Projeto Conte Sua História
Depoimento de Ana Maria Santos
Entrevistada por Carol Margiotte e Laura Garibaldi
São Paulo, 27/09/2018
Realização: Museu da Pessoa
PCSH_HV700_Ana Maria Santos
Transcrito por Márcia Rocha de Almeida
Revisado e editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Dona Ana, boa tarde.
R – Boa tarde.
P/1 – Obrigada por estar aqui com a gente hoje.
R – O prazer é todo meu.
P/1 – E para começar, o nome completo da senhora.
R – Ana Maria Santos.
P/1 – O local e a data do nascimento da senhora.
R – O local onde eu moro?
P/1 – Onde a senhora nasceu.
R – Sergipe, Itaporanga D’Ajuda. Mas será que eu vou lembrar minha data de nascimento?
P/1 – Vamos tentar.
R – Julho... É isso que você queria?
P/1 – O dia em que a senhora nasceu.
R – Dia 10 de julho. Agora, que ano... A data já não lembro mais, é tudo escrito. Porque eu sou daquelas pessoas que, de cabeça, eu não guardo nada. Só minha cabeça no local! (risos)
P/1 – E a senhora sabe por que seus pais lhe deram esse nome de Ana Maria?
R – Não, não sei. Eu sempre adorei, gostei desse nome. Eu gosto muito do nome Ana Maria. Eu achava que só existia eu, de Ana Maria. Era muito feliz. Depois eu descobri que não sou só eu, tem bastante Ana Maria. Mas eu era convencida por Ana Maria. Eu sou solteira, nunca tive filhos, mas eu falei: se um dia eu tivesse uma filha, eu ia pôr o nome de Ana Maria, de tanto que eu gosto do nome!
P/1 – E seus pais contaram para a senhora como foi o dia do seu nascimento?
R – Olha, meus pais moravam no interior, sou de uma família bem humilde, trabalhavam na roça. Minha mãe também trabalhava na roça. E eu sou a filha mais velha, entre oito irmãos. Eu nasci numa segunda-feira, a minha mãe estava trabalhando com o meu pai na roça. Aí ela sentiu que eu ia nascer, veio para casa, não demorou muito eu nasci. E foi parto normal, porque antigamente não existia... Onde eles moravam, era um lugar muito distante e pobre e eu nasci em casa. É isso que eu me lembro.
P/1 – E qual o nome dos seus pais?
R – Meu pai chamava-se José Domingos Santos e a minha mãe, Maria Isabel Santos. E depois, quando então foram nascendo outras crianças... Eu tenho uma irmã chamada Maria de Lourdes, tenho outra irmã chamada Maria Isabel, que aí são as três mais velhas, eu sendo a mais velha de todas. Aí, como nós morávamos lá em Sergipe, era uma cidade muito pobre, meu pai veio aqui para São Paulo trabalhar para melhorar de vida, porque a gente vivia de roça, eles iam trabalhar - minha mãe e meu pai - e eu ficava em casa com os irmãos, os três mais novos, três comigo. Aí, meu pai veio aqui para São Paulo, mas não aqui dentro de São Paulo, para uma cidade pequenininha que se chama Rio Grande da Serra. Meu pai veio trabalhar, mas ele sabia pouco ler, quer dizer, não sabia, mal assinava o nome. Ele foi trabalhar na estrada de ferro. Aí ele trabalhou, ficou uns meses e minha mãe ficou lá conosco, na roça. Depois ele voltou e foi nos buscar, eu devia ter uns 12, ou eu devia já ter uns 14; tinha a Maria de Lourdes, que a gente chama de Nina, e a Isabel. Aí nós viemos e tinha um irmão também, chamava-se José, e o outro chamava-se Roberto. Então, já eram quatro. Aí viemos para São Paulo, meu pai foi buscar, mas a gente veio de trem, não tinha como pagar estadia, pensão, a gente dormia na estação mesmo, porque o dinheiro que ele arrumou aqui só deu para pagar as passagens para a gente vir para cá. Nós fomos morar numa casa em que até hoje minhas irmãs moram, mas aí já mudou, um lugarzinho chamado Rio Grande da Serra. E meu pai fez uma casa bem pequenininha, e lá em Rio Grande da Serra tem muita neblina. Então, não tinha forro, não tinha nada. De manhã, a gente levantava, parecia que a gente estava na neve, porque entrava, durante a noite, o frio. Aí meu pai foi trabalhando, a gente foi crescendo, começamos a trabalhar. Foi onde depois nasceu a Rosa Maria, nasceu a Fátima, nasceu a Ana Lúcia. Mas aí já tinha os pequenos que vieram, e nasceram esses daqui. Então, como nós éramos as mais velhas - eu e a Maria - conseguimos trabalhar de domésticas, que é essa casa em que até hoje eu vivo. Porque aí os outros cresceram, foram estudar, mas eu e a Maria éramos as mais velhas, fomos ajudar o meu pai, porque não tinha muito como viver. Era só meu pai trabalhando, nessa época minha mãe não trabalhava fora. Ela trabalhava de lavar roupa, lavava roupa dos vizinhos para ajudar meu pai, porque o dinheiro que ele ganhava era muito pouco. E através de uma amiga, uma tia que veio também do Norte, que conhecia essa família com a qual até hoje eu vivo - eles me tratam muito bem, como se fosse da família - que arrumou serviço para a minha irmã, cuidando dessa moça que veio comigo. Aí, depois, eu já comecei também a trabalhar, então trabalhávamos nós duas. A Maria cuidava da Clarice e eu fazia o serviço da casa. Ficamos ali trabalhando, nasceu a Clarice, nasceu o Leo, e nós trabalhando. Os outros irmãos foram crescendo, depois casaram, que os mais novos são todos casados, só eu e a Maria é que ficamos solteironas, mas eu não me arrependo! Que até hoje parece que eu tenho filho. Porque tem a Clarice, tinha o Fábio, que é o irmão da Clarice, e tem o Leo. Então, antes, quando tinha o pai do Leo, eu vivia com o pai do Leo. Depois, a mãe dele faleceu, eu fiquei junto com o Leo, o Fábio e o pai. Depois de um tempo o pai dele também veio a falecer. E eu continuei. A Clarice casou, tem os filhos dela, quando não tinha babá, essas coisas, eu ajudava a Clarice. Os filhos dela já são todos os três casados e eu continuo morando com o Leo, que é o caçula da família. O Leo já tem quatro filhos, são maravilhosos, eu adoro as crianças dele! E é isso aí, é muito gostoso. Quer dizer que eu tenho eles como se fossem meus filhos. Até que os filhos do Leo me chamam de avó e a Clarice, para todo mundo que ela me apresenta, ela diz que eu sou a avó dos filhos dela. E eu acho muito legal, porque o tratamento que eu recebo deles, a minha vida foi melhorando, eu fui ajudando minha família, porque aí eu trabalhava, tive um bom salário. Aposentei-me, continuo junto com eles. Mas agora eu quase não faço mais nada dentro de casa. Minha função agora é fazer compra, viajo muito com eles, quer dizer que eu tenho uma vida que, quando eu fui criança, eu não tive. Então, eu tenho agora. E é isso aí.
