafuso.
P – Nesse meio tempo, o senhor já devia ter uns 26, 27 anos de idade. Já era um jovem. E me conta uma coisa: e as mulheres na sua vida, como é que foi? O senhor já namorava nessa época, como é que era essa história?
R – Bom, trabalhei em várias firmas. De Osasco, fui trabalhar na cidade e trabalhava numa firma de relógios, ferramenteiro de fazer relógios. Depois de lá, também trabalhei em outros lugares, em várias firmas em Osasco. E a última foi na Ford. A última firma em que eu trabalhei foi na Ford, lá de Presidente Altino.
P – Mas aí foi mais para frente, foi quando o senhor teve o acidente, né?
R – É.
P – Mas, antes disso, o senhor ainda em Osasco, com 20 e poucos anos, como era a sua vida social? O que o senhor fazia nas horas vagas para se divertir, as namoradas, o senhor voltou a dançar aqui no Brasil?
R – Dançar, onde que eu conheci a minha senhora, num salão de baile.
P – Então, conta essa história pra gente direitinho. Conta essa história do dia que o senhor conheceu a sua esposa. Conta como é que foi essa noite.
R – Quando comecei?
P – É. O dia em que o senhor a conheceu.
R – Comecei dançando. Foi no Clube Floresta, em Osasco. No Floresta, teve um festival. A minha senhora morava no Itaim Bibi. E lá, ela foi com uma amiga e a tia dela, foi no Floresta para ver, para levar para ela se divertir. A minha senhora e a amiga, para dançar lá. Daí que eu fui dançar com ela, ela me jogou o laço, fiquei preso por ela. Então, a conheci assim, dançando, que é onde eu ganhei, nesse salão aí, ganhei prêmios dançando. Porque eu sou muito de baile e ganhei prêmios dançando tango.
P – Nesse mesmo salão?
R – Então.
P – Mas e essa noite? Eu queria saber mais dessa noite.
R – Dessa noite, aí, no dia seguinte, já comecei falando com ela, uma coisa e outra, que queria ver ela. Digo: “Oh, vou te ver, quero ver você, onde você mora? Você mora lá em Itaim Bibi? Ih, eu também morei lá.” “Então, eu moro lá.” Eu ia lá namorar ela, vinha em casa, ia dançar, ela fazia a vida dela lá, ela não tinha nem pai nem mãe.
P – Não?
R – São três irmãs, e as três irmãs moravam com o avô e a avó, moravam as três com eles lá. A primeira, a minha senhora, das três, era a maior. Teve casamento. O primeiro casamento das três irmãs foi a mais nova. Depois de um ano, casou a segunda. Aí, não durou nem dois ou três meses, casei também. Assim que tudo quase, no mesmo ano, as três se casaram.
P – Qual é a data do seu casamento? A data do seu casamento, qual é?
R – Ai, agora me pisou no calo (risos). 29 de... Ai, só vendo na carteira.
P – Não, tudo bem. Qual foi o ano? O senhor lembra do ano?
R – Mil novecentos e... Ai, agora, 40, 45, 47, 47 parece. Acho que 48.
P – Tudo bem. Foi ali no final dos anos 40 e comecinho dos anos 50, mais ou menos, né? E o senhor se casou e foi morar onde?
R – Mesmo em Osasco.
P – Em Osasco? Levou a mulher para lá?
R – É.
P – E continuou trabalhando lá na fábrica. E os seus irmãos, no meio dessa história toda, eles estavam vivendo com a sua mãe ainda? Como é que era isso?
R – Bom, o meu irmão... Eu morava em Osasco, e ele morava na cidade, na Rua Cubatão. Conhece? Rua Cubatão?
P – Aqui em São Paulo?
R – É.
P – Conheço demais.
