As coisas começaram a mudar em 1985. Eu tinha o meu primeiro hotel. Era movimento noite e dia. Só pra ter ideia, eu tinha até radioamador. Eu me comunicava com Óbidos. Quando vinhamas balsas, eles se comunicavam comigo. Eu também comprava batata, verdura e fazia aquele caldo e espalhava n...Continuar leitura
resumo
Maria de Lourdes nos conta a história atribulada de sua família, crescida sem a presença de um pai. Por causa disso, Maria foi criada por uma tribo Munduruku e parentes que viviam em Santarém. Ela nos conta a história de como entrou para o comércio na região de Juruti, vendendo diversos alimentos e ganhando renda com plantação e gado. Ademais, Maria nos fala sobre a relação difícil com sua mãe e seu casamento com um marido que por ser alcóolatra dificultou muito a formação de sua própria casa. A história de Maria de Lourdes também é sobre sua fé católica e a constante presença de "visagens" ao longo de sua vida. Além disso, sua história é sobre o hotel que construiu e que desmoronou, e de sua reviravolta, na reconstrução de um novo e que existe até hoje.
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- Ficha técnica
P/1 - A gente pergunta primeiro o seu nome completo, a data e o local onde você nasceu.
R - Meu nome é Maria de Lourdes Pimentel Sampaio, eu filha do Amazonas, sou Amazonense. Nasci no interior do Corocoró, na comunidade, em 1949.
P/1 - Sabe a data?
R - Dia 4 de setembro.
P/1 - Dona Loudes, q...Continuar leitura
P/1 - A gente pergunta primeiro o seu nome completo, a data e o local onde você nasceu.
R - Meu nome é Maria de Lourdes Pimentel Sampaio, eu filha do Amazonas, sou Amazonense. Nasci no interior do Corocoró, na comunidade, em 1949.
P/1 - Sabe a data?
R - Dia 4 de setembro.
P/1 - Dona Loudes, quais eram os nomes dos seus pais?
R - Eu só conheci a minha mãe, a minha mãe eu tinha. Se eu contar a história do meu pai, vai muito longe.
P/1 - Pode contar.
R - Na época, a minha mãe era muito pobrezinha, morava em casinha de palha. Eles vinham de lá, eles vinham pro Juruti velho fazer roça pra plantar maniva, macaxeira. A minha avó tinha seis filhos e uma das filhas era a minha mãe. A minha mãe era mulher solteira. Mamãe, com 17 anos. Naquele tempo tinha esse negócio de resguardar de menstruação. Então, as outras irmãs estavam todas, eles diziam que estavam doentes. Aí, a minha avó disse: “Olha, fui pedir o filho da outra senhora lá pra acompanhar a minha mãe, pra queimar o tal de roçado”. Roçado é pra plantar a roça, né? Aí, o que aconteceu? Dois amigos se aproveitaram da minha mãe. Quando chegou na casa, depois, a minha vó notou que ela não estava naquele semblante dela, né? E ela falou: “Mas o que foi que aconteceu pra ti, Preta?”, o nome dela era Valdomira. “Nada mamãe, não aconteceu nada”. Mas ela sempre pegava minha mãe. Aí foi, foi. A minha mãe engravidou. E fez logo duas filhas, eu e a outra, que mora em Parintins, nós somos gêmeas. Com isso, disse que o rapaz era noivo de outra pessoa, naquele tempo tinha pedido, né? Pedir a filha pra casar. A vovó não sabia de nada, e foi crescendo a barriguinha, foi crescendo. A vó expulsou ela de casa. Naquele tempo era uma coisa que acontecia, não é como agora. Naquele tempo a filha saía de casa mesmo. Mamãe foi parar na beira de um lago, morando lá. Aí, o pessoal que passava por lá ajudava ela, dava as coisas pra ela. Era um barracão onde criavam bode, carneiro. Ela ficou lá vigiando esses bichos. Enquanto isso, o meu pai, quando aconteceu e ele ouviu dizer que ela estava gestante, o irmão pegou, vendeu uma porção de gado e mandou ele ir embora pro Rio Branco, uma cidade chamada Rio Branco. Ali nós nascemos, nosso tio que acompanhava o nosso tratamento, negócio de alimentar com leite de cabra... Nós fomos crescendo, nos formando. Com isso ela começou a filhar, teve mais sete filhos, tudo sem pai. Mas a minha vó recusou ela de uma vez. Ela trabalhava no campo com os outros, onde tinha trabalho, ela ia. Quando eu cheguei com sete anos, a minha avó adotou a outra, meu par, ela é branquinha, bem branca, e a minha mãe ficou comigo. Quando eu inteirei sete anos, a minha mãe me deu pra uma índia. Eu levei dois anos com essa índia no rio Curapá, onde moravam uns índios. O meu tio casou com uma índia mesmo, aí eles me levaram. Meu tio viu que eu estava muito sossegada, que não tinha notícia. Não sei se vocês ouviram falar em canoa grande, que é uma canoa de tolda, assim, pra me trazer embaixo daquela tolda. Ele conseguiu me localizar, ele levou quatro dias andando de canoa nesse beiradão pra dentro desse rio Curapá pra me encontrar. Ele me encontrou na tribo onde ela estava e me trouxe. Mas só que eles me tratavam bem, né? Então, eu andei fazendo aquelas danças, que aparecem na televisão que eles fazem... Ela me deixava separada e eles iam para aquela festa deles pra lá. Mas eu via aquele negócio. E assim, depois eu vim embora. Quando eu inteirei doze anos apareceu uma tia minha, a irmã dela me levou pra Santarém. E assim eu fui me criando no seio das outras famílias, porque minha mãe não tinha condições de ter, você entendeu?
P/1 - Qual era a tribo, você sabe?
R - Era Munduruku, essa tribo que vivia aqui, porque quando concedeu a cidade, essas tribos começaram a se afastar. Eu conto assim porque nós tivemos apresentação na escola, na igreja, eu sempre frequento a igreja, e eles contaram como foi. Essa tribo vivia mais no Juruti velho, quando deu uma febre grande, muitas pessoas estavam morrendo, eles vieram, fugiram, os índios envenenaram a água lá, fugiram e fizeram uma capelinha bem ali nessa ponta, onde era o muro, Apinima. Até pararam porque o padre mandou tirar daí porque foi um lugar sagrado, né? Acabou a coisa das danças de tribo. Mandou, está tudo parado aí, desativado. Disse que se era pra fazer uma dança de escândalo, que fizessem uma igreja ou então um posto médico pra atender o ribeirinho, né?
P/2 - E por que era sagrado, dona Lourdes?
R - Porque quando eles fazem a fundação da igreja, eles fazem um ritual sagrado onde vai ser localizada a igreja.
P/1 - Lourdes, a senhora lembra do dia que a sua mãe deu você pra índia? Com sete anos, né?
R - Sete anos, mas eu não me lembro, não.
P/1 - Você lembra quando você sentiu que foi morar longe da sua mãe, você não lembra disso, desse momento?
R - Eu me lembro.
P/1 - Como foi na sua cabecinha de criança?
R - Na minha cabecinha de criança eu ficava na casa, ia pro mato com ela, tirar as coisas do mato pra comer, né? Muitas frutas do mato. Porque o índio, ele só se alimenta com essas coisas, comida do mato. Caça. Mas eu não demorei muito lá, não. Acho que levei uns dois anos. Mas também eles cultivavam muito, plantavam macaxeira, cana.
P/2 - E as outras crianças?
R - Eles levavam, ficavam na oca deles, lá.
P/2 - A senhora brincava com as outras crianças?
R - Não, ficava sempre separada, ela tinha coisa de eu não ficar junto com eles. Eu ficava mais isolada, não sabia o porquê.
P/1 - E a língua, era difícil falar?
R - Só ela falava comigo.
P/1 - Ela falava português?
R - Falava português. Mas quando chegava na hora deles estarem juntos, ela falava a língua deles, e eu nunca aprendi.
P/1 - E a senhora ficou dois anos ali, e depois de dois anos...
R - O meu tio foi me pegar, depois eu fiquei mais um tempo com minha mãe, com eles. Aí, chegou uma tia e eu fui pra Santarém. Em Santarém, eu não sabia ler nem escrever e lá eu comecei a estudar. Aliás, estudei um pouco aí, um ano, não sei... Tinha um banco ao redor, a professora lá atrás, ela chamava cada um: “Fulana, vem dar sua lição”, nesse tempo era... Você lembra disso?
P/2 - Lembro.
R - Ahhhh, quando chegava na hora da palmatória, de tabuada. Naquele tempo tinha gente que sabia tabuada, hoje em dia só a máquina, né? Pois é. Sexta-feira era o dia de tabuada, aquele que não sabia responder e outro respondia, ó. Se desse devagar, “ah, tu não soubeste”, ela pegava a palmatória. Era palmatória
P/1 - E quem dava palmatória? Era a professora mesmo?
R - Quando a outra amiga acertava, era a amiga que dava naquela que não sabia. Agora, quando a professora via que era fraquinha, “tu não soubeste”, ela pegava a mão dela e dava nela [barulho de palmada], pra ela sentir. Como eram as coisas, né?
P/1 - Isso era aqui em...
R - Em Corocoró.
P/1 - Com quantos anos? Cinco, sete, nove? Quantos anos você tinha nessa época no começo do estudo?
R - Era muito, uns 20 alunos.
P/1 - Mas quantos anos a senhora tinha?
R - Eu devia estar de sete pra doze anos, nesse intervalo eu estudei. Aí, como era o castigo que a gente não passava lição?
P/1 - Como que era?
R - Nesse tempo a gente usava aqueles vestidinhos bem compridinhos, largos. A gente ia pro milho, quando não era pro ralo. Quando a gente ia pro milho, a gente extendia o vestidinho bem assim, arredava o milho do joelho e ficava lá de castigo. Mas era engraçado, né? Quando a gente ficava à tarde, se a gente não respondesse malcriação, a gente saía logo que terminava a aula, mas se respondesse, dobrava, aí o outro colega ia por ali, ajeitava alguma coisa
escondido dela pra gente comer. Uma cana, uma macaxeira, pedaço de peixe frito, seja lá como for. Era assim, era desse jeito a vida do interior.
P/1 - E a senhora era muito travessa, aprontava muito no colégio, ficava muito de castigo ou não?
R - Ficava porque eu era burrinha, não sabia... Eu não aprendia rápido, como agora eu vejo crianças. Eu levava era tempo em uma letra para eu saber, e ela dava na gente, a gente ficava mais, assim... Coisa na mente. Naquele tempo era paulada mesmo. Nessa região aqui? Deus o livre, os professores ainda eram mais burros que os alunos. Quando eu saí, que a minha mãe me deu pra Santarém, eu levei três anos. Foi dez, onze, doze. Eu só sei dizer que eu vim de lá com 13 anos. Aí, nós não tinhamos como sobreviver, a minha mãe era pobrezinha mesmo, pobreza é pobreza mesmo. Mas eu já sabia ler, já sabia escrever, já sabia fazer uma conta. Aí, eu olhei para um lado e outro e falei: “Meu Deus, como a gente vai viver aqui, meu Pai, como o pessoal vive aqui, mamãe?” Só que mamãe plantava muita melancia, jerimum, tomate, cana, banana. Só que não tinha pra quem vender, não tinha o comprador. A casa, você entrava dentro do barracão, cheirava àqueles cachos de banana. Entrava passarinho pra beliscar a banana que estava se estragando. Mamãe plantava muita banana, tinha muita extensão de banana, hoje a gente não vê mais isso. Mamão. Você ia dentro da plantação de banana, era misturado banana, mamão, cana... A gente via muito pássaro, tucano. Essa outra que come banana e gosta muito de mamão, pipira. Quando chegava o Regatão, chamava Regatão, essas canoas grandes que levavam sabão, açúcar, café. A gente trocava, mamãe trocava, tantos cachos de bananas por três quilos de açúcar, uma barra de sabão. Azeite, óleo de cozinha. Era desse jeito.
P/1 - Regatão cobrava bem caro, né?
R - Era. Mas naquela época, trabalhavam muito e não tinha saída. Quando achava uma casa que favorecia o preço pra eles, eles compravam. Quando eu inteirei 15 anos tinha muitos pescadores, pessoas que trabalhavam, pegavam os peixes. E a gente via aqueles peixes grandes, tambaquizão bonito, aí, nós tinhamos gado e eu disse: “Mamãe, vam´bora vender esse gado, mamãe, pra gente comprar uma mercadoria pra vender aqui. Porque nós já sabemos fazer conta”. Era eu e a outra, né? Aí, até que ela vendeu umas duas rezes e nós viemos fazer uma compra aqui em Juruti.
P/1 - A senhora morava em Santarém?
R - Não Morava no Corocoró ainda. Depois de voltar de Santarém.
P/1 - Ah, a senhora foi pra Santarém e voltou pra Corocoró?
R - É. Quando eu voltei, o que a gente fazia? Levava açúcar, café, farinha, sabão, o que mais de necessidade no interior. Não sei se vocês sabem o que é o interior? O que é mais necessário. A gente levava essas coisas. Bolacha. E a gente vendia. Depois nós fizemos, eu e ela, uma amizade com os pescadores, com os pais de família. Por sermos mais católicas (risos), conseguimos fazer amizade. Porque nós chamávamos as pessoas para ouvir a palavra, porque nem igreja tinha lá na época, não tinha nada. A gente fazia em comunidade. Como a gente via muito aquela coisa do pessoal sem nada. Já pensou você amanhecer o dia, deixar dar oito horas para assar um peixe grande para você comer com farinha, dar para uma criança? Lá era assim. Começamos a observar e pedimos a Deus para que Ele desse uma inteligência pra ajudarmos aquele povo. O que nós sugerimos? Nós viemos aqui em Juruti, nós tinhamos 15 anos. Começamos a contratar peixes pras famílias: “Olha, nós vamos trazer uns tambaquis grandes pra vender pra vocês”. Era baratinho, né? Começamos a fazer experiência. Mandamos eles [os pescadores] pegarem o peixe, não matar o peixe, que naquele tempo não tinha gelo e também a pobreza era muita, nem sal eles tinham condições de comprar, entendeu? Eles prendiam o peixe vivo no fundo, quando era de madrugada, duas horas da manhã, eles chegavam em casa, batendo na varanda, era uma casa de varanda. Aqueles peixões bonitos, tambaquis, surubizão A gente embarcava. Você imagina que a gente atravessava o Amazonas, você está vendo a extensão do Amazonas aqui? Três horas da manhã pra chegar às seis horas da manhã para vender o peixe na beira.
P/1 - Era rabeta?
R - Nãoooo Era remo.
P/1 - Remo mesmo?
R - Remo, não existia motor nessa época, meu filho. Não existia motor nessa época, quem tinha motor era rico. Não tinha motor, não existia rabeta. Nós fazíamos isso. Vimos que dava e a gente sabia que estava ajudando aquelas pessoas. Mas depois, quando eu tinha 15 anos, eu saí porque eu queria fazer pelo menos a quinta série, porque se eu fizesse a quinta série, eu ia ser uma professora. Nessa época, quem tinha a quinta série, ou até a quarta série, era uma professora. Aí, eu saí de novo, pedi pra mamãe. A mamãe me deu para uma família para eu poder estudar, mas eu não tive sorte, não. Naquele tempo, eu sempre digo pras pessoas de agora, pros jovens de agora: “Hoje vocês estão perdendo a grande oportunidade que nós não tivemos”. Naquele tempo, pra estudar era escravizado, tinha que tomar conta de casa, de filho, tinha que arrumar tudo e ter tempo pra ir pra escola, se tivesse, e sem ganhar um tostão. Eu ainda passei por isso, porque quando eu saí pra estudar, a minha melhor roupa era a roupa da minha patroa, desmanchada para fazer meu vestidinho. Eu nunca soube o que era um vestido comprado pronto, nunca comprei uma fazenda pra fazer um vestido, era só assim. Prova é que teve até o segundo ano, nem completei, não teve condição, não. Eu acertei na casa de uma prima que era da mamãe. Porque sabe, quando o parente tem uma pessoa longe, ele procura o parente pra ajudar, foi o que a mamãe pensou. Antes ela tivesse me dado para uma família estranha, que eu tinha certeza que iria estudar. Aí, passou-se, passou-se, eu fiquei moça, ela casada. Logo quando cheguei na casa dela estava tudo bem, depois ela insistiu para eu tomar benção do marido dela. “Ué, mas ela é minha prima, por que ela está insistindo para eu tomar a benção do marido dela?” Aí, eu pego e conto pra vizinha lá de cima e ela diz: “Minha querida, reza. O que tu é pra ela?” “Ela é minha prima.” “Porque tu vai se dar muito mal. Ora pra que não aconteça isso, porque aqui não aguenta ninguém. Tua prima é muito ruim.” Ela era enfermeira do hospital municipal.