P/1 – Posso fazer um monte de perguntas ainda lá do comecinho da história da senhora?
R – Pode.
P/1 – A senhora é a primeira dos irmãos, não é?
R – Sou.
P/1 – A senhora chegou a ajudar a sua mãe a fazer algum parto?
R – Não, isso não. Porque nessa época da minha mãe, eles não deixavam as crianças ficarem junto. Até, quando a gente ficava mocinha, a gente aprendia sozinha porque as mães eram muito antigas, tinham aquele receio. Não é como agora, que as crianças sabem tudo. A gente foi aprendendo com o tempo, mas a minha mãe era muito inibida para contar e a gente também tinha vergonha de perguntar, não é como agora, não é? Agora a gente lê os livros, eu sei ler muito pouquinho, porque não tive... Não é que eu não tenha ido à escola, eu acho que tive alguma dificuldade para aprender, então eu preferia ficar em casa e fazer o serviço de casa a ir para a escola. Não é como agora, se você não consegue acompanhar uma coisa, você tem uma professora, tem uma coisa, agora o tempo é diferente.
P/1 – E ainda na infância da senhora, pensando lá em Sergipe ainda, a senhora ajudava a fazer alguma coisa em casa? Porque era muito irmão, não é?
R – É. Então... Eu era a mais velha. A minha mãe, quando saía para trabalhar - porque ela trabalhava na roça com o meu pai - ela deixava a comida pronta e eu é que esquentava para os meus irmãos, para a gente. E nós sempre brincamos juntos, não tinha aquela coisa de brincar com o vizinho, não sei o quê. Minha mãe, de manhã, fechava a porta, a gente tinha um quintal grande, a gente ficava brincando até a hora deles chegarem. E eu que esquentava a comida para mim e para os meus irmãos, na hora do almoço. Às vezes a gente comia antes da hora, porque achava que já estava na hora do almoço. Aí o dia ficava muito longo, não é? (risos)
P/1 – Que comida que era?
R – Arroz... Não, era feijão, farinha de mandioca e peixe, às vezes tinha frango. Nossa, até hoje eu adoro peixe! E frango, que eles tinham, que criavam. Carne de porco, sabe? Todas essas coisas. Mandioca, que eles cozinhavam e a gente comia a mandioca de manhã com café, como fosse hoje em dia o pão.
P/1 – E a senhora ajudava na criação?
R – Não, eu ficava mais com meus irmãos. Agora, quem ajudava muito na criação era a Maria, minha irmã, que ela gostava mais dessas coisas. Eu ficava mais em casa, limpando a casa, cuidava dos meus irmãos. Então, a Maria... Até o pessoal dizia que a Maria, minha irmã, parecia um homem, porque ela trabalhava de igual para igual com o meu pai.
P/1 – E a Maria contava como era cuidar dos bichos? Se tinha algum cuidado?
R – Ah, sim. Ela falava, ela sempre gostou de cuidar dos bichos, essas coisas. E era muito bom.
P/1 – E a senhora sabe...
R – E...
P/1 – Pode falar, por favor.
R – Nem sei o que eu ia falar! (risos). Se eu lembrar, eu falo.
P/1 – E a senhora sabe como os seus pais se conheceram?
R – Olha, porque minha mãe é sergipana e meu pai, baiano. E eu acho que meu pai foi passear lá em Sergipe e se conheceram. E daí eles casaram. Assim eles contavam e a gente lembra, não é?
P/1 – E como era a casa em que vocês moravam lá?
R – Olha, era a casa que as pessoas mesmo faziam, casa de barro, essas coisas. Não tinha luz, era lamparina. Não era fogão a gás, era fogão a lenha. A gente mesmo ia pegar lenha para acender. De manhã, ia acender o fogo para fazer as coisas. A água, a gente ia buscar no balde - porque tinha o rio - trazia água para tomar durante o dia. Lavava roupa no rio, estendia a roupa fora para ela secar. Passava, não existia ferro elétrico, era ferro a carvão. Então era assim.
P/1 – Você ajudava a lavar roupa no rio?
R – Ajudava.
P/1 – Como era esse momento? Consegue contar como vocês se organizavam para ir?
R – Então... Você tinha uma madeira, que você punha uns dois tijolos ou pedras, aí você punha aquela tábua e ia esfregando sabão na roupa. Espumava como hoje em dia você lava uma louça com detergente, depois você esticava ela toda na grama e esperava - a roupa ficava bem branquinha, limpinha. Aí, depois de um tempo, você tirava todo aquele sabão, torcia e estendia no varal. Depois você recolhia todas e passava. Então, a gente ficava... Quando ia lavar, a gente ficava o dia inteiro na beira do rio. O rio não era longe, era perto de casa, então ficava o dia inteiro lá. Tinha sombra, essas coisas que a gente ficava, levava um lanche para comer. Era muito gostoso, era uma vida, sabe, como criança, adorava aquela vida. Embora a vida de agora seja bem melhor, não é? (risos)
P/1 – Vocês tinham algum medo lá no rio? De ficarem no rio ou o caminho até o rio?
R – Não, não tinha porque não era longe e o caminho também não era longe, era limpo, dava para a gente ir.
P/1 – Enquanto vocês lavavam roupa, vocês cantavam?
R – Não, a gente ficava brincando. Às vezes, a gente... Como hoje em dia se pesca, então... Tinha tipo uma peneira, a gente jogava no rio, aí pegava camarão, pegava peixinho. Aí, a gente já trazia para casa. Ficava o dia inteiro lavando, quando voltava já vinha com a mistura pronta para o jantar. Era muito bom, era divertido.