R – É. O meu irmão... Eu, como ferramenteiro, e ele, como artista tapeceiro e cortina, o rei da cortina e o rei da tapeçaria. Ele montou uma firma dele mesmo, como fazer sofás e cortinas. O Luiz estava bem, porque sofá dele, pelas mãos dele, aqueles de couro, era o rei. Tudo tinha freguês, só ele trabalhava para gente rica. Você via lá, para fazer uma cadeira ou um sofá pequeno, ele fazia. Por quê? Tinha muito serviço de gente. De cortinas, cada cortina! Então, a vida dele era essa, tapeceiro. A minha cunhada, mulher dele, que tinha duas filhas, duas filhas, minhas sobrinhas. Daí, a mulher dele ajudava o meu irmão, ele fazia, e ela costurava na máquina de costura. E ele fazendo desenhos de cortina e sofá.
P – E as suas irmãs? As suas irmãs estavam com a sua mãe?
R – Minhas irmãs? As minhas irmãs, lá na Espanha, também sofreram muito, vai deixar aquilo lá, né? Então, a minha irmã, aquela que casou e o marido não gostou, foi para Espanha e está lá. Casou em 1950, por aí. Casou e foi para a Espanha, com uma filhinha. Então, está lá na Espanha, em Barcelona, está muito doente e eu gostaria de fazer uma visita, mas vou ver se junto. E a outra minha irmã também morava em Osasco, no Jardim Agu, de Osasco, e o marido dela era que trabalhava nos elevadores Atlas. E a minha irmã, em casa, serviço de casa. Ficou muito doente o meu cunhado e faleceu. E o filho dela, ele está em Caraguatatuba, mora lá, e o filho dela, que mora lá, pôs uma oficina de materiais de limpeza, de produto de limpeza, de residência, e está lá vivendo. Levou a minha irmã para morar com eles lá. Viúva, sozinha. Só que a gente se comunica por carta ou por telefone, como na Espanha. Na Espanha, a gente se comunica por carta ou por telefone.
P – Entendi. E, nessa época, como é que estava a sua mãe, depois que o senhor casou? Ela estava lá, estava bem, ela era dona de casa, como é que era?
R – A minha mãe morava conosco antes de casar. Depois que casou. Primeiro, casou a minha irmã, essa que está morando em Carapicuíba.
P – Caraguatatuba.
R – Caraguatatuba. Ela casou, e eu, depois que ela casou, disse: “Vou casar também.” Para não ficar sozinho com minha mãe, porque acontece que eu quase que não ia casar. Conheci a minha senhora e tudo, mas fiquei pensando de casar ou não casar. Por quê? Se eu casasse, seria por causa que está com a minha mãe. E, se não, eu queria correr o mundo livre, correr o mundo, conhecer o mundo inteiro. Porque eu sabia, do jeito que eu vim, eu sabia, eu tinha certeza que eu ia viver a minha vida sozinho para correr o mundo. Aí, se eu passar dos 30 anos de idade, eu não caso. Fui casar com 30 anos de idade.
P – Trinta anos de idade?
R – Trinta anos, casei.
P – Então, o senhor casou em 1952.
R – Acho que é isso daí. Estou com 80.
P – Em 1952 o senhor se casou.
R – É. Estou com 88, ainda, de momento, não sei até quando (risos).
P – E o senhor ficou casado, morando em Osasco, e quando veio o primeiro filho? O primeiro filho do senhor, ou filha, não sei.
R – O primeiro filho. Eu estava em Osasco, e ele nasceu na maternidade, no hospital. Foi o primeiro.
P – Qual é o nome dele?
R – Humberto Araes.
P – Ele nasceu logo depois que o senhor casou?
R – Ele, o primeiro, foi. Ele agora deve estar com... Ai, a minha memória.
P – Cinquenta e poucos anos, ele deve ter agora, mais ou menos, né?
R – Depois, casou a minha irmã, a minha filha e a menor. Eu estou com cinco netos.
P – Mas vamos falar dos filhos antes. Então, primeiro foi o Humberto.
R – Filho do Humberto?
P – Não, primeiro, o senhor teve o filho Humberto.
R – Humberto.
P – E depois? Quais são os outros filhos?
