Projeto Ponto de Cultura
Depoimento de Antonio Sérgio Petrilli
Entrevistado por Eduardo Barros e Leandro Cusin
São Paulo, 01/04/2010
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista PC_MA_HV_262
Transcrito por Rosângela Maria Nunes Henriques
Revisado por Viviane Aguiar
Publicado em 21/11/2013
P/1 – Bom, Sérgio, a gente começa as nossas entrevistas sempre com uma pergunta padrão, que é o nome completo, o local e a data de nascimento.
R – Meu nome é Antônio Sérgio Petrilli, nasci em São Paulo em 26 de dezembro de 1946.
P/1 – Sérgio, e o nome dos seus pais?
R – Meu pai é Dagoberto Petrilli, e minha mãe é Eva Petrilli.
P/1 – Você tem irmãos?
R – Tenho mais cinco irmãos. Nós somos seis.
P/1 – E qual é a sua posição?
R – Eu sou o mais velho. Depois, vêm o Dagoberto, o Paulo Roberto, o Luís Roberto, o João Carlos e a Helena Maria.
P/1 – Sérgio, você sabe a história dos seus pais? De onde eles vieram? Onde se conheceram?
R – Sei. A minha mãe veio da Hungria. Ela nasceu na Hungria e veio para cá bem pequenininha, com dois anos. Meus avós vieram para morar no Brasil, e a minha mãe cresceu no Rio de Janeiro e depois veio para São Paulo. Eles se conheceram estudando num cursinho para Medicina. Meu pai é brasileiro, nasceu em Ibaté, uma cidadezinha do interior de São Paulo, e meu avô veio da Itália e foi morar no interior. O sonho do meu pai era ser médico, desde a época no interior. Ele contava muito essa história para a gente. Desde pequeno, no grupo onde ele estudava, o único que pensava em um dia ser médico era ele, no meio da criançada em uma cidade do interior, naquela época de 1930. A gente cresceu ouvindo essa história. E eles se encontraram em São Paulo no cursinho e se casaram. Minha mãe estudou até o terceiro ano de Medicina e depois largou. Ela era filha única, e o meu pai tinha 14 irmãos, uma família bem grande. Então, eu fui criado sempre com uma família grande do lado do papai. Ia para o interior, e minha avó e meu avô meio que me criaram como filho mais velho. Tive a chance de ter muito contato com ela. Minha mãe estudava no começo e, depois, ela começou a ter um monte de filhos. Ela desistiu no terceiro ano para ser realmente mãe, e essa história se confunde mais para a frente porque o meu avô, que era uma pessoa que também teve um papel forte, nunca perdoou muito a minha mãe por ter largado a Medicina. O sonho dele era ter tido uma filha médica. Ele gostava muito de criança também, dos netos, mas achava que ela devia ter feito Medicina.
P/1 – Sérgio, qual é sua lembrança mais remota da infância? Ou uma delas?
R – Eu me lembro bastante. Eu sempre gostei muito de jogar futebol, eu sempre fui muito animado em fazer atividades esportivas. E jogar bola também era uma coisa constante na minha vida. A gente tinha um quintal na minha casa na Vila Pompeia, aqui em São Paulo, e a gente fazia muita atividade esportiva. Eu andava sempre com uma bola na mão. Talvez uma das imagens mais antigas que eu tenho é que meu avô e minha avó moravam no fundo da casa, e, um dia, andando com a bola dentro da casa, eu derrubei um vaso muito valoroso, muito valioso da minha avó. Eu fiquei meio desesperado por ter derrubado e tomei bronca. Eu sei que comecei a guardar dinheiro das mesadas e, um dia, fui numa casa de ferragens, que era na esquina da rua da minha casa, e comprei um vaso – claro, muito menos valioso que o da minha avó. Eu sei que ela guardou aquele vaso como uma coisa maravilhosa que o neto mais velho dela tinha comprado no lugar do vaso de cristal que eu tinha derrubado. Comprei um vaso na loja de ferragens juntando dinheiro de mesada. Essa imagem é mais forte que eu. É um pouco do meu perfil de criança, mas é uma situação bastante presente na minha cabeça.
P/1 – E essa foi a sua primeira casa? A sua casa da infância foi essa?
R – Do que eu me lembro, foi essa casa.
P/1 – Como era essa casa? Em que rua ela ficava? Quais são as imagens que ficaram para você desse lugar?
R – A gente morava na Alfonso Bovero, uma rua que sempre teve bastante trânsito, mas era uma rua de bairro, do meu colégio. O colégio em que acabei estudando foi o Liceu Tiradentes, que era perto da minha casa, um quarteirão e meio da minha casa. Tinha uma padaria na esquina, que a gente lembrava bem, e tinha uma condição de... Era um sobradinho, e era meio apertado para seis filhos. A gente dormia em três crianças, tinha beliche. Eu me lembro bem que eu gostava muito desse bairro, porque eu fazia esporte militante no Palmeiras e eu descia a pé a Rua Caracas e subia também. Era um bairro em que eu tinha amigos do colégio. Eram filhos das pessoas em volta. Acho que sempre foi um bairro em que eu gostei muito de morar, eu me sentia muito bem, e a casa em que a gente morou durante muitos anos... Eu fui morar em Campinas quando entrei na faculdade, muito próximo do momento em que meus pais mudaram para uma casa melhor no Sumaré. Fiquei pouco tempo na casa nova, que era mais ampla, onde os filhos estavam melhor acomodados.
P/1 – Nessa casa anterior, você passou muitos anos da vida?
R – Muitos anos da minha vida ali.
P/1 – Como era a dinâmica da família com tantos irmãos? As brincadeiras, o que vocês faziam? Provavelmente jogavam bola?
R – Jogava bola. O que era bem interessante era que a criançada brincava muito. Minha mãe tinha muita dificuldade para pôr toda aquela turma para dormir, e, às vezes, a gente subia e queria ficar ouvindo a conversa que estava embaixo. A gente tinha mesa grande. O meu pai chegava sempre mais tarde, e a criançada estava de pijama, já tinha comido e, de repente, ele sentava. Ele gostava muito de inventar modas, e a gente sentava em volta dele. Como filho de italiano, ele gostava sempre de ter uma mesa farta e fazer coisas diferentes. Essa época eu me lembro como uma época bem gostosa, de vê-lo pouco, porque ele vinha mais à noite quando a gente era criança, mas de poder estar reunindo. E também eu podia ajudá-lo bastante, porque ele se formou médico, mas, como teve muitos filhos, ele precisava fazer outra atividade comercial para poder manter a família. Ele nunca quis dar plantão – porque, na maioria das vezes, os médicos ganham no começo da carreira dando um monte de plantão. Mas ele tinha uma firma de colocação de pedras ornamentais – essa pedras mineiras, essas coisas – e era interessante porque às vezes chegava um caminhão de pedras de Minas ou do interior, e eu ia cedinho levar, porque ajudava nas férias, ajudava às vezes no final de semana ou mesmo durante a semana. Subi num caminhão enorme e, naquela época, eu achava o máximo do poder dirigir uma Mercedes daqueles, aqueles caminhões, uma Scania carregando um monte de pedra. E me sentia útil também, querendo ajudar às vezes a descarregar pedra na obra. Então, parecia uma coisa interessante, porque a gente cresceu com uma condição de recursos adequados, mas sempre uma época pouco abundante de recurso. A gente sabia, até como irmão mais velho e com a história antiga dos meus avós que vieram de muita restrição de países comunistas para o Brasil. Eles faziam uma cabeça muito voltada para essa forma de valorizar tudo o que você tem. E eu sentia que precisava ajudar no sentido de tudo o que meu pai estava trabalhando e as coisas como eram naquela época. Isso foi uma coisa interessante e sempre me marcou: a vontade de se esforçar para conseguir dar o máximo e poder compactuar com essa condição do meu pai, de ter que criar um monte de filhos e ter recurso para tudo isso. Ele também tinha um momento, que a gente criou com a cabeça dele. Às vezes, eu ia assistir mais tarde, acompanhar cirurgias. Ele nunca conseguiu crescer profissionalmente como primeiro plano. Eles trabalhavam como assistente de professor de uma pessoa que só se dedicava à Medicina, e os próprios amigos dele diziam que era uma pena que ele não pudesse se dedicar só à Medicina. Tinha uma parte do dia dele em que ele fazia a parte comercial, e, com isso, eu ouvia esse tipo de conversa esses anos todos. Meu pai poderia ter sido talvez um médico mais valorizado para os outros, porque, para ele, ele achava aquilo muito bom, ele conseguia ser... Ele costumava dizer que era médico das pedras e das pernas. Porque ele acabou fazendo vascular. Mas era uma coisa que me marcou: a condição, em vez de ser médico o tempo todo, ter que ter uma atividade comercial que cobria a parte econômica da família. De alguma maneira, para todo mundo ele se sentia muito orgulhoso de ser médico, mas do ponto de vista profissional ele acabou não sendo um médico de primeiro plano.
P/1 – Sérgio, e entrar na escola... Foi o Liceu Tiradentes a primeira escola?
R – Isso. Era na Pompeia. Eu estudei no Liceu Tiradentes, e foi um colégio muito bom, porque era um colégio pertinho da minha casa, era um lugar em que a gente... Na verdade, eu fui para o Liceu Tiradentes depois de estudar no externato Assis Pacheco nas Perdizes, num colégio, e eu fiz o ginásio no Liceu Tiradentes. No começo, eu fui um pouquinho contrariado, porque o pessoal do Assis Pacheco, que era um colégio ali na Rua Itapecuru com a Cardoso de Almeida... Muitos dos meus colegas foram para o colégio São Luís, foram para o Santa Cruz, foram para outros colégios na época de nível maior ou de ensino talvez melhor – era diferente de estudar num colégio de bairro. Mas, na época, o meu pai achou melhor eu ficar perto de casa, estudar. Depois, quando eu saí do Liceu Tiradentes, eu fui para o colégio Dante Alighieri. Eu fiz só o científico lá. Mas também foi uma experiência interessante na minha vida viver com a meninada do bairro. Isso tudo foi me dando muita capacidade de conviver com as pessoas, uma das coisas que eu consegui. E tendo uma atividade esportiva. Por exemplo, ali no bairro da Pompeia, a gente jogava futebol em várzea. Eu sempre adorei jogar e jogava no Palmeiras a parte de basquete, e com toda essa altura aqui. Mas a gente se esforçava pra caramba, e na época apareciam uns baixinhos e eram bons para poder jogar – hoje, eu acho que com menos de 1 metro e 80, 90, você não entra nem na quadra. Mas a ideia é essa miscelânea de coisas que você vai conhecendo, os amigos do esporte, e saber competir, saber trabalhar em equipe, lidar com o rico e com o pobre, saber lidar com pessoas amigas e pessoas que são perigosas no bairro para você poder conviver. Tudo isso vai formando um contraponto entre uma educação, entre aspas, de princípios europeus que você recebia em casa e a vida que você começava a enfrentar no bairro, na rua, convivendo com a meninada, mas de uma forma aberta. É claro que não era tão violento como é hoje, um monte de outras coisas, mas a gente vivia mesmo e jogava bola na rua, tinha o contato no futebol de várzea e, daquelas brigas, você saía correndo. Foi sempre uma experiência muito interessante essa fase de moleque e adolescente.
P/1 – Nessa vida de esportista, depois de ter quebrado o vaso da avó, teve alguma outra história marcante, seja no basquete, seja no futebol de várzea? Algum episódio?
R – Essa coisa de quebrar vidro de casa era muito comum. Isso foi muito frequente. Mas do que eu me lembro era, muitas vezes, o time, por exemplo. Porque a gente jogava no Palmeiras. Eu não era titular. Existia um time titular, e eu aprendi durante muito tempo a ser reserva e também a me esforçar para conseguir um lugar no time para poder ser útil quando fosse necessário. E tiveram momentos. Nós fomos jogar no Rio de Janeiro uma vez, e por alguma coincidência alguém não viajou, e eu acabei sendo titular durante o torneio todo, acabei jogando. Naquela época, deu para jogar bem, deu para me sentir muito bom, aprender o gosto desse tipo de sucesso: o sucesso de quem, entre aspas, era admirado por ser o titular do time, por ser um cara que decide jogos. São coisas do passado, e você vai aprendendo determinados sabores, determinados gostos que são coisas que voltam para você no restante da sua vida, fazem você ir atrás disso para se sentir bem. Quando você começa a aprender a ter determinados tipos de sentimentos que te fazem sentir como um desafio na sua vida. Sempre foi muito bom isso: você poder disputar muito às vezes, por não ser tão bom de basquete ou tinha um time melhor ou não ser tão alto, mas não deixar cair a peteca no sentido de desistir. Isso foi sempre uma coisa interessante, e veio muito desse perfil do esporte, do perfil de buscar algumas coisas que a gente gostaria. Esse dia no Rio de Janeiro, esses dias me marcaram muito no lado esportivo, de descobrir que você podia realmente ter uma sensação de ter sido naquele dia, naquele torneio, capitão do time e ir lá receber a taça que tinha ganhado e sair com uma sensação muito boa de uma vitória pessoal, que, é claro, representava a vitória do grupo e o sabor de conviver com uma coisa boa desse tipo.