P/1 – E para dormir, como é que vocês se dividiam na casa? Onde vocês dormiam?
R – Bom, tinha cama. As meninas dormiam todas num quarto, porque aí cada um tinha seu quarto. E os meninos dormiam em outro. Então, fazia aquela cama grande e dormia todo mundo junto. Tinha um banheiro ao lado da casa, não era dentro de casa, mas era ao lado. Um banheirinho simples, com uma privada, e aí não tinha esse negócio de descarga, a gente pegava água e jogava. Aí, depois, a vidinha foi melhorando. Depois que veio para cá, aí já foi outra coisa, não é?
P/1 – E a senhora chegou a conhecer seus avós?
R – Conheci só por parte de mãe, só avó. Avô não conheci, nem da mãe e nem do pai. Mas a gente já grande, a mãe do meu pai morou muito tempo junto com a gente. Aí, depois que a gente veio para São Paulo eles ficaram lá na Bahia, depois não voltei mais. Meus irmãos, alguns voltaram, mas eu fui uma que nunca voltei. Eu lembro, mas não tenho vontade de ir para lá. Porque agora já virou cidade, essas coisas. Eu tenho ainda tio, primos que moram para lá, mas a vida para mim aqui é outra coisa.
P/1 – Por parte de mãe, a senhora conheceu a avó?
R – Das duas partes, de mãe e de pai.
P/1 – A senhora sabe o nome de todo mundo, dos avós?
R – A avó eu lembro que se chamava Ana, e da minha mãe se chamava Maria.
P/1 – Ah, um mix!
R – (risos) É. Agora, os avôs nem da parte do pai, e nem lembro também o nome. Porque a gente nasceu, meu pai já não tinha o pai dele e minha mãe também já não tinha. Então, se eles comentaram... Mas a gente acaba esquecendo.
P/1 – E a avó por parte de mãe, que era de Sergipe, a senhora tinha contato com ela?
R – Tinha porque ela morou um tempo conosco. Não, por parte de pai. Agora, por parte de mãe, todo fim de semana a gente ia passar o dia com ela, a gente adorava! Porque, sabe avó? O que ela tinha, ela guardava para dar para os netos, quando os netos chegavam no fim de semana.
P/1 – O que ela guardava?
R – Frango, essas coisas. Nossa, eu adoro frango e peixe, é a comida que eu mais como na vida! Até quando eu estou com o Leo, que eu viajo muito com ele, ele reclama que a minha comida é frango e peixe. Mas eu falo: é o que eu adoro, eu como com prazer! Nossa, adoro um peixinho assim grelhado com uma saladinha e uma comida.
P/1 – E como era a casa dela, da sua avó?
R – Era uma casa simples também, como a nossa também. Das duas, não é?
P/2 – E como foi esse tempo que a avó da senhora morou com vocês? A senhora tem alguma lembrança?
R – Não, até aí não lembro muito não. Só sei que ela morou, mas sabe, avó por parte de pai não é como de mãe. De mãe já é mais bajulada não é? A única coisa é que do pai a gente sempre reclamava que ela dava bronca na gente! Agora, de mãe é diferente, tudo que vem do lado da mãe é mais gostoso! Do pai também é, mas da mãe, não sei por que é bem diferente.
P/1 – E por parte do pai, qual é a cidade da Bahia?
R – Isso aí eu já não lembro, porque eu vim de lá muito pequenininha, já não lembro mais. E desde que eu vim para São Paulo, aí não voltei mais para lá. Porque nós moramos em Rio Grande da Serra e depois eu conheci aqui a família da Clarice e sempre fiquei morando com eles. Eu tenho meus irmãos, tenho sobrinhos, que eu já sou tia-avó. Eles moram todos em Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra. Todo mundo tem suas casas, a vida já é outra. Sobrinhos já casados, e é gostoso.
P/1 – Posso fazer mais perguntas da infância da senhora?
R – Se eu lembrar!
P/1 – (risos) Lembra sim! A senhora falou um pouquinho, mas fala um pouco mais sobre as brincadeiras que a senhora tinha com seus irmãos.
R – Ah, o meu pai... É engraçado... Meus irmãos adoravam fazer gangorra, não sei se você lembra?
P/1 – Mas explica para a gente o que é.
R – Gangorra é como as gangorras de agora, mas não era gangorra como se faz. Cada um fazia... Punha aquela coisa e, do lado, punha os paus. Como hoje em dia a gente tem as gangorras. Mas era gangorra que a gente mesmo fazia. Adorava. E eu sempre fui que, de tudo, eu grito! Se eu vejo uma coisa, já dou aqueles gritos e todo mundo vem pensando que aconteceu alguma coisa. E meus irmãos sempre me expulsavam da brincadeira, porque tudo eu gritava! E a minha mãe vinha de lá correndo saber o que era. E meus irmãos... Eu tenho um irmão, que ele era terrível. Terrível assim, gostava de brincar. Ele adorava pegar sapo e aí ele punha na gangorra, ele batia do outro lado e o sapo voava bem longe! E aquilo, eu dava aqueles gritos! E minha mãe não queria que fizesse essas brincadeiras. Aí ela vinha e meus irmãos sempre me expulsavam, porque diziam que eu era desmancha-prazer, não é? Que eles estavam brincando tão felizes e eu sempre dava... Às vezes, à noite, ia brincar assim ao lado da casa, com lanterna, com alguma coisa, e eu sempre estava gritando. E meus irmãos achavam ruim. E eu ficava chateada porque eu era sempre expulsa da brincadeira! Mas era muito gostoso. O meu pai tinha cavalo, imagina, os três mais velhos montavam, todos os três num cavalo só. E a gente não imaginava o perigo. Hoje em dia, quando eu vejo uma criança montada num cavalo, eu já fico... E a gente montava ao contrário, em vez da cabeça estar para a cabeça do cavalo, a gente fazia, sabe... Coisa de criança! E o cavalo era muito mansinho, ele ficava ali esperando a gente fazer o que quisesse! Era muito gostoso, sempre brincamos juntos assim.
P/1 – O cavalo tinha um nome?
