Projeto Memória dos Brasileiros Maués
Depoimento de Silvio Proença da Silva
Entrevistada por André Machado
Maués, 25/01/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista MBMaués_HV_016
Transcrito por Fabio Cutolo Silveira
Revisado por Viviane Aguiar
Publicado em 18/02/2008
P1 – Para começar, eu gostaria que você nos dissesse seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R – Certo. O meu nome completo é Silvio Proença da Silva, eu nasci em 1960 na cidade de Esteio, na Grande Porto Alegre, Rio Grande do Sul.
P1 – A data de nascimento?
R – É 20 de janeiro de 1960. Isto, janeiro, 20 de janeiro.
P1 – E qual a origem dos seus pais?
R – A origem dos meus pais é portuguesa. Minha mãe era filha de português, o meu pai também, filho de português. Aquela coisa, a colonização de Porto Alegre, todo mundo sabe, os açorianos, aquela coisa toda. Então, eu trago um pouco desse sangue português.
P1 – E qual o nome deles?
R – O nome da minha mãe é Maria Antônia Proença. O nome do meu pai, Olivério Rodrigues da Silva. Então, o “da Silva” dele e o “Proença” por parte da mãe.
P1 – E o que eles faziam?
R – O meu pai era tipógrafo, era porque já faleceu. Minha mãe, dona de casa, doméstica. E teve um tempo também que trabalhou, que depois eles se separaram. E ela trabalhou numa indústria têxtil, numa grande indústria têxtil, lá da região onde nós morávamos.
P1 – E quantos irmãos você teve?
R – Eu tenho uma irmã por parte de mãe. Logo depois que eles se separaram, meu pai arrumou uma outra companheira e é “onde” eu tenho mais um casal de irmãos. Uma irmã e um irmão. Então, no total, nós somos quatro, eu e mais três. Uma irmã por parte de mãe, e um casal por parte de pai.
P1 – E que profissões eles seguiram?
R – O meu pai? Não, os irmãos?
P1 – Não. Os irmãos.
R – Isto. Eu tenho uma irmã que é formada em História, Geografia. Tenho uma irmã que é advogada, hoje com escritório lá na banca de advogados, na cidade de Esteio. A outra irmã também. A primeira mora em São Leopoldo, também tudo no Vale dos Sinos. E o meu outro irmão é barbeiro há 20, 30 anos. Inclusive, faz uma barba, corta um cabelo, fantástico. Tem pessoas que viajam de longe para lá cortar a barba e fazer o cabelo com ele.
P1 – Também no Rio Grande?
R – Também no Rio Grande. E, diga-se de passagem, está melhor que todo mundo. Financeiramente.
P1 – E como era a cidade da sua infância?
R – A cidade da minha infância é uma coisa interessante. Eu nasci em Esteio, na Grande Porto Alegre, fui criado em Sapucaia, ao lado, e estudei em São Leopoldo, no primeiro, no segundo grau, e depois em Porto Alegre, na faculdade. Então, o que acontece? Aqui no Norte é muito difícil, não é que seja difícil, de explicar essa coisa de região metropolitana. É tudo junto. Hoje tem linha do metrô, tu pega o metrô em Porto Alegre, tu desce em Esteio, tu desce em Sapucaia, São Leopoldo, que é onde está a Unisinos [Universidade do Vale do Rio dos Sinos]. Então, é a minha cidade, eu nasci em Esteio e vivi em Sapucaia. Minha infância toda está em Sapucaia. Minha família, a minha avó, uma pessoa superconhecida. Ela era espírita, ela dava, receitava chazinho, aquelas coisas todas. Meus tios, políticos. Meu tio foi prefeito três vezes na minha cidade. Foi vereador. Emancipou a cidade. Foi vereador, depois foi vice-prefeito, depois prefeito por duas vezes. Três vezes, porque o prefeito morreu, ele assumiu. E estudei em São Leopoldo, uma cidade já com a imigração alemã, uma cidade sesquicentenária na época, 150 anos. Hoje já está com 170, 180. Estudei num colégio chamado Sinodal, lá no Morro do Espelho. Um colégio protestante, no caso. E foi muito boa minha infância ali. Eu consegui pegar algumas coisas que hoje já não tem mais. Por exemplo, uma antiga estação de trem. A cidade foi dividida ao meio pela linha do metrô. Esse prefeito, que casualmente foi meu tio, ele tinha uma visão progressista, uma visão desenvolvimentista do município. E se descuidou dessa coisa. Porque a linha do metrô foi boa, claro, mas dividiu a cidade. Então, eu ainda me lembro daquela cidade, onde é que os trens iam passar, dividiam, atravessavam os trilhos. Para ir para um lado para o outro. Mas o progresso é isso mesmo. Hoje, o metrô é fundamental.
P1 – E como era a casa em Sapucaia?
R – A casa em Sapucaia, como a maioria das casas na época, era um chalé misto. Era um chalé de madeira e com as partes molhadas, de alvenaria, no caso, o banheiro e a cozinha. E uma coisa interessante: hoje, se for a Sapucaia, se for a Esteio, São Leopoldo já é um pouco mais, tem até um horto florestal que separa. Mas em relação mais a Sapucaia e Esteio, que praticamente é uma rua só que divide. A gente sente aquela diferença. Hoje, as casas são todas casas boas, casas de alvenaria, casas muito boas, muito bonitas. Nós vendemos já a nossa. Hoje temos uma casa muito bonita lá. Que alguém que comprou, construiu. Devido ao quê? Devido aos polos industriais. Quer dizer, o Polo do Triunfo, o Polo Petroquímico. A própria minha cidade, Sapucaia e Esteio eram, eram não, são cidades tipicamente de fábricas, de indústrias. E lá está o Grupo Gerdau, está o Grupo Votorantim, os lanifícios. As grandes indústrias do Sul estão localizadas ali, em Sapucaia e Esteio. Então, com isso que as pessoas tinham um poder aquisitivo maior e foram modificando as suas casas. E, hoje eu, quando eu vou lá, de três em três anos ou de dois em dois anos, eu olho assim: “Minha Nossa Senhora, aqui era um chalezinho, hoje está...” “Ah, não. Fulano se formou, trabalhou no polo aquela coisa toda.” Então, houve um progresso. Coisa que a gente observou em Manaus, naqueles bairros, próximo de distrito como Betânia, aquela região ali. Foram pessoas que trabalhavam no distrito que amplamente depois iam arrumando e modificando suas casas. Então, hoje, eu me lembro muito. A minha cidade tem uma coisa muito interessante – que eu nunca me esqueço – que é o morro, é o Morro de Sapucaia, uma elevação. Então, eu fui escoteiro e aquela coisa toda, quando era pequeno, saía pra acampar, aquela coisa. O morro até hoje está lá, meio povoadozinho lá embaixo e tal, mas ele ainda está lá.
P1 – E, quando o senhor era criança, do que gostava de brincar?
R – E o fato de eu ser filho único, em casa da minha mãe, eu tinha uma irmã. Então, até os seis, sete anos eram aquelas brincadeiras, praticamente, onde brincavam o irmão, a irmã, os primos, aquela coisa. Mas depois tem um campinho na frente de casa, tinha um campinho de futebol. É lógico, hoje eu sou meio gordo, meio gordinho, mas na época também já era meio gordinho. Eu sempre gostei muito de jogar bola. Então, tinha esse campinho na época. Eu nasci em 60, quando eu tinha sete, oito anos, o campeão lá era o Internacional. Peguei aquela época do pentacampeão gaúcho, tricampeão brasileiro, aquela coisa toda. Então, basicamente era o futebol. Agora, a minha mãe sempre teve um cuidado, já que a gente foi criado mais pela mãe, pela minha avó, de não descuidar esse lado da leitura. Então, sempre que ela viajava, ela comprava alguns livros para criança, aquela forma, aquela coisa bem didática. Outra coisa, como o inverno lá era rigoroso, a gente passava, praticamente, um terço do ano, praticamente em casa, dentro de casa, porque era muito frio. Então, tinha que armar as brincadeiras mais de casa e mais lendo. Também estudei num colégio de freira, onde se exigia muito da leitura. Enfim, era essa coisa, era uma vida de uma criança normal. Mas, sem dúvida nenhuma, o futebol foi o que mais marcou, esse campinho, eu nunca me esqueço. Da mãe chamar no final de tarde para tomar banho, aquela coisa toda. O campinho, um queria ser Gainete, outro queria ser Falcão, outro queria ser Claudiomiro, Paulo César Carpegiani. Era aquela coisa na época. Então, hoje, me lembro muito disso.
P1 – E você acompanhava, tinha um time?
R – Eu me lembro, eu acompanhava. Como meus pais eram separados, eu tinha um tio que eu adoro muito, adorava, porque já faleceu também, tio Gilberto. E eu me lembro que ele me levou a primeira vez no Estádio dos Eucaliptos. E o ingresso era uma saca de tijolo. Então, nós pegamos aquele monte de tijolos, que era para construir o Beira-Rio. E aquilo me marcou muito, no Estádio dos Eucaliptos, aquele jogo, Internacional Futebol Clube e tal. E o Grêmio já existia, então já estava lá com o Olímpico, aquela coisa toda. E de fato o Inter também era um time do “povão”, onde a massa jogava. E eu nunca me esqueço desse jogo que a gente foi nos Eucaliptos assistir e depois ele me levou na inauguração do Beira-Rio, aquele estádio bonito. E que hoje é o orgulho de nós todos gaúchos, principalmente os colorados. Mesmo estando distante. Porque parece que, quando a gente sai de casa, não sei se eu vou colocar uma coisa mais na frente, mas, por exemplo, nós, a colônia gaúcha, os gaúchos que estão fora, quando a gente se reúne, a gente fica lembrando lá do Sul, fica falando. Até de fundar um CTG [Centro de Tradições Gaúchas], uma confraria, alguma coisa assim. Que a gente sente aquela vontade. Eu acho não só o gaúcho, o cearense, o paulista, aquela coisa toda. Mas eu me lembro muito, o que marcou foi essa ida ao Beira-Rio. Aos Eucaliptos e depois ao estádio já pronto. Beira-Rio.
P1 – Você já mora há algum tempo em Maués e você conservou esses hábitos gaúchos. Você faz questão de alguns hábitos manter?