P/1 – Sérgio, e, na escola, quem era o seu parceiro? O seu amigo? Ou seus amigos na escola? Os principais?
R – A gente tinha sempre. A maior parte dos meus amigos são as pessoas da escola e do esporte. Sempre jogava no time da escola e estava junto. Naquela época, no bairro, durante a época do ginásio, eu me lembro bem era uma época da turminha que jogava bola e morava perto de casa. Os meninos sempre foram pessoas que a gente trazia lá para casa – como eu disse, temos um quintal em que a gente jogava futebol. E o que foi interessante era, por exemplo, um dos meninos era filho do dono do açougue, o outro era filho do dono da marcenaria, o outro era um filho de um funcionário de uma empresa. Eu convivi muito bem e sempre com um tipo de classe social de classe média e para classe menos favorecida, e isso foi importante, porque depois eu fui para o colégio Dante Alighieri, que era um colégio mais enfeitadinho, mais cheio de gente de classe média para alta. Muitos, na época, eram pessoas que estavam estudando lá desde pequeno, fizeram ginásio lá, fizeram científico, e, aí, foi outra maneira importante de aprender a lidar com as pessoas e ter novos amigos, amigos que eram mais enfeitadinhos e que você tinha que... Gente de mais recurso, muitas vezes, gente que você precisava aprender a não se intimidar com a maneira de as pessoas se postarem por ter mais recurso. Era um convívio que eu não conhecia bem desde criança. E isso também me ajudou muito para poder fazer o que eu faço hoje. Às vezes, você tem que enfrentar todo tipo de pessoa, conhecer todo tipo de pessoa, e você foi formando um grupo de exposições e experiências que fizeram com que pudesse saber se portar em cada momento, em cada lugar que você convivesse. Foi muito bom para mim esses amigos que eram amigos do futebol, com quem você ia jogar na várzea. Todo mundo tomava da mesma garrafa e, às vezes, deitava no chão por causa do frio, botava a camisa do time por cima, ou saía correndo numa Kombi com todo mundo dentro, que voltava da várzea, e, à noite, saía mais arrumadinho para ir numa festinha, para poder visitar as menininhas. Tudo isso foi uma mescla que eu acho que ajudou muito na vida para saber lidar com qualquer pessoa. Eu sempre tive muita facilidade para isso.
P/1 – Nesse período escolar, havia um grande sonho? Você tinha um sonho mais marcante nessa época?
R – Eu acho que muito cedo eu pensei em ser médico. Muito cedo, até por essa história que eu ouvia, que eu acho que isso seguramente fez um papel importante. Eu tinha no meu avô paterno, aliás, materno, uma pessoa muito forte em termos de expectativa em cima de mim. Ele era um cara que não teve filhos – só teve minha mãe – e ele investiu muito em mim, tinha muita expectativa e queria saber das minhas notas, era companheiro. Ele foi uma pessoa muito forte, até, nessa época, uma presença mais forte do que meu pai, porque ele trabalhava e voltava mais cedo e estava sempre presente. E, talvez, para poder satisfazê-lo nessa época, a ideia de ser médico para “compensar” a filha que parou de trabalhar para eu nascer. Para eu estudar, e também vendo meu pai trabalhar como médico, mas não tendo a chance de fazer só Medicina, eu acho que por muito tempo isso ficou forte para mim, que eu deveria ser uma pessoa que deveria investir na carreira e deveria ser alguém que eu gostaria de ser, fazer alguma diferença. No fundo, essa ideia vinha de longe, de poder fortalecer uma proposta, um caráter que eu tivesse que ir atrás.
P/1 – O senhor, falando do seu avô, me faz imaginar essa relação que vocês tinham. Ele morava nos fundos da casa?
R – Isso. A casa era dele, mas quando a gente... Quando começou a crescer a família, foi feita outra casa atrás, e ele morava nos fundos, ele e minha avó. Era aquele tipo de avô e avó incondicional, estava sempre a seu favor. Era um cara que... Ele me ensinou a ser corintiano. Ele veio da Hungria, mas gostava de ver futebol e ele aprendeu a ser corintiano. Desde pequeno, ele alimentava isso e, para reforçar, às vezes a gente ia ao campo assistir jogo. Naquele quarteirão da minha casa tinha uma oficina mecânica, e eu me lembro bem que os mecânicos... Tinha um senhor que tinha um caminhão. Então, o pessoal ali do bairro ia de caminhão para o jogo no Pacaembu e eu ia dentro da... Eu e meu avô, que era mais velho, íamos dentro da cabine, mas um monte de gente ia atrás. Na hora de entrar no estádio e sair, me punha no meio, pequenininho, e ia torcer para o Corinthians. Desde pequeno, com meu avô e os amigos mecânicos, o pessoal do bairro todo. Essa ligação com meu avô foi uma coisa bonita a vida toda, porque muitas vezes... Depois, ele mudou ali perto da Rua São João, e eu ia. Às vezes, saía da escola mais tarde e ia para a casa dele, para ver se ele me levava para o jogo. Conseguia animá-lo a ir e sempre ele ia, mas era muito de convencer. Isso foi bonito, até o fim da vida dele. Porque uma das coisas mais gostosas de que eu lembro foi que, quando ele ficou doente, eu já era adulto, ele tinha neto e tudo isso – os meus filhos tinham nascido –, eu levava ele ao estádio. Uma vez, ele já estava com câncer de pâncreas, e a gente foi para o Pacaembu. Eu passei na casa dele, levei ele para o jogo e, de repente, na hora do gol do Corinthians, eu pulando, viro para o lado e estava ele lá, abraçado em outro torcedor, pulando no estádio. Naquela época, ele já devia ter perto de 70 e poucos anos, e muito feliz. Essa imagem também nunca mais desapareceu, a imagem do cara que me levava, que me fez ser corintiano. Meu pai é palmeirense, e ser corintiano marcou muito a minha vida. Eu acho que é um esporte que eu gosto muito, é um fator que eu vou ao estádio, curto. E ele ter sido essa pessoa muito forte também nesse momento da minha vida, e eu ter conseguido, de certa forma, cuidar um pouquinho dele, devolver e ter feito ele ficar feliz, de eu ter nascido e de ser uma pessoa que ele acompanhou muito de perto.
P/1 – Quando você ia jogar bola no Palmeiras, tinha que esconder o time?
R – Tinha que esconder, mas o time de basquete nosso tinha um monte de gente que não era palmeirense, porque, naquela época, era meio militante. Te convidavam para jogar, mas você obrigatoriamente não era palmeirense. Mas era uma coisa... Eu fui criado ali no Parque Antártica também por causa do bairro, na Pompeia, que a gente gostava muito. Tem um amigão meu até hoje, o Luís Genese, que era um grandão, e ele sempre foi muito grande e forte, e a gente treinava muito junto. Ele também entrava durante o jogo, mas a gente jogava às vezes contra o time titular. E ele era uma pessoa que foi um irmãozão a vida inteira. Nós nos conhecemos no Palmeiras e desenvolvemos a amizade no Palmeiras. Hoje, por exemplo, nós convivemos ainda esporadicamente. Eu fui pediatra dos filhos dele, a gente teve uma relação de muitos anos, que começou no esporte.
P/1 – Legal. Sérgio, quando o senhor vai para o Dante, já é um adolescente? Como era essa vida de adolescente ali no Dante na década de 60, se eu não me engano. Como era ser adolescente nesse espaço, nessa época?
R – Foi muito diferente o Dante. Eu tive que conseguir me adaptar a esse novo tipo de pessoas que existiam, no começo com certo cuidado. E, depois, de novo a turma do futebol, a turma do basquete das classes, no torneio do time é que você acaba se aproximando. Essa foi a primeira vez que tinha bastante menina na minha classe, e também foram bastante interessantes os relacionamentos novos. A gente frequentava casas de pessoas muito ricas e festas, e pessoas que tinham outros costumes. Acho que isso foi muito bom. Eu sempre falo isso, de diferenças de classes de pessoas, porque eu acho que isso hoje me deu esse jeito de poder lidar com todo mundo, de respeitar criança mais simples, poder jantar numa casa de uma pessoa diferenciada, de ter viajado para o exterior para estudar e ter ido para reuniões de pessoas importantes e lidar com gente de todos os perfis. Isso eu acho que é um aprendizado na sua vida, você tem mesmo que ir conquistando isso. O Dante me ajudou nesse sentido, de ter uma cabeça que também admirasse as pessoas sem precisar ter ciúmes, sem precisar ter uma relação de competição. Eu tinha um amigo, por exemplo, o Henrique, e ele era de uma família muito cheia de recursos, mas que a gente aprendia a conviver muito bem com ele, de ser amigo de verdade e perceber o lado... Porque a pessoa é, muitas vezes, carente também até de amigos, amigos mesmo, e é isso que você acaba aprendendo na vida: como as pessoas são iguais às outras no sentido das necessidades delas. Elas podem ter muito recurso, mas às vezes falta para elas aquilo que é mais importante, que é o olho no olho, que é a companhia, que é a lealdade, a fidelidade. Eu acho que é isso o que eu aprendi na vida em todos os momentos: como você pode ser leal, ser sério, ser companheiro, ter um projeto de vida e ir atrás dele e conquistar as pessoas com essas ideias. Eu acho que é aí que eu entendo que existe um papel para as pessoas no mundo. Saber trabalhar junto, agregar, e para isso você precisa respeitar o outro, entender o que o outro está pensando, entender qual é o sentimento que a pessoa tem em relação àquele fato. Essa adolescência foi muito interessante também. Eu sempre gostei muito de sair, de dançar, de ter amigos à noite. Sábado e domingo, a gente saía muito com meus irmãos, às vezes saíamos muito também. A gente tinha um carro, um Chevrolet – acho que era um Ford 47 que a gente tinha – e a gente brincava que chamava Carolina aquele carro. E, no fim de semana, a gente com 16, 17 anos ainda não tinha carta, mas meu pai emprestava o carro para a gente. E a gente enchia de moleque o carro e ia para as festas, e meu irmão ia junto. Festinha na casa de um, de outro, aquelas coisinhas de aniversário. Hoje, tem as baladas, mas balada foi mais tarde. Mas, na época da molecada, ia à casa de amigos nos aniversários na garagem, essas coisas da sala, e era muito divertido. Jogava bola de dia, chegava em casa, tomava um banhão e ia com a molecada para essas reuniões. Foi muito rica a adolescência, foi muito boa, e amadureceu a ideia de fazer Medicina – tanto que eu fiz um científico preparatório para a área biológica para poder... Em 64, eu entrei na faculdade.
P/1 – 64, em Campinas?
R – Em Campinas. Eu fui para Campinas. Eu prestei Unicamp, prestei USP, mas entrei na Unicamp. Então, mudei para Campinas, na vida de república, que foi outra fase extraordinária da minha vida. Eu morei com seis camaradas, um diferente do outro, e foi uma fase muito rica. Nessa época, a gente sempre tinha um jeito de... O apelido era “sargento” que me deram, nessa época, porque a gente queria ajudar a organizar as coisas, cobrar, falar, cuidar dos outros um pouco e, ao mesmo tempo, ser gozador, brincalhão, mas levar mais a sério algumas coisas. Na república, eu morava com o Jorge no meu quarto, e durante muito tempo a gente, à noite, conversava, trocava ideias, ficava ouvindo músicas, lembrando das namoradas que estavam em São Paulo. Tinha o Márcio Villaça, tinha o Vitor Fruji, tinha o Crescêncio, o Roby, o Túlio Zoroácito. Essas pessoas todas foram como irmãos e são até hoje meus melhores amigos. São as pessoas com que eu mais convivo. Tinha o Eduardo, que faleceu. Mas são pessoas que eu guardei como tesouros da minha vida, e, cada um do seu jeito, influenciou muito a minha maneira de ser, minha forma de pensar em relação ao mundo.
P/1 – E como era essa vida de república em Campinas? Teve festa? Teve algum episódio digno de nota, ou por se mais engraçado ou trágico ou bonito?