R – Se tinha, eu nem lembro mais! (risos) Meu pai criava porco, eu adorava ir lá no chiqueiro dos porcos, pato, todos esses bichos minha mãe sempre criou em casa. Porque, ao invés deles comprarem, criavam, já era para a gente mesmo comer. Os pintinhos, pequenininhos, meu pai fazia plantação de milho... Tanta criança, não tinha brinquedo, e nós adorávamos ir lá na roça para pegar as bonecas de milho. Você sabe o que é? É o milho quando tem a espiga, então ele tem aquele pelinho rosa, amarelinho, depois que cria o grão do milho. Então, nós íamos lá na roça, a espiga mais bonita que a gente tirava para dizer que era boneca. A gente se divertia sozinha, era gostoso, infância gostosa.
P/1 – E ainda na infância, a senhora chegou a estudar?
R – Muito pouco, só fui até o terceiro ano. Tanto que eu assino só o meu nome, faço um pouquinho de conta, não leio muito, sempre eles fazem muitas coisas para mim. Os meus irmãos todos, os meus sobrinhos. Mas eu, quando era criança... Porque eu gostava... Como eu tinha dificuldade para as coisas, eu preferia ficar mais em casa. Hoje eu me arrependo, que eu deveria ter sido mais aberta, ter falado. Porque, às vezes, eu ia à escola, não entendia o que a professora falava, mas eu tinha vergonha de perguntar. Então você vai ficando para trás, não é? Mas faz muita falta a leitura para a gente.
P/1 – E quando a senhora era criança, a senhora queria ser alguma coisa quando crescesse?
R – Não, nunca tive esse sonho alto assim. Agora, depois de adulta eu tenho uma vida que, às vezes, eu brinco com eles: de onde eu vim e onde eu estou! Quer dizer que as coisas foram chegando para mim, sem eu ter aquela coisa... O pessoal fala, de querer sem conseguir. Hoje não, hoje eu tenho uma vida que eu não pensei, para minha idade... De onde eu vim, o que eu faço. Os passeios que eu faço com eles. Porque eu estou com eles desde pequenos, onde eles vão, eles me levam. Seja para jantar... Geralmente eu que recuso, às vezes, eu não quero ir, porque eu gosto de ficar em casa, adoro ficar, e ele reclama, não é? Que eu não vou. Porque o Leo, ele vive aqui em São Paulo e em Bragança. Então, eu fico entre Bragança e São Paulo. Quando ele vem para São Paulo, que a gente vem no fim de semana, ele quer que eu saia para jantar com eles, não sei o quê. Mas eu gosto de ficar em casa. Aí, ele reclama. Mas eu adoro. E ele tem os filhinhos dele, os filhos são uma graça!
P/1 – E a senhora falou que a mãe não contava muita coisa para vocês, não é?
R – Não, tudo que eu aprendi foi com o tempo. Mexer na cozinha... Eu gosto de mexer na cozinha, mas isso eu aprendi sozinha. Com o tempo, a gente vai vendo as pessoas fazendo, a gente procura... Porque essa minha irmã, a Maria, ela cozinha muito bem. Então, ela ia fazendo, ela explicava para a gente, hoje tudo que eu sei... Eu sei, se eu estou em um lugar, se não dá para entrar, eu sei esperar. Mas nunca aprendi... A minha mãe deu educação para a gente, mas a gente viveu muito fora trabalhando e a gente aprendeu. Você chegar num lugar e ver se você pode entrar, se não pode. Se a pessoa está falando alguma coisa, você tem que escutar, conviver com as pessoas sem brigar. Isso, a gente foi aprendendo com o tempo. Hoje, eu vejo que as crianças respondem para a mãe, para o pai, mas a gente era de uma educação que a gente nunca fazia isso. Se tivesse um mais velho falando, a gente esperava para depois a gente falar. Mas hoje em dia é diferente, e a gente tem que acostumar também, não é?
P/1 – E quando a senhora foi crescendo, como foi ficar mocinha? A senhora sabia o que estava acontecendo?
R – Sozinha eu aprendi. Eu vi que precisava usar forrinho, essas coisas. Mas nunca cheguei para minha mãe para dizer. Ela percebeu, mas nem perguntei e nem ela também falou nada para a gente.
P/1 – E quando o pai da senhora veio para São Paulo, a senhora lembra em casa como foi essa decisão? O dia em que ele foi?
R – Sim, porque ele achava que tinha que vir, porque já tinham vindo uns primos dele, foi mais fácil depois buscar a família, eles decidiram. A minha mãe falou: “Tá, nós ficamos aqui, depois você volta e a gente vai junto”. Ele trabalhou um tempo, depois voltou, conseguiu o dinheiro da passagem para ir e para voltar. Aí, voltamos todos.
P/1 – E nesse tempo em que ele ficou fora, vocês se comunicavam com ele?
R – Ah sim, ele escrevia, essas coisas. Porque não existia telefone, essas coisas. Aí ele escrevia, minha mãe também escrevia. Eu tinha uns primos, por parte de mãe, que moravam em Santos, então eles entraram em contato e escrevia para eles.
P/1 – E quem lia a carta quando chegava?
R – A minha mãe, minha mãe lia muito bem. A minha mãe é quem lia e ela mesmo é quem escrevia para o meu pai de volta.
P/2 – E a senhora se lembra quanto tempo vocês tiveram que esperar para vir para São Paulo?
R – Esperamos acho que um ano para poder vir para cá. Depois, meu pai foi e trouxe a gente. E a gente veio, de lá para cá viemos de trem. Então, a gente dormia na estação mesmo, quando o trem parava. Faz de conta que a gente chegou aqui, aí tinha que parar aqui e pegar outra condução. Quando a gente chegava daquela, o outro já tinha partido para São Paulo. Então a gente, com mala, com tudo, ficava ali na estação esperando o próximo que viesse. Como a rodoviária hoje em dia. E a gente ficava ali mesmo esperando para pegar o próximo para vir para cá.
P/2 – E estavam quantos nessa viagem?
R – Nessa viagem... Três... Cinco. Porque depois nasceram mais três aqui. Viemos eu, a Maria, a Isabel, o José e o Roberto. Depois aqui nasceram a Fátima e a Lúcia.
P/1 – E ainda antes de vocês chegarem aqui em São Paulo, como era o momento de chegada da carta do seu pai? Como vocês sabiam que havia chegado uma carta? Como era ler?