R – Mais duas.
P – Mais duas?
R – Filhas.
P – Quais são elas? Vamos lá, fala o nome delas.
R – Conceição Aparecida Araes. E a segunda, Célia Regina Araes.
P – E os três são mais ou menos próximos uns dos outros de idade? Foi mais ou menos uma sequência?
R – Então, meu filho está com 50, outro com 45, e a menor é de cinco anos, mais ou menos. Três a cinco anos uma da outra.
P – E como é que foi ser pai naquela época da sua vida?
R – O meu pai?
P – Não, como é que o senhor se sentiu sendo pai nessa época?
R – Ser pai?
P – É.
R – Poxa, com muita alegria! (risos) Eu tenho fotografia segurando o meu primeiro filho assim, tirou fotografia, que eu tenho. Eu gosto muito dos meus filhos, eu ajudei muito os meus filhos, fiz isso trabalhando, para dar uma carreira para eles. Porque meu filho, ele se formou técnico desenhista projetista. Trabalhou em várias firmas e agora trabalha até. Ficou até desempregado e trabalha quase por conta dele, não com firma, na própria casa dele, no computador. Ele pega serviço de uma firma e dá trabalho para ele fazer e está levando a vida assim.
P – Entendi.
R – A outra minha filha, a Conceição, está morando agora em Itatiba, estivemos agora sábado passado lá, na festa de aniversario do meu genro. Ela está aposentada, mas era professora de escola, alunos, estuda, crianças. E a outra, a menor, a Célia Regina Araes, ela se formou professora de inglês e português. Ela dá aulas de português e inglês. Estão todos bem, levando a sua vida bem, ganhando, e eu, aposentado, de 43 para cá, mais ou menos, aposentado por invalidez, da coluna, e dei sete operações.
P – Romero, o senhor estava contando dos três filhos e um pouco da trajetória de vida deles, como eles estão bem hoje. Mas eu queria te convidar a voltar lá na década de 50, para o período da infância dos seus filhos. Como é que foi criar seus filhos em Osasco na década de 50? O que você fazia com eles no tempo livre, por exemplo?
R – Bom, a minha vida, como sempre falei, para eu poder levar a minha vida e levar os meus filhos, era só nos inventos. Mas os meus inventos, como já falei, a minha senhora e meus filhos estão um pouco contra mim. Por quê? Porque eu, para poder ajudar eles nos inventos, mas acontece que eu invento, mas eu tenho muita boa fé. E mostro os inventos, e aquele cara rouba, como isso daí, me entende? Então, são vários inventos que eu fiz, me roubaram. Porque, pensando eu, de que o invento, se for vender, é para ganhar muito dinheiro. Coisa que eu tenho, inventos, para poder gerar mais empregos. Para eu poder mostrar e, se tiver uma pessoa que seria uma espécie de patrocinador, para eu dizer: “Vamos fazer esse invento para ajudar o Brasil, para ganhar dinheiro?” Porque tem vários, tenho. Como o Brasil ter mais empregos, e eles estão querendo ajudar o Brasil, para que me ajudem, para eu poder levar muitas coisas para o bem do Brasil. Para que o Brasil tenha mais dinheiro para poder ajudar os hospitais, crianças, enfim. Para ajudar o Brasil. Eu prefiro, como fala? Ter um patrocinador, ou não sei quem, para dizer: “Vamos levar isso para frente.” Porque tem como, no desenho, para salvar vida. Com um dos inventos que está aí para mostrar, por isso que eu digo, não dá para hoje. Para essa fumaça preta que sai dos veículos, é óleo queimado, fumaça preta, uma das invenções eu tenho para eliminar essa fumaça preta. O meu aparelho, que é um escapamento com filtro, ele tira a fumaça preta e sai branca. Não completamente, mas bastante, porque aquela fumaça fica em pó. E fica tudo em pó no aparelho. No escapamento, invenção minha. O filtro é inventado por mim também, para fazer tirar isso. Além de que, um caminhão, ônibus, um veículo que solta fumaça, ele mesmo acata aquela fumaça venenosa que solta. Além do escapamento, como também está no desenho, para mostrar, aparelhos, outro aparelho junto, para pôr nos caminhões, ônibus e tudo, para ir aspirando essa fumaça, esse ar poluído que nós engolimos esse ar poluído, ele aspira esse ar poluído. Assim que, pondo nos caminhões, em todos lugares, para aspirar esse ar, estaríamos com a vida mais saudável e não aspirar essa poeira, essa fumaça, porque ele acata, esse aparelho, acata essa fumaça, esse ar poluído. Então, um dos principais, que eu já fui na Cetesb [Companhia Ambiental do Estado de São Paulo], tudo isso, e tenho documentos para que eu tenha esse aparelho pronto para fazer, e o aspirador, para que coloque já. Agora, como eu digo, um patrocinador: “Vamos fabricar já!” Isso, isso, têm vários para fazer dinheiro.