R – Tem várias histórias interessantes. Acho que a história em que a gente tomou um belo de um susto foi um dia em que o Roby, que morava com a gente e estava um ano à frente dos outros – eram todos da minha turma –, acabou ficando na república da gente, e eles aprontavam, uma república com a outra. Um dia, eles roubaram um bujão de gás da república de um cara que estava faltando. O Rui e o Marco Antônio foram lá para nossa república, bateram na porta, e tinha uma treliça na janela. O Túlio foi lá, e a gente estava dentro, era hora de jantar. E, de repente, ele pega e dá um tiro para dentro de gás lacrimogêneo. Eu sei que a gente tomou um susto... Você sentiu o impacto para devolver a gozação? Você imagina todo mundo lá, fim de tarde, e de repente você ouve um tiro, e a casa encheu de gás lacrimogêneo. As brincadeiras deles, as gozações eram desse nível. Todo mundo tomou um susto maluco. Esse meu amigo, o Roby, ele era muito escandaloso, ele ficava completamente transtornado. E a gente nunca se esqueceu desse dia, que foi um dia terrível. Outros dias muito interessantes também foram do tipo “briga de água”. Dentro do apartamento, cada um jogava água no outro, e tinha um dos colegas, que gostava de morar com a gente, mas morava no quarto da empregada, porque ele estava com dificuldade naquele começo de adaptação com todo mundo e queria um pouco mais de isolamento. Quando ele ouviu a “barulhada”, pôs uma capa de chuva e participou da luta de água. A gente brinca muito com essas lembranças boas. Eu sei que era muito à vontade, tinha que respeitar um ao outro. Foi um período bom.
P/1 – E fazer Medicina, Sérgio? Pelo que você conta, era um desejo até anterior a você. É uma coisa de família. Sempre tinha essa busca pela Medicina na sua vida, pelo que me parece. Como foi a sensação de estar na faculdade, de entrar em Medicina?
R – Eu acho que era uma realização de um sonho mesmo. Eu me senti muito bem dentro da Medicina, achava que era aquilo mesmo que eu devia fazer. Tinha muita vontade de ser bom aluno, mas a gente acabou se metendo muito em atividades. A Unicamp, quando eu entrei, era a terceira turma. Nós tínhamos muita coisa por fazer dentro do centro acadêmico, da atlética da faculdade. Eu participei muito disso da vida universitária, foi muito legal. A parte política, a gente estava na época – 1964 – da ditadura. A gente, como líder dentro do centro acadêmico, vinha a São Paulo para aprender a fazer as passeatas contra a ditadura. A gente foi para a rua, enfrentava a polícia, quase foi mandado embora da faculdade, coisa de ser fichado naquela época pela polícia e pelo Exército. Colegas nossos presos, colegas nossos mortos. Foi uma época intensa de vida cultural, de vida política, de vida esportiva. Eu acho que esse período de 64 a 70, que eu fiquei na universidade, foi fundamental na formação do indivíduo, além de aprender a lidar com os outros, morar com outras pessoas, sair da sua casa onde você tinha suas coisas e se cuidar na faculdade, ter novos amigos e estudar no centro acadêmico, liderar, montar festas, participar. Na atlética, representar e, principalmente depois, o âmbito político, onde você aprende a defender teu país, a ser nacionalista, a ver a liberdade de expressão como importante, a liberdade religiosa, a livre iniciativa, ser contra a ditadura, contra a perseguição política, ter chance de ter ideias. E, ao mesmo tempo, entender o anarquista, descobrir o camarada que só quer perturbar a massa e fazer você de otário, fazer você de inocente e entrar em algumas filosofias. A maturidade que vai surgindo nessa época é muito importante para a gente poder entender o cidadão. Acho que a formação do cidadão vem muito desse tipo de exposição, em que você tem o que você acredita. Conseguir as coisas, mas nunca a qualquer preço. Você tem um preço que está disposto a pagar, e tem coisas que você não quer que aconteçam. Essa época da universidade, ela é muito rica nisso: você estudar, você se desenvolver, você escolher uma especialidade e se formar como gente, como cidadão, como uma pessoa que tem princípios, e entender o que você quer da sua vida.
P/1 – Sérgio, o seu período na faculdade coincidiu não só com o começo da ditadura como com o período pesado da ditadura. E você, dizendo dessa sua militância, estava presente no centro acadêmico, etc. Não devem ter sido fáceis esses embates, essas passeatas. Você foi fichado? Você chegou a ser preso? Como foi isso?
R – Eu não fui preso. Amigos nossos foram presos, o Cláudio Pannuti, por exemplo, que era um colega que, na época, era do centro acadêmico, era um ano mais à frente do que eu, acabou ficando preso também. E a gente tinha muito envolvimento. Nosso grupo não teve formatura, para você ter uma ideia. Época da ditadura, e o reitor, o Zeferino Vaz, optou por dar um castigo para o grupo, e nós ficamos para depois. Não tivemos a festa de formatura. A gente recebeu o diploma depois, no gabinete do diretor da faculdade. E a formação de passeatas, por exemplo, a gente vinha a São Paulo, e, de repente, você estava no meio da passeata, e vinha a polícia militar, vinham todas essas histórias que têm desde a época da PUC de São Paulo, do Largo São Francisco. A gente participou disso. Como nós éramos uma escola nova, a gente veio aprender a fazer passeata aqui na USP e participava das reuniões. Tinha muita gente ativista político mesmo, mais maduros. Você percebia que eram pessoas que lideravam a gente. Então, aos poucos, você vai aprendendo no que você precisa realmente acreditar, que não seja também só contra a ditadura e ao mesmo tempo não seja um indivíduo que leve para o comunismo ou para um socialismo na época radical, de pessoas muito radicais. A gente aprendeu isso: defender a cidadania, ser um socialista democrata, ser um indivíduo que... Eu estou contando tudo isso porque eu acho que, de novo, isso passa pelo fato de você não pensar só em você. Hoje, você olha para trás e diz: “Como que você consegue organizar coisas, como você consegue manter as pessoas juntas?” Porque você, teoricamente, não pensa só em si, na sua família ou na sua conta bancária. Quer dizer, você acaba aprendendo a formar um conceito de novo da cidadania e do que você pode fazer pelo seu grupo, com a condição de que, às vezes, você tem de ter iniciativa e ter sorte de organizar isso.
P/1 – Você estava falando sobre essa formação política.
R – Eu acho que essa época, quando a gente começa também a amadurecer melhor, a não ser tão ingênuo do ponto de vista político, você se sente melhor, porque no momento você tem o lado da ditadura, você tem o lado do dirigente da universidade, que eventualmente tem um grupo que defende uma posição, e você vê o outro estudante. Tinha muitas vezes infiltração de colegas comunistas, socialistas, que tinham a filosofia radical de esquerda. E a maneira de você formar o seu conceito, na hora em que você sai da escola ou na hora em que você sai do colegial e em que você ainda não tem essa visão política das coisas, é muito interessante, você conseguir ter essa formação do indivíduo no que ele acredita. E aí é que eu vejo o problema do brasileiro, porque alguns países tiveram guerras, tiveram formas de se unir e formar um senso comum – e é melhor se unir para poder lutar contra determinado tipo. Então, aumenta o conceito de cidadão que luta pelo seu país. O Brasil, por ter sido sempre um país novo e por não ter tido grandes guerras, essa experiência de 64 a 70 foi tão rica para todos nós que vivemos isso, porque veio junto de música, veio gente como Chico Buarque e com todo esse grupo que teve nessa época. As lutas políticas dos alunos que estavam nessa época na faculdade, que foram para as ruas e que foram diminuir ou foram lutar contra a ditadura, formou uma camada de profissionais e de pessoas. Hoje, a gente tem grandes líderes dessa época, o próprio Serra, o Lula, todo esse povo que viveu essa forma. E, por outro lado, você vê hoje na universidade, entre os colegas, alunos que têm muito pouco interesse político. O país nunca mais teve realmente uma guerra, nunca mais teve uma ditadura. Então, você vê a diferença da formação do indivíduo. A grande luta é pela moeda, pela inflação. As bandeiras são hoje pela saúde. É claro que não tem que ter guerra o tempo todo, mas a gente se beneficiou de certa maneira dessa dificuldade que existia, na formação do indivíduo como um todo.
P/1 – Sérgio, nessa época da faculdade, agora voltando mais para o aspecto universitário, acadêmico, profissional, como o senhor enxergava a Medicina? O que era ser um médico para você, enquanto universitário? Qual era o seu projeto de Medicina enquanto o senhor estava na faculdade?
R – Naquela época, a figura do médico tinha muito mais mística do que tem hoje. Seguramente, era uma situação de um cidadão que teria principalmente um respeito, uma admiração da população de uma forma geral. Eu pretendia mesmo... Eu sempre fui um pouco exigente comigo mesmo nas coisas que tentava fazer. A ideia era ser médico e ser um bom médico. Quando você estava na faculdade, os seus professores, as pessoas que você conhece são as pessoas em que você se inspira, e eu tive, por exemplo, um professor, o professor Silvio Carvalhal, que era uma pessoa que eu admirava muito pela maneira de raciocinar, pela maneira séria de ser, pela maneira como tratava os doentes, como examinava. E eu tive nele uma inspiração muito grande. Era uma pessoa que me fazia querer ser um médico daquele jeito. E, para mim, foi muito importante essa pessoa, e eu gostaria de ser um profissional respeitado e que fosse um bom médico e que ajudasse a resolver o problema das pessoas e que, ao mesmo tempo – eu acho que isso é importante e eu acredito muito nisso –, eu sou muito pouco altruísta. Eu acho que o indivíduo sempre faz as coisas um pouco por ele mesmo também e acho bom. Então, por exemplo, era legal entender que os outros iam achar você legal. Só que, para você sentir esse gosto de ser legal, dá um trabalho desgraçado, porque você tem que se dedicar, tem que ser competente, tem que ser sério, tem que fazer um trabalho bom e o possível resultado disso vai ser o respeito dos outros, vai ser a admiração eventual dos outros, vai ser eventualmente, como decorrência, ganhar dinheiro, ter um bom patrimônio. Eu sempre entendi a vida assim, vindo de onde eu vim, pela história que eu acompanhei da minha família, e essa era a ideia que eu gostaria de ser do médico. Uma pessoa que pudesse chegar a ter esse tipo de sentimento.
P/1 – Teve alguma aula – o senhor já mencionou esse professor –, mas alguma disciplina ou alguma aula que tenha sido especial para você, que tenha, por exemplo, te levado a tomar a decisão por alguma especialização? Ou, eventualmente, que tenha te feito ter orgulho de ter escolhido a Medicina por causa de algum episódio no âmbito ainda universitário?
R – Uma das coisas que eu tinha ideia de ser era cirurgião. Num determinado momento, eu fui aprender, por exemplo, a acompanhar um grupo de cirurgia cardíaca da escola com um cardiologista, e a gente tinha a chance de ajudar a cirurgia. Chegava cedo para ajudar e, de repente, te deixavam dissecar uma veinha, e você achava que era bárbaro. E a gente fez. Eu tinha muita vontade de ser cirurgião porque, no começo, eu sempre me inspirei um pouco pela pediatria. A gente tinha um médico pediatra em quem eu acompanhava minha mãe às vezes – e, quando levava meus filhos, levava os filhos dela, quer dizer, levava meus irmãos –, que era o Doutor Mário Altenfelder, que era um pediatra, que era o pediatra da gente. Eu achava o jeitão dele também muito legal, era uma pessoa que eu, como pediatra, queria ser. Só que a vida inteira minha mãe, meu pai falavam: “Não, mas pediatra não dorme, não tem um minuto dele, a vida é terrível, mãe chama o tempo todo.” Então, foi meio que fazendo a minha cabeça de não ser pediatra, e na escola eu entrei, e acabamos fazendo, me dedicando mais à parte de cirurgia cardíaca, porque, quando se está na escola, entrar em cirurgia ou fazer alguma coisa é muito legal. E ainda existia um começo de cirurgias cardíacas, não era assim uma coisa bem desenvolvida, estavam fazendo algumas experiências também em termos de transplante de coração. Eu me entusiasmei com esse grupo. A gente ia, por exemplo, no matadouro da cidade para poder pegar o coração do boi que tinha acabado de ser morto. Pegava o coração, o perfundia, e pegava o sangue do boi também para levar ao laboratório e tentar deixar as coronárias, as artérias canuladas. Punha um caninho dentro e fazia a maquininha ir jogando o sangue dentro do coração e fazia o coração ficar batendo no laboratório. Teve uma história, um dia, muito engraçada, porque o assistente, que era todo arrumadinho, bonitinho e mais graduado, foi com a gente nesse matadouro, e a história era ter que tirar o sangue do boi com ele ainda vivo. E levava os frascos de sangue, e, aí, eles batiam na cabeça do boi, abriam o peito e a gente ficava ali para poder pegar o coração do boi. Eu sei que, um dia, na hora em que o boi deitou, eles foram abrir, e o boi deu uma rabanada assim, uma levantada assim, e voou o vidro de sangue com vidro para tudo quanto é lado. Foi uma cena que a gente nunca mais esqueceu, o professor todo branquinho, todo sujo de sangue, escorregando no matadouro para trazer o coração para fazer a perfusão. E isso foi um momento que marcou essa ideia de quanto, às vezes, que você precisa inovar. Você tem que lutar para ir atrás, para tentar fazer alguma coisa diferente. Eu tinha ideia de fazer cirurgia cardíaca, até prestei residência para cirurgia e pediatria e, no fim, eu acabei decidindo mesmo por fazer pediatria. Quer dizer, ficou uma situação, eu consegui definir para minha cabeça que não deveria ceder aos estímulos, às provocações dos meus pais, e fui fazer pediatria. E me senti muito bem dentro da pediatria. Acabei fazendo oncologia, porque, durante a pediatria, eu conheci de novo uma pessoa legal que era o Doutor Alois Bianchi, que era um pediatra como eu gostaria de ser também. Uma pessoa que sabia tratar bem o doente, ele era um indivíduo com uma experiência muito boa e ele trabalhava no Hospital do Câncer. Um dia, ele me convidou para conhecer, e, naquela época, as crianças morriam todas, ninguém quase sobrevivia. Estamos falando de 75, 76, e eu realmente me estimulei a começar a fazer oncologia, cancerologia pediátrica.