P/1 - Daqui?
R - Não, em Santarém. Aí, pra cá e pra ali, ela só escrevia carta dizendo pra mamãe que eu estava no colégio Santa Clara, estudando, fazendo isso, aquilo, o curso tal, que eu já estava em tal série. Tudo era mentira. Teve uma vez que eu não suportei mais, eu saí da escola, estava chovendo como ontem. Ontem foi um dia chuvoso, não foi? Eu fiquei lá, eu me lembro que era um dia de terça-feira. Chuva, chuva, chuva, chuva. Estava lá encolhida, nós éramos quatro meninonas, menina moça já. O estudante daquele tempo, não sei se você lembra, só era moça, rapazinho, não tinha criança estudando. Aí, o que aconteceu? Ele me chamou, ele ia num carro, ele me chamou, eu subi no carro com ele pra levar o peixe para o pessoal na cidade por onde eles trabalhavam. A firma que ele trabalhava era não sei o que, não era brasileira não. Quando chegamos em casa, eu fui saindo entre tapas e beijos, na porrada mesmo. Ela me dando e eu não sabia o porquê. Ciúmes. E eu não sabia também porque eu estava apanhando, Pai. Furou ele com a tesoura, mas meu Deus do céu. Aí, daquele dia em diante, ela começou a me tratar de putinha. Era o choro de todo tempo. Eu já era feia, mais feia eu ficava porque eu chorava todo dia. Era dia e noite chorando por causa do nome. Só porque eu vinha no carro com ele. Foi, foi. Quando foi um belo dia, ela chegou lá e disse: “Olha, sua putinha, você vai limpar esse quarto aqui antes de você ir pra aula”. Eu estudava intermediário. Eu pedi pra mãe dela levantar cedo, porque eu queria lavar o quarto. Naquilo que ela vai levantando, já ia dar quase das nove horas, eu já vou com o balde, eram aqueles baldes de lata que existia e a vassoura. A vassoura deu naquele roupão dela, que vestiam aqueles robes grandes, né? Ela tropeçou, correu no telefone do vizinho e contou que eu tinha dado nela, que eu tinha batido nela. Deixa estar que o dono do telefone estava lá em cima trepado numa copa de uma árvore, que ele estava querendo desgalhar, era um pau, uma fruteira, não me lembro o nome dele, estava lá em cima. Quando ela chegou, ela tirou o cinto. Eu fiz a parte do Senhor que falou aqui uma vez: “Nossa Senhora, se o Senhor não quer que eu dê na fulana, faça com que ela não passe no meu caminho. Mas se o Senhor quiser, Nossa Senhora da Saúde, que ela passe”. Assim eu fiz dessa vez: “Nossa Senhora da Conceição, só a Senhora que vai me ajudar agora. Se for da sua vontade, me ajude, Pai, que eu não aguento mais. Eu estou pedindo uma ajuda, Nossa Senhora, que a Senhora me ajude a eu sair aqui dessa casa”. Eu não tinha correspondência com a minha mãe, não tinha. Ela veio, quando ela veio, eu peguei uma cadeira de preguiçosa, sabe qual é a cadeira de preguiçosa? Joguei em cima dela, trepei, já estava com 15 anos, trepei em cima dela. Eu ainda não tinha a força de uma mulher madura, aí, ela passou por cima. O homem estava lá, assistindo todo o drama que estava acontecendo. Ela me engasgou e ia me esbofetear tudo de todo jeito. Meu Deus, aí eu fiquei. E o senhor disse: “Oh, dona Cira Não faça isso pra essa jovem, tu vai matar ela”. Ela não sabia de onde era, ela saiu de cima de mim. Mas quando ela saiu, eu já estava mais pra lá do que pra cá. E acho que a outra vizinha estava vendo, porque quando ela saiu pra rua e entrou lá, ela tirou a cerca, que era de madeira. Eu me lembro tão bem que ela colocou uma água na minha cabeça. E eu lá no chão. Aí, ele entrou também pelo outro lado e disse: “Olha, fulana, vamos logo no juiz”. Eu me lembro tão bem... Eu não falava, mas o meu sentido estava meio... “Vamos chamar um carro e levar lá no juiz porque não pode acontecer isso”. Eu me lembro que eles me carregaram, me puxaram pela cerca, me tiraram pela casa da vizinha e me levaram. Eu me recordei mais quando eu já estava no Juizado lá. Suja, do jeito que eu estava eu fui. E ela já tinha ido, se mandado para o hospital. Quando foi umas onze horas, onze e meia, mandaram buscar. Ela chegou lá e eu estava lá. Eu fiquei mais impressionada, porque ela disse: “Mas, Lourdes, o que foi que aconteceu contigo, minha filha?” Cara de pau. Aí, o juiz mandou me retirar, eu entrei em um quarto, fiquei no quarto isolada, enquanto o juiz estava com a outra família. Primeira coisa que ele pediu: “Agora você vai ter que providenciar uma clínica das melhores para essa moça, ela está muito doente”. Antes disso, ele já tinha colhido o meu depoimento, né? Perguntou quantos anos eu vivia lá, por que eu vivia assim, por que ela me fazia isso. Fez todas as perguntas, eu respondi. A única coisa que eu disse: “Doutor, a única coisa que eu quero, eu não quero mais voltar pra lá. Não quero, não quero. Eu já passei muita situação difícil ali, não quero mais voltar”. “Você sabe onde a sua mãe mora?” “Eu sei, mas eu não tenho condições de ir pra lá agora”. Com isso, fiquei acho que quase dois meses, e chega uma amiga minha que estudava comigo, uma japonesa, ainda foi querer tirar eu de lá. Ele disse: “Só se você trouxer seus pais pra assinar um termo de compromisso, aí ela sai”. Ela deu jeito de levar o pai e a mãe e eu saí. Eu fui ficar com uma família japonesa. Eu levei dois anos trabalhando com eles, não consegui estudar mais porque já tinha passado o tempo. Mas eu aprendi e hoje estou aqui.
P/1 - A senhora estava onde, em Santarém?
R - Em Santarém.
P/2 - E a senhora tem lembranças da escola lá em Santarém, dona Lourdes? Daquele tempo que a senhora estudou lá?
R - Eu tenho. É Ezeriel Monico Matos, é uma antiga escola mesmo, um grupo.
P/2 - E a senhora tem alguma lembrança daquela escola? Dos amigos, de algum professor?
R - Tenho, mas acho que é tudo antigo, pessoas idosas, já. Já se foram, com certeza. Eu estou com 60, né? Quando aconteceu, eu estava com 15 anos. Não, quando eu fui pra lá eu estava com 14 anos, levei dois, quase três anos lá. Naquele tempo a gente era humilde, o que a família dizia, a gente atendia, não é como agora. Agora, você não aguenta os jovens. Primeiro, que eles têm por onde sair, tem uma lei que ampara eles, naquele tempo não tinha, não. Não tinha nada, nada, nada. O que quisessem fazer com a gente, faziam.
P/1 - Mas a senhora tinha alguns momentos de brincadeira, de lazer?
R - Não, não tinha. Nada, nada. Era trabalho, vigiar criança, e quando tinha tempo, ia pra escola. Eu nunca soube o que foi brincar com uma boneca, estar com umas colegas, nunca. Era só trabalho.
P/1 - Quando a senhora chegou em Santarém, como era Santarém na época?
R - Santarém era como Juruti antes, agora já está um pouquinho ajeitado, Juruti. Mas algumas partes de Juruti ainda estão como Santarém. Aquelas casas de taipa, não tinha casa boa. As ruas não tinham asfalto, a rua era escorregadia e a gente tinha que se segurar pra poder subir.
P/1 - E tinha mais mata?
R - Tinha mais mata. Santarém agora... Até onde eram as colônias, agora é cidade. Eu estive lá no ano passado, eu fui no Cipoal. Cipoal é cidade, era onde fazia roça, agora é tudo cidade.
P/1 - Eu fiquei curioso, como que era essa vida na Amazônia, tão grande, tão longe das coisas?
R - Só pra ter uma idéia, pra gente se destacar de onde nós morávamos pra cá, era tudo de canoa. Pra Parintins, de canoa, fazia aquelas toldas grandes, quem tinha filho, pra botar debaixo de cada tolda, e as crianças irem lá. Quando chegava no meio da viagem, iam pedir agasalho naquelas casas na beira do rio, pra passar a noite, e no outro dia viajar. Era desse jeito, era assim a vida do interior.
P/1 - E as visagens, tinha essa coisa?
R - Tinha visagem.
P/1 - A senhora viu?
R - Tinha os botos, chamavam a Lenda do Boto, né? (risos). Estou achando graça porque uma vez, lá onde nós morávamos, a filha de um senhor, era gente que tinha mais condições, antigamente diziam: “Se emprenhou do boto”. “Ah, sabe de uma coisa, a fulana se emprenhou do boto”. Boto... Era tudo fachada (risos). Até que um dia surgiu pra cá e pra ali, tá gestante do boto, dava aqueles ataques, parece que ela era fraquinha, uma criança puxava ela e dava aqueles acessos nela. Disse que era o boto que vinha. E tinha os curadores, aí vinham os curadores benzer pra cá e pra lá. E tornava. Até que descobriram que era do seu João, um rapaz chamado João. Até hoje chamam ele de “João Boto” (risos). Aí, fizeram o casamento, mas existiam essas coisas.
P/1 - Dona Lourdes, e as visagens? O que a senhora já viu ou ouviu sobre isso?
R - Olha, eu vou contar daquilo que eu sei daqui. Quando eu vim de lá de Santarém, eu estava já com 18 anos. Foi o tempo que escreveram uma carta e eu recebi, mamãe tinha quebrado o braço, a clavícula, foi trepar em uma cuieira pra tirar cuia. Sabe o que é cuia?
P/1 - Conta pra gente.
R - É umas coisas assim que se raspam, parte a cuia pra fazer de alguma coisa, serventia na cozinha, colocar água pra tomar banho, que agora é só plástico, né? Naquele tempo era cuia. Cuia é palavra indígena. E eu vi, quando eu cheguei, a mamãe estava lá mesmo e eu comecei a tratar dela. Eu trouxe um trocado que tinha ganhado dos japoneses, é o que eles têm de bom. Eu não gosto que ninguém fale de japonês, porque eles são um pessoal muito econômico, nada se perde. Até roupa da criança, por exemplo, se tem um enxoval da criança, nasce deles, eles guardam, plastificam e colocam pra vender, pra comprar outro. Nós não, né? Já vai dando pros outros, vai estragando, não está nem aí. Acho que por isso que os japoneses vão pra frente. E a mãe da japonesinha, onde eu fiquei, ela sempre me orientava: “Olha, minha filha, pra você ter alguma coisa na sua filha, você tem que economizar e guardar as coisas, não desperdiçar nada. Se uma panela está velha, areia, passe, pra você não comprar outra, vai servir daquela mesma”. E assim era, ela me explicava muita coisa. Eu fiquei com isso, eu levei, pra chegar até onde eu estou, mesmo. Eu me lembro tão bem. “Quando você tem que fazer uma compra, você nunca mexa numa mercadoria enquanto você não pagar”. Olha só como eles são, né? Eu me lembro tão bem, ela tinha de falar as coisas que hoje em dia me servem e eu me lembro, né? “Eu não vou ver sua vida, Lourdes, mas um dia você vai ser uma mulher, vai ter muitos amigos, vai ser uma pessoa que muita gente vai enxergar, vai ser uma pessoa comunicativa”. Eu não tenho estudo mesmo, mas graças a Deus, todos me conhecem, eu agrado, venho... Aquele altarzinho que eu tenho ali atrás, tudo é presente que vem de longe, que mandam pra mim. Amizade... Quando eu vou desembrulhar, é um santinho. Aí, tem uma carta, uma coisa assim, uma frase. Que belo, faz a pena a gente fazer amizade. Não tem coisa mais preciosa que você fazer uma amizade. Tornando a conversa, quando eu vim de Santarém, fui tratar da mamãe. Com o dinheiro que ela me deu, eu fiz um comércio, eu vim aqui em Juruti ver uma casa mais barateira e eu comprei as coisas para eu levar em frente a vida da mamãe, acompanhar ela em Parintins. Aqui não existia médico, tinha umas freiras que trabalhavam, Irmã Bromilde, Irmã Germana, uma irmã que está na África, eram médicos aqui, faziam coisas de médico, né? Daquilo que elas não sabiam, faziam o possível, mas dava certo. Deus colocava muita coisa boa no que elas faziam, mas não havia médico aqui. De um certo tempo pra cá que teve médico. Se eu não me engano, foi ter médico em 80, mais ou menos. E eu levei minha mãe pra Parintins, custeei as despesas. No comércio, você sabe, a gente tem que ter muito jogo de cintura, fazer amizade, pra gente conseguir vender o que a gente tem.
P/2 - Como a senhora fazia esse comércio, conta um pouco, dona Lourdes, comprava, como que é?
R - Levava açúcar, café, sabão, bolacha, o querosene, naquele tempo era querosene pra acender a lamparina.
P/2 - A senhora levava pra onde?
R - Lá pro interior. Eu vinha de lá remando com a minha irmã gêmea. Nós fazíamos a compra e levávamos. Faziamos as prateleiras, tudo numa salinha. Mas ficava assim de gente. A gente começou a comprar pirarucu seco, posta de pirarucu seco. Fazia aqueles montes, chegou até que uma vez nós tivemos uma encomenda pra Belém. Nós custeamos um ano essa pessoa com pirarucu pra levar pra Belém. Piracuí, farinha de piracuí, mandava fazer a farinha de peixe pra enlatar e ir não sei pra onde.
P/2 - E a senhora fazia o comércio na sua casa?
R - Era, na minha casa mesmo.
P/2 - A senhora estava dizendo que pôs as prateleiras...
R - É, prateleiras mesmo. Aí, eu comecei a viver. Porque eu não sabia trabalhar como minha mãe trabalhava. Eu trabalhava, mas eu sabia que se eu fosse trabalhar não teria condições de viver a vida. Já com minha experiência de estudo que a gente aprende fora, eu consegui. Eu me casei com 20 anos. Meu marido era muito colega dos meus amigos, dos meus irmãos. Aí, as minhas irmãs disseram: “Olha, é com esse rapaz que você tem que casar”. Naquele tempo a gente não escolhia, não, era a família que escolhia. Aí, eu me casei, levei seis meses e me casei. Naquele tempo não era como agora, menina sai com o rapaz ali, a mãe nem pergunta. Naquele tempo a gente não saía. Depois do casamento, tanta cerimônia. Fizeram uma festa... Os meus parentes, porque eu não gastei meu dinheiro, a família que gastou, né? Fiz o meu vestido, o meu casamento, o banquete do casamento. Levei seis dias pra chegar com o meu marido. Meu marido fretou um motor pra vir buscar na casa da minha mãe, pra levar pra casa da mãe dele, que ele era o único filho. Mas eu não tive sorte com o meu marido, não. Eu também dou razão ao jovem hoje em dia, conhecer a moça. Naquele tempo, a gente não conhecia o rapaz, só ia conhecer depois de conviver. Não se sabia se ele era bom ou ruim. Eu vim descobrir depois de uns seis meses que o meu marido não era o que eu esperava.