P – Romero, como é que começou a sua vida de inventor? Qual foi a primeira invenção? Foi naquela época lá atrás, da década de 50?
R – Eu vim da Espanha com ideias. Eu, trabalhando na mecânica, na ferramentaria: “Eu vou fazer isso, sabe que isso aqui pode dar dinheiro fabricando?” Então, eu já tive ideias e até fiz um isqueiro. O isqueiro, em vez de fazer de metal, fazia de plástico, fazer, pensei. Tudo assim, já vem de ideia. Quando eu vim da Espanha para o Brasil, já tive algumas ideias. A primeira ideia, quando eu cheguei no Brasil, foi esse, o painel. Por quê? Em 1958, em 47 eu cheguei. Mas em 1958, estava escutando a “radiação” de um campeonato mundial da Suécia, que o Pelé começou lá. Porque eu tenho, isso sim, não sou ninguém, mas eu tenho um dom de inventar. E me sai na hora e tenho a certeza que aquele invento vou estudar, mesmo que tenham vários, me vem na memória, na ideia, aquilo lá, como do futebol. Eu, escutando uma “radiação”, digo: “Poxa, se tiver uma coisa para acompanhar, porque, duvido, você não vê nada. Pelo menos, já que a gente ouve o jogo, e não se vê nada.” Aí inventei o painel, inventei o painel e já comecei a estudar tal, tal, tal. Aí, eu fiz o painel.
P – Então, conta pra gente o que é o painel.
R – Do painel?
P – É.
R – Bom, do painel. Eu já tive, com certeza, uma ideia, porque eu não preciso, eu vejo, eu vejo tudo claro. Tudo, ferramenteiro, tudo claro. Eu tenho essa vantagem de ver e principalmente à noite, quando vou deitar, aí me sai tudo. Eu vejo. Então, eu vejo o que dá certo. E do painel eu digo: “Poxa, está dando certo, eu vi tanta gente olhando o painel, só que o painel...” Aí, comecei a “miniaturar”, me deu a ideia, mas, para eu levar à frente, tive que fazer desenho, uma coisa e outra, tem um monte de desenho sobre o painel, para poder falar.
P – Mas descreve pra gente, Romero, por favor, como é o painel.