P/1 – Vamos só voltar um pouquinho, daqui a pouco a gente retoma essa questão. Quando o senhor saiu da faculdade em Campinas, onde o senhor foi fazer residência?
R – Eu fiz a residência de pediatria no Hospital do Servidor Público do Estado.
P/1 – O senhor voltou para são Paulo?
R – Voltei.
P/1 – E como foi essa volta, do ponto de vista familiar?
R – Essa época foi interessante porque, nos últimos seis meses da faculdade, eu conheci minha mulher, a atual mulher ainda – eu sou daqueles que não gostam muito de casamento. Um amigo meu fala que quem gosta de casamento casa um monte de vezes e quem não gosta casa uma vez só. Então, eu ainda sou do time que não gosta muito e casou uma vez e até hoje sou casado. Eu a conheci e vim embora para São Paulo apaixonadão. E fui ter que fazer serviço militar, eu fui para a aeronáutica. Naquela época, eles pegavam os médicos recém-formados que não tinham feito o serviço militar anterior. Fui chamado para ficar na aeronáutica durante um ano e, nesse período, eu ia e voltava para Campinas, a Heloísa vinha bastante a São Paulo. Esse foi um período muito interessante também, em que eu virei anestesista na aeronáutica. Era uma coisa que eu tinha feito um estágio de anestesia na faculdade, e eles pegaram no meu currículo e eles precisavam de um anestesista, um aqui e outro em Guaratinguetá. Eles tinham dois candidatos. Aí, eu estudei, teve um curso de milicagem que você fazia para poder depois ser feita uma seleção por nota para ver quem ficava em São Paulo e quem ia para Guaratinguetá. Eu acabei ficando aqui em São Paulo, lá no Campo de Marte, e quando eu cheguei lá no hospital da aeronáutica, eu fui me apresentar, perguntei para o rapaz, um médico que estava lá: “Quem é o nosso chefe? Quem é o meu chefe? Eu estou chegando para ser anestesista.” Ele falou: “Olha, o chefe até agora era eu, e de agora em diante é você.” Então, eu virei o chefe da anestesia da quarta zona aérea sem nunca ter ficado sozinho com um paciente na sala. Foi um susto louco, tive que aprender em outros lugares. E foi um ano em que viajei muito para fora do Estado. Também foi interessante essa experiência com aeronáutica, que me fez lembrar um período da faculdade em que eu fiz o Projeto Rondon. Na época, foi bacana porque eu fui ficar 50 dias no meio da floresta, eu fui para Sena Madureira, no Acre, e a gente ia num programa de ajudar a comunidade, de atender as pessoas, de organizar um pouquinho a parte sanitária. Foi muito interessante também poder ficar lá no meio da floresta, vendo o tipo de vida que as pessoas tinham e podendo ajudar um pouco, a gente aprende muito. A gente vai para ajudar os outros, mas você volta de lá com uma experiência enorme de ter morado perto... Era um lugarejo, mas bem na borda da floresta. Então, quando fui para a aeronáutica, a gente foi para esses lugares também, aqueles aviões C-47 da FAB de banco lateral. Descia num campo de futebol, descia em pasto, que era o campo de aviação. Foi uma experiência rica também.
P/1 – Conta para a gente um pouco, primeiro, dessa experiência do Projeto Rondon. Como era essa cidade? Era uma cidade pequenininha? Como era o dia a dia de vocês lá?
R – Sena Madureira, a gente tinha várias cidades assim. Ficava em Porto Velho, aí tinha Tarauacá, Feijó e Sena Madureira. A cidade, era uma cidade minúscula, bem pequenininha, tinha esse lugar em que a gente ficava, era uma casa que tinha ao lado um posto médico de atendimento. E era uma cidadezinha em que vinha o pessoal que trabalhava no seringal, a grande maioria era seringalista que vinha colher o leite da borracha. O leite da seringueira, e a gente via. Eles faziam as bolas de borracha e transportavam pelo rio, e a cidade ficava à beira do rio. E ali, o Rio Purus, que é um dos rios mais sinuosos do mundo, ele vai fazendo todo um cortado na cidade, e o pessoal, às vezes, por exemplo, jogava o esgoto rio acima e rio abaixo, e o cara, com uma bombinha, puxava a água para dentro da casa dele. Às vezes, você via tomar aquela água barrenta, água suja. A gente foi fazer uma organização, ensinar como tomar água, esse negócio de fazer chuveiro, como fazia para tomar banho – o pessoal só tomava banho de rio. Então, foi uma coisa de trabalho, de atender paciente, e teve um episódio interessante em que eu estava dentro do posto médico, atendendo, e aí, de repente, me chamaram porque tinha um nenezinho que tinha acabado de nascer, a mulher tinha tido o nenê ali ao lado. E lá eles têm uma forma de atender, por curiosos. As pessoas pegam, e, se o nenê não chora ou se o nenê começa a demorar muito para respirar, eles cuidam da mãe, e a mortalidade infantil... É quase uma coisa natural perder o nenê. Mas a hora em que eu cheguei, o nenê estava anóxico, ainda não tinha chorado, tinha acabado, pouquinho tempo, de nascer. E você está acostumado, mesmo como estudante, você tinha aspirador, oxigênio numa sala. Eu tinha lido um livro de (Krony?) e me lembrei de que ele era médico, visitava as casas e fazia parto domiciliar. Para reanimar o nenê, ele pegava bacia de água fria e de água quente e o choque térmico. Quando você pega o nenê, ele não respirou, você põe na água fria e estimula o nenê a respirar. Essa imagem me veio à cabeça, eu pedi rápido uma bacia de água e coloquei o nenê dentro, e o nenê começou a chorar. Aquele nenê que ia morrer. A primeira sensação, como estudante, de você fazer uma criança voltar à vida. De você fazer o nenê, o estímulo térmico, fazer o nenê chorar e depois a bacia de água quente ao lado, em que punha de novo para não ficar o nenê hipotérmico e aspirar o bebê só limpando com o dedinho, porque não tinha nada. Mas esse nenê a mãe parou de... Evoluiu bem no pós-parto. O nenê começou a chorar e viveu bem, mamou direitinho. E lá, eu não sabia muito bem, tem um nome muito comum, chama-se Raimundo Nonato. No Norte e Nordeste, tem muito nenê que chama Raimundo Nonato. E a história que existe é que todo mundo que tem um parto difícil, eles põem nome de Raimundo Nonato e contam a história de uma mulher que estava grávida, e teve um ataque de índios e ela acabou morrendo, mas alguém abriu a barriga dela com uma lança e tirou o nenê, e o nenê viveu e deram o nome de Raimundo Nonato, porque ele não nasceu. Quer dizer, alguém abriu a barriga para nascer. Isso foi interessante porque esse nenezinho, o pai me trouxe um macaco de presente, um macaquinho-prego, que era um macaquinho recém-nascido. E eu resolvi pôr o nome no macaco de Raimundo Nonato também, e esse macaco eu trouxe para São Paulo. Eu fui alimentando. Eu lembro, na viagem, eu tinha uma garrafa de guaraná com um bico e punha leite e água e trouxe o macaco para cá. Eu o criei muito tempo aqui em São Paulo, até o dia que a minha mãe se encheu dele e eu o levei para Serra Negra, para a Ilha dos Macaquinhos. Mas, por muitos anos, o Projeto Rondon foi perpetuado com o Raimundo Nonato na minha casa, foi muito engraçado. Essas coisas são marcantes, em que você começa a perceber esse negócio que você falou da Medicina, o que você pode fazer e o que você não pode fazer, qual é o poder que o indivíduo às vezes tem de interferir na vida dos outros. Eu acho que esse é o conceito básico.
P/1 – E, depois de alguns anos, o senhor repetiu um pouco essas experiências na aeronáutica?
R – Na aeronáutica, a gente viajava em viagens de instrução, e também trabalhei muitos anos no posto médico, muitos meses, foi um ano em que fiquei ali no Campo de Marte e que foi uma experiência interessante, porque a gente saía da escola, uma parte absolutamente com envolvimento político, e de repente você vai para dentro de um quartel. Uma das primeiras coisas em que eu fui convidado foi almoçar com o chefe da segurança, e o cara fazendo um monte de perguntas para você, para ver no que você acreditava, o que você achava. Na época, eu na aeronáutica, e colegas meus da faculdade, presos. Era um dilema desgraçado. Eu não fui parar lá porque queria, mas era uma situação em que o pessoal perguntava o que você achava. “O que você acha do movimento político?” Mas foi sempre uma maneira de você dizer o que você pensava, mas também ter muito cuidado do ponto de vista de estar dentro de um quartel. Foi uma vida interessante nessa época também. O dia em que teve um incêndio no Andraus, em que muitos helicópteros saíam de cima do prédio e iam para o Campo de Marte. Eu era o médico de dia naquela noite, então, chegando aquele monte de gente queimada, um monte de gente assustada pra caramba, eu vivi aquela experiência de chegar dezenas de pessoas, umas mortas e outras queimadas, e teve a iminência de eu ter que ir para cima do Andraus no helicóptero. Eu cheguei a ir para a pista, mas o comandante chegou e falou: “Se você é médico de dia, você não pode sair do posto agora.” Então, eu acabei não indo, mas senti essa emoção importante de um desastre, de você assistir o indivíduo queimado, apavorado, ver o ser humano naquele momento extremamente vulnerável e assustado, e você poder dar uma colaboração de atender e de sossegar um pouco. Essas coisas que ficam marcadas na sua vida como experiências que são, muitas vezes, muito duras e que fazem a diferença.
P/1 – Sérgio, depois desse ano na aeronáutica, o senhor foi para a residência?
R – Isso mesmo. Eu fiz a residência de pediatria no Hospital do Servidor, na época era muito boa. Eu tinha entrado na Escola Paulista também, mas o serviço da pediatria do Hospital do Servidor, na época, era ótimo, a parte de UTI pediátrica. E com essa vivência que eu acabei tendo de ser médico da aeronáutica como anestesista, a gente aprendeu a ventilar pacientes, colocar o tubo na traqueia, ligar um aparelho. E eu também, nessa época, trabalhei num banco de sangue, eu aprendi a pôr um cateter. Pouca gente fazia terapia intensiva em criança, eu fui um dos precursores da terapia intensiva em criança no Brasil e fui para o Servidor por causa disso, para poder fazer essa especialidade. Foi muito bom, eu fiz uma formação excelente, e lá que eu conheci também o Doutor Alois, como eu falei também, que era o pediatra que trabalhava na parte de infectologia pediátrica.
P/1 – E esse médico te influenciou a ir para o caminho da oncologia pediátrica?