R – Sim, eu faço questão de manter alguns hábitos. Tem uns que não dá para se manter até porque, por exemplo, o chimarrão. O chimarrão, a dificuldade na erva. Hoje, como a colônia gaúcha está aumentando, já está chegando mais gaúcho. E gaúcho que eu falo é generalizando o Sul do Brasil, já tem catarinense, paranaense que também têm o hábito do chimarrão. Então, a erva a gente compra de Manaus, devido à colônia ser muito grande também. A gente já tem essa facilidade de conseguir uma erva boa e tal, para tomar o chimarrão. E outros hábitos que eu tento manter são mais na parte da culinária. Por exemplo, a gente faz lá em casa um arroz de carreteiro, aquela coisa que lembra muito. Usa os temperos de lá. E o resto, não sei, dizem até que o sotaque eu perdi, e um pouco a gente vai. Tem muitas coisas que não dá para se fazer, mas o chimarrão sim, se mantém sempre, todo fim de semana a gente se reúne para tomar. Porque o chimarrão é interessante, é que nem uma caipirinha, não dá para a gente tomar sozinho. Então, tu tem que reunir assim aquela roda e vai passando bomba. Aí eu converso, conto um causo, um conta uma mentira, outro conta uma maior ainda. Então, fica naquela. É difícil tomar um chimarrão solitário. Ninguém faz uma caipirinha e fica tomando sozinho. Às vezes, tem que ter aquela coisa toda. Mas a gente tenta manter alguns hábitos, sim.
P1 – Você estudou até que ano?
R – Bom, eu tenho o terceiro grau incompleto. Eu fiz o primário na minha cidade, em Sapucaia, no colégio das freiras, a escola particular Nossa Senhora de Fátima. Depois eu fui fazer o Sinodal, que é em São Leopoldo, um colégio da Igreja Luterana. Aí depois eu fiz, tentei vários vestibulares na área de Arquitetura, que eu já trabalhava, que no caso é minha profissão mesmo. Eu trabalhei 20 e poucos anos, 22 anos como desenhista técnico em Arquitetura. Foi por isso que eu vim para Manaus, eu vim na época para trabalhar numa construtora, uma grande construtora. O orgulho da Engenharia nacional na época, a Construtora Andrade Gutierrez. Nessas grandes obras, existiam grandes construtoras e o Amazonas, a Região Norte ainda era um potencial, um lugar onde as oportunidades de emprego eram bem maiores. Então, eu vim, e lá eu fiz um curso de Letras, na Faculdades Integradas, em Porto Alegre. Mas também abandonei no segundo semestre e já, já vim para cá. Essa vontade de vir para o Norte, essa coisa assim que não sei. Eu nasci em 20 de janeiro, dia de São Sebastião. Então, não sei se essa coisa tem a ver, floresta e tal, aquela coisa toda. E eu nunca me esqueço, eu lia, eu tinha 12, 13, 14 anos, eu lia muito a respeito da Amazônia, e aquela coisa me chamava assim: “Puxa vida, olha, estão construindo a Transamazônica, estão construindo a Perimetral Norte, estão fazendo isso, fazendo aquilo lá, a instalação da Zona Franca, aquela coisa toda.” E isso, o Sudeste, aquela região sempre foi aquela. A gente se formava, por exemplo, e ia brigar por aquele mercado de trabalho. E aqui tinham essas oportunidades. Mas, junto disso, na minha família, eu sempre fui meio poeta, entendeu? Assim meio diferente das coisas. Até logo que eu vim pra Amazônia, em 79. Eu fiz 18 anos, sou de 60. Aí, logo consegui os documentos necessários, o juramento da bandeira, o certificado de dispensa de corporação, aquela coisa toda. E já vim para cá. Para trabalhar na Construtora Andrade Gutierrez, na época eu fazia projeto de instalação de canteiro da usina chamada Balbina, era uma usina que estava sendo construída em Manaus, próxima de Manaus. Mas, lá no sul, lá embaixo, quando alguém perguntava para minha mãe: “Pô, cadê o Silvio?” O meu sobrinho: “Cadê o tio Silvio?” “Ah, o tio Silvio é um maluco, é um poeta, está lá pra Amazônia.” Quer dizer, na época, só tinha um voo por semana, hoje tu tem dois, três voos. Naquela época, eu nunca me esqueço que uma malária, um sintoma de malária ou malária, era uma junta médica para analisar, porque “ah, o fulano é caminhoneiro, sulista no caso, gaúcho ou catarinense, veio para Manaus, veio para Rondônia”. Também estava expandindo a Região Norte. “E pegou malária, foi picado pelo mosquito e tal.” Então, era uma coisa. Hoje não, hoje são coisas praticamente normais. Mas eu abandonei o colégio no terceiro grau incompleto no caso, e vim para cá com essa ânsia de vir para a Amazônia, não sei de onde que tinha isso.
P1 – E na juventude, o que você fazia?
R – A minha juventude, ela foi marcada. Eu vivi um pouco dela lá e um pouco aqui. Mas eu me lembro mais lá. Porque aqui eu tive que trabalhar dentro do mato, numa construtora, num regime mais, mais, uma correria. Mas lá o que eu me lembro muito é porque a gente fez o movimento estudantil na minha cidade. Então, eu fui presidente da União Municipal de Estudantes da minha cidade.
P1 – Isso aí, mais ou menos que época?
R – Isso foi dos meus 14 aos 18, praticamente, 14, 15, 16, 17 e 18. Naquela fase, terminando o ginásio, entrando no segundo grau e fazendo o movimento. E quando eu tive a oportunidade de conhecer todo o Estado do Rio Grande do Sul. Lá, nós temos uma, naquela época, era mais atuante, a União Gaúcha de Estudantes Secundaristas, a Uges. Inclusive dali que saiu Pedro Sino, Paulo Bossa, Nelson Marchezan, essas grandes lideranças que tu vê hoje da política nacional saíram dali desse movimento, da Uges. Nunca me esqueço o endereço: Avenida Ipiranga, 310, bairro Menino Deus. Então, como nós morávamos na Grande Porto Alegre, que era pertinho de Porto Alegre, 18, 19, 20 quilômetros até o Monumento do Laçador. A gente praticamente vivia aquela vida intensa entre Porto Alegre, Sapucaia, Esteio, aquela coisa toda. Mas o movimento estudantil foi o que mais me marcou na juventude. Isso foi fantástico, esse conhecimento. Primeiro, conheci meu Estado, que foi fundamental. Então, lógico, tem alguns lugares que eu não conheço, Frederico Westphalen, por exemplo, fica lá na ponta, eu não conheço. Mas as cidades principais, as fronteiras, o litoral, a gente conhece tudo devido a essa participação no movimento estudantil. Que é uma coisa que eu me lembro bem.
P1 – Você disse que a primeira vez que você veio para a Amazônia foi a trabalho.
R – Foi a trabalho.
P1 – E você já tinha quantos anos?
R – Eu tinha 18 para 19. Foi quando eu terminei aquela coisa para tu tirar o alistamento, tem que ter 18 anos para tu jurar a bandeira, aquela coisa toda. E toda aquela documentação básica, que foi quando eu vim para cá. Eu, por mim, já teria vindo até antes, ao invés daquela coisa. Primeiro, que eu sempre fui grande, gordo, já aparentava ter mais idade do que eu tinha. Eu tinha 14 anos, as crianças: “Ah, já tem 18, tem 20.” Devia ser grandão, mas ali eu esperei. Outro negócio também, como eu falei: era eu, minha mãe e minha irmã. E já tinha terminado primeiro grau, segundo grau, estava fazendo o terceiro, foi quando entrou. Resolvi largar tudo e vir para cá. Nessa época, então, nessa fase.
P1 – Mas isso com a Andrade Gutierrez?
R – Aí eu vim, foi meu primeiro emprego aqui no Norte foi a Construtora Andrade Gutierrez. Lá eu trabalhava na Prefeitura. O meu tio como era prefeito, então tinha essa experiência de desenho na parte do local da prefeitura.
P1 – Mas, quando você veio com a Andrade Gutierrez, era para você se fixar aqui ou era para fazer um trabalho pontual e depois voltar para o Rio Grande?