R – Então, aí eu fiz e tinha certeza que ia fazer, mas eu precisava de uma emissora de televisão ou de rádio para fazer o painel. Então, eu fui procurar. E, quando fui procurar, fui já, fui numa emissora de rádio, que é a tal Rádio Bandeirantes, que naquela época era Rede Bandeirantes, na Rua Paula Souza, de São Paulo, não sei se ouviu falar. Rua Paula Souza? Bom, cheguei lá com as minhas ideias e meus desenhos. “Os senhores estão interessados por isso?” “O que é isso?” “Isso aí é um painel, invenção minha, que tirei patente, tudo, para poder acompanhar jogo de futebol.” “O quê?! Isso acompanha?” “É, isso acompanha, é um painel, cheio de lâmpadas, enquanto vai falando, vai acompanhando.” “Poxa, estou interessado. Está bom. Do que o senhor precisa?” “Bom, eu preciso, para fazer o painel, que o senhor tem dinheiro para comprar o material.” “Muito bem.” Aí começou. “Então, nós vamos, estamos interessados. Nós vamos pôr o dinheiro, para você comprar o material, e você vai saber o que vai fazer. Nós que vamos pôr o dinheiro para você construir esse painel que você está falando. Muito bem, nós vamos pôr dinheiro e você vai pôr a ideia e a mão de obra.” “Está muito bem, então eu ponho a ideia e a mão-de-obra, muito bem.” “Lá está a caixa da firma, você vai lá e pega dinheiro para comprar material.” Eu mesmo queria comprar material para poder construir o painel. Agora, para poder construir o painel, eu deixei de trabalhar na minha firma para poder construir o painel. Então, eu falei no começo, falei para ele: “O senhor está interessado? Então, vamos fazer um documento para o bem de nós dois.” Ele e eu, naquela época era Rádio Bandeirantes, na Rua Paula Souza. Era, então, na época, João Saad, dono da Rádio Bandeirantes. E o diretor comercial, com quem eu combinava, Murilo Leite, não sei se ouviu falar. Murilo Leite. E outro, o Luciano do Valle, que transmite os jogos da Bandeirantes. Luciano do Valle. Bom, esses três. Daí, falaram: “Vamos fazer um documento.” “Ah, não, não precisa fazer documento, você está em boas mãos, nós saberemos cumprir com a nossa palavra, só o que interessa é que o painel fique funcionando bem, funcionando, e aí você vai ficar rico e famoso. Que nós saberemos pôr você. Mas tem que funcionar bem. Rico e famoso.” “Vamos fazer o documento.” “Não, você está em boas mãos.” Daí, está bom, fui pegar o dinheiro, fui comprar material para construir o painel. Quando construí, já o painel pronto. “E daí? Vai começar o jogo, primeiro jogo.” Em maio de 1962, 1962, o primeiro jogo entre a Seleção Brasileira e a Seleção do Chile. Campeonato Mundial entre o Brasil e o Chile. Muito bem. Quando estava na Praça da Sé, montado lá, pelo desenho, você vê quanta gente, mais de 100 mil pessoas assistindo e ouvindo. E me falaram: “Nós vamos te pagar o teu valor quando nós voltarmos do Chile.” Porque eles foram ao Chile para assistir esse jogo, entre Brasil e Chile. Bom, quando voltaram do Chile, daí eu fui no escritório para receber as promessas. Quando eu cheguei lá, bati na porta. “Pode entrar.” Aí entrei. Estavam todos lá, dando risada, mostrando fotografias. “O que você veio fazer aqui?” “Ah, eu vim receber as promessas que os senhores me prometeram.” “As promessas? Mas acontece que as promessas o vento levou, e você não tem documento nenhum que prove que isso é teu.” “É, mas eu falei para o senhor, não falei? De fazer um documento?” “Sim, mas acontece que não foi feito e aqui não tem mais nada para fazer. Por aquela porta você vai para a rua. Você não tem mais nada aqui, acabou o jogo e acabou.” “Mas como os senhores vão fazer esse mal pra mim?” “É, então fora! Você não tem mais nada aqui.” Aí que eu fiquei sabendo que eu já estava engolido por eles. “Mas o senhor não pode fazer isso.” Fiquei muito triste, chorando, fui para casa. Aí então eu pus, me falaram em casa para pôr na justiça. Contratei um advogado, esse advogado é que pus para poder me ajudar a fazer a causa. Mas acontece que, depois que eles me roubaram, eles ficaram ricos e famosos, fazendo mal, que tinha um jornal da Gazeta que, como eles passaram por cima de todas as emissoras de televisão do Brasil, prejudicando todas as emissoras no negócio. E os negócios eram tudo para a Bandeirantes, né?