R – Isso mesmo. Quando eu acabei a residência, eu queria fazer UTI e comecei a trabalhar no Hospital do Câncer. Isso até 1978, mais ou menos. Eu fui aprendendo com o Alois Bianchi e estudando a oncologia, que era ainda muito primária aqui no Brasil, poucos sabiam e tinha muito pouco recurso. Eu fazia bastante terapia intensiva, chegava a dar aula de insuficiência respiratória, tudo isso. Em 78, eu resolvi que queria ir para os Estados Unidos. Tinha uma médica brasileira radicada nos Estados Unidos que chamava Norma Wollner, que era oncologista, e eu a conheci durante algum tempo. Eu já tinha consultório de pediatria, já estava ganhando dinheiro. Ela fez um convite, que eu poderia ir e ficar um ano em Nova York. Eu já tinha uma filhinha de três e um menino de quatro. Vendi o meu carro, um Maverick, o da minha mulher, que era uma Brasília, e a gente foi ficar um ano nos Estados Unidos. Nessa época, eu virei staff, tinha um dinheirinho que me manteve, mas o consultório, que era o grande ganha-pão, eu acabei deixando o consultório na mão de outra médica, e fomos embora, vendemos os carros e fomos morar lá, em 78. Fui ver o que existia de tratamento de câncer mais moderno naquela época no mundo. O ano de 78 foi um ano fundamental, porque a hora em que eu vi a oncologia, vi o que podia fazer. A gente via, por exemplo, que tinha ratinhos lá nos laboratórios, que tinha equipamento para o ratinho, para colher sangue, para cuidar do ratinho muito melhor do que a gente tinha para as nossas crianças aqui no Brasil. Naquele momento, eu acabei até... Eu tinha uma titulação para poder ficar nos Estados Unidos se eu quisesse, e naquela época não era difícil ficar lá, porque a oncologia estava nascendo e precisava de gente. Eu fui convidado para ficar lá e acabei ouvindo a história de que era melhor ser cabecinha de sardinha do que rabo de tubarão. Então, eu falei: “Vou voltar para o Brasil depois de um ano.” E vi tudo o que precisava e fui um dos primeiros oncologistas pediatras a sair e depois voltar. Aí, começou uma luta grande aqui para poder fazer realmente, melhorar a oncologia. Eu resolvi que não ia mais fazer terapia intensiva como especialidade, eu continuei trabalhando no Hospital do Câncer, era a gente que cuidava das crianças. Mas nasceu a definição que era oncologia o que eu queria fazer com essa viagem para o exterior.
P/1 – Sérgio, dois breves parênteses: primeiro, o senhor tinha mencionado que, quando mudou para São Paulo, tinha acabado de conhecer a que viria a ser a sua esposa, e agora, num pulo de tempo, o senhor já estava com dois filhos. Como foi esse período no âmbito pessoal? Você se casou logo depois?
P/1 – Quando eu vim a São Paulo e tive que ir para a aeronáutica, a gente resolveu casar. Eu fiz aeronáutica, uma parte dela, casado, e depois fiz a residência, casado, aqui em São Paulo. Foi porque, ela morando em Campinas e eu em São Paulo, a gente, depois de um ano e meio de se conhecer, a gente acabou casando. Foi uma vida dura, porque fazer residência, a gente não ganha muito, tinha que dar uns plantões, eu arrumei um banco de sangue. E também, nessa época, foi interessante. O meu pai punha na minha cabeça, eu naquela época... Acabou a faculdade, aliás, acabou a aeronáutica, eu era tenente-médico, e ele falava assim: “Você, militar e médico, como você vai largar isso?” Porque eles convidaram para continuar na carreira militar, tinha essa opção de poder continuar se você tivesse um rendimento. “Você vai virar um residente para ganhar salário mínimo?” “Você larga uma posição de já ter um status bom para poder fazer isso?” Na cabeça dele, eu deveria ter feito carreira militar e ser médico militar, era a proposta que ele colocou para mim. E, nessa época, ficou muito claro que não era isso o que eu queria. Quer dizer, nunca ser militar, e faltava muito para investir na Medicina, tinha que fazer residência, tinha que fazer especialização. Logo que eu acabei a faculdade, eu fiz a titulação – para poder ir para os Estados Unidos, tinha que ter o exame. Nessa época, eu acabei indo por mim mesmo, pela cabeça de querer conseguir alguma coisa e de poder exigir profissionalmente uma formação melhor. Quando a gente casou, tivemos que... Ele sempre entendeu isso, que era uma vida meio dureza, fomos morar de aluguel. Uma parte do dinheiro a gente ganhava. Dava muito plantão, até depois começar a vida devagarzinho, quando a gente também ganhou metade de um apartamento que a mãe dela vendeu e deu para dar entrada num apartamento, e a gente começou a pagar. A vida privada também começou a crescer com essa situação. De terceiro, quarto ano de casado, deu para sair de um aluguel para ir para um apartamentinho que a gente começou a pagar.
P/1 – E você, nesse meio-tempo todo, em São Paulo. Ela veio de Campinas para cá?
R – Ela veio para São Paulo.
P/1 – Qual é o nome dela?
R – Heloísa.
P/1 – E quando nascem os seus primeiros filhos?
R – O Marcelo é de 83, não, 73, perdão, 1973. Em 83, já tínhamos voltado dos Estados Unidos. Ele foi com a gente em 78, ele tinha cinco anos, e a Renata nasceu em dezembro de 74, foi um ano e quatro meses de diferença.
P/1 – O segundo parêntese que eu gostaria de fazer, antes de a gente seguir cronologicamente a sua história: como foi essa vida familiar em Nova York?
R – Foi uma experiência muito boa. A Heloísa com as crianças pequenas. Para ela, foi bem legal, apesar de ser pesado, porque ela ficava com as crianças o dia todo – as crianças, nessa idade, nem valia a pena ir para a escola lá. À noite, eu ajudava, descia para lavar roupa nas máquinas de lavar. Naquela época, a diferença era bem grande com São Paulo. Hoje, as coisas são muito próximas. A gente passeava muito, a gente saía com as crianças, ficava nos parques. Eu me enfiava cedo no hospital e voltava o mais tarde possível, a ideia era que estava lá para aprender mesmo, não dava para jogar tempo fora. E foi rico. Em umas épocas, a minha sogra foi para ficar com a gente, e isso ajudava. As crianças, hoje você fala, não lembram muito bem. Com três, quatro anos, elas têm uma lembrança discreta disso, como foi na época. Mas eu me lembro de passagens gostosas no Central Park, com situações, por exemplo, eu estava com meu filho brincando, e naquela época uma pessoa chegou e se aproximou de mim e ofereceu se eu não queria fumar maconha, queria vender para mim o cigarro de maconha. Eu falei: “Oh, eu não estou acostumado, não fumo, não vou fumar.” Aí, ele virou para mim e falou: “E o seu menino, se ele quiser fumar mais para frente, você vai deixar?” Então, começou a despertar ali, como pai, o que seria. E a vida inteira eu fiquei muito em cima deles, mostrando a cabeça, da importância de não entrar por esse caminho, e contava muito essa história. Você vê que o mundo é um mundo cheio de situações absolutamente malucas. Assim que você vai aprendendo com as pessoas, e elas parecem que te ajudam a direcionar as coisas.
P/1 – E o que te marcou mais lá no hospital, nesse processo de especialização?
R – Lá, nos Estados Unidos, eu achei que a gente tinha muita coisa para fazer aqui. O sonho – que a gente hoje está mais feliz com o que a gente conseguiu – foi que era onde eu queria chegar. Quer dizer, foi muito importante isso para saber o tamanho da oncologia, para saber o tamanho que era possível oferecer para as crianças já naquela época. Isso também me ajudou muito como ponto de partida. Eu, muitas vezes, depois voltei para os Estados Unidos e, muitas vezes, eu consegui manter o entrosamento com muitas pessoas lá fora, convivo todo tempo, duas ou três vezes por ano me atualizo, visito, conheço. Formou a cabeça para você montar a chance de liderar o grupo que hoje a gente tem, e com um direcionamento pensando em como você pode chegar ao ideal, o que você pode fazer no Brasil de bom. Acho que esse ano foi um divisor de águas no sentido de abrir a cabeça, de o que você pode fazer. O que tem para fazer? O que tem para ser feito para você conseguir, num país que tem muitas dificuldades, você superar essas dificuldades e chegar a poder oferecer condições para o seu trabalho, você trabalhar direito e atender as pessoas da maneira correta.
P/1 – E o retorno? Depois, o senhor retorna e vai trabalhar no Hospital do Câncer, é isso?
R – Isso. A gente trabalhava no Hospital do Câncer e trabalhava no Hospital do Servidor. Eu fiquei como médico lá e fiquei nesses dois até 81, porque o meu plano era fazer o mestrado e doutorado. Eu tinha muita vontade de fazer uma carreira acadêmica também, de conseguir fazer isso. Então, em 81, eu saio do Hospital do Servidor e vou trabalhar meio de graça na Escola Paulista, onde eu fui aceito para fazer mestrado. E terminei o mestrado e fiz o doutorado. E também tinha um pequeno serviço dentro do Hospital São Paulo, que a gente começava a atender as crianças, tinham dois leitos dentro da enfermaria, muito precária a parte de atendimento ambulatorial, faltava remédio na quimioterapia. Essa parte de atendimento no Hospital São Paulo era uma luta que eu fazia à tarde e, de manhã, continuei no Hospital do Câncer, onde também, quando a gente começou, era um hospital em que nós tínhamos uma sala com o Doutor Alois no fundo do corredor. Depois, o serviço foi crescendo, veio a Maria Lídia, veio o Luís Fernando, veio o Sidney, uma série de médicos, a Célia Antonelli, que trabalhávamos juntos e que, aos poucos, também foi crescendo. A enfermaria, a gente ajudava a lutar para conseguir melhorar o atendimento desses pacientes. Eu fiquei no Hospital do Câncer incentivado a fazer novas técnicas, trazia dos Estados Unidos ideias. A gente começou a fazer antibióticos endovenosos, começou a fazer quimioterapia intra-arterial, eu comecei a trabalhar com tumor ósseo, que se chama osteosarcoma e que, antigamente, a única coisa que tinha para fazer era cortar a perna das crianças. E morria todo mundo num prazo médio de um ano, um ano e meio. Aparecia um monte de metástase no pulmão, e os pacientes morriam, e a gente aprendeu nos Estados Unidos uma maneira de tratar, com um médico, o Doutor Norman Jaffe, que sempre foi um grande guru meu, o (Gerald?) Rosen, que também foi uma pessoa importante, que a gente poderia mudar a situação. E a gente conseguiu fazer um monte de coisas aqui no Brasil no sentido de melhorar o tratamento dessas crianças e conseguir melhorar a sobrevida delas. Depois, começamos a ter chance de conservar a perninha, não precisava mais amputar. Essa foi uma coisa que a gente introduziu aqui no Brasil. Os cirurgiões que faziam a cirurgia, mas foi graças a essa proposta de fazer quimioterapia pré-operatória é que era possível diminuir o tamanho do tumor. Aí, o cirurgião tirava o tumor e colocava uma prótese no lugar do osso, que chama endoprótese, e com isso manter a perna. A gente começou muitas coisas aqui, como o uso também do método, o (trequissate?), um remédio muito difícil de ser feito, a ifosfamida. A gente acabou inovando. Baseado no aprendizado nos Estados Unidos, foi trazendo essa metodologia para o Brasil, e nesses anos no Hospital do Câncer, aos pouquinhos, a gente percebeu, junto dos outros colegas, que nós conseguimos melhorar sobrevida e ter mais chance de cura.
P/1 – Sérgio, a gente que é leigo, que não é médico, a gente sempre imagina o quão difícil deve ser a vida do médico, no trato com o paciente, e recompensadora também. No caso da oncologia, eu tenho a impressão que deve ser mais difícil ainda pela gravidade da doença. E oncologia pediátrica deve ser mais difícil ainda. Então, eu suponho que você deve ter uma série de histórias marcantes, tristes, outras bonitas. Nesses primeiros anos de atividade, antes ainda do Graacc [Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer], houve algum paciente, algum caso... Deve ter havido vários, mas que você pudesse contar para a gente, que foi marcante na sua vida?