R – Não. Era para se fixar aqui. Inclusive, uma das coisas interessantes até, a pergunta foi muito sugestiva porque é uma coisa que eu não entendia na época. A construtora, ela tem hoje, não sei se ainda aumentou, o maior (kilover?) do Brasil, das construtoras no Brasil. Então, a média de funcionário, de tempo de empresa é cinco anos, seis anos. Isso aí é um tempo altíssimo. Só no Japão se consegue isso, empresas com dez anos de funcionário, a média numa Honda, não sei onde, numa empresa dessas daí. Então a construtora tinha isso. Quando a gente entrava na construtora, ela tinha todo um aparato, toda uma ajuda social. Inclusive, tinha um setor chamado SAP, Serviço de Assistência ao Pessoal da Obra, SAP, não é sapo. Dificilmente, tu entrava na construtora e tu saía, ela investia em ti. Ainda mais uma pessoa nova, um menino de 18, 19 anos nessa área técnica de desenhista, de projetista, eles investiam muito. Tanto é que, quando não tinha obra, por exemplo, terminou obra tal, eles deixavam a gente em casa esperando aparecer uma outra obra. Na época, a Andrade Gutierrez, a Mendes Júnior, a Camargo Corrêa essas grandes construtoras, Companhia Brasileira de Projetos e Obras (CBPO), os clientes todos, a maioria dos clientes era o governo, era a União. Porque eram obras grandes, inclusive hoje o know-how brasileiro em obras grandes, como usina hidrelétrica e estradas, é o Brasil. O Brasil tem esse know-how. E é assim, tanto que, se constrói lá fora, se constrói no Iraque, se constrói na África, se constrói. Então, aquilo, para mim, que estava saindo de uma escola técnica também, que eu tinha feito algumas escolas, alguns desenhos, alguns cursos, como a END, Escola Nacional do Desenho, como ITD, Instituto Técnico do Desenho. Então, para mim, era fundamental trabalhar ali. Eu queria era vir para cá. E a construtora tinha isso, não era trabalhar um ano e ir embora, pelo contrário, ela fazia com que tu ficasse, trabalhando, trabalhando. Inclusive, quando eu saí, não sei se vale a pena comentar também. Quando eu saí, foi uma dificuldade até porque a mão de obra nessa época não existia em Manaus. Hoje não, hoje tem várias empresas aí contratando por distrito, tu chega lá, tua vaga é disputada. Mas há 20 anos, Manaus estava ainda começando. Então, foi difícil até eu conseguir um substituto. Mas, como a construtora, ela tinha até um slogan que eu achava interessante é: “humanismo e tecnologia, tecnologia e humanismo”. Ela sempre olhou esse lado do funcionário por isso que o (kilover?) dela era alto. Então, eu fiz uma proposta, quer dizer, ela me fez uma proposta: eu ficaria na empresa até ela arrumar alguém para ficar no lugar. Então, olha só, não é aquela coisa assim: “Não, eu quero ir embora. Tchau!” Ou ela vai te dispensando, não, não. Houve isso, eu nunca me esqueço disso, me chamaram: “Olha, Silvio, assim...” E eu fiquei até arrumar alguém para ficar no lugar. Aí o que acontece? Tinha aquela, por exemplo, quando tu é transferido do Sul para cá ou tu trabalha no Norte e vai para o Sul, tu tem adicional de transferência, tu tem um monte de coisa que vai agregando no teu salário. E isso faz com que o teu salário fique um salário bom, razoável na época. E eu nunca me esqueço, é uma coisa interessante. Quando eu arrumei um rapaz, um desenhista, ele trabalhava numa empresa, numa grande empresa do distrito, e ele foi ficar no meu lugar. Eu disse: “Puxa vida, eu estou agoniado, eu estou querendo ir para o Sul.” Aquela saudade do Vento Haragano, daquela coisa toda, que depois a gente vai ver que não tem nada a ver. Aí ele veio, e disse para mim: “Silvio...” Ele já tinha um conhecimento na parte de desenhista em Arquitetura. Porque na realidade, na construtora, ou numa grande empresa, tanto faz na Camargo como na Mendes, no meu caso na Andrade, tu tem que ser versátil. Então, por exemplo, tu é desenhista projetista em Arquitetura, é. Mas tu tem que entender de topografia, de fazer um desenho de estrada, já que ia construir estrada. Por exemplo, quebra uma peça de um trator, de um D-8, ou de um D-6, uma máquina grande. O desenhista também tem que ser versátil para desenhar aquela peça, tem que ter um conhecimento em mecânica. E o torneiro lá na ponta mesmo, no torno, o cara também tem que ser versátil para fazer aquela peça. Porque isso, na importação, se tu vires uma máquina Caterpillar, aí não sei, tem que vir de onde. Então, tudo isso era uma... A construtora queria alguém com esse perfil. Perfil que ela fez eu ficar, até por isso que eu digo: “Ela gostou, eu gosto quando tu pega alguém que ela vai dizer é isso, isso, isso.” Eu podia chegar lá e dizer: “Não, eu tenho tantos anos de experiência nisso.” Porque eu já viria com vício de outros lugares. E também esse rapaz, esse desenhista, ele estava no jeito para ficar no meu lugar. E ele disse uma coisa que até hoje não me esqueço, ele disse: “Será que dava para arrumar uma vaga para minha... Porque eu sou casado, casado com um sargento da polícia.” Ah, rapaz aquilo me deixou, sabe? Eu digo: “Puxa vida, o cara casado com um sargento da polícia.” E eu fiquei assim meio gelado, meio branco e tal. Daí, ele me explicando, porque ele usou de fato o comum de dois gêneros o sargento masculino, mas a mulher dele, a esposa dele era uma “sargenta” no caso da polícia. E eu falei: “Não, tudo bem.” Como a construtora estava crescendo, a vila de Balbina estava e já tinha lá um destacamento da polícia militar lá, um batalhão, não digo um batalhão, mas um... E aí conseguiram inclusive para a esposa dele, sei lá. Quer dizer, então deu tudo certo, aquela coisa toda.
P1 – Então, quando você saiu da Andrade Gutierrez, não era, a princípio, para vir para Maués. Você queria voltar para o Sul?
R – É, eu queria voltar para o Sul. E isso aí é uma coisa que depois, eu conversando com a maioria das pessoas que eram, que migravam que nem eu, que vieram para cá, tem uma fase que dá uma vontade de voltar. Hoje eu me arrependo amargamente, porque dentro da construtora, mesmo que essas grandes obras, grandes obras pararam, diminuíram, mas eu acho que eu teria mais, se eu tivesse ficado na construtora.
P1 – Quanto tempo você ficou na construtora?
R – Eu fiquei na construtora sete anos, quase oito anos na construtora.
P1 – Todos em Manaus?
R – Não. Aí que é a experiência. Manaus era mais o apoio. Eu fiquei, por exemplo, muito tempo em Balbina, fazendo instalação de canteiro. Quando eu cheguei em Balbina, nós estávamos fazendo o acesso. Existia a BR que ligava Manaus, liga Manaus, Boa Vista, a BR-174, e tem um acesso que vai a Balbina, que são 74 quilômetros. Então, eu já cheguei no final da obra do acesso. Vamos construir o canteiro de obras. Porque, por exemplo, tu vai construir um edifício, tu tem que ter uma casinha para guardar o carrinho, o cimento, a ferramenta. Quando tu vai construir uma usina hidrelétrica, tem que ter uma vila, fora o alojamento do pessoal, uma vila. Essa vila tem que ter infraestrutura, tem que ter colégio, tem que ter hospital, tem que ter. Então tem certas coisas que eu me lembro: eu fui o primeiro Papai Noel da Balbina. Porque eu era gordinho na época. Primeiro Papai Noel, o clube não estava pronto, foi no clube da construtora, no supermercado da construtora que estava em construção, que era uma filial de Manaus. Aí fizemos uma festa de Natal, eu fui lá para ir de Papai Noel. Nós fizemos a ponte, eu vi nascer uma ponte do canteiro até a vila de Balbina. Em cima do Rio Uatumã, uma ponte com quase 200 metros de vão. A maior do Estado, veja bem, com mais as cabeceiras e tal. Então, a gente acompanhou aquele crescimento. Hoje, a Balbina está lá, é um sucesso. Existiam duas vilas, uma vila temporária e uma vila permanente. A vila recebeu os dois nomes, que a gente teve participação até de dar os nomes, seria: Atroari e Waimiri. A construtora tinha essa peculiaridade, não sei se eu estou falando mais do meu trabalho. Essa coisa nela, o seguinte: tudo nela tinha apelido. Todos os carros tinham apelido, o alojamento que tu morava tinha um apelido, até a calculadora, aquela que dava 12 dígitos, de dar o valor, o volume da medição que ia ser cobrada do governo, estava lá: mentirosa! Era o nome da calculadora, entendeu? O trator era fulano de tal. “Onde tu mora?” “Moro no alojamento tal.” Tu já sabia, tu identificava. E assim por diante. Era uma coisa fantástica essa. Então os ônibus, eu me lembro, o ônibus tal. Chegaram dois ônibus, dois micro-ônibus com ar-condicionado, fresquinhos, novinhos, arrumados, eram Clodovil e Dener, entendeu como é que é? Eram umas coisas assim. E havia. E nós, funcionários, participávamos com esse tipo de opiniões, de apelidos. Como as duas tribos indígenas mais conhecidas na época, naquela região, eram Waimiri e Atroari. No decorrer da construção da estrada, para chegar na vila, porque tem o alojamento onde eram as obras, tu atravessava o rio e tinha mais dez, oito, dez quilômetros até tu chegar num chapadão. Nós descobrimos esse chapadão, que era onde era o lugar ideal para construir uma vila, a vila de Balbina hoje. Mas na época eram essas duas vilas, Atroari e Waimiri. Uma vila era de funcionários e a outra vila era também de funcionários, porém, mais graduados: engenheiro, chefe, aquelas coisas todas. Então também foi feita. “Qual é o nome que tu vai dar?” “Vai dar número tal, tal.” “Olha, estão chegando 20 e poucos carros.” Aí corria lá: “Vamos botar só o nome do pessoal da máfia!” Aí tá. Um carro era Don Corleone, outro carro era... Entendeu? Pa-pa-pi. Teve sempre essa coisa. Então, Balbina, a Construtora Andrade Gutierrez, ela tinha muito essa coisa de pegar o cara, de ficar.
P1 – Foi quando você trabalhou na construtora que você veio para Maués a primeira vez?