P – Romero, mas o senhor não explicou pra gente até agora como é esse painel que o senhor inventou? A gente não conhece, a gente está querendo saber como é. Descreve pra gente o que é esse painel.
R – Bom, esse painel, só que mostrando pelos desenhos, então, esse painel que construí, todas as peças do painel são feitas por mim. Não tem na loja, então, tive que fazer esse painel tudo na minha ideia e construí para montar o painel. Depois de pronto, eu falei: “Bom, o painel já está pronto, o que você precisa?” “Precisa de uma firma para poder montar, tirar lá, que estava montado o painel lá no transmissor da Bandeirantes, na via Anchieta, para levar de lá, para montar na Praça da Sé. Sob o meu comando, vai.” “Muito bem.” Aí contratou uma firma para levar o painel, de lá até a Praça da Sé. E, ao terminar o jogo, para levar de novo no lugar.
P – Entendi. Mas, Romero...
R – Então, me falaram: “Nós vamos assistir o jogo lá e você vai vir para receber o dinheiro.” Mas nada disso, me roubaram, pus na justiça, mas a justiça, como eu tenho uma sentença do juiz de Direito da Justiça, a sentença a meu favor. É um livro, que só lendo, sabendo toda a história que aconteceu contra. Eu contra a Bandeirantes. Essa sentença está comigo e está aí, para poder saber o que aconteceu entre a Rádio Bandeirantes e eu. Assim que eu fiquei sem o painel, depois de tanto trabalho que me deu, uma coisa e outra, o povo também não tem mais painel, quando seria o único no mundo, quando podia ter muitos aparelhos desse, painéis em todo o Brasil, mas acabou.
P – Acabou.
R – A Bandeirantes ficou dona de tudo, tudo. Assim, não teve mais painéis, porque ela comanda, a Bandeirantes. Até hoje ela está ganhando muito dinheiro às custas do painel.
P – Então, Romero, o painel era o quê? Ele era como se fosse um campo de futebol? Explica para a gente o que é o painel, por favor? Ele reproduzia um campo?
R – Feito de madeira, certo? Do jeito que eu tive que fazer, seria uma painel para acompanhar jogo de futebol, mas que ele podia se desmontar para mudar, transportar de um lugar para outro.
P – Entendi. Mas, quando ele estava montado, como é que ele era? Ele era feito de madeira e que mais?
R – Madeira, com mais de 500 lâmpadas, cada duas lâmpadas em cada janelinha, tudo assim de janelinha, como está na fotografia. E a mesa de controle, que também está ali a mesa de controle. Que a mesa de controle é o seguinte: essa mesa é para que uma pessoa, como era conhecido de futebol, escutar a “radiação” onde for jogado, no Japão, onde for, ele está com fone no ouvido, escutando a “radiação” e acompanhando. Conforme está “radiando” lá, ele está acompanhando o jogo direitinho.
P – E a lâmpada acende onde está a bola? Como é que é?
R – Aí acende. Aqui é a mesa de controle, é com imã. Esse imã, aqui embaixo, estão todos os pontos. Vamos dizer, interruptor. Mas é feito tudo por mim. Com botão, não serve, com interruptor assim, também não serve. Tem que ser pelo jeito que eu fiz. Tudo feito com as minhas mãos. Cada pino é feito individual. Então, aqui embaixo, estão os pinos. E, aqui em cima, fórmica desenhando o campo. E esse campo é igualzinho, igualzinho do painel.
P – Entendi.
R – Escanteio, escanteio, a trave, bola, tudo. Igual esse desenho que lá. Ele que, acompanhando o jogo, esse passa para esse, esse passa para outro, lá, lá, lá... Goool!
P – E a luzinha vai acendendo?
R – Acende e apaga. Se for branca, a branca é o time do Brasil. E a vermelha é do estrangeiro. Aí, então, vai fazendo a jogada por intermédio da mesa de controle, para transmitir no painel.
P – Ah, interessante.