P/1 - A senhora estava contando do seu marido, que a senhora foi conhecer depois que casou...
R - É, depois a gente foi se conhecer. No meu tempo havia um cafezinho, uma coisa pro pedido do noivado. Aí, a minha mãe era muito rígida, ela dizia: “Olha, o que eu fui, minha filha, eu não quero que vocês sejam”. Naquele tempo, aqui na nossa região, a mulher era discriminada, era criticada. Por exemplo, uma mulher solteira, que tinha filho com uns e outros, por exemplo, como era jovem, de boa família, o outro dizia assim: “Mas olha, vai casar com fulano”. E você dizia: “Mas eu? Deus me defenda” Era uma coisa que ninguém aceitava: a mulher solteira. Era discriminada, e sempre a mamãe dizia: “Eu não me casei, minhas filhas, mas eu quero que todas vocês casem”. Porque é muito triste uma pessoa ser discriminada. Mamãe não sabia ler, nem escrever. A mamãe tinha uma coisa assim, como eu saía, ela notava que eu era direitinha, né? Eu me lembro tão bem, uma vez eu me empenhei pra ir numa festa no igarapé das fazendas, eu tinha muita vontade de conhecer o igarapé das fazendas, porque é só criação, era muito bonito lá. Aí, eu fiz amizade com umas filhas de gente branca, a Aulene, a Eulina, da família Baranda. Gente que tinha dinheiro e elas gostaram de mim, aquela amizade, eu acho que eu sabia conversar, conquistar... Elas disseram: “Mas Lourdes, você dança?” Eu disse: “Eu não danço, não sei dançar”. “Mas eu vou te buscar pra gente ir à festa no Igarapé das Fazendas, lá tem uma festa muito chique”. Mas eu não acredito, eu disse pra elas: “Se vocês quiserem me levar, vão primeiro pedir pra mamãe com antecedência porque, se for na hora, ela não vai deixar”. A mamãe dizia que quando vai pedir na hora, está se oferecendo. Ah, meu Deus, naquele tempo a vida da gente era uma coisa meio criticada. O que aconteceu? Quando foi um belo dia, ela chegou em um motor desses: “Ah, o que a senhora veio fazer aqui?” “Eu vim pedir a Lourdes, pra gente ir em uma festinha lá no Igarapé das Fazendas. Vai mamãe, vai fulano, vai fulano”. A mamãe, o que ela foi, ela não queria mesmo que a gente fosse. “Tá, tudo bem”. “Olha Lourdes, você se apronta que nós vamos. Se tu não tem um vestido bonito, eu te dou”. Elas tinham. Chegou no dia, o baile era um dia de sábado, ela veio me buscar na sexta-feira. A música de assopro, aqueles negócios, uma música bonita, vinha de Parintins. Quando chegamos lá, meu Deus do céu, muito bonito lá. Com rês de gado no lado, aqueles barracões grandes todos enfeitados, pessoal dançando. E elas gostavam de beber uma caipirinha, eu fui experimentar, mas disse: “Não vou beber isso não, nunca bebi, sabe lá o que vai acontecer”. E começaram, dançaram pra lá, pra cá. Lá eu conheci um rapaz, conheci assim, falei com ele. “Você que é a Lourdes?” “Sou eu mesma, eu sou do Corocoró”. “Corocoró? Um dia eu vou visitar o Corocoró”. Mas ele só disse assim. Quando foi um belo dia, depois de uns dois meses, ele chegou. Aquele motor batendo, pi-pi-pi-ri. “Meu Deus, um motor aqui na beira?” E tinha gente no nosso comércio, a minha irmã, a Nazaré disse assim: “Lourdes, com certeza é gente que vem oferecer mercadoria pra nós”, “Mas, Nazaré, se for, é uma bênção, porque pelo menos tira a gente de Juruti”. Acabou que era o rapaz, chegou lá, apresentei a minha irmã. Ela tinha ficado no comércio, a gente não podia deixar só, porque tinha muita freguesia, receber produtos, o pirarucu, peixe. Aí, ele foi e disse: “Você sabe por que eu vim aqui?” Eu disse: “Não”. “Eu vim aqui porque eu não esqueço de você e eu vim pedir a sua mão”. Apresentei à mamãe, mamãe mais brava: “Mas vocês, quando vão por aí já trazem amizade pra dentro de casa Já pensou um negócio desses? Nem sabe bem quem é e já faz amizade” “Mas mamãe, a gente tem que fazer amizade por aí. Que negócio é esse?” Mamãe tem muitas coisas pra conhecer, a senhora não conhece, a senhora vive aqui, plantada. Tem muitas coisas que a senhora ainda vai ficar muito duvidosa”. O pai dele era comerciante também, em Terra Santa. “A senhora que é dona Preta?” “Sou eu mesma”. “Olha, vim aqui pedir a sua filha. Eu gostei dela, quem sabe ela não vai ser a minha mulher”. Disse mesmo assim, mas brincando. Ela respondeu: “O que tu tá falando aí?” “Isso que a senhora tá ouvindo, dona Preta”. Ela disse: “Olha meu filho, a minha filha é pra parir embaixo do meu fogão”. Olha só a coisa dela... Ah, mas eu fiquei... A Nazaré entrou lá: “Mas Lourdes, pelo amor de Deus, a mamãe...” Ela disse: “O que tu se refere da gente parir embaixo do fogão dela, Lourdes?” “Ela quer que a gente seja igual ela, minha querida, mas a gente não vai ser, não. Nós vamos segurar essas botas com muito cuidado”. “É”. “Tá, tudo bem”. Ela ficou, não recebeu bem ele. Ele se despediu, disse que uma vez por semana ele vinha. Já imaginou, gastar pra vir em casa? Meu Deus do céu, mas foi assim. Ele vinha, mas a mamãe ficava brava, brava. Deus do céu. Um dia, ele disse: “Acho que não venho mais aqui, a sua mãe é muito aborrecida”. Eu disse: “Não vai atrás dela, não, isso é coisa de gente antiga. A vida é assim mesmo”. Não desanimei ele, pra cá e pra ali, foi o tempo que ele arranjou outra namorada lá em Terra Santa, não sei por onde. Aí, ele escreveu uma carta pra mim dizendo que ele não vinha mais, contando que ele gostava muito de mim, mas a minha mãe era assim. Tudo bem. Passou-se, passou-se. Veio outro, pediu de novo. A mesma coisa. Eu me lembro que eu tive três namorados na minha vida, no quarto já foi o meu marido. Eu disse pros meus irmãos. A Nazaré já tinha casado também. Eu disse: “Olha, o dia que a mamãe falar uma besteira para alguém que venha me pedir, eu vou fazer um desaforo pra mamãe. Por mais que preste, ou não preste, eu vou fazer uma besteira, só pra acabar com essa garganta dela”. Chegou o meu marido, o meu irmão trabalhava com ele, ele tinha gado, era o único filho. Quando foi um dia, tinha uma festa e ouviram falar, festa de mastro, no interior, arrumavam um tanto de coisa, fazia aqueles barracões de festas, tudo era dado também. Era bolacha dada, biscoito, farinha, tudo era dado. Gado era dado pro povo comer, dançavam dia e noite, aquele pessoal, não tinha nada vendido, tudo era dado. Aí, o Luciano disse assim: “Lourdes, recebeste uma carta do Manuel José?” “Recebi”. “Olha, ele vem te pedir pra mamãe”. “Tá bom, vamos ver o que a mamãe vai falar”. Aí, eles mataram pra lá um gado, trouxeram um pedação, a mamãe tinha ido visitar uma outra filha. Quando ela chegou perto de casa, ela percebeu que estava cheirando carne, né? “Hummm, mas o negócio aqui tá bom. Tá cheirando carne assada”. A gente tinha umas panelonas de barro, fazia carne assada, cozido, isso, aquilo. Aí, tinha feito uma carne assada. Nazaré estava lá pela cozinha e disse: “Lourdes, será que a mamãe não vai falar besteira?” “Olha, se ela falar, eu vou fazer uma pra ela”. “O que você vai fazer?” “Vai ser surpresa, Nazaré”. “Mas, mana, tu não vai fazer besteira?” “Não, não vou fazer besteira, não”. “Tu te ama, Lourdes?” “Eu me amo”. “Pois é, então pronto”. Jantamos, vieram todos os irmãos. Naquele tempo, todos tinham que participar. Por exemplo, se tu gostasse de uma moça, todos os teus irmãos tinham que fazer amizade pra conhecer aquela pessoa. Conhecer assim, só por conhecer, mas não sabia o fundamento, era só naquela hora”. Aí, veio jantar e o meu irmão mais velho “U-hum”, e ele nunca que me pedia. E estava terminando a comida, o outro que fazia “A-ham”. Era o Marciano, o Luciano e o Edson. Nada. Até que ele teve coragem e disse: “Dona Preta, a minha finalidade aqui foi pedir a sua filha, me agradei da sua filha, gostei da sua filha, e eu fim pedir a ela. Se as coisas corresponderem bem, eu posso me casar com a sua filha”. “Minha filha não é pra casar, é pra parir embaixo do meu fogão” Pedi licença, saí devagariho. Estava com uma saia grande, com bolso do lado, tirei minha certidão de nascimento lá de um baú velho que nós tinhamos. Atravessei a mesa assim. Eu disse: “Olha, se é pra eu parir embaixo do seu fogão, está aqui o meu registro, meu amigo, é pra casar”. Eu que falei. O meu irmão mais velho disse assim: “Pegue, está definido esse casamento”. O meu irmão também já estava injuriado com aquele negócio, já tinha chamado a atenção dela. Mas ela sempre falava assim, atravessado. E eu casei com meu marido, foi assim o meu casamento. Nós nos falamos quatro vezes, parece. Aí, a família dele tinha mais condição, arranjou o casamento, fez tudinho, se agradaram. Aí, depois que eu fui conhecer o meu marido, como eu estou te dizendo. Eu pensava que o meu marido era uma pessoa que eu pudesse esperar alguma coisa boa. Ele era ignorante, ele não criava as coisas pra ter, a mãe dele que fazia tudo. Depois de dois anos, eu me sujeitei a trabalhar mesmo, sabe o que é trabalhar? Eu ia pra roça, eu fazia roça, plantava milho, aquilo. O gado não custeava despesa. Vinha pra cá, pra Juruti, vendia, levava mercadoria. Montei um comércio, mas não deu certo porque onde morávamos era campo, era uma distância muito grande uma casa da outra, não tinha condições. Eu parei. Depois de dois anos tive o primeiro filho, que é o Manuel. De dois em dois anos eu tive um filho, tive dez filhos. Aguentei. Depois de uns 15 anos de casados, ele virou alcoólatra. Engraçado que ele era um cara da igreja, pregava a palavra de Deus, a gente ficava até... Aí que surgiu. Eu criava muita galinha. Uma vez, eu dei um dinheiro pro primo dele comprar dois sacos de milho aqui em Juruti, ele gastou tudo em bebida, e os meus capões, estava com 70 capões, que era frangão bonito, né, levava pra Parintins pra vender. Meus frangos iam morrer tudo. A gente tinha uma canoa grande, de vinte palmos que chama. Eu disse: “Hoje vou lá pra baixo ver se eu consigo alguma coisa pros meus bichos comerem”. Era uma castanha, não sei se vocês conhecem, é uma castanha chamada castanha de macaco. É um ouriço desse tamanho. Ela tem uma massa, os bichos comem, galinha, porco, paco, peru. Mas não é muito bom, não, só pra aguentar mesmo. Quando eu cheguei na casa da minha mãe, baixando, eu com o meu filho que estava com dois anos já. “Mas Lourdes, o que tu tá fazendo por aqui, mulher?” Eu disse: “Ah mamãe, eu vim atrás de umas comidas pros meus bichos. Meus capões estão morrendo tudinho e eu estava querendo ver se eu engordava pra levar pra Parintins. Eu estou com 150 capões, que era frango. Eu tinha um índio que capava, ele morava em um barracão perto de casa que era nosso. Quando chegavam os frangotes ele capava. Era rápido que eles cresciam. “Mas não tem por aqui”. “Eu vou lá no terreno da tia Juca. Lá tem”. “Lourdes, não vá lá, Lourdes. Mas tu é muito corajosa, mulher”. Ia dar umas nove pra dez horas. “Tu te lembra que faz dois anos que a tia Geralda falou com o filho dela, que era morto há muitos anos e falou com ele embaixo daquelas árvores? Castanheira grande? Ali tem visagem, menina. Não vá, mulher. Não vá”. “Não, eu vou. Visagem quem faz é a gente”, falei bem assim pra ela, ‘barquei’ o moleque e vim embora. Atravessei o caminho, era mais estreito assim, umas castanhas bonitas. Quando cheguei lá, ancorei a canoa lá, puxei, falei pro menino: “Olha, meu filho, fica aí na canoa enquanto eu vou lá em cima”. Mas quando eu olho assim, onde eu estava, muito apegada a casco de cajá. Eu nunca tinha tirado e vi aquelas coisas lisas. Fui descobrir um era ovo, fui descobrir outro, era ovo, mais de sete ninhadas de ovos. Destampei tudo, puxei a canoa, mandei ele jogar a canoa. Ele já tinha dois anos e até que já sabia bem. Eu peguei, subi. Naquilo que eu subi, vi muita castanha embaixo da árvore. Aí, começou a visagem, juntei as castanhas tudinho. De repente, as árvores são muito grandes, escondem uns três, quatro homens assim nos pés daquela árvore, castanheira. Apareceu um cachorro. Branquinho, branquinho, parecia uma