R – Porque a minha mãe lia para a gente, e quando ela fazia a outra, ela também lia. E a gente dizia que estava com saudades, queria que ele voltasse para buscar a gente. Porque a gente estava lá, ansiosa, a gente sonhava vir para São Paulo, achava que era outro mundo, que, realmente, foi outro mundo. Porque a vida da gente mudou muito!
P/1 – E tem alguma carta do seu pai que você lembra do que estava falando?
R – Não, não lembro. Porque, nesse tempo, lia a carta, depois jogava fora. Ninguém ficava mais. Que hoje em dia, você guarda as coisas.
P/1 – E como foi ficar sabendo que vocês iam vir para São Paulo?
R – Porque quando meu pai saiu de lá, ele já saiu com essa intenção de voltar para pegar a gente. Então, já sabia. Por isso que a gente ficava ansiosa, porque para a gente, em duas semanas ele já ia estar lá. Esperar um ano foi muito tempo, não é?
P/1 – E quando vocês tiveram a certeza do dia que vocês iam viajar para São Paulo, a senhora lembra desse dia?
R – Foi muito feliz. Aí, a gente não tinha todos os documentos, só tinha registro de nascimento. Fomos todos... Porque disse que precisava, fomos até o Centro da cidade para tirar carteira para poder vir para cá. Aí, a minha mãe preparou mala, essas coisas, comida... Veio toda a comida, porque ele não ia pagar comida para todo mundo. Aí, a minha mãe já preparou comida, lanche, essas coisas para a gente comer. O máximo que ele comprava era uma água, uma coisa para a gente no caminho. Mas o resto, a comida, minha mãe já trouxe de lá mesmo.
P/1 – E o que vocês trouxeram na mala, sem ser a comida?
R – A roupa, só trouxemos a roupa. Aqui ele já tinha alugado uma casa e comprou uma cama para cada. Comprou umas duas, três camas porque aí punha no quarto e já dormia todo mundo junto. Já deixou uma casinha alugada, que era onde ele já vivia. E chegamos aqui. Os que podiam ir para a escola, iam. E os que não iam, ficavam em casa. E a minha mãe começou a ajudar, trabalhando, lavando roupa para a vizinhança.
P/1 – Foi quanto tempo de viagem?
R – Uma semana. Porque é muito longe. Vinha sempre parando e, à noite, não viajava. Então, foi uma semana. Aí, quando nós chegamos aqui... A gente estava num lugar quente, sem blusa, Nossa, que frio que a gente sentia, meu Deus do céu! Então a gente quase... Nas primeiras semanas ficava dentro de casa. Até meu pai comprar roupa de frio para todo mundo, a gente ficava em casa, ficava enrolada nas cobertas. Porque agora São Paulo não faz mais frio como fazia antigamente, não é? Agora, quando fala que está frio, está quase calor, porque depende... A pessoa que sente calor, não é? E foi isso aí.
P/1 – E qual foi a impressão da cidade, o que a senhora achou quando chegou aqui?
R – Adorei, gostei. É diferente, você vê... Porque a gente morava no interior, você não vê condução passar toda hora - trem, ônibus, todas essas coisas. Metrô... Não, Metrô veio depois. Mas tinha bonde, não é? Lembra? Bom, acho que não era da sua época! (risos) Então, como hoje tem o elétrico, tinha os bondes. Porque ele andava... Ele era abertinho e, dependendo do lugar em que você ia descer, tinha uma cordinha que puxava, o maquinista parava e você descia. Mas, para lá onde a gente... Agora não, que já tem Metrô, essas coisas, mas a gente ia mais de trem. Daqui de São Paulo, quando a gente vinha, pegava o trem que desce para Paranapiacaba, Rio Grande da Serra. Isso aí você deve conhecer, não é? Então... E eu já morei muito tempo em Rio Grande da Serra, mas nunca fui para Paranapiacaba, engraçado!
P/1 – E como era essa casa em Rio Grande da Serra?
R – Casinha normal, como agora, de tijolo, com assoalho. Meu pai comprou um fogão, mesa, cadeira… E, já era diferente, sofá! Não era aqueles sofás... Era um sofazinho humilde, mas já era diferente. Guarda-roupa, tudo diferente. Foi muito bom.
P/1 – E a senhora lembra do dia em que sua mãe falou que vocês iam começar a trabalhar?
R – Olha, a gente mesmo... Minha mãe trabalhando, e essa moça falou: “Olha, tem uma pessoa em São Paulo que está precisando de uma moça para trabalhar”. Mas em vez de vir minha mãe, meu pai é que veio conhecer a família com quem a gente ia ficar. Então, fim de semana, a gente ia para casa. Trabalhava durante a semana e tinha folga fim de semana. Depois, eu fui ficando tão acomodada que preferia ficar no serviço a ir para casa! (risos) Aí, eu trabalhava junto com a Maria, preferia que ela saísse de folga e eu ficasse. Eu sempre gostei, sempre fui caseira, é uma coisa impressionante.
P/1 – Mas a senhora lembra do primeiro dia em que a senhora foi trabalhar?
R – Eu lembro. Nossa, quando eu trabalhei o dia inteiro, maravilhoso, uma semana. Mas quando chegava à tarde, Nossa, dava uma tristeza, eu chorava, dormia a noite toda chorando. Porque eu tinha vontade de voltar para ficar junto com meus pais. Mas, ao mesmo tempo, eu sabia que precisava trabalhar para ajudá-los. Eu chorava com saudade de ir para casa, mas não queria ir para casa. Nossa, até hoje eu lembro... Às vezes eu acordava... Sabe quando você acorda soluçando? Porque eu dormia chorando e acho que, no meio da noite, eu acordava, estava soluçando. Mas não queria ir embora. E esse serviço... Porque agora eu não estou mais trabalhando, eles me tratam como se fosse uma família. E eu... Nem sei o que eu ia falar!
P/1 – (risos)
R – (risos) Esqueci agora!
P/1 – A senhora estava falando que nessa casa...
R – Tem hora que me dá um branco. Às vezes eu esqueço o que eu vou falar. Mas eu sei que era muito bom, viu?
P/1 – E a senhora começou a trabalhar com a sua irmã. Como era o dia a dia? O que vocês faziam, que idade vocês tinham?
