Entrevista de Beatriz Virgínia Gomes Belmiro
Entrevistadoras Paula Ribeiro / Isabel Barbosa
09/08/2021
Realização: Museu da Pessoa
Projeto: Mulheres da Maré Dignidade Resiliência e Arte
Entrevista número MDRA_HV006
Transcrição Revisada
00:01:26
P/1 - Boa tarde Beatriz. Primeiramente, gostaria de agradecer a sua participação no nosso projeto, concedendo um depoimento sobre a sua história de vida, trajetória sua e da sua família. Obrigada equipe também pela parceria. Peço por favor, para que você informe seu nome completo e data de nascimento, por favor.
R - Beatriz Virginia Gomes Belmiro, minha data de nascimento é 10 de 01 de 1998, eu nasci na cidade do Rio de Janeiro, município de Belford Roxo.
00:03:50
P/1 - Você conheceu a história do seu nome?
R - Meu nome é o mesmo nome da minha bisavó, o mesmo nome completo dela, só muda um nome do dela, foi meu pai que escolheu, da minha bisavó por parte de pai. Mas eu não conhecia a minha bisavó e nem mesmo ele conhecia a avó dele, ele só falou que ele tinha que colocar, que ele sentiu um chamado e colocou.
00:24:21
P/1 - Sobre seus avós, você conheceu? Tanto avós paternos quanto maternos.Você poderia contar um pouco de suas memórias?
R - Eu tenho mais relação com meus avós maternos, meus avós maternos são de Natal, minha mãe é de Natal, minha mãe é Potiguar. Eu cheguei a viver um período da infância com eles, dos meus 6 aos 8 anos, com a minha mãe também lá, na cidade de Montanhas. Meu avô é pescador, caçador, minha avó trabalha na parte rural também, ela trabalhou muito tempo como merendeira na escola de lá, mas é totalmente voltada para a área rural, plantação, eles vivem disso. Então eu cresci comendo tatu, caças, pesca, meu avô coloca barraca na feira e é a forma que eles vivem, dessa maneira, é uma cidade bem pequena mesmo em Natal.
00:05:25
P/1 - O nome deles, por favor.
R - Então, a gente conhece o pessoal do interior pelo apelido, minha avó chama Maria de Lourdes, mas todo mundo conhece ela como Dona Quinha, e meu avô chama Luiz Gomes, todo mundo chama ele de Zezinho, inclusive na entrada da cidade, tem uma placa enorme com o nome dele, porque ele vende camarão e ele é um dos fundadores da cidade. A cidade não é muito antiga, deve ter uns sessenta anos por aí. É uma cidade bem conhecida, às vezes passa na televisão, onde tem o bolo de metro, a cada ano que a cidade faz ano, ganha mais um metro de bolo.
00:06:07
P/1 - E sobre os avós paternos?
R - Os avós paternos, a minha avó paterna mora aqui na Maré mesmo, mas eu não tenho uma relação com ela. O meu avô paterno eu não conheci, ele morreu muito jovem, meu pai era ainda criança, morreu porque ele era alcoólatra. Então eu não tenho essa relação, mas também são nordestinos, são da Paraíba, mas meu pai nasceu aqui no Rio mesmo. Meu pai nasceu no Rio e inclusive acompanhou o aterramento da Maré, então conheço bastante da história daqui também.
00:06:51
P/1 - O nome dos seus avós, por favor?
R - Eu só conheço o nome da minha avó, que é Rita, mas eu não sei o nome do meu avô, não tenho informações.
00:07:03
P/1 - E o estado? Então nos fale um pouco da sua mãe, do seu pai, essa história de que conheceu o aterramento da Maré, que é interessante também.
R - Minha mãe é Potiguar, como eu já falei, então ela vem pro Rio de Janeiro direto pra Maré, ela vem na década de noventa, no início da maioridade dela, minha mãe fez Magistério lá no Nordeste, então ela trabalhou um tempo com crianças, aí ela chega aqui e trabalhou em creche durante muito tempo. Meu pai é daqui, desde sempre, ele é cria da favela da Maré, então ele acompanhou o processo de aterramento, ele sempre conta a história de que ele foi lá quando inauguraram o aterramento da Maré lá na FioCruz, inclusive tem até um vídeo do Projeto Rio, que mostra esse momento do aterramento, mostra esse momento da inauguração e tudo mais. Então meu pai é cria daqui, ele me conta que morou durante muito tempo, ali na Baixa, que era a primeira rua aterrada. O morro que era o lugar aterrado, onde as pessoas começaram a morar e ele morou do lado, na rua Oliveira, mas andava por isso aqui tudo e então conhecia todos os lugares, essas palafitas.