R – Então, ele vai correndo. Porque teve uma vez, na justiça, teve uma audiência. Nessa audiência, teve testemunha e um dos testemunhas, que eu tinha minhas testemunhas, tudo a meu favor, e tinha uma testemunha a favor da Bandeirantes. Era um eletricista, que era pago pela Bandeirantes, essa testemunha. Na hora que estávamos naquela reunião, juiz, meu advogado, Bandeirantes, então, o juiz perguntou para a testemunha dele: “O senhor, o que faz na Bandeirantes?” “Eu sou eletricista.” “Ah, eletricista. Faz tempo que trabalha lá?” “É, faz um ano.” “Ah, mas faz cinco anos que o painel já está, acabou até com o painel e agora...” Ele acabou. “Bom, está certo. O que o senhor veio fazer aqui?” “É que, conforme o eletricista, eu vi que no painel tinha um fio.” “Um fio para quê?” “Para acender a lâmpada.” “Um fio?” “Eu pus outro fio.” “Tinha um fio, e o senhor pôs outro fio, como eletricista?” “É!” “Pois eu só sei que uma lâmpada precisa de dois fios, né? E o senhor só viu um?” “É, só um.” “E o senhor pôs outro?” “É”. Esse meu advogado: “Doutor, você vai engolir essa mentira? Como? Está falando uma grande mentira! Não é, ele não pôs fio nenhum, é assim mesmo, é um fio só!” “Mas como? Eu quero que o senhor avise o juiz de que vamos escutar uma mentira de um falso testemunho? O senhor aceita isso?” “Ah, não, vamos falar.” Aí, falou: “Doutor, está, conforme aqui, o autor do painel, que ele é falso, que ele não pôs fio nenhum.” “Não pôs fio nenhum? Senhor, pôs ou não pôs?” “Pus.” “Mentira!”, falei bem alto. “É mentira, ele está falando mentira!” “Está bom, vem aqui, fala para mim” – o juiz. Aí, então, eu levantei da mesa e fui lá onde estava o juiz. “É, como é? É um ou dois fios?” “Por favor, seu juiz, é um fio que ele viu, mas ele não sabe do segundo fio. Se precisa dois fios, eu vou dizer como que é a minha invenção, é isso. Ninguém está sabendo que é a minha ideia.” “Como é, então?” “Um fio, doutor, um fio corre por todo o painel. Um fio negativo. E o positivo, doutor, está aqui na minha mão, está na mão.” “Está na mão? Como? É o segundo fio!” “Que ele não viu, mas está na mão do que controla na mesa de controle, o segundo fio fica na mão dele.” “O segundo fio na mão dele?” “É, doutor!” “Como?” Eu disse: “Doutor, ele falou um fio, pôs dois fios, é mentira, porque esse fio aqui está na mão do controlador da mesa de controle.” “E como que é?” “É um interruptor, de três fases. O segundo fio, doutor, está preso aqui nesse interruptor. Agora, o senhor vê, eu quero o Brasil avançar, tira a bola, passou para o vermelho, o estrangeiro, pum. Brasil, estrangeiro. Mas esse fio está aqui, doutor. Não está lá no quadro não, está aqui o segundo fio, por isso que ele pôs o outro fio onde? Se não funciona, esse segundo fio está aqui. Na mão do controlador.” “Poxa, e o senhor veio fazer essa mentira? Pôs ou não pôs?” “Não, doutor, não pus.” “E o senhor veio falar essa mentira aqui? O senhor sabe que vai preso? Por ser um testemunho falso? O senhor vai preso!” Aí falei: “Doutor, não. A culpa não é dele. A culpa é do ladrão. O ladrão que pagou ele para fazer essa testemunha falsa.” Eu salvei ele para não ir preso. “Não, porque a culpa é do ladrão.”
P – E depois ficou como isso? Como é que ficou essa pendência?
R – A sentença acabou, me deu a sentença a meu favor. É uma história para contar, então, é história. Tem mais de dez folhas explicando desde o começo até o fim, sobre a sentença que ele me fez.