algodão. O cachorro veio abanando o rabo pro meu lado, eu peguei no queixo dele, macio. Deitou embaixo da árvore, eu juntei as castanhas. Apareceu um gavião em cima. Peguei, fui na canoa, peguei um paneiro. Paneiro é pra gente carregar as coisas no interior, pra levar pra qualquer parte. Botei as castanhas no paneiro, quando ia pra carregar, estava com o meu chapéu de palha, o gavião vinha, coisava na minha cabeça. Depois eu tirei o chapéu. Mas eu vou tirar o chapéu para eu enxergar esse bicho... Por que ele faz isso comigo? Eu ainda falei: “Não estou mexendo com teus filhos, nem no seu ninho, fica pra lá Deixa eu juntar as castanhas”. Só eu falando lá com os bichos. Quando eu fui carregar de novo o paneiro, lá vem ele. Pegou aqui na minha cabeça e pronto, agora sim. Até eu tirar o paneiro, eu não enxergava o bicho. Não sei se ele cantava, se ele chorava. Meu Deus do céu. Aí, eu disse pro menino: “Embarca na canoa que eu vou jogar o paneiro com a castanha aqui”. Fiz isso. Até que eu levei a canoa cheia de castanha. Quando eu cheguei na casa da minha mãe, parecia uma hora e meia da tarde. “Mas agora mulher, que tu vem de lá? O que estava fazendo na castanha?” “Ah, mamãe, entrei numa história boa pra lhe contar. Um gavião me judiou, mamãe. Eu botava o paneiro na minha cabeça, ele vinha e arranhava minha cabeça, e nunca que eu enxerguei esse gavião. E eu carreguei assim, o paneiro na minha frente para eu poder conseguir. E lá apareceu um cachorro branco também, não sei se caiu de algum motor, ou se eu dei alguma coisa. Mas não tem casa lá pra baixo”. Ela disse: “Aquele cachorro é vigia de lá com certeza”. Eu deixei umas castanhas pra ela, ovo, e fui embora pra minha casa. A minha casa era muito longe. De lá eu ia na canoa com uma vela, velejando. Cheguei em casa umas cinco e meia da tarde. Cansada. O menino também cansado. Quando eu cheguei lá, tomei meu banho, cadê o...? “Olha, fulano tá pro campo”, que era o meu marido, “foi ver um gado que vocês espalharam e não apareceram os bezerros, está pra lá, não chegou até agora”. “Tá bom, eu já vou é dormir, estou com uma dor de cabeça”. Naquilo que eu fui pro meu quarto, uma voz apareceu pra mim: “Olha, lá onde você estava com uma criança, nunca mais leva o teu filho”. Aquela voz, assim, mas não aparecia a pessoa, só era a voz. “Nunca mais leva o seu filho. Aquela coisa que aparecia, aqueles ovos que estavam lá, foi pra criança ficar lá se entretendo. Aquele cachorro branco que tu viste é mãe de lá. O gavião é dono de lá. Toda vez que você for lá, você pede, todas as coisas têm seus donos. Outra coisa eu vou te dizer. Tu és uma pessoa que nós precisamos ajudar, eu quero te ajudar”. Mas só tinha que não aparecia, eu olhava, mas aquilo estava dormente, sabe? Não tem sonho que a gente fica dormente, quer enxergar mas não tem condição? Assim eu fiquei. Eu procurava falar, ver a pessoa e não tinha como. Ela disse: “Tu é uma mulher muito batalhadora. Nunca mais viva do jeito que tu vive, tu trabalhas muito. A vida que tu pensava que ia levar, tu não levaste, mas se tu soubesse conseguir isso aqui, nunca mais tu ia fazer o que tu fazes”. Olha, embaixo de onde tu estava tem uma bacia, ela é grande, tá cheia de ouro. Lá onde o cachorro deitou, lá está. Agora, só uma coisa eu te peço, não vá pela frente, e nem leva criança. Leva o teu marido. Tu só pode conseguir isso com o teu marido”. Meu Deus, fiquei assim até que desapareu. Aí, parecia que não tinha acontecido nada comigo, eu peguei a lapiseira, tudinho que ele me falou, para eu não esquecer. Fiquei neutra, pensando, aquilo não saía do meu pensamento. Quando foi na outra noite, de novo, já era mais de meia-noite, de novo, aquela voz. Meu marido não estava, estava pescando. “Olha, tu vai, mas vai com o teu marido e não vai pela frente, vai por ‘detrás’. Tu só consegue isso se tu levar o teu marido”. Passou na terceira noite, de novo. Aí, eu falei pro meu marido. Levei, ele estava cuidando de um pirarucu grande que ele tinha matado, uns 30 quilos. Deixei ele preparar tudinho, ele alegre: “Com esse pirarucu eu vou viajar agora, Lourdes”. “Pra onde você vai?” “Eu vou pra Juruti vender”. Porque naquele tempo, não se ouvia falar em gelo. Alguma pessoa que tinha geladeira em Juruti, era gente que tinha dinheiro. Só pra ver como era Juruti. Ele veio, quando ele chegou, trouxe bolacha pra cá e pra ali. Ele levou um corte pra mim. Eu me lembro tão bem, que era um cortezinho de florzinha, dois metros e meio. Naquele tempo a gente vestia vestidão, mulher não vestia calça Nem pensar. Ele disse: “Olha, trouxe um pano pro seu vestido”. Fiquei olhando. Aí, eu falei assim pra ele: “Mas um dia, se Deus quiser, eu não vou vestir esse paninho aqui, eu vou só vestir roupa bonita”. Ele disse: “Por que tu tá falando assim?”, ele ficou sério. “Não, porque eu vou vestir, mesmo. Eu tenho uma coisa pra te contar, mas só quando você estiver bem”. Aí, ele ficou, disse: “Mas eu estou bem”. “Olha, são três noites que eu sonho. Você lembra que eu fui pegar castanha lá na tia Juca? Assim, assim e assim. Toda noite vem. Mas tenho que ir contigo e por ‘detrás’. E que não leve criança. Aqueles ovos que eu trouxe pra cá, a voz disse que colocou lá pra criança não subir nos altos. E aí?” “Mas eu prefiro andar vestido com uma saca de sarrapilha, mas lá eu não vou Lá, mas nem pensar Se tu quiser agora, nós nos separamos, mas lá eu não vou, eu vou ficar na minha pobreza”. Tudo bem, tá bem. Passou na outra noite de novo, tornei a sonhar, aquilo veio de novo, aquela voz. “Teu marido não vai, então, você vai perder. Convida ele mais uma vez, me ajuda. Eu estou aqui porque há muito tempo a gente não podia ter nada que a gente era morto. A gente enterrava essas joias, tudo o que a gente tinha”. E os antigos contam isso mesmo, que eles enterravam. No tempo da Cabanagem. Eles enterravam tudo o que tinham pra não ser mortos. Mas acabou que ele não foi mesmo. Depois de dois anos, aquilo caiu que foi tudinho, foi levando tudo, uma extensão da terra. Com isso, toda noite me perturbava, foi o tempo que eu vim pra cá em Juruti, aquela voz sempre estava comigo. Aí, eu fui em Parintins, consultei, mas ninguém me falou nada. Até que um dia eu me aproximei de uma senhora, acho que ela sabia essas coisas do outro mundo, sei lá. “Já teve contato com alguma voz, alguma coisa?” “Eu tive”. E contei pra ela. “Então, se mude”. Eu contei a história pra ela. “A senhora não recebeu essas coisas que a senhora tinha que receber, mas a senhora vai receber de outro jeito. Ore por essas pessoas, elas estão sofrendo”. Eu cheguei aqui, comecei a trabalhar. Eu trabalhava no campo com os outros. Se tinha um trabalho ali, um família que precisasse, eu ia lá. Assim eu comecei a trabalhar.
P/1 - A senhora se separou do marido?
R - Não, nunca me separei. Só tem que meu marido era paradão. Com o tempo, ele virou alcoólatra, começou a beber. Eu levei quase 20 anos com ele alcoólatra. Aí eu comecei a trabalhar, trabalhar, limpando um campo por ali também, um laranjal. Aquilo que foi engraçado. A senhora que se agradou pra eu trabalhar com ela ofereceu 150 cruzeiros. “Então, vou dar uma olhada no trabalho”. Fui ver, era o laranjal, estava tudo pequeno. “Dona Alcira, 150? Eu vou ter que por gente pra trabalhar ali, só eu não vou arar”. Eram tantos hectares. O que eu fazia? Chegou a 220 cruzeiros. Eu peguei o trabalho, arranjei cinco pessoas, coloquei lá pra trabalhar e eu também ia trabalhar. Dava comida. Quando o peixe ficava barato, nessa época era muito peixe a quilo. Quando ficava barato eu comprava pra assar, fazer uma comida pra levar pra eles. Quando foi um dia, cheguei lá com a comida, devia ser umas onze horas. Eu tinha um filho, ele estava engatinhando em uma casa lá em cima, que eu tinha, ele ficava lá com a vó dele. Eu fui capinar com uma enxada, dei com a enxada em um negócio. Aí, eu comecei. Isso era meio-dia. Eu tirei, era uma garrafa de índio. Eu peguei, espremi o camapu. Camapu é um serrado da água, lavei a garrafa. A garrafa era toda furadinha, coisa de índio, era garrafa de índio mesmo. Pesada. “Vou levar essa garrafa pro meu filho brincar”. Em vez de eu quebrar a garrafa, mas a garrafa era bonita, não queria quebrar nem destampar. Cheia de ouro. Eu coloquei no meu paneiro, lá na árvore. E a gente lá trabalhando. Quando chegou na hora de eu ir pra casa, eu saía as três horas do trabalho, fui ver o paneiro e nada da garrafa mais. Eu sabia que eles não tinham tirado, eram todos adultos, idosos, e eu sabia que eles não tinham mexido no que era meu. Aí, juntei todas as vasilhas e vim embora. Passou-se um tempo, terminou o trabalho, eu fui ajustar a minha conta, tirei 5 cruzeiros de saldo. Meu Deus. Mas era um dinheiro. Aí, ela disse: “Lourdes, eu vou te dar uma sugestão. Vende mingau na beira, sai desse trabalho, você trabalhando pesado por aí. Faz mingau, faz isso, faz isso”. Eu tirei os cinco cruzeiros e eu vi. “Mas dona Alcira, eu não tenho nem uma mesa” Eu não tinha mesmo. “Eu não tenho uma mesa, não tenho uma panela”. “Eu te ‘fio’, Lourdes. Eu te ‘fio’ a panela, todas as coisas que for preciso e você vai pagando conforme o seu apurado”. “Se a senhora for assim comigo eu vou fazer”. Eu tinha aprendido alguma coisa em Santarém. Pra cá e pra ali, o que eu faço? Fui lá no comércio mais barateiro, comprei milho, mambuzá, comprei tudinho. O resto vim buscar e coloquei a minha banca lá na beira. Você sabe, quando a gente começa alguma coisa assim, a gente começa meio com vergonha, aquilo que a gente nunca fez. E pensava só comigo: “Será que isso vai dar certo, pai? Meu Senhor, seja feita a tua vontade, não a minha. Se der certo, eu tenho tantos filhos pra criar, não sei como vou conseguir criar meus filhos”. No primeiro dia, vendi meia panela, depois foi, fui fazendo amizade, aquela conversinha que eu tenho, fui agradando. Depois meu filho, o que eu fazia não dava mais. Eu via as outras vendendo nas vasilhas, não lavavam, não escaldavam. Eu ajeitei um fogareiro, as cuias que eu trabalhava. Naquele tempo não tinha plástico, agora tudo é plástico. Escaldava pra poder servir os outros, deixava em uma coisa pra escorrer. Aí, eu comecei. Eu vendia, vendia, vendia. Quando dava meio-dia, tinha terminado e eu ia vender fruta. Vendia fruta, vendia pão, até que uma vez tinha um senhor, ele não era brasileiro, seu Elias, ele era de uma nação, daqueles dos judeus, como é?
P/1 - Israel?
R - De Israel, era israelita. Ele criava muito carneiro, só que ele não matava. Aí, saía pra rua e aquele monte de carneiro. Fui pro fundo fazer alguma coisa, os carneiros chegaram e puxaram todo o pão, meu filho. Aquilo era pão na rua que... Quando eu ouço: “Dona Lourdes, dona Lourdes Olha os carneiros estão comendo todo o seu pão”. Eu fiquei olhando pros carneiros: “Agora deixa comer, eu não vou juntar do chão mais”. Aí, teve uma pessoa que correu no comércio dele, que era ali em cima. “Ah, seu Elias, os carneiros que o senhor levou pra passear, ficaram uns por lá e agora puxaram o pão da dona Lourdes e estão lá, vai lá ver, aquele pão ela tem que pagar”. E fizeram aquele negócio. Ele chegou lá, levou o resto dos carneiros e pôs lá pra comerem todo o pão. Comeram todo o pão. Mandou conferir quanto dava, que eu tinha que receber de pão, ele pagou. Até hoje eu lembro do seu Elias, ele era assim. Quando ele saía com os carneiros, era aquele monte de carneiro na rua. Judeu gosta muito de carneiro, né? Pois é. Tudo isso eu passava. Nesse tempo, chamava quebra-galho. A banquinha era coberta de alumínio, tudo ajeitadinha. Aí comecei a minha vida, perdi a vergonha e comecei a vender mingau, tacacá, bolo. Depois não estava bom.
P/1 - Aqui em Juruti?
R - Tudo aqui em Juruti, naquela travessa ali onde tem umas trinas. Lá...
P/2 - E a senhora colocava onde tudo isso?
R - No quebra-galho.
P/2 - O que era quebra-galho?