R – Uma das coisas que, para nós, oncologistas, pesa muito é você ter feito um percurso onde morria todo mundo e hoje você consegue curar 70% dos casos, e é fundamental também que você sinta que você está fazendo o que é importante e é preciso para o seu paciente. Eu sempre costumo dizer assim: hoje, a gente chegou numa situação em que a gente ainda perde, 30% dos pacientes ainda morrem, mas essas crianças que morrem nas nossas mãos morrem porque morreriam se estivessem nos Estados Unidos, na Europa, nos países desenvolvidos, não porque elas são brasileiras. Durante muitos anos, em alguns lugares do Brasil, as crianças morrem porque são brasileiras, porque não têm remédio, porque não têm estrutura física para tratar, não tem gente competente para cuidar das crianças. Isso é que a gente tem que lutar para acabar. Dentro da esfera em que a gente lida aqui, a gente tem conseguido isso. E, muitas vezes, a gente perdeu pacientes, e são histórias difíceis porque você, muitas vezes, se afeiçoa mesmo às crianças. Você acaba ficando com muita dificuldade em perder, e o câncer, quando ele chega, você já vê mais ou menos a chance que esse paciente tem, e, às vezes, são pessoas maravilhosas, são pacientes muito legais e que você percebe que não tem muito o que fazer. Por exemplo, eu tive um menino, um adolescente que, na primeira consulta que chegou, ele já veio com um tumor enorme na perna, que ele tinha sido tratado pelo cirurgião, que tirou o tumor e colocou uma prótese. Naquela época, muitas vezes, faziam isso sem fazer quimioterapia pré, e ele tinha um tumor muito grande, e o médico tinha indicado tirar a perna. E veio a mãe, uma senhora, a namorada do menino, uma moça bonita, e o menino. Ele não aceitava de jeito nenhum fazer a cirurgia. Então, eu falei: “Olha, vamos começar com a quimioterapia de qualquer maneira e vamos ver o que acontece, mas, para você salvar sua vida, o único jeito que tem é tirar a perna.” Em resumo, a gente começou, ele melhorou, e eu fui ficando mais amigo dele e, um dia, eu consegui conversar um pouco com ele e com a mãe. Na verdade, ele não queria tirar a perna porque a namorada dele tinha dito para ele que ela não namorava meio homem. Se ele tirasse a perna, ela ia largá-lo. Então, ele estava lutando feito um maluco para ficar com a perna, para não perder a namorada. E ia perder a vida, porque, se você não tira o tumor, não há quimioterapia que segure. Pode até melhorar, mas faz parte do tratamento desse tipo de tumor ósseo tirar o tumor. E, quando o tumor estiver fora do osso, já invadiu toda a coxa. A única conduta é a cirurgia mesmo, e, como era muito avançado, no fim, esse menino ficou meu amigo e ele acabou aceitando. Brigou com a namorada e tirou a perna. Na verdade, ele acabou morrendo anos depois, mas fui cuidando dele muito tempo. Ele voltou a trabalhar, pôs uma prótese, mas a metástase do pulmão a gente tirou e progrediu. Foi uma pessoa que eu nunca vou esquecer, porque esse foi um indivíduo que acabou confiando em mim de uma maneira muito... E, às vezes, é assim: você precisa discutir, por exemplo, era melhor deixar ele com namorada e com a perna? Ou era melhor convencê-lo a tirar a perna? E a namorada provavelmente ia embora de qualquer jeito, porque a hora que começou a apertar o negócio, ela não tinha estrutura para ficar. Não é culpar a menina, mas, de qualquer maneira, a situação era muito dramática: a mãe vendida, porque entendia que tinha que tirar a perna e estava de acordo; ele provavelmente entendia, só que tinha essa situação com a namorada. Isso foi uma situação que durou bastante tempo e me ensinou muito também a olhar os diferentes focos em que a situação existe. Quer dizer, às vezes, não é tão simples você falar com uma pessoa e ver o que está acontecendo em volta, até você destrinchar. Certamente, foi bom ele ter que tirar a perna porque essa perna ia cada vez aumentar mais, ele ia sofrer muito também, ia ter muita dor. Então, ele acabou amputado, viveu mais alguns anos, acabou morrendo. Ficou meu amigo, a gente acabou estabelecendo uma relação muito boa, e eu senti muito ele ter morrido. Aquele cara eu queria ter curado mais do que tudo, pela gana às vezes de dizer: “Pô, esse cara com o que ele passou e a situação que foi...” E, às vezes, você aprende isso na profissão muito cedo, na oncologia, é que você perde pra caramba também. Às vezes, por mais que você se envolva com a pessoa, por mais que você estude, por mais que você queira ficar bom, você é desse tamanhinho. Porque tem um grandão aí, um deusão aí, que manda no universo ou o que a gente achar que é – para mim, é Deus e, para cada um, tem um significado e um nome –, mas que tem uma força maior, que comanda e que, às vezes, guia situações das pessoas, e, para o meu tipo de vida, eu acredito demais nisso, que as coisas que você vê... É muito bom quando a pessoa tem fé. Eu tenho outra história, de uma menina também que eu gostava demais e acabou morrendo. Essa daí eu acabei indo ao velório até. E olha que cheguei lá, o pai e a mãe estavam muito mais confortados do que eu. O pai e a mãe me deram um abraço, um obrigado e: “Ela já foi agora, tinha que fazer isso mesmo, a gente acredita que esse era o período da vida dela, ela nasceu para ter que passar por isso e agora vai seguir a vida espiritual dela em outro nível.” A pessoa acreditava tanto nessa coisa da religião, que se conformou até mais fácil, entre aspas, do que eu, de perder coisa, que eu nunca gostei na vida de perder nada, nem jogo de tampinha. Ainda mais vidas humanas. Isso é muito duro. Essas histórias são múltiplas, mas que basicamente ensinam a gente a respeitar cada vez mais o jeito de pensar, o sentimento, a ouvir. Ver-se como um cara que lida com uma pessoa que entra no seu consultório, e você passa a ser a esperança daquela pessoa, daquele casal, daquela família, de que você vai mudar a história da vida, porque na cabeça da maioria das pessoas ter câncer é muito próximo de morrer. Você, tendo chance de ser aquele indivíduo, que tem aquela responsabilidade perante a família, e ter que aprender durante a vida toda a dar continência a esse tipo de sensação, e muitas vezes chegando para você e dizendo assim: “Doutor, a gente acredita que é Deus no céu e o senhor na terra.” Você já imaginou aguentar esse tranco? Quer dizer, é mulher, é pessoa, avó chegar e virar... E aí você tem que, de certa forma, assumir alguma coisa. “Vamos rezar bastante, e faça o favor de rezar também por mim.” A gente brinca, eles falam assim: “Doutor, a gente reza toda noite.” Para dar inspiração, para dar força, para dar intensidade para isso aí. São sensações muito interessantes do ser humano absolutamente aberto, assim exposto, mostrando a necessidade que sente de ter confiança num indivíduo que mal conheceu, porque foi encaminhado, e, dali a pouco, você tem que ter aquele contrato de relação com aquela família.
P/1 – Sérgio, depois você entrou no mestrado na Escola Paulista, é isso? E foi seguindo carreira na Escola Paulista até chegar à chefia da oncologia pediátrica?
R – Isso mesmo. Eu fui tomar conta. Eu fiz o mestrado, o doutorado, a gente acabou em 1990, esse de 91. Aí, eu saio do A. C. Camargo e vou ficar só na Escola Paulista, acabei propondo um desafio. A gente teve uma espécie de um desentendimento, de ciumeira lá no hospital, e queriam que eu saísse da Paulista para ficar só no A. C. Camargo. Eu ficava de manhã no A. C. Camargo e à tarde, e o chefe chegou e falou assim: “Esse negócio de você estar na Paulista e aqui não está dando, muita confusão. Então, eu acho que você tem que escolher, a gente queria que você ficasse aqui e largasse a Paulista.” Eu pensei, pensei, eu tinha 17 anos trabalhando lá, foi uma experiência boa de crescer dentro do Hospital do Câncer, de melhorar a situação, de aprender realmente, de sair para o exterior várias vezes, começar a publicar, fazer trabalhos de vida acadêmica de pesquisador. Eu optei por sair do Hospital do Câncer e fui começar tudo novinho em 91, que é a época que a gente foi para a Escola Paulista definitivo.
P/1 – E como é que foi o estalo para fundar o Graacc?
R – Em 88, eu passei no hospital St. Jude em Memphis, e foi feita uma organização, uma espécie de um curso de pós-graduado, que eles chamaram, para médicos latino-americanos, organizado pela Sociedade Americana de Pediatria, Sociedade Americana de Oncologia, American Cancer Society, e a gente visitou 17 centros em 17 estados americanos durante um mês. Eu tive uma ideia muito ampla de tudo o que estava acontecendo, e o forte dessa visita era mostrar para as pessoas de fora como as comunidades tinham se organizado para montar os hospitais, para poder ter a estrutura que eles tinham no combate ao câncer. E o hospital St. Jude, ele tem uma estrutura de uma organização que chama Alsac [American Lebanese Syrian Associated Charities], que é uma não governamental e que capta recursos nos Estados Unidos inteiros para injetar no hospital. E eles fizeram um centro maravilhoso nos Estados Unidos, que é o melhor centro de tratamento de câncer de criança que tem. A ideia de formar uma ONG para poder organizar e crescer e fazer um serviço público poder se desenvolver era muito importante, veio bem claro isso à minha cabeça. Na Escola Paulista, a gente compete com muitos outros serviços, com muito pouco recurso. É um hospital voltado para o SUS [Sistema Único de Saúde], ele tinha uma enfermaria de 32 leitos, sendo que a gente tinha um quartinho para três crianças e um ambulatório no meio do ambulatório geral, e era impossível fazê-lo crescer sozinho. Então, a gente alugou uma casa, eu comecei a trazer: veio o pai do Jacinto Guidolin, pai de um paciente que ficou bom, a dona Lene Johnny, que era uma voluntária do A. C. Camargo e veio trabalhar com a gente, e os médicos, o Doutor Flávio, a Doutora Nasjla, a enfermeira Carla, nós fizemos um grupo e acabamos criando o Graacc. Esse grupo de apoio foi com a ideia de começar a se organizar para poder criar situação de atender melhor o doente e, no começo, era para dar apoio para o setor de oncologia da pediatria. Só que, em 93, a gente conseguiu entrar no McDia Feliz, que foi a primeira vez que a gente conseguiu ver um pouco mais de chance de conseguir mais recursos. O pessoal, quando vieram trazer o cheque, o Gregory Ryan e o Ronaldo Marques chegaram e disseram: “Puxa, que legal.” Eu disse: “O cheque é importante, vamos fazer uma reforma em mais uma casinha que a gente alugou, mas o nosso sonho é ter um hospital.” Eu disse para eles. “Porque a gente precisa ter um lugar para crescer.” Ele disse: “Mas por que vocês não sonham?” Eu brinquei com ele: “Mas pode sonhar?” Ele disse: “Claro que pode sonhar, nós vamos dar apoio.” A partir daquela conversa em 93, a gente conseguiu que o McDonald’s, o Gregory Ryan, naquela época, o dono da franquia aqui no Brasil, desse o que era... Fizemos folhetos, foi feito todo um processo de crescimento, e acabamos comprando cinco casinhas para arrumar o terreno. E a gente, no início, pensava num predinho de três andares, alguma coisa assim. Só que, como a coisa foi crescendo, vieram os outros parceiros, o Sergio Amoroso do grupo Orsa, vieram o Fernando Márcio, vários outros, o André Guper, várias pessoas nos ajudaram e a coisa começou a andar. Até que, em 98, a gente tinha um prédio de 11 andares prontos. Tudo com dinheiro captado, praticamente nada de dinheiro público. Todos os bancos, o Safra, o Bradesco, gente privada, e sempre foi na base de a gente ir atrás, e quase todos os dinheiros eu estava junto de alguém que abria a porta, ou voluntário ou amigo de alguém. E a gente ia vender o peixe de que eu era professor da universidade e que tinha essa ideia de construir um hospital e que isso permitiria que a gente atendesse melhor a criança. Foi feita essa proposta para todo mundo e foi muito bacana, porque a gente aprendeu a explicar, aprendeu a pedir, aprendeu a mostrar os benefícios, aprendeu a vender o projeto e acabou conquistando uma força boa de crescimento. Nesse hospital, a gente realizou um monte de sonhos, que era ter espaço. Naquela época, quando a gente mudou, dava para sobrar um monte de espaço, que hoje já mudou tudo.
P/1 – Sérgio, mas, no começo, como é que foi exatamente? Você contou essa história de Memphis, do tour pelos Estados Unidos, isso tudo deu um estofo para você ter ideia, tomar decisão. Mas e o dia em que você reuniu essa turma inicial que você mencionou, como foi essa decisão? Teve algum estopim? Algum episódio, alguma inspiração que foi: “vamos tentar criar alguma coisa?” Como foi esse dia?