R – É. Não. Eu já tinha saído da construtora. Aí, justamente, eu saí da construtora, eu voltei para o Sul. Aí que entra a parte mais interessante do período da minha vida. Então, tu veja bem: dos 18, dos 19 aos 25, 26, que seria uma das partes da vida mais importantes do ser humano. Que é aquela tua juventude, tu está indo, aquela coragem que tu tem. Tudo isso eu vivi dentro do mato. Porque tu perguntaste para mim se eu fiquei só. Não, eu fui para Balbina, fui para Cachoeira Porteira, que também é uma outra obra no sul do Pará. Depois eu fui para o sul do Pará, na construção de uma outra estrada. Então, nesses sete anos, foi praticamente, quase dentro do mato, na Amazônia mesmo. Coisa que a gente tinha que, inclusive, a BR-319, por exemplo, a BR-319, que é um orgulho da Engenharia nacional, como eu falei no início, a construtora teve que, nós tivemos que inventar equipamentos para construir a estrada. Por exemplo, coisas que eram usadas só na Guerra do Vietnã. Por exemplo, a chuva era torrencial, tu soltava um quilômetro, tu tinha que fazer uma espécie de um carretel gigante, cobrir todo aquele um quilômetro. Para aquilo não... A chuva era constante. A mata era tão fechada, era tão densa, que tu tinha que subir numa árvore, e o cara lá, o mateiro dizia: “Olha, vem a chuva.” Quer dizer, eram umas coisas incríveis. Muito, muito dessa época eu vivi muito no mato. Cachoeira Porteira, no Pará, e as estradas. Balbina foi praticamente o início. Então, foi bom isso. Eu acredito que esses sete, oito anos foram muito bons. Agora, eu voltei para o Rio Grande do Sul, quando eu chego no Rio Grande do Sul, e eu fui, estou lá em Porto Alegre, e fui pegar o elevador, pedi para a moça: “Eu quero elevador tal.” Quando eu olho, a moça tinha sido minha colega. Puxa vida! Tinha se formado. Ela estava de ascensorista de elevador. Não tenho nada contra ascensorista de elevador, pelo contrário. Mercado de trabalho pequeno demais! Na minha época ainda tinha, ainda tinha o Correio do Povo, era um jornalzão grande de domingo que a gente lia, era enorme. Que tem a Zero Hora, que é um tablóide. Que eles dizem que é o único tablóide que deu certo. Um jornal fantástico. Mas era o Correio do Povo, eu pegava lá aos domingos. Puxa vida. Aí eu comecei a ver a burrada que eu tinha dado. De ter vindo lá, sair do Amazonas, da Amazônia. Já estava no Pará, naquela região toda. E alguns trabalhos em Rondônia também. O Estado estava naquela correria, a região estava crescendo. E fui para um mercado supercompetitivo, onde o salário oferecido era um terço do que eu ganhava. Porque justamente aqui tinham essas adicionais de transferência, muita hora extra, a gente não trabalhava oito horas por dia, a gente trabalhava 12 horas no mínimo, mais sábado e domingo. Aí eu me vi assim. Bah! Eu falei: “Puxa vida!” Outra coisa também interessante, que isso marcou muito a minha vida, a gente não perde os vínculos de pai e mãe. Isso não. Teu pai, tua mãe, tua irmã. Mas o resto tu perde. Então, por exemplo, fazia três, quatro anos que eu estava fora. Aí encontrei um amigo, um colega, um amigo. Daí: “Pô, onde é que tu estava, faz tempo que eu não te vejo?” Quer dizer, esse tempo que eu não te vejo foi uma coisa que parece que foi ontem. “Pô, já faz uns meses que a gente não se vê.” Digo: “Não, faz três anos, faz três Carnavais, três Natais, três Anos-Novos.” Então, aquilo vai indo, depois tu passa assim, tu cruza no metrô, na rua da praia. Ou tu vai à faculdade onde ele estudou. Pá! Não há aquele vínculo. Então, esse vínculo se perde. De pai não, que tu fica alimentando, tu fica telefonando, tu fica mandando. Outra coisa também que eu senti muito, isso é o peso, o preço que se paga às vezes de estar em um lugar. Porque o nosso país ele é muito grande. Do Sul para a Amazônia, do Sul, é uma distância muito grande. A gente pode ir para outros países aí, mas não vem à Amazônia. É quando vem aquela notícia: “Puxa vida, tua vó morreu.” E eu no caso fui criado com avó, no meu caso com avó e avô, os avós. Então, isso te dói muito porque tu fica assim: “Pô, nunca mais eu vou ver essa pessoa, essa pessoa.” Meu avô, minha primeira bola, quem me deu foi meu avô. Então, aquela coisa toda. Que o meu pai, não que não fosse presente. Ele não era presente até pelos motivos. Ele estava separado, ele teve a vida dele, minha mãe também. Mas esse tipo de coisa. Então, esse é o preço. Outra coisa também em relação à pergunta que ele fez, de estar, se sete anos eu trabalhei só em Manaus, ou só em Balbina. Não! Eu me lembro que eu trabalhei numa obra em Roraima. Eu nunca me esqueço disso, foi nos anos 80, 79, 80, 81, um negócio assim. Eu saí do mato, eu estava fazendo um projeto lá no Rio Cotingo. Roraima era território. Ele era governado por um brigadeiro, que por sinal hoje é Governador de Roraima, o Brigadeiro Ottomar de Sousa Pinto. Na época, os três territórios: Rondônia, Roraima e Macapá eram presentes das Forças Armadas. Não sei se você sabe. Por exemplo, Rondônia era um militar do Exército, Roraima era um brigadeiro e Macapá era um almirante. Então, se administravam esses três Estados como se fossem uma grande fazenda. O cara ia, vestia um pijama, o general, o brigadeiro. “Então tá, vai administrar lá.” Depois, não. Foi crescendo. Rondônia foi o primeiro a virar Estado com o Coronel Teixeira, o Teixeirão. Foi um prefeito magnífico em Manaus e depois foi para lá. E aconteceu depois, muito depois com Macapá e com Roraima. Aí o que aconteceu? Aí eu me lembro que eu cheguei do mato. Eu estava há cinco, seis meses no mato. Porque a minha área, como desenhista, projetista, a minha área era instalação de canteiro. Então, eu ia na frente para projetar o canteiro, para saber, fazer o alojamento, aquela coisa toda. Eu chego no hotel, nunca me esqueço disso. Num hotel, num hotel lá da cidade, com uma piscinazinha em volta. Aí eu vi lá: Elis Regina chorando, Roberto Carlos chorando, não sei quem chorando. Puxa, tinha morrido John Lennon! Pô, eu era fã, eu era, minha nossa! A minha juventude foi escutando Beatles, aquela coisa toda. Então, tu imagina o preço que tu paga pelo atrofiamento. Porque tu fica alienado, tu fica atrofiado. Porque tu está no mato. Lá eu pegava um rádio da Venezuela, que eu escutava das sete, das nove horas da noite, dez horas da noite. Era Venezuela Siempre, Venezuela”, que eram aquelas músicas, salsa. Aquilo te deixava assim: “Puxa vida!” Aí eu fui nas bancas de revista, comprei tudo que tinha nas bancas! Visão, Contigo, não sei o quê, Veja e tal. Bah! A morte do John Lennon, que aquilo me deixou. Foi assassinado e tal, aquela coisa toda. Então, era esse o preço. Eu me lembro que, em Porto Alegre, eu fazia fila lá no Cine São João para assistir um filme. Para assistir O Último Tango em Paris, para assistir. E depois eu me vi numa situação completamente oposta no centro, no meio da floresta, e longe dessas informações todas. Eu, quando abri a minha mala, a minha bolsa, tinha pijama de bolinha, chinelo de pelúcia, porque a minha mãe tinha feito minha mala, ela tinha colocado tudo aquilo ali. Infalivina era um remédio para o estômago que o Teixeirinha que fazia a propaganda. Barbaridade! Aquela coisa assim. Então, tu vai mudando, tu vai sendo peão, como diz. E era outra fase também, que marcou muito na minha. Quer dizer, eu deixei sete anos lá e adquiri mais sete que também marcaram.
P1 – Você ficou sete anos...
R – Sete anos e quase oito anos na construtora.
P1 – E depois você voltou para o Sul e ficou mais?
R – Eu voltei dois anos de férias, três anos de férias. Aí depois eu voltei, sete, com oito anos de construtora, eu voltei. Pedi a demissão, onde houve todo aquele, aquele tratado. E voltei. Cheguei, fiquei um ano e pouco lá e não aguentei.
P1 – Você ficou um ano?
R – Um ano. Fiquei um ano lá. Um ano e uns quebradinhos.
P1 – Você chegou a trabalhar lá?
R – Cheguei a trabalhar. Aí, veja bem, eu voltei à Prefeitura, já não era mais, era um outro prefeito. Eu fui ser assessor desse prefeito, de planejamento desse prefeito. Uma coisa fantástica, fantástica! Foi uma outra experiência. Por isso que eu digo: “Tinha que ser isso, tinha que passar por isso.” E eu fui ser assessor de um prefeito chamado, lá era conhecido por Barbosinha, Doutor Francisco Barbosa. Ele era um prefeito que se elegeu com uma quantidade esmagadora de votos. Ele ultrapassou os dois, três candidatos adversários juntos e se elegeu prefeito. E eu, na época do movimento estudantil. Veja bem! Olha só, como uma coisa interliga a outra. Eu já conhecia o trabalho dele e admirava o trabalho dele. Inclusive ele foi eleito o “Homem do Ano”, num programa que tinha do Flávio Cavalcanti, naquela época. Não sei se era a Rede Tupi, o que era. E sempre dando entrevista a essas revistas semanais Época, Isto É, Veja. Era uma pessoa polêmica. E ele se elegeu prefeito lá. E eu me lembro. E a gente fazia o movimento estudantil e tinha aquela coisa, e eu sempre acompanhando o trabalho dele como juiz da cidade. Existia uma certa afinidade no pensamento dele. Mas eu, um menino de 18, 19 anos, e ele com uma experiência muito grande. E eu fui trabalhar com ele, como assessor dele. Na Prefeitura, no setor de Planejamento. Nós fizemos uma coisa inédita, eu tenho, bah, um orgulho muito grande de ter participado dessa fase do governo lá, do projeto dele. Só para tu ter uma ideia, o Rio Grande do Sul tem 400 e poucos municípios. Quase 500 municípios, todos eles queriam ter, querem uma fábrica da Pepsi-Cola, PepsiCo. Quando eu cheguei na prefeitura, ele disse: “Olha, Silvio, de fato, a gente está precisando de uma pessoa do seu perfil. Tu vai lá, procura o fulano de tal, nós estamos fazendo um projeto da instalação da PepsiCo aqui, da fábrica.” Quando eu cheguei e fui falar com meu chefe, era um sociólogo. Uma pessoa fantástica também, o Moreno. E ele dizia para mim: “Bah! Se foi, o negócio é isso, isso, se o Barbosa, o prefeito te indicou, é porque eu acho que ele sabe do meu estilo e o teu.” Aí fomos, fizemos. Eu fiz a parte de geoespacialidade, mostrando o nosso município em relação ao Rio Grande do Sul, ao sul do Rio Grande do Sul, aquela parte onde nós estávamos ali, a região metropolitana. Quando se faz um mapa de loteamento, a gente mostra que o loteamento é próximo da igreja, é próximo do supermercado, é próximo de tudo. Então, comecei a mostrar um município próximo de Santa Catarina, do litoral catarinense, que é um consumidor, do Mercado Comum do Sul [Mercosul], da Argentina, que é um consumidor do Uruguai, e foi fantástico. E cada vez que ele chegava, esse meu chefe de planejamento, ele, como prefeito, diz: “Pá, foram descartados 200 municípios.” E nós no meio dos que ficaram. “Olha, foram descartados tantos municípios! Olha, só tem 20 municípios na briga.” Para terminar, isso aí. E nós ali mostrando. “Só tem dez municípios.” Tu já pensou dez municípios? Sabe o que é uma empresa da PepsiCo, que hoje é parceira da AmBev? É Companhia de Bebidas das Américas [AmBev], aliás lá, inclusive, houve uma junção. E aquilo era... Bah! E o problema era esse, o problema é água. Não, vamos fazer um “águaduto”. Fizemos um “águaduto”. Trouxemos águas de um ou dois municípios para chegar ali. Porque a água tinha que ter um pH ideal para se fazer o refrigerante da qualidade do Guaraná Antarctica, da PepsiCo. Pepsi-Cola. Aí: “Só tem cinco municípios.” Puxa, tu já pensou, tu brigando com cinco municípios? O que vai te dar isso? Dois mil empregos diretos. Mais as outras empresas que vão viver em volta da distribuidora, a borracharia. Enfim, e um outro mix que também vai vir. Aí, quando chegou naquele dia, estava saindo uma empresa nossa lá, a Inpel, mexe com fios, fios elétricos. Quando essa empresa saiu, foi para Gravataí, um outro polo industrial, e vagou o lugar onde seria o ideal. No centro dessa geoespacialidade que eu te falei, próximo de tudo. Aí, pronto, fechamos. Nós ganhamos a instalação dessa empresa. Então, foi fantástico. Terminou isso, eu vim embora de novo. Aquilo que eu falei pra ti, aquela vontade de querer voltar, mas eu estava dentro desse trabalho, que era a instalação.