R - Quebra-galho era o mesmo que uma mesa, uma casinha, cada um tinha seu lugarzinho, sabe? Quando foi um dia, tinha um senhor, comerciante forte, seu Licídio Pereira. Quando foi um dia ele disse assim: “Lourdes, eu queria falar contigo. Mas eu queria falar contigo meio-dia”. “Meu Deus, o que esse homem quer de mim?” Comecei até a pensar, juízo temerário. Era a mulher dele, ela não gostava de ajudar ninguém, mas ele era uma pessoa que gostava de ajudar os outros, mas era escondido para ela não saber. Eu fui para casa, tomei um banho, baixei eram umas onze e meia. Cheguei, quando era meio-dia, ele estava lá, meio-dia, na porta. O comércio estava fechado e ele lá, de um lado para outro passeando. Eu me apresentei: “Ô, seu Licídio, o senhor está aqui?” “Estou te esperando, Lourdes. Lourdes, sabe o que é? Eu gosto de ver tu trabalhar, tu tem vontade de vencer na vida, né, Lourdes?” “É, seu Licídio, tenho mesmo. Primeiro que eu tenho minha família, o senhor sabe que eu que tenho que dar conta, o meu marido é alcoólatra, eu não posso me fiar nele. Eu tenho esses filhos e não posso deixar eles passarem necessidade”. “Olha, eu tenho uma proposta pra ti. Tem uma casa ali em cima, tem uma baiúca”. Chama baiúca, não tem umas casinhas que eles empurram? “Custa 120 cruzeiros e eu quero comprar pra ti ir pagando conforme puder, mas sem Oscarina saber”. “Tá, seu Licídio, se o senhor fizer isso pra mim, pôxa, não tenho nem como recompensar, porque às vezes eu pego chuva no meu quebra-galho” (risos). Passaram uns três dias, ele mandou baixar a baiúca. A baiúca era uma casinha, tinha o lugar de vender banana, o lugar onde vender a comida, tinha tudo. Só a água que tinha que pegar lá no fundo da casa dele. Aí, a mulher dele descobre, não sei quem contou pra ela. Ela esperou chegar gente, e foi fazer escândalo: “Ah, não sei o quê, tu tem isso porque tu é camarada do Licídio”. Mas ela me atacou, me atacou... “Mas Deus vai me dar um jeito de saber falar com essa mulher”. Deixei ela se acalmar, entrei na casa dela. “Dá licença, dona Oscarina, eu quero falar com a senhora”. “Não tenho nada pra falar contigo” “Mas quem tem sou eu, dona Oscarina. Sou eu que preciso falar contigo. Dona Oscarina, essa baiúca, o seu Licídio comprou e eu estou pagando parcelado pra ele. Eu vou pagar parcelado, conforme eu vou adquirindo dentro da baiúca, eu vou passando o dinheiro pra ele”. Eu levei meu caderno. “Eu já passei 20 cruzeiros pra ele, está aqui, ó. Ontem eu passei 20 cruzeiros pra ele”. Num belo dia, na mesma semana, chega um senhor e diz: “Dona Lourdes, a senhora não quer comprar? Eu tenho muita banana, eu quero vender, quero deixar pra senhora. Sem dinheiro, com dinheiro, a senhora vai ficar”. Olhei pra banana dele, na canoa grande dele, muita banana. “Quanto o senhor quer nessa banana?” “Eu quero que a senhora dê 20 cruzeiros”. Vinte cruzeiros era muita banana. “A senhora dê o quanto puder agora, quando eu vender esse milhar eu recebo o resto”. “Tá bom, se o senhor confia em mim”. Acho que o seu Licídio que tinha falado pra ele, né? Se ele confiar em mim, eu fico, então, desembarque. Desembarcou. Não pude conter toda a banana na baiúca, porque era muita banana. Eu tive que alugar uma porta de uma casinha lá para eu colocar a banana. Aí, as bananas começaram a amarelar. Tu sabe como a banana quando amarela, né? Naquele tempo, criança ainda podia vender coisa na rua, agora não. Contratei um bocado de criança, e tabuleiro, e botei criança pra vender banana na rua, que eu apurei dinheiro pra pagar a baiúca e ainda teve um lucro. Banana apodreceu, eu dava banana pros outros. Terminou, sempre aparecia banana e eu ia comprando. Meu lucro estava naquilo que eu comprava. Eu cheguei lá um dia no comércio dele e ela estava lá. Eu esperei ela chegar, não tinha gente lá. “Seu Licídio, eu vim aqui me acertar com o senhor”. “Mas Lourdes, eu falei pra ti que conforme tu vai...” “Mas eu já pude, está aqui o resto do seu dinheiro, muito obrigada, estou lhe dando cem cruzeiros. Muito obrigada por tudo o que o senhor fez por mim, eu não tenho como lhe recompensar”. Ela ficou lá abaixada, escrevendo. “Tá Lourdes, tá bom”. Paguei. Eu comecei a trabalhar assim, e fui ganhando dinheiro, fui ganhando dinheiro e confiança. E eu fazia tudo por ele, eu fiz um jogo assim, tudo o que eu fazia pra ajudar também ele, né? E acredita, eu acho que eu ganhava até mais dinheiro que ele no comércio dele. Faziam fila pra comer dentro daquele quebra-galho. Prova é que naquele tempo não havia banco e ele tinha o cofre dele. Quando eu apurava o dinheiro do dia, eu levava no cofre dele. Aí, ela ficou... Eu disse assim: “Seu Licídio, como o senhor está guardando o meu dinheiro, eu quero que o senhor tire cinco por cento do dinheiro, porque o meu dinheiro fica no seu cofre. Eu não posso, porque a minha casa é de palha, e podem roubar, né? E no seu cofre tá seguro”. “Tá bem, dona Lourdes, eu faço isso contigo. Poxa, essa ajuda que você está me dando, cinco por cento, tem gente que guarda o dinheiro aqui”. O cofre dele era daqueles grandes. Depois, eu comecei a juntar dinheiro. Sempre juntava e anotava no meu caderno, quanto ele ia tirar e quanto ia ficar na minha conta. Foi um dia, chegou o prefeito da cidade, para emprestar um dinheiro dele. Isaías Batista. Antes desse prefeito foi ele, levou três mandatos. Primeiro, passou um, depois ele veio com outro, ele passou mais três anos em seguida. Aí, ele disse: “Isaías, eu não tenho dinheiro. Só quem tem dinheiro é a dona Lourdes. Tu não acredita o que essa baiúca tem, eu não sei que mistério ela faz”. E eu vendo pela janela, vendo eles conversando, estava fazendo a minha comida. Naquele tempo não havia galinha de granja, só era galinha caipira. Você comprava aquelas galinhas bonitas, gordas, vinham oferecer. Eu fazia panelada, guisado, fazia galinha de todo jeito. E ficava assim de gente. Os brancos vinham comprar de mim na baiúca e o pessoal se admirava, o que eu fazia. Aí, passou, passou. Ele me chama: “Ê Lourdes” “Oi, seu Licídio” “Vem daqui. Olha, o Prefeito está aqui”. Fomos pra sala dele. Aí, a mulher dele na época já estava Deus o livre comigo. Nós fomos lá pra sala, ele disse: “Lourdes, é o seguinte. O prefeito está aqui querendo emprestar oito milhões. E esses oito milhões tu tem.” “Eu tenho, seu Licídio?”. Eu me fiz de besta, mas eu sabia que eu tinha, né? “Mas o senhor já tirou o seu?” “Já Lourdes, já tirei o meu. E aí, tu empresta?” “Eu empresto, mas com uma proposta. A minha proposta é, eu empresto o meu dinheiro mais vinte por cento. E esses vinte por cento já ficam no cofre, que é uma garantia pra mim”. Ele disse: “Tá, dona Lourdes, eu vou emprestar do seu dinheiro. Eu sei que a senhora é batalhadora, eu conheço a senhora”. “É, Prefeito, porque o senhor sabe, eu trabalho na rua, o seu Licídio que me deu a oportunidade de estar aqui”. A baiúca estava na rua, numa travessa, mas a travessa ninguém seguia, eram poucos carros. Era a rural ainda, o carro da época. Não tinha. Ele disse: “Eu deixo também os juros do seu dinheiro, sei que a senhora é uma mulher batalhadora”. “Pois é, prefeito, porque eu quero ver se eu compro um ponto para eu trabalhar. Quero entrar numa coisa que eu respire mais. Porque o senhor sabe, eu já passei muita dificuldade. Naquele quebra-galho eu botava ali pra beira, tinha as outras senhora que trabalhavam no mercado”. Aí, as invejosas sabiam que eu vendia bem, às vezes elas pagavam, mandavam meninos colocar fezes de pessoas lá para eu não trabalhar. Eu passei uma dificuldade, mas sempre entregava ao Senhor, está nas suas mãos, Pai. Não queria nem saber quem era, pra depois nao estar falando besteira, nunca gostei de discutir. Para eu receber esse dinheiro, eu estava preocupada que ele estava terminando o primeiro mandato e a agonia estava grande, a gente sabia que a agonia estava grande na cidade. Não minto, ele não era prefeito, ele era farmacêutico, depois que ele foi prefeito. E a agonia estava grande porque quem ganhava o dinheiro maior era o pai dele, que tinha três aposentadorias e ele queria levar o pai dele pra Belém, pra tratamento, pra ver se ele recuperava o pai. Foi, foi, foi, morre, não morre. Procurei saber, o velho estava melhor. Quando foi um dia, venceu o primeiro mês, os juros estavam no cofre. Quando venceu o segundo mês, não estava o dinheiro no cofre. Dava uma certa importância, oito milhões, né? “Seu Licídio, o homem já trouxe os juros do dinheiro?” “Não, Lourdes, mas eu vou apertar, porque fui eu que falei pra ele”. “É, o senhor é responsável pelo meu dinheiro, né, seu Licídio”. “Mas não esquenta que pelo menos você vai receber o ponto, ele tem ponto bom aí pra comércio”. Aí, o pai dele não morreu, só que ele não teve condições de me pagar, ele teve que me entregar um ponto. Eu recebia onde era o primeiro hotel, que era seis metros de frente. Era uma casa só, jogada. Ele me entregou por esse dinheiro. Fiquei sentida, mas depois: “Não, Lourdes, recebe porque pelo menos você não perde. Aqui vai ser um movimento mais tarde”. Realmente, foi um movimento, que eu comecei o comércio, do comércio eu fui pros quartos. Dos quartos, não deu e eu tive que fazer hotel. Saía um e chegava gente lá, e assim foi. Levei oito anos nesse comércio, aí desabou, acho que foi em 85, veio e desmanchou. Prova é que às vezes eu estava cansada demais e tive que arranjar gente pra trabalhar comigo. Eu tinha um cozinheiro bom, arranjei um cozinheiro bom. Mais duas moças pra ajudarem a servir, porque eu estava criando os meus filhos. Mas eu sempre estava no trabalho junto com eles. Era movimento noite e dia. Às vezes, eu fechava às três horas da manhã, pra seis horas da manhã abrir. Eu desmanchava um quarto de rês por dia. Galinha. Quando eu queria ganhar dinheiro, que eu não tinha dinheiro pra custear a mercadoria que precisava pagar e vinham essas balsas de Belém. Só pra ter ideia, eu tinha até rádio amador. Eu me comunicava pra Óbidos. Quando vinham as balsas, eles se comunicavam comigo: “Dona Lourdes, tem cerveja aí? Nós queremos tantas mulheres pra ficar com nós aí”. Aí, eu me virava, ia arranjar. Naquele tempo era difícil você ver uma mulher assim, como a gente diz, mulher da vida, né? Eram bem vestidas. Eu ia contratar as de melhor aparência. Eu falava: “Tu vai pra lá, tu só toma guaraná. Eu vou te dar tanto, tu segura até três horas da manhã. Três horas da manhã, capa o gato, minha querida. De manhã tu vem buscar o teu, aí ganha o teu pra lá”. Era assim que eu fazia. O pessoal dizia: “Mas que mistério essa mulher tem?” Tinha gente que ia pra porta de casa olhar o que eu fazia. Quando chegava meia-noite, aquelas ossadas que sobravam, eu mandava cortar bem com serra, eu comprava batata, verdura e fazia aquele caldo e espalhava nas bancas dos que estavam bebendo, de graça. “Isso aqui é pra aguentar”. “Quanto...” “Não, isso aqui eu dou, é dado”. Aquele caldo bem gostoso, e assim eu segurava o pessoal. Amanhecia o dia, era muita cerveja que eu vendia, e refrigerante. Bolo, essas coisas. Aí foi, mas o movimento era tão grande lá em casa que uma vez ainda me chamaram pra delegacia, fizeram um gesto assim, de querer me pressionar. Eu disse pro delegado: “Mas delegado, por que o senhor quer me levar na delegacia? Você não me deu alvará de licença de bar? Eu não tirei a licença pra bar? Eu não tenho nada a ver com isso. Quem tem que ver com isso é você, que está com inveja disso”, disse pra ele. Não estava bom. Tinha dois amigos. Nessa época, a renda do Juruti era juta. A que era maior tinha uns quatro armazéns de juta. Gente trabalhava, eles iam para aquele lado, eu comprava chapéu de fardo pra vender pro pessoal. Hoje em dia você não vê mais chapéu de palha, né? Eles chegavam e compravam: “Quero um chapéu, dona, quero um chapéu, no fim do dia ele paga”. Tudo era juta.
P/2 - Os barcos paravam perto?
R - Tudo na porta de casa. Um dia, tinha uma dessas pessoas. Elas pagavam a despesa deles com gado. “Dona Lourdes, tem uma novilha aí para a senhora”. Eu tenho motor, tudo adquirido com as minhas coisas, meu trabalho. Terreno no interior eu tenho, tenho gado. “Olha, nós não temos dinheiro, mas temos uma novilha pra custear a despesa”. “Ah, então leva lá no Retiro”. E assim eu fui levando a vida. Eu fui subindo, tenho muitas amizades. Às vezes, eu deixava o meu tempo, para atender pessoas só pra conversar. Porque a gente conversando, a gente vai criando amizade. Como eu falei, aquele altarzinho ali é tudo presente. Tem vezes que nem roupa eu compro, porque eu ganho roupa que me dão. Outro dia eu recebi uma blusona. “Mamãe, vai usar essa blusa?” “Vou porque é meu presente, vou vestir sim”. E assim eu fazia o meu jogo de cintura. Eu ganhava dinheiro bem mesmo.
P/1 - E quem eram essas pessoas? Eram da região, pessoal que vinha pro seu hotel, comerciantes?
R - Comerciantes que chegavam. O melhor hotel que tinha era o meu, né?
P/1 - Santel?
R - Não, não era Santel na época.
P/1 - Santel é aqui, né?
R - Santel é aqui.
P/1 - Qual era o nome dele?
R - Era Pousada do Povo, era uma pousada.
P/2 - Dona Lourdes, quando a senhora pensou em montar esse hotel, a senhora pensou em fazer um hotel porque a senhora já sabia como funcionava? Como é que foi? Como a senhora começou?
R - Eu comecei assim através das amizades. Chegava vendedor, às vezes eles comiam, e eu oferecia: “Olha, meu filho, quer ficar aqui? Eu tenho um cantinho”. Aí, foi crescendo. Chegaram duas senhoras e disseram: “Ah, dona Lourdes, nós viemos pra cá de Belém, enviado de fulano de tal, que disse pra não deixar de visitar a senhora e ficar aqui com a senhora. E a senhora está de parabéns que a senhora ofereceu para nós aquilo que nós gostamos, que foi o pão quentinho e a tapioquinha”. Aí, aquela coisa vai aumentando, um vai levando pro outro, né? Se um hóspede chegasse em casa se queixando de alguma dor, alguma coisa. Às vezes, eu tinha um quarto que não deixava ninguém entrar. “Pô, dona Lourdes, eu estou numa situação, não tenho onde deitar, eu queria um lugar”. “Olha, meu filho, aqui tem um quarto, fica aqui. O que tu ta sentindo? Tá sentindo isso, é dor de cabeça? Eu já vou fazer um remédio pra ti”. Porque aí, a gente já vai ganhando aquela amizade. E assim eu fui conquistando as amizades. Quando eu vou por aí, olha, eu estive no Rio agora em dezembro, que eu tenho uma filha que é freira. Jamais que eu pensava que ia ter gente lá que estava me conhecendo. Quando eu ia pro aeroporto pra pegar o voo: “Dona Lourdes, dona Lourdes, a senhora tá no Rio, dona Lourdes” “Meu Deus do céu, mas quem será essa pessoa, será que é comigo?”. Aí, a Regina: “Mamãe, aquele homem ali está mexendo, dá um alô pra ele, estenda a mão”. Ele veio, eu já ia entrar no táxi, eu saí e já fui abraçar ele. “Dona Lourdes, a senhora aqui no Rio”. “Pois é, olha meu filho, pra ti ver, uma amazonense no Rio de Janeiro. É uma admiração, uma peixada”. Disse bem assim pra ele, ele começou a rir de mim. Era um vendedor, um representante de mercadorias. E assim a gente vai fazendo as amizades. E essa vez que eu fiz amizade com ele, ele adoeceu, uma grande dor de cabeça, eu já estava aqui, ele não tinha onde ficar. Aí, eu tenho um quarto que fica sempre aberto ali, esses dias eu nem mandei arrumar. “Olha, meu filho, tu não tem onde ficar, fica aqui nesse quarto. Tem banheiro, tem televisão, ar condicionado”. Eu sempre tenho um quarto assim que eu não deixo ninguém entrar, só quem vem aperriado, às vezes não tem onde ficar. “Quanto é?” “Não, não é nada, não”. Aí, a gente vai fazendo amizade, através disso a gente vai ganhando aquilo que a gente nunca espera, né? Pois é.
P/1 - Dona Lourdes, eu queria que você contasse a história de quando caiu o hotel. Como é que foi isso?