R – Eu acho que foi a necessidade mesmo. A gente começou a ficar aborrecido, porque não tinha como ter recurso, faltava remédio, e eu acho que uma pessoa importante foi o Jacinto Guidolin, que, quando ele comprou a ideia, eu trouxe, para ele conhecer o Hospital São Paulo, onde a gente estava com as dificuldades que tinha, e ele é um engenheiro e resolveu ajudar, resolveu achar que dava. Não com dinheiro, porque ele não tinha dinheiro para dar, mas com presença, com vontade para ir para frente. E a gente se reunia num sobradinho, era o 743, uma casinha em que, lá dentro, a gente se reunia, e, na época, por exemplo, quem fez o regulamento, quem fez o estatuto foi um advogado do interior e era pai do Marquinhos, que era um pacientezinho nosso. Ele alugou um apartamento perto do hospital para poder tratar o menino com a gente e ele ajudava a fazer e foi quem fez os estatutos do Graacc naquele tempo. Quer dizer, era pai de paciente. Foi tudo muito artesanal mesmo, foi bem vontade de “vamos fazer”, e tinha em mente o que a gente queria, mas nunca tão grande como ficou.
P/1 – E, no começo, era essa casinha alugada próxima ali, e sempre dando uma assistência para a Escola Paulista?
R – Era ali o setor de oncologia da pediatria, só que ficava na casinha do outro lado da Rua Botucatu. O Hospital São Paulo era quando você subia, lado direito, e a Escola Paulista, como um todo, um quarteirão, e a gente tinha essa casinha perto. E quando a gente quis crescer, a gente alugou uma casa ao lado, fez uma reforma, ficou lá um ano ou dois, até que a gente começou a partir para construir. Um exemplo interessante: eu fui pedir dinheiro para a Roche, o laboratório Roche. O laboratório Roche já estava trabalhando com um antibiótico novo, o (Rocefin?) na época, e eu tinha um protocolo que eu trouxe dos Estados Unidos, e o representante da Roche, ele tinha toda boa vontade de ajudar a gente. Um dia, ele chegou lá no hospital, e era tudo pequenininho assim. A gente tinha lá no fundo, apertadinho, e ele chega com um cheque de dez mil reais, eu falei: “Caramba, puxa, bacana, é um monte de dinheiro.” Aí, eu falei para ele: “Cação, para ser sincero com você, eu estou superfeliz que você conseguiu esse dinheiro, mas aquilo que eu tinha conversado com você, eu queria uma ajuda institucional da Roche, não é só do marketing, só do pessoal, eu queria que você conseguisse que eu falasse com alguém lá dentro para vender.” Em resumo, eu não peguei o cheque de dez mil, e ele conseguiu marcar com a diretora da área médica. Eu fui, vendi o peixe para a Laís, e ela marcou uma reunião com o presidente da empresa. A gente ganhou uma casa, uma das casinhas de que a gente precisou foi a Roche que deu, e eu fiquei amigo do presidente da Roche. E ele falou: “Eu vou te dar, mas você vai ter um prazo para começar a obra; se vocês não fizerem isso, nós vamos pegar de volta e você vai ter que devolver.” Mas foi super-rápido, a gente acabou tendo aquela coisa do... Teve uma época em que eu parei de falar de sorte, eu falei: “Aqui tem um Deusão ajudando a gente.” Porque vai tendo uma série de coincidências que vão acontecendo. O outro quer vender a casa também, o outro quer vender também, o outro era um lugar onde a gente comia que vendia por quilo, mas também resolveu sair. Conseguimos comprar uma ao lado da outra, porque eu não queria sair da frente da universidade para comprar um terreno longe, e a gente queria justamente vender a oncologia pediátrica para o aluno, para o médico dali saber que existe. Naquela época, pouco se falava de câncer de criança. Então, a ideia foi essa, e foi legal porque deu certo. Esse presidente da Roche, o dia que ele foi embora do Brasil, chamaram a gente para ir ao jantar e eu falei para a secretária deles que, se não se importassem, eu ia entregar um presente das crianças. E pedi na nossa brinquedoteca para fazerem um presente para ele. E, no dia, veio o presidente internacional, que fez uma saudação, e me chamaram para falar em nome das crianças e eu fui, lá na frente do jantar, e entreguei. Ele e a mulher dele ficaram superemocionados. E agradeci em nome das crianças brasileiras o que ele fez aqui. Você vê: o vendedor, o Cação, se eu pegasse o cheque dele, eu ia ficar com aquele dinheiro, e a gente não ia fazer muita coisa com dez mil reais. Como eu fui meio ousado, um pouco de ousadia, eu falei, ele levou o assunto para a diretora dele, que levou para a presidência, o presidente comprou, a diretora foi muito elogiada, e o Cação foi muito elogiado, porque levaram esse problema e, no fim, eles todos estiveram na história. E a Roche ajudou, e o presidente ficou eternamente ligado à causa, ia às vezes visitar a gente, almoçar. O mundo, você vai olhando e percebe que, se você sabe o que você quer para a sua causa, não deixa só um pedaço do assunto resolvido. Às vezes, vale a pena tentar um pouco mais ou com um pouco mais de ousadia, e foi um pouco isso que aconteceu no projeto. A gente foi vender e foi pedir, trocando: “Olha, se você ajudar, a gente te faz isso.” E, com isso, o hospital cresceu muito, e a gente hoje consegue realmente se sustentar, atendendo um monte de crianças, e foi feito um hospital que tem tudo. A gente, hoje, consegue fazer transplante de medula, consegue fazer neurocirurgia, consegue fazer tumores ósseos. Tudo o que a gente prometeu lá atrás, para quem ia ajudar a gente, a gente está fazendo nesse hospital, tanto que já está na hora de crescer.
P/1 – À medida que o empreendimento foi crescendo, até se tornar imenso como é hoje, eu imagino que você deve ter deixado de ser totalmente médico para ser também um homem de negócios, um negócio de um sonho de ir atrás, como desse presidente da Roche e imagino que de outras empresas. Você pode contar mais um episódio desse período, para fazer o sonho virar realidade? Para colocar essa ideia em pé? De outros lugares de que você foi atrás? Teve o episódio do McDonald’s, da Roche, porque não deve ter sido fácil transformar esse ideal em realidade.
R – É isso mesmo. A gente teve algumas coisas que... Você precisa imaginar que, para convencer o indivíduo a te doar alguma coisa, é sempre uma situação difícil de ele acreditar, principalmente num país que não tem muita tradição de filantropia. O que sempre ficou claro para mim é: você tinha que estar envolvido no assunto, não dá para terceirizar esse tipo de pedido, como “vamos pegar os voluntários para captar recursos para o hospital”. O que eu acho que está dando certo é quando você se envolve pessoalmente, quando você vai vender o seu peixe, quando você vai contar as suas histórias, quando você caminha e mostra o que você está fazendo. Eu sempre achei muito importante você contar os fatos que estavam ocorrendo, para podermos convencer as pessoas que elas devem ajudar. Um dos momentos mais interessantes foi com o grupo Orsa, que o Sergio Amoroso que é o presidente. Ele nos foi apresentado por um primo de uma pessoa conhecida e ele veio conhecer a gente, no hospital, e, com o Doutor Jacinto, ele marcou uma reunião na Quinta-feira Santa, na Liberdade, num escritório. E ele tem grupos muito fortes em celulose, é dono do Projeto Jari, mas naquela época, nós estamos falando de 94, 95, eles estavam começando uma fundação que ele tem, que é um trabalho muito legal. Eu e o Jacinto sentamos, esperando para receber, e ele falou: “Puxa, se a gente sair com cinquentinha daqui vai ser legal.” Ele imaginava uns 50 mil reais, ia ser muito legal. Na hora em que a gente foi conversar com ele, ele tinha ido ver, e nos chamaram para dar resposta. Eles tinham resolvido que o Graacc ia ser a parceira da Fundação Orsa, que ela queria começar a fazer realizações e achou que era uma coisa boa o Graacc fazer isso. Então, ele acabou garantindo dois andares do prédio e falou: “Nós vamos entrar junto de vocês.” E isso significava na época quase 1 milhão de reais, em termos de participação para construir o prédio. A gente se sentou depois, e essa história ficou: eram dois malucos que foram lá, e achamos que cinquentinha estava bom e nós contamos para eles depois. E, de repente, saímos de lá com dois andares do prédio construído. O presidente do Graacc se envolveu, porque colou, sabe o jeito de falar, o jeito de ele entender a gente, e era uma pessoa muito simples também, que ganhou muito dinheiro e que resolveu se doar para o câncer. Você aprende também que você nunca pode saber o que está por trás daquela pessoa quando ela está falando. Quais são os sentimentos das pessoas, o que ela tem de querer envolver, que momento ela está da vida dela. Às vezes, você pensa que vai receber “x” e vai longe, e muitas vezes a gente bateu, e não adiantou nada. Eu até ouvi uma vez, num jantar, um senhor que falou isso, que é uma coisa bem bacana, que três coisas são importantes para você na vida: você precisa saber o que você quer, então escolher a porta certa, bater na porta certa e bater até a porta se abrir, porque se você não sabe que porta você está procurando e, mesmo que você saiba qual é, você bate na porta errada, ou se você bate uma vez só e vai embora e não conseguiu, você não consegue as coisas. Isso eu acho que é verdade na vida. Você precisa escolher a porta certa, precisa bater bastante até sair. Então, primeiro, você precisa saber o que você quer, e é isso o que eu acho que define a gente. Um pouco é esse perfil que eu sempre alimentei nesse projeto. “Aonde a gente quer chegar?” “Do que a gente precisa?” “Quem é que pode ajudar?” E, aí, ter uma paciência de Jó para conseguir fazer o cara te atender, e ir atrás, e largar as coisas.
P/1 – Sérgio, para quem começou numa época em que era de praticamente 0% a chance de vida dos pacientes, e tinha um quartinho lá na pediatria com dois leitos, hoje você me disse que a chance, o percentual de sobrevivência é de 70%, e vocês têm um prédio de onze andares, eu tenho a impressão que, lidando ainda com crianças, lidando com essa situação delicada que é o câncer infantil, deve ter 1 milhão de histórias depois da fundação do Graacc que te mostram como valeu a pena essa paciência de Jó a que você se referiu. Conta alguns desses episódios para a gente, nesse trato com o paciente? As histórias que te fazem ver como valeu a pena lutar por esse projeto?