P1 – Então, você estava contando que, depois desse um ano, você resolveu voltar para o Amazonas?
R – Eu resolvi voltar para o Amazonas. Depois desse trabalho que eu tive, que até parece que foi traçado à minha volta, lá. Trabalhar nesse projeto. E aí eu voltei para cá.
P1 – Aí você veio para o Amazonas já empregado?
R – Não! Eu não vim para o Amazonas empregado. Aí que eu pude sentir, comecei a sentir a burrada que eu tinha feito. De ter saído daquela estabilidade. Morava numa vila inclusive, da construtora. E saí. Foi quando a gente começou, nessa época, eu comecei a trabalhar como freelancer. Desenhava para as construtoras, fazia alguns projetos. E foi na época em que se fizeram muitos projetos. Até para o interior do Amazonas, tive a felicidade de trabalhar com uma equipe muito grande lá, muito boa por sinal. E começamos a fazer alguns projetos e isso já como freelancer. Mas, no decorrer do tempo, eu ouvia falar. Teve um amigo meu, hoje ele está em Natal, tem uma pousada lá. Ele morava aqui na Vera Cruz. Veio conhecer Maués, aí ele conheceu a Vera Cruz e ele voltou e disse assim: “Silvio, eu vou morar lá.” Aí eu digo: “Tu tá brincando, bah, que negócio é esse?” E esse Rogério é interessante, ele é do Rio Grande do Sul, é de Novo Hamburgo, uma cidade calçadista. E ele também, quando ele fez 18, 20 anos, não sei o quê, ele desligou a máquina que ele estava trabalhando, a máquina de calçado, de prensa. Foi lá no centro do pessoal, disse: “Olha, eu quero minha demissão!” “Mas tu é doido rapaz, está aqui em Novo Hamburgo, a cidade está crescendo, a cidade têm vários pedidos de calçado.” Ele disse: “Não, eu quero viajar.” Aí viram que não tinha jeito, deram a conta dele. Acho que até por isso houve essa união, o fato de ser gaúcho. Então, até é uma história parecida. E ele comprou uma moto, pegou esse dinheiro, essa indenização, comprou a moto e veio para o Nordeste, foi para o Nordeste. Aí começou, morou em Jericoacoara, lutou lá contra a especulação imobiliária, aquelas coisas todas. Ele era um idealista mesmo. Um Plácido de Castro moderno, que não podia ver uma, que se metia no meio. E daí ele veio aparecer em Manaus, encontrei ele já em Manaus. Depois dessa briga toda, do Nordeste, que ele tinha passado. E era onde a gente tomava chimarrão, a colônia gaúcha, a gente se reunia, tinha uma certa semelhança. E ele veio conhecer o Maués. Conheceu o Maués, chegou e disse aí: “Silvio, eu conheci Vera Cruz, olha só o nome: Ilha de Vera Cruz, de Vera Cruz, esse nome já é uma...” E veio para cá, e eu vim visitar ele. Como eu era freelancer, eu tinha essa facilidade, eu trabalhava quatro meses, seis meses num projeto. E ficava dois, três meses parado, pegava outro. E digo: “Pô, vou visitar o Rogério.” Quando eu cheguei, que eu visitei o Rogério, eu não fui mais embora. Eu fiquei oito meses morando na casa do Piró, do Pirozinho, é o Porto do Piró, até hoje está lá. E as crianças hoje são tudo mais moças, tudo fazendo faculdade, pequenininhos. Seu Neves fazendo o guaraná dele, pilando o guaraná. Aí fiquei oito meses aí, naquela coisa.
P1 – Isso era que ano?
R – Isso foi no primeiro mandato do Prefeito Sidnei. Foi, eu acho que foi 80, mais ou menos, 80 e poucos, 80 e uns quebrados.
P1 – E o que Maués era diferente de hoje?
R – Ah, não! Maués hoje é superdiferente. Bah! Em todos. Maués ainda é uma cidade pequena, lógico. Vocês que vêm dos grandes centros, uma cidade provinciana e tal. Mas há 15 anos, há 20 anos, a diferença era bem maior. Em termos de... Hoje tu tem bons mercados, tem um monte de coisas, hoje tem duas universidades. Uma universidade aqui, mais duas, três, extensão. Enfim, tem um monte de outras coisas que ajudaram muito. A presença da academia, ela deu uma abertura maior nas coisas. A cidade, na época, só para ter uma ideia, eu avisava que eu vinha era pelo rádio. Tinha uma rádio cabocla, avisava: “Olha, por favor, avisar a Ilha de Vera Cruz, a quem ouvir este recado, avisar para o Piró que o Silvio está chegando no barco tal.” Entendeu? Aí ele ia lá, com o São Pedro, nunca me esqueço, um barquinho todo de palha. E eu ficava lá, devido a essa facilidade de trabalhar como freelancer, eu ficava dois, três meses. Aí vinha, plantava o próprio aipim, que é a mandioca. Plantava, colhia, fazia o arroz de carreteiro, vinha aqui. Era muito bom. Seu Neves, eu gostava daquela história. Porque a Vera Cruz hoje tem em torno de 40 famílias, 40 e poucas famílias. E a gente começou a fazer um trabalho lá. Por exemplo, o prefeito era o Luiz Canindé, o Luiz Canindé era o prefeito. E ele colocou o gerador, uma luz lá, a energia elétrica. Colocou o gerador, e a luz ligava das oito, das seis às dez, justamente, das seis às dez. Era o tempo de abastecer a caixa-d’água das pessoas que tinham já uma caixa-d’água. Aliás, a vila tinha uma caixa-d’água, abastecia a caixa-d’água e distribuía água para as pessoas que tinham feito as ligações. E, das seis às dez, era o horário da novela, era o horário do Jornal Nacional e era o horário do jogo. Porque, geralmente, quando tinha um jogo, era nesse horário de nove às dez. Então, a gente fazia uma vaquinha, botava mais um diesel e ficava até as dez e meia, 11 horas. Foi muito bonita essa fase. E ali, olha, veja bem, um caso interessante, o Rogério. E através dele eu vim para cá, nós construímos um restaurantezinho, é lógico, com as dimensões bem menores. Porque a própria arquitetura da Amazônia é diferente. Por exemplo, a gente procura acompanhar o relevo natural do terreno, não cortar, aquela coisa toda. Então nós fazíamos, lá do alto do barranco fizemos uma ponte, um trapiche, fizemos o chapéu de palha, naquele estilo sextavado, não, era aquela coisa redonda. E o nome que nós demos, isso há dez, 12, 13 anos, chama-se Ecologia. E isso era coisa de maluco, isso era coisa de doido, era coisa de quem fumava e tomava cachaça, sabe como é? E hoje, olha só, a ecologia está no currículo, está na grade escolar. Hoje tu pergunta para qualquer menino o que é ecologia que ele sabe, mas naquela época ninguém sabia. E as pessoas iam nos fins de semana para lá.
P1 – Mas esse restaurante era na Vera Cruz?
R – Na Vera Cruz, na Vera Cruz. Hoje está destruído, não tem mais nada, o mato tomou conta. O Rogério foi na época para o garimpo. Porque Maués também já teve a época do garimpo, não sei se vocês já se informaram. Porque o Amana é um rio riquíssimo em ouro. E nessa época, então, o Rogério foi para o garimpo, se empolgou, e ele e a Regina, as crianças eram pequenas, ele tinha dois meninos, foram para o garimpo. Aí ele deixou o Ecologia, o barzinho, fechado, essa estrutura que vinha desde lá de cima até a beira da praia. A água batendo embaixo na época da cheia. E nós aproveitávamos o ano todo a praia, não só a época da praia em si, na areia, como também quando enchia, que a água batia embaixo do bar. Era muito gostoso, muito boa essa fase na Vera Cruz. Já estava sendo uma referência, já tinha um endereço postal, já vinha gente de fora, procurando. Mas o Rogério foi, quis ir para o garimpo, foi de fato, não sei, não como garimpeiro, como prestador de serviço lá na área do garimpo. Ele e a Regina, acho que eles botaram uma lanchonete, uma coisa assim lá e ganharam bastante e foram para Natal. Na época, tinha um amigo nosso, que ele fazia astrologia pelo computador, o horóscopo. Comprou um programinha. E onde ele andava com aquele computador, o João Dino, e andava com o computador, e aquilo botava na praça, aquilo era um negócio também. E a data que tu nasceu, o ano, a hora, não sei o quê. Tchu! Puxava teu signo. E esse João Dino já estava para Natal, lá para aquelas praias fazendo isso. E era meio longe, tinha ficado conosco aqui um dia. E se encantou e, de fato, o lugar que ele está hoje, a Praia da Pipa, é uma loucura. E ele está lá, ele, a Regina, as crianças. Criança tudo grande, tudo surfando. Os meninos loiros de olho azul, lá na beira da praia. Mas teve essa experiência aqui na Vera Cruz. Com esse pequeno lugarzinho lá chamado Ecologia. A gente fazia, tinha essa oportunidade.
P1 – Mas você vinha para a Ilha de Vera Cruz, ficava alguns meses e depois retornava para Manaus?
R – Ficava. Voltava para Manaus.
P1 – Ficou nessa vida de ida e volta quanto tempo?