00:08:27
P/1 - E você sabe o porquê a Maré? O motivo que a sua mãe veio pra Maré? Já tinha familiares aqui?
R - A história do meu pai eu não sei, de como ele veio parar aqui, porque como eu não tenho relação com a família dele, acabei não conhecendo muito sobre, mas eu sei que ela vem da Paraíba com muitos filhos, ele é um dos que nasce aqui. Mãe solo que tem muitos filhos e não tem pra onde ir e vai morar num barraco.
A minha mãe, ela vem pra cá na época com aproximadamente 19 anos, ela vem pra cá por conta de oportunidade, ela queria buscar uma oportunidade, porque ela fez o Magistério lá mas no interior é muito complicado as coisas. Ela acabou atuando muito tempo em casa de família, limpando, cozinhando, ganhando nada, ganhando comida e ficando no lugar. Então ela conversou com a minha avó e pediu pra passar quinze dias no Rio de Janeiro, aí minha avó disse pra ela não voltar e tentar uma oportunidade, então ela veio passar quinze dias com um primo, no Alto da Boa Vista, e não voltou mais. Chegou no Alto da Boa Vista, ela foi trabalhar numa casa de família, ela me contou que não pagaram ela direito, retiveram os documentos dela, ela quis ir embora e teve que pular o muro, e ela não quis mais ficar lá no Alto da Boa Vista. Ela encontrou algumas pessoas que moravam na cidade dela e vieram morar aqui na Maré, foi aí que acolheram ela, no Nordeste nós temos muito isso, é uma cultura muito indígena, falar que todo mundo é parente. Então ela encontra uma turma que é da mesma cidade que ela, mas que morava aqui, por isso que ela veio parar na Maré, e nessa vinda que ela conheceu meu pai também. No que ela veio pra Maré, ela começou a trabalhar no Centro e fazer outras coisas.
00:10:28
P/1 - Você fala da família, fala do Nordeste, como é um pouco dos costumes na sua infância, na sua casa? Era uma influência muito grande do Nordeste, na comida, na música?
R - Era totalmente, minha mãe sempre falava: “Vocês nasceram no Rio mas vocês são nordestinos.”. Então eu cresci muito entendendo essa questão, valorizando a cultura nordestina, até porque a Maré é muito grande e parte dela é povoada por nordestinos. A parte que eu morei da Maré e vivo até hoje, é uma parte com muitos nordestinos. Eu ando na rua e encontro vários parentes, a gente morou um tempo numa ocupação aqui na Maré, que foi a ocupação do Kinder Ovo, foi derrubado na época do Sérgio Cabral, depois ele prometeu umas casas onde hoje é chamada de Marrocos, ele fez algumas casas e minha mãe foi uma das ativistas que lutou pelo direito a casa, pois perderam a casa nesse vai e vem do Kinder Ovo, e essa galera era uma galera muito nordestina também, então virou uma família. A minha rua é esse pessoal, dessa antiga ocupação, a rua que eu cresci, onde são as vilas que eles fizeram nesse projeto social. Então eu cresci comendo muito cuscuz, indo à feira de São Cristóvão, conhecendo as questões nordestinas, onde cheguei a ir para o Nordeste, fui e voltei algumas vezes, então sempre tive isso muito na minha essência, na questão das mulheres nordestinas também.
00:12:11
P/1 - Você tem tatuagens, você tem muitas tatuagens, inclusive você comentou que tem uma tatuagem que é uma cuscuzeira. Porque?