R - (risos). Em 85, depois que eu fiz o hotel, eu fiquei uns oito anos. Teve quarto que eu fiz, eram 16 quartos, fiz mais quatro, inteirei 20. Era o pessoal que vinha para explorar o negócio de ouro, diz que tem ouro aqui, acho que tem mesmo. Acabou que eu fiz os quartos, pintei, mandei fazer tudinho, mas ninguém entrou. Quando foi um belo dia, em 85, Dia dos Pais, segundo domingo de agosto, eu fui à missa de noite. Quando cheguei, tinha uma festa lá para um bairro e todo mundo foi para lá. Estava um menino lá, eu falei: “Fecha esse comércio, filho, tem pouca gente, pede licença pro rapaz que está bebendo, vam’bora fechar. E vamos lá no Bom Pastor”. Era dia da festa, né? Ele se animou, fechou o comércio. Naquilo que ele fechou o comércio, começaram a bater na porta pi-pi. Era porta de ferro. Aí, ele disse: “Dona Lourdes, vamos orar a Deus, está caindo a frente da cidade”. “Caindo a frente da cidade, o que é isso?” Nessa época eu tinha motor próprio, a luz apagava às dez horas da noite, eu tinha motor de luz dentro da casa porque, como tinha hotel, tinha que funcionar a noite inteira pra eles. Eu peguei, saí e fui ver. Quando eu cheguei perto, caiu a primeira parte da passarela, do cais. Lá fora. Meu Deus. Lá na frente tinha três casas, do Valdomiro, Pedro Camarão, o Pedro Camarão até faleceu ano passado, faz sete meses, e tinha mais um depósito de gasolina. Pai amado, senhor. Aí, tinha uma voz lá em cima, era a voz do prefeito. Eu disse: “O pior de tudo é que isso vai cair mesmo”. Mas a gente não percebeu, também não se preocupou em olhar para o rio para ver o que estava acontecendo. Era uma ponta lá fora assim, que ficava lá. Aí, correram e foram falar pro prefeito que a frente do Juruti estava caindo. Já tinha caído a primeira parte do cais. Ainda tinha criança, um menino metendo palito, afastando a terra e ele lá medindo: “Meu filho, sai daqui, vamos embora correr que isso vai cair tudo”. E estava cheio de hóspedes lá em casa, o pior era isso. Quando os hóspedes saíam para festa, eles me davam o dinheiro deles pra guardar no cofre. Meu Deus amado, estamos na tua mão, senhor. A primeira coisa que eu fiz foi recuar o cofre. Eu vim nesse hotel, que temos três, né? Eu consegui um carro, mandei carregar e deixei lá no hotel, fiquei com as chaves, guardei a chave no meu bolso. Quando eu cheguei na beira, já tinha caído o canto, foi rápido. Aí, eu me lembrei: “Meu Deus do céu, tem gente lá na frente que não tem por onde sair”. A minha casa foi sempre grandona, dava uma rua. Eu tinha um depósito de sal lá, que eu acho que tinha uns 200 sacos de sal. Eu disse: “Entra gente, pega essas marretas e quebra todo esse depósito daqui para esse pessoal da frente passar por aqui”. Era só sal, um montão de sal por baixo. O depósito desabou todinho, quebraram, o pessoal saiu. Eu fiz uma análise, a travessia do mar vermelho, né? Aí, tinha gente que nem falava comigo, coisa de criança, né? “Não, Valdomiro, estamos aqui para dar as mãos uns pros outros”. “Mas dona Lourdes, a senhora vai ter esse prejuízo?” Eu disse: “Olha, Valdomiro”, era outro comerciante “para mim, agora não está me importando mercadoria e dinheiro. O que está me importando é a vida do ser humano, que é de vocês aí na frente. Isso aqui, eu trabalhando, eu sei que eu vou recuperar, deixa isso. Quem quiser levar, leve, quem quiser levar me ajude”. Eu só pensava nas três famílias, que estavam lá na frente e que não tinham por onde sair. Teve que arrebentar as paredes pra saírem pela outra casa que dava de fundo para minha. Graças a Deus, se salvaram, não teve morte na primeira caída de terra. Quando deu pra terminar, era meia-noite, o hotel rachou tudo, quando eu pensava que tinha gente me ajudando, cada um estava levando para si. Até os cordões dos meus filhos que eu tirei, aqueles que a gente compra, eu tirei dos pescoços deles e coloquei dentro de uma gaveta e tranquei, no escuro, porque apagaram as luzes da rua, os cabos quebraram todos. Depois que chegou lá, sabiam onde eu tinha guardado e levaram tudo, relógio, eu tinha um relógio Mida, era muito bonito o relógio, tudo de ouro. Pois levaram, e vai saber quem? O negócio foi feio, quando deu por terminado. Quando eu cheguei no quintal da minha casa em cima, que eu pensava que estavam carregando pra me ajudar, cada um estava carregando pra si. Aí, me deu nervoso. No mesmo tempo eu voltei: “Senhor, está nas tuas mãos. Tu sabe o que faz comigo, eu sou uma das tuas servas, Pai, me ajude, Pai”. Eu não queria ter atrito com ninguém, muitas vezes eu sabia por onde estava, mas eu não tinha coragem de ir lá, não. Colchão, cômodas, cadeira, essas coisas.
P/2 - Levavam do hotel?
R - Levaram. Eu fiquei com um pouquinho naquela casa grande lá que eu mostrei que fazia “risagem”, umas coisas que não tinham nem valor mais. Aí, eu vim passar dificuldade, eu fui pra roça. Na época, graças a Deus que eu tinha plantado oito hectares de roça e estava amadurecendo, lá onde é o nosso campo de gado. Era, porque agora também acabou, faz 20 anos. Eu não devia, cheguei no banco, me ofereceram dinheiro, o gerente, eu disse que precisava, fui em Manaus, comprei três fornos, dois catituzinhos de ralar mandioca e eu botei gente pra trabalhar. Trabalhava segunda, terça, quarta, quinta e sexta. Sábado e domingo eu saía nas beiradas pra comprar farinha, o que tinha por aí. Quando inteirava 150, 200 sacas, eu ia pra Manaus. Meus filhos não me enxergavam. Eu trabalhava parecendo uma condenada para não faltar alimento para família. Na época eu tinha filha em Manaus, em Santarém e tinha aqui. E tudo estava estudando. Aí, a crise começou na minha vida. Sabe o que é crise? Eu almoçava e não jantava, ou então jantava e não almoçava. Era desse jeito. Filho não sabia por onde eu andava. Pegava o motor, lá onde eu sabia que estava dando dinheiro eu ia vender o meu produto. Era completar 150, 200 sacas de farinha e eu olha. Meu marido falava: “Lourdes, para”. “Eu nao posso parar, homem, tu é parado, eu não posso parar, não quero ver meus filhos sofrerem, eu quero sofrer, mas não quero ver meus filhos sofrerem”. Eu vivia assim. Até que depois, o meu filho se agradou de uma máquina que viu aqui, ele disse: “Poxa, mamãe”. Nós tinhamos um motorzinho, um sete e meio. “Mamãe, vamos embora comprar uma máquina, está barata, a senhora tem gado no campo”. “Tem gado no campo, meu filho, mas tem despesa, seus irmãos estudam em Santarém, outros estudam em Manaus, tem aqui, a despesa é grande, nós temos mercadoria pra pagar”. Eu olhei pra ele e disse: “Luís, qual é a marca de máquina?”, ele disse: “É um treze”. Mas eu pensava que era de revés, era direto. “O único jeito que eu posso fazer contigo é te dar oito bois, os quatro deixa aí”. Na época, tinha um talhe bem aqui no canto, ele veio falar com o dono do talho, todo dia ele trazia uma. Nessa época também coincidiu da minha filha, a Regiane, ela dava aula de Catecismo. Nós sempre gostamos de igreja, todos nós. Eu levava, incentivava em ir para igreja, porque vocês sabem, só as coisas de Deus que levantam o astral de cada ser humano. Não vem com outras conversas que tem outras coisas que não tem, não. É nas coisas de Deus que a gente se levanta, eu sei porque eu vivo nisso. Aí, o que aconteceu? Ela dava aula de Catecismo, ela que está aí, que arruma o hotel, estava se arrumando pra Primeira Comunhão, e a outra que é freira, também estava se arrumando pra Primeira Comunhão. Ela dava Catecismo junto com a outra senhora do Catecismo. Quando chegava em casa, a vó dela: “Ah, Lourdes, mas a Regiane não quer mais saber de fazer nada, só vive com Bíblia na mão e reunião com os outros, que eu não sei nem por onde ela anda”. Eu disse: “Tia Dominga”, que era a minha sogra, “Tia Dominga, eu acho que ela está certa, deixa essa menina fazer isso. Ela não dá aula de Catecismo?” “Dá”. “Então, pronto” “Mas é que ela não faz mais nada”. “Mas deixe”. Eu tinha achado ela comendo com o prato em frente da televisão e disse: “Olha, isso que a senhora está fazendo está errado. Sabe por que está errado? Porque tem a mesa da gente fazer refeição, pobrezinha, mas tem. Aí, quando foi um dia, eu tive um sonho. Estava acho que perto dele tirar o gado, porque o movimento era pouco em Juruti, ficou pouco, e ele disse mesmo assim. Eu falei pra ele: “Luís, quando você tem dor de cabeça, por favor, não chega meio-dia com esse sol quente, quando é de noite tu vem me perturbar a paciência. Eu trabalho o dia inteiro na roça, aí eu venho e encontro você com essa dor de cabeça. Vem de tardinha”. Isso era num dia de sábado. Mas deixe estar que antes disso eu tive um sonho, eu tenho pra mim que foi uma visão. Eu estava com 17 homens para trabalhar na semana inteira no campo, viemos em Juruti, eu trouxe sete queijos. Essa [filha] que veio a falecer pediu um queijo. “Mamãe, eu queria que a senhora me desse um queijo”. “Por que tu quer?” “Eu quero pra dar pra minha professora, mamãe, eu queria que ela me desse mais aulas, eu tô sentindo que não vou passar”. “Tá, então, tira esse queijo e dê pra sua professora, mas estuda”. “Tá, tudo bem”. Como eu trouxe o queijo lá no comércio, que era aqui, só a base estava lá embaixo, que eu tinha alugado para um cara de Belém, eu não tenho mais condições de comerciar. Aí, com isso, eu vinha pagando imposto, quando foi um dia, antes de matar o gado, teve um convite da igreja para eu fazer um curso em Óbidos. Disse: “Meu Deus, será que vai dar pra mim? Mas eu vou”. Me arrumei e vim embora. Eu peguei todas as coisas do imposto, do comércio, porque já pagava imposto estadual. “Vou dar um jeito, meu marido não tem condições, só vive bêbado, bebendo, ô meu Deus do céu, vai se acabar desse jeito”. Aí, a minha amiga, parceira de trabalho, era uma contadora. Conversando com ela, pra cá e pra ali, eu contei pra ela. “Eu sou de Juruti, minha querida, eu tô atrás de uma pessoa assim, pra me dar um parecer de como eu posso desfazer essa firma, porque eu não tenho mais nada, eu vivo na roça. Eu tirei esse tempo porque foi convite da igreja, para fazer esse curso aqui em Óbidos, e eu trouxe isso”. Na hora que a gente estava de folga, ela olhou e disse: “Dona Lourdes, eu sou contadora, eu posso fazer isso e abrir falência pra senhora”. “Se você puder fazer isso pra mim, é uma benção que eu estou recebendo”. “Depois do curso a gente vai tratar disso”. Eram três dias de curso. Eu levei mais dois dias em Óbidos pra tratar desses documentos, tudinho, abaixei pra Santarém, ela me ensinou tudinho que era pra fazer, abri falência. Abri falência, mas no mesmo tempo eu abri outra, no meu nome, que era do meu marido, né? “A senhora abre outra, trabalha se quiser, se não quiser, está tudo feito”. “Tudo bem”. E vim. Quando cheguei de Óbidos, nesse intervalo, eu tirei o gado pro filho matar. E gente no campo trabalhando. Eu não parava.
P/2 - A senhora matou o gado pra pagar a máquina?
R - É.
P/2 - A máquina era do quê?
R - Motor, motor de andar no rio.
P/2 - Ela servia pra quê?
R - Para eu andar na beirada, comprar produto. O que aconteceu? Eu não parava. Tinha gente que falava: “Mas essa mulher”. Eu não parava em casa, não. A pior coisa é você terminar as suas coisas, ficar de mão cruzada esperando que caia do céu, que não cai. Deus te ajuda, mas ajuda você trabalhando. O que aconteceu? “Tem oito bois, meu filho, vende esses bois, vê se dá um jeito de pagar essa máquina, leva o motor pra lá, para trabalharmos, que temos de nos virar”. Quando foi num dia de quarta-feira, eu sonhei. Eu tinha levado um pessoal daqui que queria pescar no meu lago: “Olha, vocês vão pescar no meu lago, mas metade do peixe é minha”. Eu tenho dois lagos, um central e outro que fica na água barrenta. “Tá, dona Lourdes”. Foram lá pescar, laçaram uns peixes. E eu tenho uma coisa assim. No meu quarto, eu sento e tenho uma Bíblia aberta, eu leio um versículo antes de eu sair pro meu trabalho, seja lá o que for. Eu li, fui dormir “Dona Lourdes, a senhora não vai comer?” “Não, meu filho, pode comer, pode ir trabalhar”. Mas da minha casa a gente ouvia a voz deles pegando os peixes, cacetando o peixe, dava muito peixe lá. Aí, teve uma madorma que disse assim: “Tu não vai preparar duas, mas vai preparar uma”. Mas aquela voz eu não enxergava, como da primeira vez. Mas era uma voz suave, era uma voz que nem sei dizer pra ti, era uma voz muito linda. Depois eu entendi, pra mim, na minha coisa, eu enxerguei um manto, aquele manto grande, mas era só algodão. Não enxergava, depois que eu vi a mão, a mão passou, parece uma mão de criança. Aí, eu acendi a lamparina, ergui meu olho pra Bíblia e disse: “Senhor, seja feita a sua vontade e não a minha”. Aí, veio o sentimento e eu comecei a chorar. Pra mim aquele homem tinha passado na porta, mas o cachorro estava atravessado na porta. O campo, tinha mandado tacar fogo, iluminado. Cheguei lá na mangueira, olhei pra mangueira, o céu estava estrelado. As mulheres que estavam trabalhando, tinham deixado uns tipitis de mandioca. Esqueceram lá. Aí, eu disse assim. “Senhor, se for da sua vontade, se estiver acontecendo alguma coisa na minha família, com os meus filhos, me ajude, Pai, estou precisando da sua ajuda”. E continuei a chorar. Trouxeram um bocado de peixe, era umas duas hora da manhã, jogaram em cima, muitos peixes bonitos, surubi, tucunaré, pescada. O rapaz veio: “A senhora está chorando, dona Lourdes? Por que a senhora está chorando?” “Ah, meu filho, eu tive, não sei se foi um sonho ou uma visão, acho que não vou preparar as duas, mas vou preparar uma”, e pedi pra ele me preparar. “Eu tenho certeza que isso é um sinal de Deus”. “Por que a senhora diz?” “Olha, meus filhos estão fora”. Eu só pensava nos filhos que estavam em Santarém, em Belém, em Manaus. Amanheceu o dia: “Vou fazer um trabalho, um dia redondo”. Dia redondo é assim: começa oito horas, termina três horas, sem comer, só com água. Quando saem do trabalho, que eles levam queijo pra casa deles, a paga do dia e vão embora. Nesse dia nem terminou. O menino chegou e disse assim: “Mamãe, a senhora está preparada mesmo? Eu disse: “Eu estou, meu filho, estou”. “Se prepare mamãe, que eu não sei se a gente vai pegar Ninica viva”. “Por quê?” “Teve um acidente lá no Jará. Ela foi tomar banho. Acho que ela caiu na água gelada”. Parece que ela só teve tempo de dizer pro menino: “Tira eu daqui, que eu já perdi a minha vista”. Eu levei ela no hospital, ela chegou lá sangrando muito, a irmã pediu que viesse buscar rápido. A Irmã Ávila se dava muito comigo, nesse dia tinha 17, 18 homens no campo, foram lá avisar. “Cadê meu pai?” “Tá pra lá”. Avisou pra lá. Mas menina, vim, não sabia se andava ou se corria. Quando cheguei assim, eu me deparei com um homem, que era o vice-prefeito. Eu tinha que falar com ele, ele não falava comigo. Ele tinha me emprestado onze milheiros de tijolos pra fazer essa casa aqui, ele não queria me pagar”. Aí, eu fui pra briga mesmo assim, dizer direta pra ele. Ele disse: “O menino me pagou, cheguei com o prefeito. Prefeito me pagou, mas não me pagou todo, não”. Eu tinha que passar por ele. “Meu Deus do céu”. Você sabe quando a gente tem uma mágoa ou a pessoa ofende a gente, fica numa situação difícil, né? Eu me fiz, estava empinada, falei pra ele: “Oi, seu Raimundo, o senhor por aqui”. “Ah, dona Lourdes, estou por aqui, sim. Eu vim lhe buscar”. “Me buscar, seu Raimundo, de voadeira?” Voadeirona, prefeitura. “E a minha filha?” “Ela está bem, dona Lourdes”. Aquele bem, mas eu notei. Ele ergueu a cabeça, eu coisei na proa da voadeira, ele me jogou para um lado, pro outro. Só tirei a blusa que estava suja, embarquei na voadeira. Eu olhava, eu fechava meus olhos. Pra mim, eu só via a minha filha enfeitada de flor, coroada. Meu Deus, será que a minha filha já faleceu? E se eu perguntar pra ele? Cheguei ali na última fazenda, a última fazenda pra cá, eu tornei a fechar meus olhos, só dava minha filha coroada e cheia de flor. Pai amado. Quando eu cheguei aqui, que era a primeira travessa, encostou a voadeira do lado do motor, lá enxerguei Padre Afonso, mais outro padre, que sempre vem aqui comigo, vou lá com eles. A Tóia, Irmã Germanda, Irmã Gertrudes. Eu comigo: “Esse pessoal vai viajar”. Aí, vem a irmã: “Me dá aqui a sua mão. A senhora está bem?” “Tô bem, minha querida. E por aqui?” “Também”. Aí, veio outra amiga e disse assim: “Dona Lourdes, toma esse copo com água”. “Tóia, por que eu vou tomar esse copo com água?” “Porque as coisas não estão muito bem”. “Tóia, na quarta-feira, a minha oferenda eu já entreguei a Deus”, eu disse pra ela. “Eu tive um sonho”, contei lá, que eu não ia preparar duas, mas ia preparar uma, e que me preparasse. Nisso, eu já estou preparada para o que der e vier. “Só quero que vocês me contem como está a minha filha?” A irmã se abaixou, o padre que veio disse: “Olha, dona Lourdes, a sua filha já é falecida”. As irmãs vieram me abraçar, aquele conforto, né? Eu embarquei no táxi, uns três táxis acompanharam. Mas gente, gente, gente. Do jeito que dava. No meu pensamento ela estava coroada, e coroaram ela. Compraram cetim, aquele vestidinho, mas tão bonitinho, aquele manto. Meu Deus, mas como o pensamento da gente vai, né? Que coisa.