R – Eu fiquei nessa ida e volta, eu fiquei praticamente quase uns dois anos nessa ida e volta. Uns dois anos, mais ou menos. Aí eu também conheci pessoas que tinham vindo de fora e que se apaixonaram por aqui. A gente sempre era bem recebido, até pelo Barrolo, aqui na casa, que era outro que na época recebia a gente. Era o Jorge Sales, Jorge Sales do Guaraná Maués, é o engenheiro mecânico da Petrobrás, trabalhava 15 dias no Urucu e 15 dias aqui. Também veio, gostou, se apaixonou e ficou por aqui. É uma pessoa que veio de Salvador, no caso, da Bahia, o litoral baiano é também lindíssimo, as praias, a vida. Mas se apaixonou, ficou por aqui também, como muitas outras histórias que tem aqui. Tem a história do Sérgio. Sérgio, chama Sérgio Barbudo, também trabalhava no garimpo. Chegou aqui para consertar o avião, o avião quebrou e nunca mais saiu. O avião foi embora, e ele ficou aqui. Então tem essas histórias, porque quem vem... Então, nessa época, o Jorge. Hoje colocou inclusive o negócio de guaraná, é um guaraná muito bom, o Guaraná Maués foi o primeiro a sair daqui, a buscar novas fronteiras. O Jorge, muito meticuloso, muito cuidadoso, até pelo fato de ser engenheiro. O dele tudo era bem feitinho, código de barras e tal. Também serviu de muito exemplo para a gente que mexe com guaraná hoje.
P1 – Ele vendia o guaraná como?
R – Ele vendia. O Jorge começou primeiro a vender o guaraná em pó. Ele beneficiava o grão em pó. Depois, o Jorge hoje é referência no xarope de guaraná. E Jorge vendia o pó de guaraná e conseguia colocar no mercado aí fora: Belém, Manaus. E daí ele via que o pedido de xarope já era compensador. O que ele fazia? Jorge começou a comprar um xarope e botar o rótulo. Dele, do guaraná dele, comprava em litros e tal. “Mas, Jorge, dá para fazer esse guaraná, esse xarope aqui, inclusive a tecnologia é daqui, o jeito que se faz daqui.” Aí, o Jorge, uma pessoa com apetite, um espírito empreendedor fantástico. Um cara com ideias inovadoras. O que ele fez? Nós fomos no clube de mães, tinha um clube de mães que já fazia o xarope, o Barrolo mesmo já fazia o xarope também, de forma empírica. O que aconteceu? Ele foi pegando a dica de um, dica do outro e elaborou o xarope dele. É lógico que, logo no início, nas primeiras vendas, muitos xaropes dele espocaram – é um termo usado aqui: explodiram, arrebentaram. E ele veio, trocava, botava, aquela coisa toda, devido à fermentação. Por isso, é um produto natural, não tem. Hoje o guaraná, o xarope, que é um dos melhores da região, já em nível industrial, já usa um conservante até porque tem que usar mesmo. Pelo fato de ficar na prateleira, seis meses, oito meses. Coisa que o meu, que eu fabrico, por exemplo, o Barrô, e mais um outro já não têm essa. A nossa preocupação mais é orgânica. E como a saída é muito grande, quase não há uma necessidade de tu ter um conservante ácido, mais forte, para que ele fique natural. Mas foi, ele ficou aqui um tempão. Casou com uma outra pessoa fantástica, uma outra família maravilhosa, que é a Graça. Hoje os meninos estão grandes. Bom, resumo da história. Também foi daquela época, estava chegando e tudo isso foi me envolvendo.
P1 – Então, em 82, você se fixou em Maués?
R – Não. Eu me fixei em Maués já foi em 2000. Em 82, eu ainda estava na construtora. Eu vim para cá em 99, 1999. Em 80, eu vim para cá e fiquei fora depois todo esse tempo. Conheci Maués, conheci Maués. Aí depois eu fui embora, teve o governo do Luiz Canindé, teve outro governo, depois o primeiro do outro meu amigo, do Sidnei Leite, e depois aí vai. Depois, eu voltei para me fixar mesmo foi em 1999, que eu vim para ficar. Nós estamos em 2006, 2007, faz sete anos. Como aquilo que eu te falava: “Olha, quando eu me aposentar, eu vou aí para Maués.” “Quando eu me aposentar, eu vou ir para Maués.” “Quando eu estiver ganhando bem, eu vou ir para Maués.”
P1 – E você se aposentou mesmo?
R – Não. Nem me aposentei, nem estou ganhando bem, e vim para cá. Aquela coisa de tu estar postergando. E não tem aquela coisa de tu ficar postergando a vida toda? E, às vezes, a vida passa, tu está com 80 anos e tu diz: “Puxa, eu não fiz nada daquilo.” Porque o ser humano, parece que postergar faz parte da cultura dele. E principalmente nós, brasileiros. E foi quando eu disse: “Não, vou largar tudo e vou vir para cá.” E larguei tudo e vim para cá em 89. Tive felicidade de ser acolhido. Porque, quando tu nasce num lugar, é bom, claro que é bom. Eu nasci na minha terra, adoro. Agora, quando tu é acolhido, tu é aceito, como a gente foi aqui. Bah! Nunca me esqueço quantas madrugadas, quantas noites nós aqui, com o Barrolo. O Barrolo. Muita dessa, de criar esse espaço, essa coisa que não tinha. Bah! Então, eu digo: “É aqui que eu vou ficar.” E outro negócio, o conhecimento com o próprio lado indígena da coisa. Porque lá fora, a gente tem mais aquela coisa do folclore. E a realidade não é essa.
P1 – Quando surge a ideia do turbinado?
R – O turbinado é o seguinte: ele praticamente, ele já existia o turbinado. Ele só não tinha esse nome: turbinado. Mas já existia, que era a mistura do guaraná com mirantã. Só que as misturas, na época, elas eram as misturas que não tinham muito a ver. Por exemplo, eles colocavam canela em pó. Então, a canela, como é que tu vai colocar, por exemplo, tu vai fazer um energético: o guaraná é um estimulante e a canela que é um calmante? Então, a gente foi colocando, tirando um pouco daqui, um pouco dali. Hoje a gente coloca muito pouquinho amendoim, que é justamente por ser calórico demais. O leite, a gente já diminui um pouco, que é por causa da lactose, que a lactose é problemática. Enfim, a gente foi dando aquele toque. Acertando algumas coisas, como o “suco do amor”. Por quê? Devido a essa junção do guaraná com o mirantã. Então, o guaraná por si só, que já é um energético, é cafeína. Só para tu ter uma ideia: 100 gramas de café torrado têm 2,5 de cafeína; o guaraná tem cinco, 5,8, seis. Quer dizer, tem duas, quase três vezes mais cafeína que o café. E ela já te estimula. As propriedades terapêuticas do guaraná, como a cafeína, a saponina, são coisas que te estimulam. A saponina faz com que a cafeína permaneça mais tempo no corpo. E a guaraína, guaraína-B, que não é nada mais que a própria cafeína. É que descobriram a cafeína antes da guaraína, então o nome ficou cafeína. E o mirantã, a função dele é vasodilatador. É uma raiz, já usada pelos índios há muito tempo. Eles conhecem como pau-homem, pau-forte, tem alguns lugares que eles conhecem como marapuama. Mas marapuama é o nome do alcaloide, do mirantã. Enfim, é fantástico. E isso, hoje, a gente está divulgando e está fazendo essas feiras que falei para ti, de forma que tu sai itinerantemente por aí. Mas já existem estudos, por exemplo, na universidade, na França, por exemplo, em Paris já foi testado. Num grupo de 100 pessoas, 60 pessoas que tomaram o mirantã se sentiram realmente muito mais estimuladas. Na Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], em São Paulo, já houve testes com isso. Inclusive, a gente tem documentos, tem relatos de que realmente é um estimulante. A gente costuma dizer: “É o Viagra do índio.” “É o Viagra.” Não tem aquela função imediata por quê? Porque tudo que é natural, tudo que é homeopático, ele leva. Tu não pode estar misturando, tomar com remédio, tem uma disciplina, tomar todo dia. Por exemplo, o guaraná com mirantã, eu tomo, conheço pessoas que tomam. O poeta Thiago de Mello, muitas pessoas tomam guaraná com mirantã e realmente sentiram, sentem o efeito no caso. E é aquele negócio: é o conhecimento tradicional que agora está sendo, que a mídia está mostrando mais. Isso já existia, aqui tu pega e vai. Eu mesmo vi esses dias um índio com 72 anos. Puxa vida! Eu nasci em 60, tenho 46, 47, nem se compara à virilidade, à vitalidade, à vida do cara. Cabeludo, entendeu? Minha Nossa Senhora, mesmo! E, puxa vida! Forte, sem uma ruga. Ele toma mirantã, toma do jeito deles, ralada na pedra. Como o caboclo toma ralado na língua do pirarucu.
P1 – E com quem você aprendeu isso?
R – Eu aprendi aqui. Quando eu estive na Ilha de Vera Cruz, Seu Neves já fazia. Naquele período, voltando em 82, quando eu vim aqui para Vera Cruz. O Seu Neves já fazia isso, inclusive ele tem um bastão lá que é com mirantã. Na hora que ele está pilando o guaraná, em vez de colocar água, que é para fazer massa para moldar o bastão, ele usa o chá do mirantã, o vinho do mirantã, que aqui as pessoas chamam muito isso. Então, já sai aquele bastão com guaraná e o mirantã. No caso, o turbinado, dessa forma, dessa bebida que a gente faz nas feiras, nas festas, que a gente faz na hora ali, a pessoa toma. E nós temos só um potezinho onde está a mistura do guaraná com mirantã. Ou seja, uma mistura de cinco para um. Seriam cinco quilos de mirantã, de guaraná, para um quilo de mirantã. Então, seria a média de 20%, uma coisa assim. Então tu mistura, coloca ali e a pessoa já... Porque a função do mirantã nessa mistura só é mesmo ser vasodilatador, no caso. Apesar de ele ter todo um resultado de outras coisas. Por exemplo, pessoas que têm problemas de reumatismo. Enfim. É um tônico neuromuscular. Tanto para a cabeça quanto para os músculos. É fantástico!
P1 – Quais são os ingredientes do turbinado?
R – O turbinado, a base dele é o guaraná com mirantã. Nós usamos o guaraná, o mirantã e o xarope. A função do xarope é adoçar. Pode ser o adoçante, esses adoçantes que as pessoas tomam aí. Tem gente que fica comendo mais o de stevia, que realmente é o adoçante mais recomendado. Como pode ser o próprio açúcar mascavo. Seria o ideal, quem sabe. Agora, pode ser o mel de abelha. O mel de abelha ficou complicado para mim porque é caro. O mel bom, uma coisa. Então, a gente faz um xarope de guaraná, que é feito do subproduto do guaraná, que é feito do casquilho do guaraná. Então, aquela coisa, aquele resto, aquela coisa que ia fora com a casca do guaraná, hoje já se usa para se fazer o casquilho. O casquilho para fazer o xarope, tu aproveita ele, ele tem toda uma... Do caroço você faz o extrato, a cara lá você molha, você faz o bastão. A gente usa, então, o casquilho, que a gente chama, para fazer o xarope do guaraná.