R - Eu tenho essa cuscuzeira, porque eu sempre quis fazer uma cuscuzeira, porque o cuscuz representa muitas questões do Nordeste, principalmente as questões de alimento. A cuscuzeira representa um alimento barato, então com o cuscuz a gente tem várias possibilidades, com leite, com coco, com carne seca, com peixe, com frango, tem bolo de milho que faz com cuscuz, são várias possibilidades e na minha infância eu passei por algumas dificuldades de alimentação, onde a gente sempre tinha o cuscuz que era o mais barato de comprar. eu gosto muito dessas questões com o cuscuz. Minha mãe sempre fala: “Ah, você tomou mamadeira de cuscuz, então ela ficou muito feliz também, quando eu fiz a panelinha de cuscuz e eu falo isso pra todo mundo.” O cuscuz é uma coisa sagrada, na minha casa.
00:13:14
P/1 - A gente vai falar um pouco da sua infância, mas eu queria que você comentasse um pouco sobre religiosidade, na casa dos seus pais. Qual a religião das famílias, você mantém essa religião, ou dos seus avós do nordeste? Conte um pouco.
R - Normalmente a família é católica, né?! Só que a minha casa, sempre foi muito de superstições. Você entra na casa da minha mãe, tem um copo com olho de boi atrás da porta, com àgua. A família é católica, mas minha mãe cresceu no meio do Candomblé, por conta do avô dela, porque a cidade onde minha mãe viveu, era uma antiga fazenda, então teve muitos escravizados que ficaram no entorno, após todo esse processo e continuaram trabalhando por lá também. Então tem várias tradições que são vindas do Candomblé e várias superstições também. A minha mãe tem muito essa questão de algumas coisas que ela trás, que eu sei que são questões do Candomblé e de religiões de matriz africana. Então cresci em casa de rezadeira, tanto benzedeiras católicas quanto rezadeiras de religiões de matriz africana.. Na dúvida eu me levava nos dois, então eu ia sempre nos dois lugares, e na minha infância era um pouco confuso de entender, porque uma reza de um jeito e outra reza de outro, porque uma reza quietinha e a outra canta e pula, eu não entendia muito isso e minha mãe só dizia que era importante e me levava. Mas durante um tempo eu frequentei igreja católica, não por uma questão de obrigações, ninguém nunca pediu pra eu ir, mas por uma questão de grupos de juventude e de sentir acolhida, buscar uma juventude pra ter amigos, era uma coisa assim. Mas os meus pais nunca foram de frequentar muito, durante um tempo eles frequentaram centro espírita, ou Kardecismo, mas hoje eu nem sei mais como estão essas questões. Eles acreditam muito nessa questão do espiritismo, mas é tudo muito confuso e eu prefiro não alegar religião, porque ainda estou nessa busca.
00:15:41
P/1 - Eu queria que você comentasse um pouco sobre a sua infância. Como você passou a sua infância, como era a casa? Você tem irmãos? Como era a divisão da casa, como era a sua vizinhança… Se você puder nos contar um pouco sobre isso!
R - Minha infância foi aqui na Maré, eu tenho um irmão.
P/1 - Você voltou do nordeste com quantos anos?
R - Uns oito anos, fiquei pouco tempo lá, mas cheguei a estudar numa escola lá, mas eu cresci com um irmão mais novo, dois anos e um pouquinho mais novo do que eu, morei nesse Kinder Ovo, mas ele não era nascido ainda, eu era pequenina. Depois todos nós ganhamos nessa casa, a gente ficou um tempo no Nordeste, inclusive, porque nós não tínhamos onde morar e derrubaram a casa, aí a gente volta pra conseguir essa casa. Então tem vários jornais estampados com a minha mãe, várias coisas, porque ela estava reivindicando ali, aí voltamos pra cá, conseguimos a casa, uma casa com uma sala e um quarto e uma cozinha pequena acoplada com a sala e um banheiro. A casa que conseguimos na época, casa sem piso, sem laje, só com o telhado, eu falo que o telhado era de papelão, porque o material é muito ruim. Na época a gente não reclamou de nada, até porque era a casa que nós tínhamos, era um teto, essa casa é no Pinheiro, então não é morro, a rua é plana e tem a vila, que é um conjunto de casas. A gente mora na casa da frente da rua, mas eu cresci nessa vila que são as pessoas que estavam com a gente, reivindicando e tem uma história muito parecida. Eu cresci desta forma, mas a minha memória de infância, sou eu e meu irmão, porque meus pais sempre trabalharam muito e eu sempre fiquei responsável pela casa e pelo meu irmão, desde sempre, sempre fui eu e ele o dia inteiro em casa sozinhos.