R – A gente limpava a casa, lavava a louça, minha irmã fazia a comida, porque a avó da Clarice era uma polonesa que veio da Polônia, e ela quase não falava Português. E ela, junto com a minha irmã, ia explicando as coisas e minha irmã falando Português. Aí, ela aprendeu a falar. Ela foi ensinando e a gente foi aprendendo. Aí, depois, a Maria ficou um bom tempo - que é essa minha irmã - depois ela saiu. Mas é isso que eu ia falar: eu nunca saí. Continuei. Quer dizer, desde quando eu comecei a trabalhar até hoje, é a mesma casa. Só perdeu a mãe e também o pai, mas eu continuo com os filhos, com a família mesmo. Porque toda a família, por parte de pai e de mãe deles, todos me adoram. E eu gosto de todos eles.
P/1 – E quando você voltava para casa, o que você fazia no final de semana?
R – Eu ficava, sabe... Era folga, aí ficava junto com a minha mãe, essas coisas. Quando era à tarde... Ou eu voltava no domingo à tarde, ou voltava na segunda de manhã. E aí ficava a semana inteira, aí só fim de semana. E, conforme eu recebia o salário, eu levava para minha mãe, aí minha mãe dava um tantinho para a gente e o outro ela ficava para ajudar a pagar as contas. Depois que a gente vai ficando maior, vai virando dona de si, em vez de eu dar para ela para depois ela dar para mim, eu já ficava com o meu e dava o quanto eu achava que tinha que dar para ela. E eu sempre fui econômica, sempre fui fazendo o meu pezinho de meia. Aí, depois, eu fiquei trabalhando, porque era o pai da Clarice quem pagava o meu INSS, aí chegou um tempo, ele disse: “Olha, Ana, não adianta mais você pagar, porque não é mais por idade, o seu já é tempo de serviço”. Eu já me aposentei, já faz muitos anos que eu sou aposentada.
P/1 – E a senhora se lembra quando decidiu parar de visitar a sua família?
R – Mas eu não parei assim. Fim de semana, quando eu resolvo que quero ir, aí eu vou, fico dois, três dias. Porque eu estou assim um tipo que não são eles que dizem: “Você vai sair hoje”. Eu digo: “Olha, vou ficar tantos dias fora”. Aí eu vou lá com as minhas irmãs, passo o dia com os meus sobrinhos. Mas eu moro mais aqui em São Paulo do que lá, junto com a minha família. Mas não perco contato, porque eu falo com eles direto.
P/1 – E ainda nesse comecinho em que você trabalhava com a sua irmã lá na casa, onde vocês dormiam?
R – Sempre teve o quarto da gente, dentro da própria casa. Aí nós duas dormíamos num quarto - eu e a Maria.
P/1 – Como é esse quarto?
R – Sempre... Se o quarto fosse pequeno, era cama beliche. Quando dava para fazer duas camas, eram duas camas. Aí, depois, eles também foram mudando de casa e eles já fizeram um quarto para cada uma. Mas a gente sempre dormindo dentro de casa, não no quintal, como tem alguém que põe para dormir no quintal, qualquer coisa. Sempre a gente fez parte da família.
P/2 – E como que foi quando a irmã da senhora não ficou mais trabalhando nessa casa, a senhora sentiu falta dela?
R – Eu senti. Ela ficou uns tempos sem ficar junto, eu senti falta. Porque aí fiquei com outras pessoas trabalhando junto, não é como irmã. Mas depois, ela voltou, Porque o pai da Clarice gostava muito dela. E ela sempre teve contato, não é que ela não estava mais trabalhando que ela perdeu o contato. Aí, depois, quando a mãe da Clarice faleceu, ele pediu para ela voltar, ela voltou e ficou o tempo todo. Aí, ela sempre dizia que quando o pai da Clarice falecesse, ela parava de trabalhar. Foi o que aconteceu com ela. Ela parou de trabalhar, mas continua com o salário dela, porque o pai dele já deixou que enquanto eu e a Maria existir, é para eles cuidarem da gente. Então, quer dizer que ela não está mais trabalhando, mas tem o salário dela.
P/1 – E o que a senhora fazia para se divertir?
R – Eu fazia nada! (risos) Sempre gostei de ficar em casa. Assim... Sempre trabalhava com outras pessoas, quando a Maria não estava junto, e as meninas sempre diziam assim para mim que elas gostavam de ir em baile, essas coisas, à noite. E falavam: “Um dia, você vai”. Mas nunca fui a um baile, você acredita? Nem noitada, essas coisas, nunca gostei. Sempre fui de ficar em casa.
P/1 – Mas a senhora já se apaixonou?
R – Não, nunca tive namorado na minha vida, nem apaixonei, nada. A minha vidinha sempre foi assim, de ficar com eles trabalhando, sabe? Nunca tive essa ilusão. Eu sempre brinco: “Eu não nasci para casamento e nem nasci para ser freira!” (risos)
P/1 – Eu queria que a senhora contasse como foi aposentar. O que passou na cabeça da senhora, quais os planos que a senhora pensou?
R – Eu sempre pensei: “Vou me aposentar, mas eu quero continuar trabalhando”. É o que eu faço hoje. Eu não faço serviço pesado, mas faço compra, as compras chegam, eu gosto de arrumar todas as compras nas prateleiras, eu gosto de arrumar geladeira, gosto de arrumar um armário. Eu gosto de mexer com as plantas, essas coisas. Eu gosto de ver se alguém varreu ou se guardou a vassoura direito, eu fico lá vendo os armários, abro tudo quanto é armário! (risos) E as pessoas que trabalham junto, eu adoro todas, gosto de todas, que são as pessoas de idade, pessoas que gostam de trabalhar.
P/1 – Porque a senhora, a princípio, não precisava mais trabalhar na casa dessa família?
R – Não, não preciso, mas eu continuo com eles. A única coisa que eu não consigo parar é de fazer compra. Eu fico doente se não tiver que sair, fazer uma compra, guardar. Acho que eu não sou eu, não me sinto... Eu adoro!
P/1 – E teve um momento em que a senhora percebeu que já era parte da família? Teve um momento especial?