P1 – Você falou de algumas diferenças da bebida. Mas quais outras diferenças ela tem em relação às bebidas tradicionais que você já conhecia. O que torna o turbinado diferente dos outros?
R – Diferente. Boa pergunta. O turbinado é diferente porque, como a nossa função é energizar a pessoa, é deixar a pessoa ligada, deixar a pessoa acordada, nós só usamos esses dois tipos de coisa: o guaraná e o mirantã. São dois bioativos extraídos da floresta. Quer dizer, é de forma tradicional, direitinha. O que as pessoas usam, misturam? Misturam com farinha láctea, misturam com Neston. Bota uma fruta, bota um abacate, faz aquela vitamina. O abacate é uma gordura vegetal, praticamente. Se a gente for analisar, é que nem fosse um toucinho de porco, tu chegar e colocar dentro, só que de forma vegetal. A gente não. O açaí, por exemplo. Puxa! É tão gostoso tu tomar um açaí na tigela, com uma farinha de tapioca. Pronto, não precisa misturar com um monte de outras coisas, vai misturar com açúcar, vai mistura com... Não vai. No máximo, com um pedacinho de uma coisinha. Quando se faz, inclusive em Manaus tem muito disso, tem 40 lojas que fazem esse tipo de suco. Belém, eu vi agora a mesma coisa. Roraima a mesma coisa, Macapá. Lisboa, Portugal. Hoje mesmo um DJ amigo meu, me passou um e-mail, está lá arrebentando. E levou os drinques, levou o turbinado, levou um monte de coisas para lá. “Silvio, é uma loucura.” E já existe lá em Portugal, em Lisboa. Já há algumas coisas vendendo o guaraná, nesses tradicionais. Então, o que a gente faz, a gente fica naquele impasse, o nosso suco é um suco ralo. Ele não é aquela papa, como eu te falei, como falei lá no começo. É com abacate, com mamão, com não sei mais o quê. Não. Nós ficamos só naquele tradicional mesmo, que a nossa função é deixar a pessoa ligada. Se a pessoa estiver com fome, então come um cheeseburguer, enfim, o que for achar que deve.
P1 – Você disse que o turbinado era na verdade um isotônico energético.
R – Exatamente!
P1 – Explica o que é isso?
R – Explico. Então, a nossa preocupação, quando a gente estava bolando e fazendo e prova aqui, e mistura e será que está bom? A ideia é tua, ideia do outro. Ele falou assim: “Puxa vida.” Inclusive, eu já tinha lido para algumas coisas aqui na época. Os pilotos de avião chegavam a desmaiar por falta de sais minerais. Então, como é importante uma bebida isotônica. Estou falando dos isotônicos como o Gatorade, essas coisinhas por aí. Então, assim: “Puxa vida, vamos fazer uma coisa diferente.” “Vamos fazer uma bebida energética e isotônica ao mesmo tempo.” Energético seria o guaraná com o mirantã, que é um vasodilatador, o coração fica bem mais forte. E também que seja enriquecido de sais minerais, potássio, um monte de outras coisas, tudo de bom numa bebida. Então, nós fomos para o laboratório. Para essa parte. Porque aquilo foi o quê? A inovação, inclusive é uma coisa que muita gente, às vezes, não sabe o significado do que é inovação. Não é só lá no pátio da fábrica, tu botar uma máquina nova, aquela coisa toda. Ou embalagem nova, ou abre aqui diferente, vai facilitar para o consumidor. É também trazer uma novidade, uma inovação, em termos do produto em si, do consumo. Então, isso que a gente tem visto. Faz cinco, seis, sete anos, desde que eu estou aqui, que a gente está fazendo essas feiras e vendo esse resultado dessa coisa que é aquela mistura isotônica que a gente mistura ali. Está dando certo. Mas, como eu te falei, como eu não posso chegar e vou envasar isso aqui, não tem todo um laboratório, inclusive isso custa dinheiro. Então, hoje nós temos um parceiro, o professor Schürman. É um professor da universidade, é dono de uma empresa inclusive, chamada Fármacos da Amazônia. Então, hoje, o turbinado, esse energético misturado com isotônico, ele está num processo que a gente chama de tempo de prateleira. Que é justamente: está lá, tem que ficar lá, eu tenho, estou fazendo essas feiras agoniado, chego, viajo. Mas ele está lá. Ele tem que ficar ali. Ele que vai determinar nove meses, se precisa usar um conservante, sem ser natural, alguma coisa mais, se vai ficar cor-de-rosa. Se vai ficar verde. E nesse meio-tempo, que está nesse tempo de prateleira, a gente continua fazendo e demonstrando e vendo a aceitação. A palavra certa seria pesquisa de mercado. Como a gente faz ele de forma, tem lugares que a gente doa. Por exemplo, a gente, eu fiz agora a FIAM, a Feira Internacional da Amazônia, a convite da Agroamazon, da Suframa [Superintendência da Zona Franca de Manaus], parceria com a prefeitura aqui também. Conseguiu-se o espaço lá. Porque, puxa, o espaço numa feira hoje é 800 reais o metro quadrado, 500, 600, depende da feira. Ainda mais uma feira dessa, Feira Internacional da Amazônia. Então, se coloca à disposição da gente, como microempresário, o espaço. Já foi um ganho. E eu entro com a minha matéria-prima, no caso com guaraná, com mirantã. E fazer, mais uma moça para me ajudar. E é espetacular! Quando a gente vê o resultado, não só dos visitantes, claro, mas dos próprios feirantes, das pessoas que estão na feira ali. E falam assim no outro dia: “Silvio, tomei, fiquei acordado a noite toda.” Ou quem vai estudar, precisa fazer uma prova e toma e fica acordado.
P1 – Fala pra gente. Você falou da Feira Internacional da Amazônia que aconteceu quando?
R – Foi agora, em final de novembro. Final de outubro para novembro.
P1 – Fala de outras feiras que você participou.
R – A gente participa, por exemplo, já é o terceiro, quarto ano consecutivo da Amazontech, uma feira produzida pelo Sebrae [Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas]. É uma feira de tecnologia da Amazônia. Eu participei já de várias “frutais”, feitas pelo Instituto Frutal, Frutal Ceará, Frutal Amazônia. São feiras dirigidas à fruticultura e agora entrou floricultura junto, nesse mercado de frutas. Essas feiras, o que elas têm trazido para nós, inclusive, diga-se de passagem, são essas ideias do Barrolo de a gente participar das feiras, quando foi criado aqui o GO, que é um Grupo de Gestão de Obtenção de Resultados, também via Sebrae. Porque, veja bem, nós estamos no meio da floresta, no meio da selva. O que acontece? A nossa parceria é com os “S”, o Sebrae, o Senac [Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial], o Sesi [Serviço Social da Indústria]. Até pouco tempo, estava a balsa itinerante aqui do Senac, ensinando as pessoas a fazerem isso, fazerem aquilo. Então, o Sebrae tem nos dado muito apoio nessa parte. O que acontece? Essas feiras do Sebrae, para que serve a feira? Tá, eu vou degustar, eu vou lá mostrar meu produto, mostrar o sabor. Mas também serve para a gente prospectar clientes. Isso que é o importante. Então, esse grupo de gestão, o GO, que a gente chama, ele foi dividido em três: em produtores, que não é o meu caso, beneficiadores, que eu sou um beneficiador, e artesão. Já que hoje o artesanato do guaraná está se resgatando, já estava quase indo, mas agora se deu aquela resgatada na coisa. Fora as feiras agropecuárias que também são festas tribais, onde as pessoas precisam ficar acordadas. São festas onde está presente o Red Bull. Eu não sei se eu posso estar falando em marca. Até para reforçar, como reforço da ideia, onde está o Burn da Coca-Cola, onde está o On-Line, que é um outro também, todos eles de lata. Então, as feiras agropecuárias, eu já faço há cinco, seis anos, no lugar do Sérgio, no lugar de outras pessoas que já não fazem mais. Empresários que já cresceram e não fazem, aí eu vou lá e faço no lugar. Até porque eu preciso ter esse feedback, aí é que está a jogada. Então, em uns lugares, eu vou vendendo meu produto, em outros eu vou ofertando ele, vou fazendo degustação. Mas a maneira é essa, de estar vendo qual é a reação. E também tem um outro apelo das festas tribais, praticamente dito, que são as festas de boi. O Boi de Parintins, por exemplo, são três noites, quatro noites, que tem um dia do visitante, que é fantástico! O Boi Manaus, que já chegou a uma proporção de 200 mil pessoas, lá no Sambódromo, e a gente sabe o que são 200 mil pessoas, porque a gente tem noção de espaço. Dentro daquela passeata do um milhão, as Diretas Já, lá na Candelária, que são quatro pessoas por metro quadrado, a gente tem aquela noção. É gente que não acaba mais. Até porque o suco de guaraná é uma coisa gastronômica. A gastronomia, cultura, é um monte coisa junto. Salvador está inaugurando lá um Museu Gastronômico. Olha só, nós estamos fazendo um museu, um museu. Então, tem esse diferencial da coisa. E como a gente se propõe a fazer um energético e é guaraná, é tudo de bom, não tem álcool ali. Não é uma tenda ali que a gente vá para vender álcool, isso não. Pelo contrário, a gente está vendendo tudo de bom, porque, quando a pessoa toma aquilo... Aquilo que eu falo é o suco do guaraná, o energético misturado com o isotônico e o energético junto, ele até dá uma melhorada. Até porque a glicose... Quando tu chega no hospital, por exemplo, coma alcoólico. Tu chegou lá, a primeira coisa que o médico faz é: tchan! Glicose na veia. Então, a gente está ali. A gente recebe cada convite: “Olha, está tendo a festa tal aqui.” “Está tendo Summer Verão, está tendo não sei o quê.” “Não quer colocar tua tenda aqui?” Isso é fantástico. Por quê? Porque as pessoas sabem que, às vezes, até a gente ajuda a vender mais o produto ou coisa parecida. E está divulgando. Hoje a gente já tem um calendário, praticamente, desde os jogos, abertura dos Jogos Escolares, por exemplo. Lá no Sambódromo, que são 36 mil, 40 mil alunos. Uma festa dessa de 100 mil pessoas, outra de 50, e as feiras. E é claro também que a gente vai em lugar que o pessoal não é: “Olha, não sou acostumado a tomar.” E tem que fazer todo um trabalho. Quando a gente volta de novo, no outro ano: “Ah, puxa vida, tomei aquilo, como foi legal!” “Como é que é?” “Será que eu posso fazer em casa?” Aí que vem aquele outro feedback. “Olha, onde que se compra isso?” “Olha, nós temos assim, assim.” “Está aqui um potezinho.” Porque o que está aqui dentro está aqui. É o guaraná, mirantã, entendeu? Você mistura no seu suco de preferência. Suco de limão, suco de laranja, que cai maravilhosamente bem. Com os drinques. Um pouquinho do pó do guaraná em qualquer tipo de drinque, ele é fantástico! Com a vodca, por exemplo. Parece que se casou. Então, inclusive, a gente está até publicando agora um trabalho, Culinária e Drinques do Guaraná, onde tem todas as receitas. O bolo de guaraná, a geleia de guaraná, o mousse de guaraná. Os drinques. E a gente vai citando um por um: “Olha essa aqui é a receita do Ricardo da praia.” Que era o mirantã-sapó, famosíssimo, tu tomava na cuia, na cabaça. Era o guaraná dissolvido com a água de coco e o mel de abelha. E assim por diante. Chama-se mirantã-sapó. Já não tomava, não toma o guaraná, tu toma um sapo. Tu toma na cuia, passa no sentido horário do relógio, quer dizer, tem um ritual para tomar. Então tudo, eu me lembro, quando eu cheguei aqui, também me ensinaram. “Tu faz isso, faz aquilo, é bacana.” Então, tem toda essa... O bolo de guaraná foi o Guaraná Tibiriçá, um guaraná antigo, hoje está no Mato Grosso. E eu sou cliente deles, às vezes, quando eu viajo, que eu vou para o Sul, Sudeste, eu compro o guaraná, o xarope dele. Que eu sei que é da mesma qualidade do nosso. É guaraná daqui que vai para lá. E sempre a nossa preocupação. Inclusive, hoje, essa semana, está saindo hoje, até atendi o telefone, de um selo de identificação geográfica. Veja bem, hoje, por exemplo, o nosso guaraná, o guaraná que eu trabalho, ele é certificado. Até te falei, está aí o pessoal da Ecocert, estão chegando sábado. Eles estão lá na comunidade Santa Clara, certificando. A última certificação! A última inspeção, aliás, para a certificação do guaraná. Comércio de Santa Clara e Menino Deus, que tem todo aquele trabalho. Então, há três anos, inclusive, certificando o solo. Que é princípio de tudo, até chegar no guaraná. Hoje eu compro o guaraná deles.