P/1 - Dona Lourdes, na época que caiu a entrada da cidade, qual foi o motivo? Foram os olhos d’água?
R - Foi uma erosão. O que foi aconteceu? Aqui era água, para ali era água. Eles fizeram a travessa pela mão do homem. Foram colocando pedra, cimento, essas coisas. A terra foi crescendo. Então, quando os navios vinham, os navios apitavam lá fora. Quem estava aqui, para pegar navio pra ir pra Belém, Santarém ou para Manaus, tinha que pegar uma canoa para ir pra lá. Então, os prefeitos que iam entrando iam jogando terra até que criou essa terra. Você sabe, a terra crescida não tem base embaixo. E a força do rio veio, começou a cavar. Só pra ter uma ideia, tinha 52 casas na época, era tudo comércio, depósito de juta. A força da água é muito forte por baixo, mergulha na água e ela vai te levando, né? Ela foi cavando o esmeril...
P/2 - Toda a parte que caiu era terra que tinham colocado, não era natural?
R - Não era natural, não. E mesmo se for natural, essa terra que tem aqui não tem garantia, ela vai quebrando, vai cedendo, não é como a terra que a gente está agora, que é terra firme mesmo.
P/1 - Mas a orla é terra colocada?
R - Isso aí foi uma coisa de Belém, não sei de onde veio, fazer um bate-estaca, de fora. Isso é um trabalho federal que fizeram aí, vieram máquinas para fazer esse trabalho aí.
P/2 - E vocês não percebiam nada, nenhum movimento, nada se rachando?
R - Nada, nada, nada.
P/2 - Foi de repente, ninguém ouvia nada?
R - Nada, ninguém ouvia nada, a gente não via nada, mesmo. Só o estrondo.
P/2 - E durante o acontecimento, qual era a reação das pessoas? Naquele momento, como elas fizeram com as suas coisas?
R - O que puderam tirar, foram tirando. Agora, teve armazém que foi com tudo, você via a casa, ó, fiiii, ela tremia lá em cima. Tinha uma casa flutuante, ele fazia isso, parecia coisa de brinquedo. O cara gritava lá, ele ficou no funil.
P/2 - Como ele conseguiu sair?
R - A água vai, vai, vai levando pra fora e vai diminuindo. Foram três caídas, aqui na frente de Juruti. Teve uma ali em cima que ficou com um pessoal que veio lá da juta que estavam capinando, tirando juta, uma coisa assim. Trouxeram peixe pra vender. E o que fizeram? Os trabalhadores ficaram na ponta lá pra subir pras suas casas, e a canoa, os dois baixaram pra vender os peixes, com três lá. Quando eles andavam, eles perceberam que a terra estava andando e era grande o pedaço de terra. Parece mentira, mas é verdade, essa terra desmoronou, caiu, dos três, um morreu e os outros dois ficaram em um vulcão, eles contam que ficaram em um sabão em cima do pau e foram boiar muito, para a parte de Óbidos. Viveram e contaram a história, teve um que vacilou. Eles vinham jacaré, cobra, eles foram entrevistados sobre isso, sobreviveram.
P/2 - Mas foi na mesma época que desmoronou aqui?
Em um dia só, dona Lourdes?
R - Não, sempre parcelava assim. Uma vez, eu já estava fazendo esse hotel aqui, porque eu estou sempre no meu trabalho. Aí, eu tinha um dinheiro e não queria deixar, queria acompanhar o trabalho e nesse tempo não vinha vendedor como vem agora, vinha de Belém, aqueles iates grandes, motor grande, tudo fechado. Traziam bolacha, arroz, cachaça, sal, milho, feijão. O motor chamava Regatão. Eles encostavam. Mas quando eles chegavam era: “Ah, graças a Deus, chegou, agora a gente vai comprar mercadoria”. Eu peguei, meti um dinheiro no bolso e disse: “Vou lá naquele motor ver se tem um açúcar barato”. Naquele tempo o açúcar era de 60 quilos o saco. Eu cheguei lá no rapaz, motor grande. Tinha o primeiro Regatão, segundo, terceiro. Eu fiquei no primeiro Regatão, me dava lá com o rapaz, motor grande, Líder, o nome dele. Inclusive esse pessoal tem um supermercado Líder em Belém. Eu sei porque uma vez ele me ligou, ele procurou meu telefone e falou comigo, disse que quando eu fosse em Belém que procurasse o Armazém Líder, que eles conseguiram ficar. Depois eu embarquei no motor e fui fazer compra, comprei três sacos de açúcar, dois de arroz, feijão, bolacha. Quando nós olhamos, no primeiro motor. E eles: “Dona Lourdes, a senhora disse que foi entrevistada, nós vimos a senhora no jornal”. Porque eu fui entrevistada mesmo, ninguém quis ir, e eu disse: “Vou lá, vou contar a verdade”. A gente estava conversando e tinha uma dona dentro do camarote com um cara, mulher da vida. Eu olhei pra ele e disse: “Toninho, meu filho, vamos pedir perdão a Deus, ora por ti mesmo, meu filho. Olha o que tá baixando, essa grande terra não vai sobrar nenhum de nós”. Ele se abraçou comigo: “Dona Lourdes, o que eu posso fazer de oração?” ”Pede perdão a Deus por tudo que está acontecendo na sua vida. Pede perdão ao Senhor, porque não sabemos se, ou vivo, ou morto, a gente vai sair daqui”. A terra era mais alta que esse hotel aqui, aquela terra grande, e o motor lá embaixo. A gente só ouvia dizer, os primeiros lá da frente diziam: “Corta o cabo Corta o cabo” Era o cabo onde estavam os primeiros motores lá da frente e nós íamos ficar. Quando caiu a terra o barco só fez isso, afundou, eu me peguei numa coluna do motor assim, e disse: “Senhor, seja feita a tua vontade, Pai de Misericórdia. Está vendo que nós estamos... Eu sou uma das suas servas, Pai, me ajuda, Pai de Misericórdia, me dê força e coragem”. O que eu falava, eles também falavam, os três, atracados no motor. A caixaria veio que olha, essa minha perna aqui eu uso mais calça comprida. Ela veio e se coisaram tudo as minhas veias quando saiu. Minha perna, depois de dois dias, eu não sabia o que era. Dor, dor. O motor só fez isso, ele se abaixou e ficou só o motor grande em que eu estava. O motor só fez isso, Deus ajudou, que ele baixou a proa dele, eu fui no fundo e ele fez assim. Aquilo foi uma grande providência de Deus, morreu um nisso, o cozinheiro. Ele ficou lá embaixo e o motor de luz caiu em cima do peito dele. Veio até avião buscar ele.
P/2 - Quando foi isso, dona Lourdes?
R - Isso foi em 88.
P/2 - Na mesma época.
R - Na mesma época.
P/2 - Foi acontecendo.
R - Foi acontecendo. Perdi tudo o que eu tinha comprado. Eu sempre uso esses caixotes. O motor foi, foi baixando, a terra caindo, até que nós ficamos pra ali. O açúcar perdeu tudo. Também foi a última viagem do Líder aqui, ele teve muito prejuízo. Além de tudo, teve de fretar um avião pra buscar o corpo do rapaz. E o motor ficou aí, porque não tinha como aproveitar. Só vinha gente passar por aquele lado do motor. Ninguém esperava aquilo porque estava numa banca de peixe, sabe onde vende alimento? Fica muita gente passando por debaixo do motor, gente saindo. Mas só morreu o rapaz, dessa vez. E eu saí dessa vez, quando eu saí de lá, eu sentei na calçada e cheguei a sentir gosto de sangue na boca. Mas eu não cortei, cuspi mas não era [sangue], mas eu sentia o gosto de sangue. Quando foi à tarde, que eu tirei a minha roupa, que eu estava toda ensopada, olho as minhas pernas, aquele sangue estendeu assim. Eu fui pra Santarém, só colocaram uma coisa de gelo, eu até pedi pro médico: “Poxa doutor, não faça mais isso, eu já estou adoecendo, ainda mais com esse negócio. Tinha que tirar esse sangue que está espalhado aí”. Aí, começaram a aparecer as varizes. Foi muito triste essa vez. O rapaz até disse “nós viemos participar do sofrimento de vocês”. Pois é. Eu já estava fazendo isso daqui [o hotel].
P/1 - Desde então parou de cair?
R - Parou de cair. Só veio descansar onde era terra firme. Vieram fazer um estudo onde estava terra firme.
P/2 - Durante quanto tempo foi caindo, dona Lourdes, foi tudo rápido, foi caindo um dia depois do outro ou levou vários meses?
R - Foi tudo rápido. Levou uns três anos caindo, sempre caindo, todo dia caía um pedaço, ia desmoronando. A frente da água era muito forte lá. A água batia, não sei lá, aquilo é uma erosão, a força daquela água. Agora você vê, engraçado que o capim vem, ele sobe, leva dois, três dias um capim pra poder baixar. Quer dizer, daqui uns tempos, Juruti ainda vai ficar uma represa, porque vem baixando aqui uma ilha.
P/2 - A gente viu que tem um buraco aqui na frente, onde é o cais agora. Alguém veio, já falou alguma coisa. Vocês estão sabendo o que é esse buraco?
R - Esse buraco, o que acontece? Lá onde tem esses buracos é porque tem olho d´água.
P/2 - E tem alguma reação dos moradores, de ficar preocupados...
R - Inclusive lá onde estão fazendo um aterro uma casa desabou, já faz muito tempo. E uma farmácia. A farmácia foi-se com tudo, só que não morreu ninguém. Mas mandado por Deus, porque lá na beira deixaram a farmácia. Aí, buu, com tudo, olha lá a valona que ficou. Mas era sempre olho d´água. Agora, eu não sei, mas acho que o prefeito devia pelo menos fazer um chafariz de água, porque a força da água vem. Então, ela vai levando a terra, vai levando a terra. Até que ficou oco por baixo e ela caiu.
P/2 - E qual é a sua ideia, dona Lourdes, do chafariz?
R - Fazer uma coisa para água sair para cima, fazer uma coisa bonitinha, para tomar banho, às vezes a pessoa quer tomar uma água, às vezes quer lavar a mão. Porque daqui para a frente vai ser tudo pago. Você vai em Santarém, em Manaus, por aí, até para entrar em um banheiro tem que pagar, se vai lavar a mão tem que pagar. Não seria uma coisa bonita de fazer? Chamar uma pessoa para mandar estudar o solo da terra. Porque sempre tem vários olhos aqui na frente da cidade. Lá é um, aqui nessa ponta onde está quebrada é outra. Eu falei com o menino porque quando eu vendia mingau, tinha um menino, nossa, naquele tempo a gente chamava esse tipo de pessoa como débil mental. Não é débil mental, é especial. Quando eles nascem eles têm uma pessoa com... Como é o nome dessa doença?
P/2 - Síndrome de Down.
R - Sim. Tinha um menino aqui. Nós chamávamos ele de Peruzinho. Coitado, a família não se importava com ele. Então, na época que eu fiquei bem de vida, eu já passei por momentos de bem de vida naquele hotel, eu fazia o Natal deles. Eu fazia uma mesa grande, cheia, bem arrumadinha, tinha de tudo um pouco, e chamava as pessoas mais carentes que viviam na rua, que era o Peruzinho, era o Vitalino, o Marrecão, eram uns 15. Botava para eles tudo, era arroz, macarrão, salada, comida da melhor para eles comerem. Aí, eles brigavam na mesa. Tinha que ter gente para separar. Era gente de tudo quanto era jeito, eu tinha fotografia, na época foi até embora, levaram. Eu fazia o Natal deles assim. Uma vez o Vitalino disse: “Não me aborrece, por favor, deixa eu comer do que eu gosto. Porque é a primeira vez que eu vou comer bem”. Era daqueles mendigos, sabe? Juntava os mendigos e fazia isso. “Dona Lourdes, a senhora tem muita coisa?” “Não, quantos Natais eu passei sem comer uma coisa especial, então, eles têm direito”. Então, eu estava contando do Peruzinho. Peruzinho gostava muito de cachorro. E aquele monte de cachorro, onde ele sentava, os cachorros sentavam perto dele. Meu Deus do céu, Peruzinho. Quando foi uma das vezes, eu estava ali na baiúca já, eu vi ele subir pra cá, com os cachorros, era meio-dia. “Meu Deus, mas o Peruzinho não voltou mais pra comer, eu queria dar comida para ele”. Eu deixei uma pessoa lá e disse: “Vou ver onde o Peruzinho está”. “Mas a senhora se preocupa muito com essas pessoas, né, dona Lourdes?” “Se alguém não se preocupar com essas pessoas, quem é que vai se preocupar?” Aí, eu vi. E naquele que eu vinha, ia encostando um pescador. Esse pescador encostou e quando eu baixei os cachorros estavam todos em cima, mas ele estava lá embaixo tomando banho. Nesse olho aí mesmo, que eles aterraram. E era cheio de, como é que se diz, de mato, só tinha cacimba. Parece que o bicho veio lá da beira, pegou ele. Abocanhou ele, era um sucuriju, pegou nele assim. E puxava... Ele dizia: “Puxa, eu vou contar pro pai”. Se a gente não chega lá, a sucuriju ia levar ele. Porque ela faz isso, pega, dá uma volta pra quebrar o que tiver assim. Depois de quebrar ela come. Aí, chegou o pescador, eu gritei: “Vem aqui, vem aqui”. Ele veio todo apressado: “Olha lá a cabeça dele”. E os cachorros aqui esperando ele, eram crias dele. Até isso era feio.
P/2 - Dona Lourdes, e hoje em dia, a senhora criou o hotel aqui, o Santel. Faz quanto tempo já que está aqui?