R – Olha, desde... Acho que com uns três anos eles já falavam isso mas eu sempre achando que eles falavam, mas que eu tinha que me comportar como uma pessoa que trabalhasse na casa. Porque, até hoje, tem o Leo, ele chega, às vezes eu já estou no meu quarto, porque quando dá umas dez, onze horas... Nós moramos em casa, aí eu digo: “Olha, pessoal, eu vou me recolher.” Aí eu vou lá para o meu quarto e a hora que for, que ele chegar, à noite, ele passa no meu quarto, coisa impressionante! As crianças, eles não vão deitar se eles não entrarem lá para dar boa noite. Então, o carinho que eu recebo deles é uma coisa impressionante. Eu não imaginei que, na minha velhice, eu ia ter tudo isso. Porque estou feliz de receber tudo isso.
P/2 – E a senhora estava trabalhando há quanto tempo quando a mãe das crianças faleceu?
R – Porque eu comecei com eles eu acho que tinha uns quinze para treze anos, já fazia muito tempo.
P/1 – E a senhora se lembra desse momento em que ela faleceu?
R – Ah, sim. Porque ela, para mim... Era como se fosse uma amiga. Tanto que, quando ela não estava em casa, que alguém entregava uma coisa, ela dizia para a pessoa: “Olha, você chega lá e fala com a minha irmã”. Às vezes tinha gente que levava aquele susto, porque pela minha cor e pela cor deles, e eu ser irmã dela, não é? Então sempre... E quando ela ficou doente... Porque a doença dela foi assim durante um mês, foi rapidinho, quando ela estava... Porque ela foi para o exterior e ela disse para mim: “Ana, você cuida do Leo”. Porque o Leo ia fazer dezesseis anos quando a mãe dele faleceu, era adolescente. E a Clarice estava com vinte anos. Ela falou assim: “A Clarice já está casada.” E o marido dela, disse: “O marido cuida da minha mãe”. Que era a mãe dela, porque ela ainda tinha mãe. E eu escuto essas palavras até hoje no meu ouvido. Ela me chamou para ajudar a fazer a mala dela e ela falou assim: “Olha, você não me abandona o Leo.” Que é o caçula. Que agora ele está com cinquenta anos! (risos)
P/1 – E como foi depois da morte dela?
R – Foi muito triste, Nossa, a casa ficou vazia! E o Leo adolescente, menino adolescente é difícil não é? Foi muito triste. E ela tinha as cunhadas, e as cunhadas sempre brincavam comigo: “Ana, você não teve filho, mas o seu dom é esse, de cuidar dos filhos dos outros”. E eu tenho muito carinho por eles e sinto que eles também têm por mim, é muito gostoso. Essa menina que me deixou aqui é filha da Clarice, e ela está fora. Ela casou, agora foi para a Alemanha. Nós chegamos aqui, ela ligou. É muito gostoso, muito bom.
P/1 – A senhora chegou a voltar para Sergipe?
R – Nunca! E não tenho saudades (risos). Nunca voltei. A minha família, irmã, essas coisas, ninguém voltou. Primo, essas coisas, todos foram, mas nós nunca voltamos. Minha mãe faleceu aqui, meu pai faleceu aqui e nós nunca voltamos. E a minha mãe também, desde que veio para cá, nunca voltou para lá. A mãe dela faleceu, faleceram as irmãs que ela tinha, depois veio uma tia dela, ficou morando com a gente, também faleceu aqui. Ela morava junto com a minha mãe porque era solteirona, aí ficou junto. Da minha família, todo mundo casou. Ficamos eu e a Maria. A Maria é como se fosse uma mãe, porque a sobrinhada está toda atrás dela! (risos) Fim de semana você vai lá, ela está na beira do fogão fazendo comida para todos. Todos que vão embora, ela faz a marmitinha para levar. E aquele que não aparece, ela cobra.
P/1 – Hoje, em que momentos a senhora se reúne com os seus irmãos, sobrinhos?
R – Olha, geralmente fim de ano, Natal, essas coisas, está todo mundo junto. Eu que quase não vou também. Quando chega, ou eu vou na véspera de Natal ou senão vou no dia de Natal. Mas todo mundo fica junto, os irmãos. Aí é até engraçado, porque ficaram três em casa, que sou eu, a Maria e a Isabel. Então, os outros são todos casados, eles vêm todos em casa, que parece que nós é que somos a mãe deles. Vêm os sobrinhos, filho do sobrinho, todos vêm em casa. Porque até hoje, a Maria e a Isabel continuam na casa que era do meu pai. Porque depois meu pai comprou terreno, fez uma casa grande e até hoje elas moram juntas. Aí vem todo mundo em casa. E eles saem todos de marmitinha, que parece que a Maria é a mãe deles! (risos)
P/1 – E se a senhora não passa essas datas com a sua família, passa com quem?
R – Com o Leo, aqui com eles mesmo. Geralmente, a gente nunca passa mesmo aqui em São Paulo, que sempre estamos no exterior, qualquer coisa.
P/1 – Eu queria que a senhora contasse um pouco sobre... A senhora acompanha muito ele, não é? Que viagens que você faz, acompanhando a família?
R – Eu acho que todas que é para ir com a família. A gente vai para Miami, para Disney, de navio, todo lugar que ele vai. E depois que a gente chega lá, ele vai para outra cidade, porque ele tem apartamento lá. Aí, a gente vai para outros lugares. Parque da Mônica, todas essas coisas lá, os passeios, porque lá tem muito parque para passar o dia. Vamos para Disney. Aí, em Disney, ele geralmente aluga hotel para a gente ficar, porque ele tem residência fixa em Miami. Mas aí nunca fica as férias todas em Miami, sempre fica na redondeza, nos lugares por lá. Vamos para Orlando, qualquer lugar que ele resolve passar as férias, aí a gente vai junto.
P/1 – E o que a senhora faz nessas viagens?
R – Nada! (risos) Porque aí só acompanho para tudo quanto é lugar, os passeios e as coisas. Teatro. O programa que ele fizer para os filhos, eu estou junto. Ele ainda brinca que quando a gente chega na fila, então eu que puxo a fila porque eu sou a mais velha, tenho direito! Porque quando a mulher dele estava grávida, então éramos nós duas. Agora, às vezes tem um monte de gente, aí vai a fila toda e o pessoal fica reclamando, porque é só uma pessoa de idade e está a fila toda, não é? É muito gostoso.
P/2 – E a senhora se lembra da primeira viagem que a senhora fez para o exterior?
R – Eu lembro.
P/2 – Como foi?