P – Romero...
R – E isso aí, por isso que eu digo, esse painel que me custou muito de pensar para que desse certo, que não dormia quase de noite, para ficar bem certo tudo, e deu certo. O único no mundo! Tudo feito por minhas mãos, tudo! E, de última hora, me roubaram. Por isso que eu quero que essa revista ou por aqui, ou por um outro lugar, para pôr os cachorros na frente disso aí. Para pôr ele numa grande... Para não existir mais essa emissora. Para mim, que acabasse com essa emissora. Porque não presta, porque prejudicou todas as emissoras para ele ficar rico, prejudicando todas. Tenho isso aí, está na história, tudo isso está na história. Se o senhor quer ler, depois, devagarzinho, tem um monte assim.
P – Combinado, Romero. Eu queria combinar com você o seguinte: agora que nós chegamos nessa parte da sua vida, a gente já gravou aqui mais de duas horas de entrevista e nós ainda estamos em 1962. Então, o senhor contou essa história que o senhor estava com bastante ansiedade para contar e precisa ser contado mesmo, a gente agradece você contar. Eu proponho de a gente interromper por hoje e aí, agora com a Isabela, você agenda uma outra data para a gente poder continuar a ouvir a sua história de vida de 1962, após o episódio do painel, até os dias de hoje. Porque aí o senhor vai contar como foi a criação dos seus filhos, depois tem o episódio do seu acidente na fábrica e, enfim, contar a outra metade da sua vida.
R – Está bom.
P – A gente ouviu a primeira metade. Vamos fazer assim?
R – Ah, sim! Por isso que eu digo, estou livre. Estou livre! Assim que precisar, para qualquer coisa, dessa história, da outra, eu posso explicar como estou explicando de tudo sobre isso daí.
P – Combinado.
R – Tem mais coisas.
P – Está bom, então, olha só, Romero...
R – Mas sabe que, às vezes, na hora não aparece aí, mas estou aqui!
P – Está bom.
R – Aí, me faz a pergunta daquilo que ainda não está aqui.
P – Isso. No próximo encontro nosso, Romero, nós vamos continuar a partir de 1962. E aí a gente vê a outra parte da sua vida, está bom?
R – Está bom. Agora digo eu, vai demorar para fazer a segunda entrevista?
P – A Isabela vai olhar nossa agenda ali, na primeira oportunidade, você vem, e eu continuo a entrevista com o senhor. Está bom? Por enquanto, já adianto que foi e está sendo um prazer para a gente ouvir a sua história, a gente agradece muito a sua disposição e te dá parabéns pela vida rica que você tem.
R – Eu gostaria de saber também desde já se a minha entrevista foi boa ou foi ruim.
P – Foi fantástica, está sendo fantástica. Uma vida muito rica.
R – Hã?
P – Cheia de episódios, muita coisa interessante de ouvir.
R – Verdadeira, é uma história verdadeira.
P – Sim, sim.
R – E justa. De tudo que aconteceu comigo, porque eu sou eu contra ele. Eu não quero me defender pelo advogado, aqui vai me ajudar.
P – Nós acreditamos.
R – Sim, agradeço muito, porque, olha, que eu fui enfiado numa casa, eu estava precisando mesmo. Agradeço muito, por bem que estão me tratando e por ser uma casa de histórias. E essas histórias estão aqui, quando quiser mais história, tem mais outras histórias.
P – Isso é o que vamos ouvir no próximo encontro. Por enquanto, a sua história já está registrada, preservada, e a gente está aqui para isso mesmo.
R – Tá.
P – Para ouvir histórias.
R - Está bom.
P – Está bom? Foi um prazer.
R – Olha que tenho boas histórias, hein?
P – Sabemos disso, estamos percebendo.
R – Olha, que tem boas histórias. Não me deixe para lá.
P – Nós vamos marcar agora. Está bom? Muito obrigado!
R – Tem muita assim que eu digo...
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