R - De 85, uns quatro anos depois que o prefeito legalizou eu comecei a trabalhar. O que aconteceu? Essa história é até engraçada. Quando ele me deu o terreno, isso aqui foi desapropriado, era de um senhor lá de Óbidos. Ele desapropriou essa terra, deu oito metros de frente pra cada pessoa que tinha lá na frente. Eu peguei pra cá. Ali pra trás, outro que teve prejuízo, ele me vendeu e eu comprei o fundo pra varar pra lá. Eu não tinha como conseguir, eu estava sem dinheiro, não tinha como fazer dinheiro. Deixa estar que eu tinha dois “mamutão”, eu vendi os dois pra comprar o tal do cimento pra marcar o terreno. Porque uma época tinha um pessoal que não tinha nada a ver com a terra caída e que queria tomar um pedaço, sabe como é a tal da invasão, né? Na época aqui não tinha cimento, não tinha nada. Eu fui pra Parintins. Eu morava em uma baiuquinha aqui. Agora não está existindo mais essas casinhas, ali ainda tem. Eu morava assim naquela baiuca. Fui pra Parintins. Cheguei lá, eu ia pra comprar uns 20 sacos de cimento. Cheguei lá com essa minha amizade que todo mundo me conhece. Eu saí pra procurar o cimento no outro dia, aí, eu encontrei com a Lene e a Olina. “Mas, Lourdes, pelo amor de Deus Tu por aqui Nós estamos fazendo uma caixa pra mandar pra ti. Nós soubemos que tu não come uma vez ao dia, que tu não cozinha porque não tem panela, não tem prato”. Meu Deus, já aumentaram muito a conversa pra essas duas, e elas tinham dinheiro. “Vai lá em casa”. Fui lá na casa, elas fizeram uma mesa sortida, gente que tem dinheiro mesmo, né? Nós fomos conterrâneas, moças da época. Aí, elas botaram tanta coisa na mesa, comi lá com elas e fomos pro comércio. “Olha Lourdes, está aqui a caixa, duas caixas, uma tem só as coisas, panela, prato, tudinho aqui. Aqui são outras coisas que a gente juntou pra mandar pra ti”. Estava tudo bonitinho lá. “Vamos pro comércio”. “E o que você veio fazer, irmã?” “Olha, Lene, eu vim comprar cimento, eu ganhei um terreno que o prefeito me deu depois que caiu o meu hotel”. “E onde tu mora?” “Pra falar a verdade, eu moro em uma baiuquinha lá. Eu me sinto feliz porque eu estou com saúde, Deus me deu braço, inteligência, tenho certeza que eu vou lutar pela vida e vou conseguir.” “Lourdes, tu fala assim que parece...” “Não, eu tenho que falar com firmeza, Lene, o que é isso”. E naquele vai e vem foram comprando roupas. “Mas isso aqui é bonito, isso aqui”. Tu sabe, quando a gente está com os outros, eu não sei se você já passou por isso, de você não ter nada e ter aquele bocadinho, e você fica com vergonha de não querer acompanhar as suas amigas. Aí, vai atrás daquilo, né? Minha querida, gastei quase todo o dinheiro comprando besteira Quando foi no fim do dia, não tinha dinheiro com nada. Fiquei pensando lá no motor que eu estava. “É verdade, vou voltar e não levo um saco de cimento, o que eu vou fazer? Gastei todo o dinheiro. Seja feita a vontade do Senhor, ele vai me ajudar”. E me acompanharam, pra cá e pra ali. Vim, não trouxe um saco de cimento. Quando eu cheguei lá na baiuca, caixa cheia de besteira, só coisa mesmo que não tinha... Quer dizer, tinha valor, mas eu não tinha ido pra lá pra fazer isso. Quando meu marido me enxergou: “Mas escuta aqui, cadê o cimento que tu foi comprar?” Eu disse: “Olha, eu não comprei nem um saco de cimento”. “Por quê?” “Pois eu não estava com Lene e Olina, tu sabe o jeito delas”. Eu trouxe um pouco de dinheiro, pra comprar só cinco ou seis eu deixei de comprar. “É verdade, Lourdes, gastaste todo aquele dinheiro”. Para quem está numa pior, todo pouco é muito. “E agora, como você vai?” “Deus vai dar jeito, vai providenciar pra mim”. Passou-se, passou-se, eu estava almoçando. Era um dia como hoje. Aí, ele disse mesmo assim. Chegou aquele rapaz, bateu lá em Casa Favorita, onde a mulher tinha me dado para eu trabalhar lá no campo dele. “Não sabe onde a dona Lourdes mora?” Casinha pequena, pra casa grande. “Acho que é essa que mora aí”. Ela chamou: “Lourdes” “Oi, dona Alcira” “Tem um rapaz te procurando aqui, Lourdes” Fui lá, aquele rapaz diferente, estatura. “A senhora que é a dona Lourdes?” “Sou eu mesma”. Deixa estar que a parte de trás da minha baiuca dava pro rio, né? Eu cuidava alguma coisa que eu tinha, enxergava tudo pro rio. Eu vi aquela balsa, ela encostou. Aí, ele disse assim: “Dona Lourdes, eu trouxe um negócio na balsa pra senhora: 200 sacos de cimento”. “200 sacos de cimento?” “É. Olha, não se espante, eu só quero que a senhora arranje um lugar pra colocar esse cimento”. “Mas meu Deus, quem mandou esse cimento?” Fiquei batalhando, com certeza é pessoal conhecida que fez alguma cotinha lá pra me ajudar. Eu fui onde era um depósito de juta grande e tinha um senhor muito meu amigo. Esqueço o nome dele, Zeca, acho. Jesefá. “Seu Jesefá, eu estou precisando da sua ajuda. Chegaram 200 sacos de cimento pra mim e eu não tenho onde por, eu queria que o senhor alugasse aqui”. “Dona Lourdes, não lhe alugo, lhe dou. Pode colocar, tem essa madeira aqui”. Chamou um pessoal da balsa: “Olha, venha ajeitar isso aqui”. Era o filho do dono que tinha mandado o cimento pra mim. O rapaz bonitão mandou ajeitar tudinho lá. “A senhora quer assistir o desembarque do cimento?” “Não, já veio conferido, 200 sacos”. Pegou a empilhadeira, aquela coisa que carrega, começou a carregar. “Está aqui, 200 sacos de cimento. Faça sua casa”. Tá bom. Meu Deus. “Tem nota aí?” “Não, não precisa de nota, minha querida, não é de nota, não. Nem se preocupe com essas coisas, não. E me abraçou, me beijou e foi embora”. Mas é verdade, agora sim. E eu preocupada que eu tinha ido atrás do cimento lá em Parintins, mas eu só tinha um pouco de ferro. “Agora, esse cimento vai endurecer aqui”. Minto, eu não gastei o dinheiro em Parintins, eu comprei umas coisas, mas eu não gastei. Eu baixei pra Santarém. “Quer saber de uma coisa? Eu já vou comprar ferro em Santarém”. Me arrumei pra ir pra Santarém. Chegou a borda do motor, já perto de Santarém, uma pessoa disse: “Dona Lourdes, a senhora veio fazer compra?” “Rapaz, eu vim comprar ferro pra ver se eu levanto a minha casa. Eu quero pelo menos esquadrejar onde é o terreno”. Ele disse: “Mas dona Lourdes, não compre ferro aqui. O seu Eduardo, aquele lá que pegou prejuízo, ele está vendendo a ferragem toda por besteira. Ele disse que se ele achar uma pessoa, porque ele recebeu um convite. Ele fez um curso pra ser pastor, ele passou e vai pra Belém. Com certeza, dona Lourdes, a senhora vai fazer negócio bom”. O barco que eu deixei, embarquei no outro, nem saí em Santarém, voltei. Amanheceu o dia aqui, tomei meu banho, fui dar bom dia lá pro seu Eduardo. Cheguei lá, ele tava escourado no muro. “Bom dia, seu Eduardo”. “Bom dia, dona Lourdes. A senhora por aqui cedo?” “É, seu Eduardo, o senhor sabe, quando a gente perde uma coisa, a gente fica que nem dorme mais”. “Ah, falta a senhora ter um pouco de fé”. “Mas eu tenho fé, seu Eduardo”. “Entra, venha tomar café”. “Eu já até tomei em casa. Eu vou logo direto na conversa. Eu soube que o senhor tá vendendo umas ferragens”. “Dona Lourdes, eu estou até aqui no portão pedindo, fazendo uma grande oração, que aparecesse alguma pessoa aqui, porque amanhã eu tenho que pegar o navio pra ir embora pra Belém com tudo. Graças a Deus eu passei, fui promovido a pastor”. Aí, eu abracei ele, agradeci, fortaleci ele, que fosse bem na caminhada dele. Não demorou a conversa. “Vamos entrar aqui, está aqui o ferro. Aqui tem ferro pra dois pisos. Vam’bora fazer”. “Quando o senhor quer nesse ferro todo?” O dinheiro estava na minha mão. “Dona Lourdes, pra senhora, que eu sei que a senhora também é das pessoas que está passando necessidade, eu acompanho a senhora dia a dia, como a senhora vive, eu vou fazer isso. A senhora me dá tanto, eu fico satisfeito, só pra pagar a minha viagem pra Belém. Eu só quero saber que a senhora esteja bem um dia”. Menina, mais que depressa, conferi o dinheiro. “O que passar é seu, seu Eduardo, eu sei que o senhor está fazendo”. Tinha ferro pra tudo, pra subir essa casa do jeito que ela está. Eu fiz vinte por oito. Eu corri atrás de pedreiro, eu fui ao banco. Cheguei no banco, na cara de pau. Chamei o gerente, falei: “Olha, seu gerente, eu queria ter uma conversa sadia com o senhor. Eu estou numa situação difícil, mas eu estou aqui pra negociar”. Cara de pau. Não devia ao banco, né? “E aí, dona Lourdes?” “Eu ganhei um terreno, agora chegaram 200 sacos de cimento pra mim, já recebi um tijolo, não tudo, mas onze milheiros da briga com o vice-prefeito, só estou com oito milheiros de tijolo, está faltando três que eles não me pagaram, mas eu vou dar um jeito deles me pagarem, eu não vou deixar de graça o meu suor. E eu vim aqui pra ver se eu consigo emprestar o meu dinheiro”. “Mas pra senhora eu empresto”. Hipotequei logo todo o meu gado, o terreno que eu tinha, o terreno de lá”. Ainda teve o meu vizinho aqui do lado. Quando eu arranjei o pedreiro, ele estava construindo também, estava terminando a laje, e o rapaz ia ficar sem trabalhar. Aí, chama o rapaz. “Olha eu vou trabalhar...” “Mas rapaz, vai trabalhar com a dona Lourdes? A dona Lourdes não tem como te pagar”. Eu vi aquela demora, agoniada. “Quando é que vai começar a trabalhar”. Ele disse: “Olha, dona Lourdes, eu não vou trabalhar com a senhora”. “Mas por que, rapaz, tu não vai fazer o meu serviço? Não eram quatro pessoas que tu pediste, para arrumar?” “A senhora não tem dinheiro pra me pagar”. “Quem disse que eu não tenho dinheiro pra te pagar? Se eu não tivesse dinheiro pra te pagar, meu filho, não estava te chamando. ‘Bora no banco”. Chamei o gerente, ele foi no banco comigo. “Pode começar o serviço da dona Lourdes, que o dinheiro está conferido aqui pra te pagar”. Mas só tem aquela empreteira, aí, empreitei aí. Estava com 200 sacos de cimento.
P/1 - Dona Lourdes, quando ficou pronto o hotel?
R - Levou dois anos, só fiz a base mesmo, até ficar na laje. Faz o quê? Uns dez anos. Fui fazendo aos pedaços. Porque aqui não tem engenheiro, a engenharia aqui é a minha. Eu que entro, vou na prefeitura, tiro, converso muito com o prefeito, ali, daquele lado, aquele lado. Quando começou. Teve que arranjar um engenheiro porque estava apertado e tinha uma comissão de Belém mesmo, tive que pagar o engenheiro para fazer a casa de lá, mas aqui fui eu.
P/1 - A senhora disse “eu que vejo como vai fazer, não tem engenheiro”. E como é que a senhora faz? A senhora conversa com o empreiteiro?
R - Eu vou dizendo como eu quero, eu faço no papel como eu quero, tantos por quarto, pra poder dar e não ficar grande o quarto. Os quartos são pequenos, para uma pessoa, uma cama. Ali para trás que tem quarto pra duas pessoas, mas aqui é só pra uma. Só tem um Geral ali, um grande, me aconselharam que um hotel tem que ter um quarto grande, para três pessoas. Daí eu tenho, eu parei esse tempo porque não dava condição, não.
P/1 - Desde então, a senhora toca aqui e cozinha também lá embaixo?
R - Cozinho lá embaixo.
P/1 - E tem mais gente que trabalha com vocês, né? Suas filhas.
R - Só nós, família mesmo. Não tem ninguém, não. Não adianta porque hoje em dia o pessoal não quer trabalhar, minha filha. Se você manda fazer alguma coisa, eles fazem exagerado. Às vezes, fazem comida de um dia para o outro. Hoje em dia não tem condição, não, essa quentura. Eu faço o que dá mais ou menos, eu tenho um cálculo, mais ou menos, básico.
P/1 - A sua casa é aqui embaixo mesmo, a senhora mora aqui?
R - É. Aqui embaixo.
P/1 - Dona Lourdes, a gente vai chegando ao final, agora que a gente chegou nessa parte atual da sua vida. Eu queria perguntar sobre o futuro. Qual é o seu sonho hoje em dia?
R - Olha, meu sonho é terminar isso daqui, vai dar pra terminar, se Deus permitir. Eu tenho outro terreno, eu estou com intenção de vender todo o meu gado, porque a gente não acha gente de confiança. Eu tenho mais setenta reses lá, tem dias que a minha filha diz: “Mãe, vamos fazer esse gado, vamos vender tudinho para refazer o teu ponto lá em cima”. Por quê? Num negócio desses a gente trabalha sem ter empregado, mesmo que você tenha, aqui o pessoal é muito preguiçoso, tem que falar a verdade. Eles querem saber de ganhar, mas não querem saber de trabalhar. Então, é preferível fazer uma coisa em que a família trabalhe. Porque se eles perderem, vão perder o que é deles. Eu sempre aviso pra eles: “Pegue isso com duas mãos, porque isso daqui eu já venho suando há muito tempo, e sonhando. Consegui, isso aqui vai ficar para o futuro de vocês, não pude dar a educação de vocês, mas isso aqui dá pra vocês viverem”. Porque tem muitos que estão empregados, mas tem muitos que não estão, né? Eu não fui aquela mãe que teve condições. Não faz tempo, agora mesmo, se você quer um filho educado pra fazer faculdade, você tem que ir pra Santarém, pra Belém, pra Manaus. Que pai pode fazer isso? É difícil, só quem tem um emprego seguro aqui. Que até agora não tem. Aliás, alguns que têm são de fora, vêm de fora, mas filho daqui não tem. Eu fico até preocupada, essa firma grande está custeando os nossos produtos, levando. Outro dia eu estava até conversando com o seu Zé Carlos, que é um dos chefes: “Olha, vocês já deviam ter providenciado aqui pra nós um curso técnico, pro povo se educar aqui e ser empregado aqui mesmo. Porque se é pra trazer empregado de fora, ele está aqui. Porque nós não temos um estudo técnico. Onde tem? Em Balém, Santarém. Em Belém, já, porque nem Santarém tem.
P/1 - Lourdes, a gente gostaria de agradecer a entrevista, finalizando aqui. Obrigado pelo seu tempo e a sua história.
R - Tá, tá bom.
P/2 - Obrigada, Lourdes.Recolher
Título: O fenômeno das terras caídas
Data: 17/04/2010
Local de produção: Juruti
Personagem: Maria de Lourdes Pimentel Sampaio Autor: Museu da PessoaO Museu da Pessoa está em constante melhoria de sua plataforma. Caso perceba algum erro nesta página, ou caso sinta falta de alguma informação nesta história, entre em contato conosco através do email atendimento@museudapessoa.org.