R – Eu acho que talvez seja mais legal o mais recente. Ontem, uma senhora me falou uma coisa tão bacana. Faz umas três semanas, um rapaz de 22 anos veio de Blumenau e ele estava numa cadeira de rodas, na frente do meu consultório, à tarde. Eu estava chegando e nem sabia, só que ele tinha ido ao ortopedista e o ortopedista o mandou para mim, porque eu faço mais essa parte de tumores ósseos, e esse paciente tinha um tumor ósseo na coluna. E ele tinha sido operado em Blumenau, eles descomprimiram, e ele começou a ter muitas dores nas pernas, estava perdendo a força. Mas, dois dias antes de ele chegar ao meu consultório, ele estava parético, paralisado das pernas, as duas pernas não mexiam mais. E na hora que ele chegou, o pai estava querendo levá-lo embora, disse que ia fazer quimioterapia em Blumenau, que ele sabia a carga como era, porque falaram que faziam a carga em qualquer lugar. Eu falei: “O senhor me desculpa, o senhor está muito confuso, e nós vamos fazer o seguinte: independentemente de o que você tem de seguro ou não seguro, eu vou internar o seu filho agora no único hospital em que eu sei que consigo fazer a quimioterapia para ele ainda hoje – é o hospital do Graacc – porque lá a gente está preparado o tempo todo, se precisar, eu sei onde está o farmacêutico, ele vem, tem o remédio.” A mãe falou: “Então, está bom, doutor.” Eu mandei o menino para o hospital, e ele chegou às 8 horas da noite e estava tomando quimioterapia, que é muito efetiva para ajudar a diminuir rápido, porque, se você consegue diminuir rápido o tumor, você diminui a compressão e, às vezes, volta a andar de novo. Ele não mata os vasos sanguíneos de uma vez, e a medula responde. Em resumo: ele tomou remédio e foi super bem tratado no hospital, um menino que estuda Comércio Exterior, filho de um diretor comercial de Santa Catarina. E ele acabou ficando durante o período, sendo tratado, e acabou tendo alta e, no terceiro ou quarto dia, já estava começando a levantar a perna. Ontem, eu pus ele em pé, e ele subiu na balança andando com as próprias pernas e começou a chorar feito criança, a mãe chorava feito criança. Voltou a funcionar a perna, e ela vira para mim e falou: “Esse hospital, não existe nada igual, porque o jeito que vocês tratam as pessoas, todas iguais; eu fiquei lá onze dias internada, e eu vejo a maneira como se cuida de todo tipo de criança, desde a criança mais simplesinha até a criança mais diferenciada, o carinho, a maneira de atender. Eu acho que, porque as pessoas estão acostumadas a ver o sofrimento das famílias, como isso pode acontecer, e a gente acha isso um milagre, eu nunca imaginei que me falassem que um hospital que fosse sustentado por doação pudesse ter essa qualidade; os hospitais que eu conheço que têm doações são todos falidos, tudo gente que precisa de dinheiro para pagar a conta do verdureiro no fim do mês, e o que a gente viu aqui é um hospital que eu não conheço igual, que é super bem organizado e que vocês conseguiram fazer o meu filho voltar a andar.” Você percebe, uma mulher que sabe o que é bom, crítica, tem um bom nível socioeconômico, não é que tudo é bom para ela, como a gente, às vezes, infelizmente, tem famílias muito simples para quem você oferece um pouquinho, eles já acham que é maravilhoso, porque nunca tiveram nada, e que, de repente, veem o filho ser tratado de uma forma competente, ter recursos, ter feito nesse momento urgente e realmente recuperar e ter um depoimento desses. De que foi tratada de uma maneira igual a todos os outros, mas muito boa para ela. Essa é a minha maior satisfação. Eu acho que, antes de tudo, é a competência, eu acho que a gente não pode se meter a querer cuidar do filho dos outros, uma doença tão grave, e não ser competente, não ser sério, não ser absolutamente rígido nos princípios. Número dois é o resgate da cidadania, o resgate do direito que as crianças têm de serem atendidas de maneira correta. Essa para mim é uma frase muito forte, que eu montei na minha cabeça. Ninguém é paternalista de dizer: “A gente é bonzinho, e os outros serem os ferradinhos, então vamos ajudar os outros.” Não, as crianças, as famílias têm direito de serem atendidas como brasileiros, elas merecem também ter atenção adequada. E a comunidade, a organização, os voluntários, os empresários, os médicos, enfermeiras, todo mundo está trabalhando num hospital bom e ao mesmo tempo resgatando o direito dessas crianças serem atendidas de uma maneira decente. Isso, para nós, é uma coisa fundamental. É lutar pela cura com qualidade de vida, com reinserção social, com uma maneira de fazer com que, se o indivíduo puder, ele sai do hospital melhor do que ele entrou, porque ele vai ter uma vivência muito forte, ele vai saber, por azar, por uma doença, mas que ele não perca a razão da vida dele porque ficou doente. Eu acho que essa é das principais, e quando essa senhora falou isso ontem, para mim, eu de novo fico muito feliz, eu acho que é isso que você falou, o quanto vale a pena ter lutado, só por essas coisas que geralmente estão, mas mais do que tudo. Eu acho que o que vale a pena é a gente poder estar trabalhando num serviço bom, porque, além de ir atrás de dinheiro, além de fazer a parte burocrática, um pouco a parte administrativa, eu me mantenho muito médico, eu sempre lutei muito para ter condições de trabalhar. Semana passada, eu saí segunda-feira à noite e fui a Los Angeles, viajando 12 horas para entrar numa reunião científica superimportante, apresentar um trabalho meu, e voltei no sábado, para me atualizar, quatro dias enfiado numa reunião científica para continuar sendo médico. Eu decidi, um tempo atrás, que eu não queria ser administrador, eu ia fazer uma pós-graduação, um curso de gestor, mas eu optei por ser o diretor médico do hospital. É isso o que eu gosto de fazer e estudo muito, e o maior prazer de trabalhar é poder ter os recursos e fazer a Medicina boa que eu vejo ser feita nos melhores centros do mundo.
P/1 – Sérgio, e qual é o futuro do Graacc?
R – Nessa semana, ele mais ou menos ficou definido. Nós recebemos uma doação de um terreno, agora na parte de trás do prédio, e acho que é muito provável que a gente vá conseguir o que a gente tem pensado. Eu consegui levar o Sergio Amoroso, que é o presidente atual, e um empresário, como eu falei muito forte, para conhecer o hospital St. Jude. E nossa diretoria, a Maria Helena Veríssimo, o Paulo Antero, o Fernando Marques, o Rui Campos estão muito entusiasmados com a ideia de a gente construir um novo hospital atrás, uma expansão do Graacc. O prefeito assinou nessa semana o encaminhamento para um decreto-lei que vai ser votado na câmara, em que a gente vai ganhar um terreno de mais de três mil metros. Nos próximos cinco anos, o plano é construir um hospital que vai ser referência latino-americana, a gente quer fazer desse hospital um centro de altíssimo nível, e nós temos agora ampliado o nosso plano: é fazer o que os outros não fazem, a estratégia do que a gente quer fazer é fazer a parte complicada da oncologia. A parte de tumores cerebrais, que são muito difíceis de serem operados, a parte de transplante de medula óssea, que a gente está fazendo com células tronco de cordão umbilical, a parte relacionada a tumores ósseos, a parte que se faz tumores oculares, retinoblastoma, que tem que ser feito com muita maestria por um profissional supertreinado, e continuar cuidando dos outros casos. Mas a gente vai receber sempre o caso complicado, que tem quase 60 serviços e que atendem criança com câncer. São muito poucos os que têm habilidade para tratar essas crianças que eu falei, que necessitam de especialidade. O Graacc quer ser isso, um centro de referência de alta complexidade em câncer da criança e do adolescente, e vamos expandir o hospital. Provavelmente em cinco anos, a gente tem esse hospital pronto.
P/1 – Sérgio, você acabou de dizer que o projeto futuro do Graacc está encaminhado e parece que já está bem estruturado. Ouvindo a sua história de vida, me parece também que grande parte dos seus sonhos que começaram lá quando você começou a tratar das crianças também foram realizados. Mas eu tenho certeza de que você deve ter muito mais outros sonhos pela frente, que devem estar ligados à sua atividade etc. Para a gente terminar, eu queria que você falasse um pouquinho desses novos sonhos. Dos sonhos de agora.
R – Eu acho que dois tipos de sonho que eu sempre... Acho que preciso desses sonhos para me alimentar, para olhar para frente. Eu aprendi que, se eu não tiver os desafios, se eu não tiver essa vontade, a gente acaba realmente diminuindo o ritmo. A oncologia está vivendo hoje uma coisa que nós chamamos de revolução molecular. Essa revolução molecular é um entendimento melhor da intimidade das células, que está tendo um progresso muito rápido, mas que ainda tem muita dificuldade em ter grandes resultados do ponto de vista de melhorar a sobrevida, porque a célula é muito inteligente, a célula foi montada de uma maneira muito estratégica para se defender, sempre preservar a vida. E a célula cancerosa, ela se transforma, mas ela mantém as qualidades dessa célula normal de se preservar. Ela é muito resistente a tratamentos que tentam destruí-la ou impedi-la. Então, nós vamos poder, nos próximos anos, desvendar uma série de outros segredos, de outras novidades que devem vir. No nosso laboratório, no nosso hospital, nós estamos tendo a chance de desenvolver uma série de coisas em que nós estamos envolvidos e que nos amplia muito essa possibilidade de conhecer coisas novas. O transplante de medula está sendo feito no limite do conhecimento, a parte de tratamento de cérebro, a parte de tratamento de osso. O fato de estar trabalhando no limite do conhecimento e ter muita possibilidade de se manter próximo a isso sem se desatualizar é muito desafiador, você ter a sensação de que você... É como se você tivesse, a cada ano, um motor de fórmula, um novo cada vez tendo melhor e conseguindo melhores tempos. Nós estamos falando de cada vez melhores técnicas para salvar mais gente. Eu entendo isso como um enorme desafio, além de que nós estamos ajudando outros centros, treinando pessoas, dando aulas, sendo reconhecidos e, com isso, podendo ser um modelo que eu entendo como fundamental na nossa sociedade, que é essa parceria entre o público e o privado, é fazer com que as pessoas auxiliem a universidade, que a universidade seja mais aberta, menos arrogante, para poder fazer com que o empresário, com que a população chegue. Hoje, nós temos 80 mil pessoas que doam mensalmente uma média de 20 reais para o Graacc. Você passou para essas pessoas todas essa ideia de confiança, de que ela pode ajudar uma instituição que tem que zelar por isso. Esse é um grande mote: é fazer com que essas pessoas saibam que o dinheirinho que ela está dando seja importante para curar e para ser empregado de uma maneira que essas crianças vão ser renovadas, reabilitadas e que têm chance de ter vida. E a gente, cada vez mais, consegue trazer pessoas da sociedade com seu talento, cada uma fazendo o melhor de si para ajudar a causa e ajudar o que a gente quer, e é essa posição, esse posicionamento da marca, essa posição da nossa cara, é que eu pretendo sempre dar como... Lutando para que ela se preserve, ela se consolide. Meu plano é que, daqui a alguns anos, quando eu tiver que passar essa liderança para alguém, tenha conseguido fazer essa transmissão do processo de uma maneira a não perder tudo o que foi feito. Eu estou muito atento à forma de sucessão para o futuro e a preparar pessoas que possam assumir e, ao mesmo tempo, não deixar estragar, como em algumas instituições nas quais o idealizador ou fundador vai ficando tanto tempo dentro e fica tanto a cara dele que, quando ele sai, ele não tem sustentação do processo. Está muito claro para mim que o desafio para os próximos anos tem que ser nessa linha, manter o hospital no limite do conhecimento. É estruturar sempre a marca e a imagem para que ela seja ajudada e continuar com esse modelo de sustentabilidade, buscando recurso na sociedade, que eu acredito muito nisso, não é uma coisa de carente, de parceria entre a sociedade e a universidade para manter isso e está dando certo, e a gente quer cada vez mais evoluir esse modelo. E planejar uma sucessão, planejar uma forma de fazer com que o hospital cresça, e, na área pessoal está muito agradável, eu tenho três netos. Tenho um de seis, um de dois anos e meio e uma de um ano e tenho os dois filhos, é um novo desafio agora aprender a conviver com os netos, aprender a ter um gosto bom de ser avô, de curtir os moleques ainda com saúde, eu consigo correr com eles. Eu consigo brincar com eles, e para isso eu presto atenção na minha saúde, apesar de gostar da minha cervejinha e gostar do meu esporte, faço bastante academia, corro, faço exercício para tentar, primeiro, dar tempo de poder beber um pouquinho de cerveja, porque, senão, você vai ficando muito gordo e tem que fazer exercício e queimar as calorias. Mas, principalmente, para me sentir bem, para poder estar disposto, para poder viver e curtir essa criançada, que é aquele modelo de avô que me inspirou um pouco o modelo de vida que eu escolhi. Em vez de sentir às vezes a sensação ou tentação de largar a casa e procurar um novo amor, ter uma nova namorada mais jovem, a gente apostou em ficar na casa e vencer as dificuldades, ao lado da mulher, e poder ter os filhos do lado e depois ter os netos do lado e ter uma profissão. Essa minha aposta, eu estou garantindo para o futuro, acho que foi válida, foi boa. Muitas vezes, todo cidadão consciente tem esses dilemas, muitas pessoas, por uma razão ou por outra, vão para um lado ou para outro. A minha opção foi ficar na minha casa. Foi bom, teve sempre os desgastes naturais, mas a situação atual de ter os filhos por perto e poder ter a mulher e ter os netos é uma aposta para o futuro que me estimula também a continuar cheio de sonhos e vê-los crescerem.
P/1 – Acho que é isso, a gente agradece muito a sua disposição, o seu tempo. Tem mais alguma coisa que o senhor gostaria de falar?
R - Acho que está muito boa, eu acho que, se eu tivesse só que fechar um pouquinho, é que eu pessoalmente me sinto muito contente de ter acreditado na sociedade brasileira, de ter acreditado nas pessoas. Hoje, eu sou um indivíduo que não posso reclamar de não ter sido ajudado. Eu acho que a gente, trabalhando sério, colocando as pessoas junto, não centrando em uma única pessoa, o mérito a gente busca muito dividir entre as pessoas que o conquistam. Saber que você não faz nada sozinho. E que eu vejo o brasileiro muito solidário. Hoje, quando você tem uma causa boa, limpa, transparente, você leva para ver, começa a dar certo, você não tem uma cara mais ou menos, tem que ter uma cara séria, uma cara certa, fazer as coisas direito, a gente consegue ter o retorno. Eu acho que, como brasileiro, eu que vi muita coisa no exterior, hoje me sinto dentro desse projeto muito realizado e agradecido, e reconhecer que o brasileiro quer ajudar e quer sentir que existe importância no trabalho, mesmo que seja de formiguinha de cada um, mas que todo mundo junto pode mudar muita coisa. E eu acho que nós somos um exemplo de que isso pode realmente acontecer.
P/1 – O Museu da Pessoa, e a gente aqui agradece muito. E parabéns pela história, pela iniciativa.
R – Muito obrigado a vocês, foi muito bom estar aqui.
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