P1 – Explica direito o que é essa certificação.
R – Essa certificação é o seguinte: não adianta tu dizer que é e não é. Por exemplo, eu posso ser um motorista de carro, dirigir perfeitamente, se eu não tiver habilitação, o guarda vai me prender, vai me levar no carro para o curral, vai me multar. Então, a certificação é justamente o certificado dando a certeza de que aquele guaraná, ele foi produzido de forma orgânica, sem nenhum tipo de aditivo químico, esse tipo de coisa. Essa certificadora, nós estávamos esperando duas certificações. A primeira que é a Ecocert e a segunda que é o IBD [Instituto Biodinâmico], o outro instituto também. O Ecocert é um instituto francês, com sede em Santa Catarina, reconhecido na América, na Ásia, na Europa. Que isso é importante, que a intenção do nosso guaraná é ir para esses lugares. E o IBD, que é o Instituto Biodinâmico também, de São Paulo. Um é de Santa Catarina, francês de Santa Catarina, e outro é de São Paulo, também está certificando. Um é via Sebrae, que é o Ecocert, e o outro, o IBD, é via Fucapi [Fundação Centro de Análise, Pesquisa e Inovação Tecnológica], que é um centro de tecnologia que nós temos aqui em Manaus, que ele dá um apoio tremendo. Então, esse tipo de coisa, há uns 15 anos não existia isso, dez anos, esse tipo de preocupação. Por exemplo, nós temos hoje uma pilação aqui que vai receber um certificado de ISO [International Organization for Standardization]. A do paulista está tudo lá uniformizado, tudo azulejado. Não que a do Seu Neves não seja, a do Seu Neves é excelente! É que eles viram o jeito que até hoje ele faz. Mas já o mercado... Está lá o rapaz com um negocinho aqui, um chapéu. Então, está havendo essa... Até porque hoje o guaraná, ele está tendo muito olhar para a gente já. E uma coisa que um amigo meu, que tinha aqui, o Magrelo, foi até prefeito da cidade. Ele dizia: “Silvio, o negócio é agregar valor, é agregar valor.” Então, hoje, por exemplo, o meu sogro, o avô, o meu sogro, pai da minha esposa, e o avô, ele tem uma produção de guaraná aqui indo para o Pupunhal, o pai do Hernandez, e ele pegava o guaraná e vendia a rama. Hoje, nove reais o quilo, hoje ele já mói. Ele já moeu, o filho que é o PC, trabalha no computador, já fez um rótulo. Guaraná tal, Comunidade do Pupunhal, Sítio São Francisco. Quer dizer, o preço já duplicou. De nove reais o quilo dele a rama, para 20 dele em pó, ou 15, 16, o que for. E o guaraná, é pouca a produção dele: 100 quilos, 150 quilos. Já vai direto para Manaus, já está direcionado. Um filho trabalha no INSS [Instituto Nacional do Seguro Social], o outro filho trabalha no Bradesco, o outro filho já conheceu Belém e assim vai indo. Então, já está se agregando valor, nós também, no guaraná. Já estamos agregando valor. O bastão já é um guaraná agregado na forma de bastão. O quilo dele é melhor do que ele em rama ou em pó. Então, essas coisas não tinha. Aquilo que eu falei. Melhorou muito nessa parte do guaraná. Começou com o Jorge essa preocupação, do código de barra, para melhorar lá fora. E a gente, como está isolado, porque, se a gente parasse, iam paralisar. Se a gente pudesse olhar de um helicóptero e ver de cima. Nós estamos no meio de um triângulo, de três majestosos rios. O Rio Amazonas, o Rio Madeira e o Rio Tapajós. Lógico que nós estamos aqui nos afluentes deles: Paraguama, não sei o quê, Rio Preto e tal. Então, essas parcerias são importante. E, lá fora, o consumidor americano, o asiático, o europeu, ele dá muito valor a esse tipo de coisa. E outro interessante, junto com o selo da Ecocert, e aí que tu falou: “Qual é a importância do selo?” É que vem junto um selo de mercado justo, que é um mercado justo lá fora e que exige isso: que não existe mão de obra escrava. Que não existe exploração da mulher. Tem um monte de coisa ali. Que a pessoa está trabalhando e recebendo um salário. Seja ele caboclo, seja ele índio. Então, só isso, só o fato de estar crescendo já foi o agregamento do valor. Ali já. E a pessoa que está comprando lá na ponta, ele está pagando mais caro, ele está pagando duas vezes o preço, três vezes o preço. Mas ele sabe que a fonte está sendo beneficiada. Então, isso que é bonito. E, quando a gente trabalha com mercado, com um produto que é ecologicamente correto e justo... Bah! Sustentável. Quer dizer, aquilo parece que te dá mais vontade de tu continuar. Eu, quando eu chego de uma feira, que eu encontro as pessoas que me vendem os grãos, ansioso para saber se eu vendi dez quilos, se eu vendi 100 quilos, se eu vendi 400 quilos, quando a gente vê esse brilho no olho do guaranalista, do caboclo, minha Nossa Senhora! É fantástico! Porque eu estou como beneficiador, eu não sou produtor. Eu compro dele, passo essa reciclagem que a gente, às vezes, aprende lá fora. Eu fui aprender tudo sobre o guaraná orgânico. Eu fiz dois cursos em Fortaleza, junto com o pessoal do Ministério da Agricultura, para saber o que é isso. A compostagem, como é que é feita, como é que não é? Porque eu estou vendendo, mas eu tenho que saber como é que faz. Eu estou sendo entre o produtor e o consumidor, mas eu tenho que estar no meio. Por exemplo, eu aprendi agora, eu não sabia que o meu produto, ele contém guaraná orgânico. Mas ele não é organicamente. Por quê? Porque até o jeito de eu envasar, eu tenho que me adequar agora. Eu não posso, por exemplo, esterilizar os meus potes só com álcool. Tem todo um processo e tal, para tu receber aquele selo no teu produto, Ecocert ou IBD, de alguma certificadora, como tem uma outra agora que está vindo que foi fundada em 1901. A BIS, é Business Institute, não sei o quê, também que vai certificar. Mais uma certificadora de produtos orgânicos. Ali está um lote, onde tu vai rastrear. Então, esse guaraná que está aqui, o lote tal foi comprado da comunidade tal. Que tem muita gente na Europa vendendo guaraná, dizendo que é do índio. E o índio, coitado, está aqui, passando necessidade, e as pessoas ganhando dinheiro em cima do índio, ou coisa parecida.
P1 – Por fim, Silvio, eu gostaria de saber o que você achou de contar um pouco da sua história de vida aqui?
R – Eu achei fantástico. Estou tendo essa oportunidade, nunca tive uma oportunidade como essa. Às vezes, a gente conta alguma coisinha por cima. Mas tu mexeu até com meu emocional. Desculpe te chamar de “tu”, o gaúcho chama assim. É você. E o Museu da Pessoa, eu tive a felicidade de, nesses dias, ler alguma coisa. Bah! Para mim é fantástico! É maravilhoso poder deixar registrado essa pequena experiência que eu acredito que ainda vai vir muito mais. Eu acredito. Eu espero que, tomando guaraná, chegue até os 82, pelo menos, aos 92, aliás, 46 mais 46. Mas eu achei fantástico! É de ações como essa, de institutos como esse, que faz com que a gente continue e saiba que está sendo valorizado. Que está deixando alguma coisa. Porque, hoje, a informação é fundamental. Hoje, eu acho que a maior arma é a informação. Não adianta ter um produto muito bom, excelente, mas, se não ter dito, ter espalhado, ter comunicado, ter avisado, aí essa uma maneira de... Eu só tenho a agradecer esse convite que me foi feito e dizer que eu estou sempre à disposição. Qualquer coisa que precisar, a gente está sempre às ordens. E o meu muito obrigado, então!
P1 – Muito obrigado pela entrevista.
R – Tá legal. É isso aí.
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