R – A primeira viagem foi com a Clarice. Aí, a Clarice falou assim: “Ana, nós vamos para Miami”. Eu falei: “Não, não vou”. Nunca tinha viajado de avião. Aí a Clarice foi e falou para o Leo. O Leo chegou em casa, chegou bufando! (risos) “Mas como, por que você não vai viajar?” Eu falei: “Não, não vou”. “Ah, você vai!” Aí eu fui. Agora eu brinco com ele: “Desde a primeira vez que eu peguei o gosto, agora mesmo que vocês não queiram que eu vá, eu estou dentro da mala!” Aí ele fala assim: “Mas que coisa errada que eu fiz, não é?” (risos) Mas ele faz para encher o saco! (risos)
P/2 – E a senhora teve medo do avião?
R – A primeira vez eu tive. Não foi medo, mas como eu nunca tinha viajado, eu falei: “Deve ser ruim, não é?” Mas é muito boa a viagem de avião, eu adoro.
P/2 – E qual foi a viagem que a senhora mais gostou, o lugar que a senhora conheceu?
R – Todas! Não tenho diferença. São Paulo eu conheço bem pouco, eu conheço mais fora, passeando, do que aqui!
P/1 – A senhora tem vontade de conhecer algum outro lugar fora?
R – Eu tenho, muitos lugares! (risos) Tanto que agora que a Mônica está lá, acho que agora nas férias a gente vai para lá.
P/1 – Aonde?
R – Ela está na Itália, a Mônica. Acho que agora nós vamos para lá. Agora uma coisa que eu não sei se vou, que ele está falando de ir para Israel, mas dizem que a viagem é muito longa. Agora não sei. Essa, ainda não decidi. Porque eles estão falando em ir para lá neste ano. São muitas horas de avião, não é? E eu não sei se os aviões de lá são iguais aos daqui! (risos)
P/1 – Muito bem, acho que a gente está caminhando para o fim. Alguma pergunta, Caio, Laura?
R – Eu acho que já terminamos, já ficamos muito tempo aqui! Já vai dar três horas! Vocês gostaram do papo, hein?
P/1 – (risos) Dona Ana, a gente está quase caminhando para o fim. Tem alguma coisa que a senhora queira falar, que a gente não perguntou?
R – Não, acho que agora não tem mais nada, acho que o que eu lembrei, já falei tudo.
P/1 – Então eu tenho mais duas perguntas. Como foi para a senhora vir aqui hoje contar sua história? O que a senhora achou?
R – Para mim não foi difícil, porque a Mônica, quando foi viajar, aí teve a despedida, não sei o quê. Aí ela disse: “Ana, eu combinei uma entrevista para você ir, você vai?” Eu falei: “Vou”. Mas não pensei que seria tão rápido, porque, sabe, eu gostei da ideia, não achei ruim não. Aí, ontem, a Clarice me ligou, disse: “Ana, a entrevista é amanhã”. Eu falei: “Mas como?” Porque eu estava em Bragança, falei: “Então você tem que dar um tempo, porque acho que nós vamos para Juqueí”, que é hoje. Aí, depois, quando chegou a senhora do Leo, eu perguntei para ela - ela estava na rua - perguntei para ela como estava o programa. Ela disse: “Amanhã” – que é hoje – “Eu vou descer com as crianças, mas o Leo disse que só vai sexta-feira” – que é amanhã. Eu falei: “Mas eu tenho a entrevista com a Clarice”. Ela disse: “Tudo bem, aí você vai, eu desço para Juqueí com as crianças e você fica em São Paulo e desce com o Leo amanhã”. Porque amanhã é aniversário do pai da Vivi, ele mora lá em Juqueí, então amanhã todo mundo quer dar um jantar, ele está convidando para um jantar amanhã. Então, todas as festas em que está toda a família, eu estou dentro! (risos) Mesmo que eu queira ficar de fora, porque quando ele me convidou, o Sérgio, ele disse assim: “Você vai!” Aí a Vivi, que é esposa do Leo, disse assim: “Se ela não arrumar outra desculpa!” Porque ela fala que quando eu não quero ir nos lugares, eu sempre arrumo uma desculpa. Eu falei: “Não, mas do Sérgio eu não poderia deixar de ir”. Então quer dizer que amanhã eu vou para Juqueí. Vou ficar hoje em São Paulo, amanhã, depois eu desço. Aí, quando eu voltar de Juqueí, eu fico em Bragança. Aí eu sou sacoleira, uma semana estou em São Paulo, outra semana estou em Bragança. Mas é gostoso essa vida que a gente leva, viu? Você nem vê o tempo passar, você nem vê que está envelhecendo, é muito gostoso.
P/1 – E como é que a senhora comemora seus aniversários?
R – Sempre junto com eles, porque o meu é sempre dia dez de julho e dia dez de julho é férias das crianças. Às vezes eu estou viajando. Já cheguei a passar meu aniversário dentro de avião! (risos) Quer dizer que eu passo sempre com eles. E eles sempre preparam uma festa para mim, festa surpresa. Então, é muito bom.
P/1 – Então eu tenho uma última pergunta.
R – Sempre tem mais uma! (risos)
P/1 – Prometo que agora é a última mesmo. Quais são seus sonhos?
R – Ah, meu sonho. Eu peço a Deus, todo dia que eu levanto, bastante saúde para viver mais. Só isso que eu sonho. Porque o resto está tudo realizado. Só quero saúde. Porque aí... Para eu viver, viver mais, junto com essa turma com a qual eu vivo, muito gostoso.
P/1 – E por que a senhora quer viver mais?
R – Porque eu acho que a vida é boa! (risos) A vida é a melhor coisa que a gente tem na vida. Você amar alguém, ser amada e gostar de você também. É isso que eu gosto, adoro. Todo dia que eu levanto, eu digo: “Meu Deus, mais um dia eu estou de pé”. Para a minha idade e tudo que eu ando, que eu faço, eu me sinto realizada. Tenho saúde. Eu me cuido, vou ao médico, essas coisas. Mas não é só você se cuidar, você sozinha, você faz força para você viver, não dar trabalho para os outros. Porque a pessoa fica doente, dá trabalho, não sei o quê. Não, todo dia eu falo... Porque foi você quem perguntou que religião eu sigo, não é? Eu sou de todas as religiões, todas para mim são iguais, eu me pego em todas! É isso aí.
P/1 – Muito bem, Ana, então em nome do Museu da Pessoa, muito obrigada por ter vindo hoje aqui.
R – Eu agradeço.
FIM
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