00:17:54
P/1 - Você poderia falar um pouco sobre essa militância da sua mãe, por moradia? Porque é uma mulher, na liderança e num momento político.
R - Ela tem várias imagens grávida, inclusive. Ela tem muitos traumas desse período, porque ela conta que foi uma grande humilhação em ter que pedir a casa, o encontro pra pegar as chaves da casa, tem pessoas que até hoje não receberam a casa. Foi prometido duas remessas dessas casas, a primeira remessa receberam e a segunda remessa até hoje não receberam, então tiveram muitas pessoas prejudicadas, nesse vai e vem, e ela conta bastante coisas, sobre ficar na prefeitura virando madrugada, meu pai é gráfico, então ele conseguiu papéis, cartolina, essas coisas, eles se organizavam e faziam os cartazes dessa forma. A minha mãe já vem de um histórico de militância do Nordeste, movimento estudantil de lá, então ela vem pra cá já com essa ideia de que ela tem direitos, e ela pode correr atrás desses direitos. Então quando acontece essa coisa de derrubada das casas, ela é uma dessas pessoas que puxa essa reinvindicação, por isso que a minha mãe é muito conhecida aqui na Maré do outro lado, porque a Maré é muito grande, lá na parte do Pinheiro ela é bem conhecida por lá, por conta dessa época.
00:19:20
P/1 - O termo Kinder Ovo, você sabe como surgiu?
R - Porque era muito pequenininho, muito pequeno, uma casa de um cômodo literalmente, muito insalubre com 1 banheiro para várias famílias, minha mãe dizia que tinha muito rato. Era muito complicado, tem um vídeo que publicaram no Maré Viva, que é uma página aqui da Maré, e então mostra e fala da falta de luz, encanamento ruim e uma situação muito complicada mesmo. Era muito insalubre, ela conta de como eles reivindicavam para fazer um banheiro pra eles, porque ela falava que a situação era bem difícil mesmo.
00:20:06
P/1 - Isso na década de noventa?
R - Não, isso já é ano dois mil mesmo, 2002 por aí.
00:21:35
P/1 - Então Beatriz a gente estava falando sobre a sua infância, né?!. Você até falou coisas muito pertinentes, sobre esse processo de remoção, quer dizer, historicamente a Maré tem história nos anos sessenta das remoções vindas do Esqueleto, da Macedo Sobrinho, Favela do Pinto, mas se você parar para pensar, quantos e quantos movimentos de remoção. Você pertinentemente comentou, uma remoção no interior da própria favela, quer dizer, destrói casas e mantém as pessoas aqui, nas mesmas condições ou condições piores, ou mesmo sem dar uma outra residência. Você falou que quando criança, morava com seus pais e eles trabalhavam. Então como era isso, você cozinhava? Ouviam música, tinha televisão ou rádio, como era essa infância? Iam para a escola, como que era?
R - Eu cresci com meu irmão, sempre foi eu e ele pra tudo, porque meus pais sempre trabalharam muito, mesmo sendo muito perigoso, porque eu comecei a ficar com ele eu tinha 6 anos, minha mãe confiava em Deus e em todos os vizinhos, meus vizinhos sabiam que sempre estávamos sozinhos, qualquer coisa que acontecia os vizinhos interferiam, se tivesse uma operação os vizinhos iam lá em casa, às vezes a polícia revistava a nossa casa, porque eles fazem essas revistas e os vizinhos iam lá em casa e já diziam: “Olha, tem duas crianças aí e a gente vai entrar com vocês”, e os vizinhos sempre foram muito importantes, porque eles sabiam que ficávamos sozinhos sempre, então sempre intervieram. Mas eu sempre fiz muito projeto, comecei a fazer projeto de dança com 6 anos, sempre gostei de arte, teatro, música, e com os 9 anos eu voltei a dançar na Maré mesmo na Casa de Cultura, hoje é o Museu da Maré, eu comecei a ocupar esse meu tempo dessa maneira. Com 12 anos eu fazia um projeto que era “Usinas Cidadanias”, como se fosse uma escola, mas de artes, eu passava o dia inteiro lá, eu saia da escola e ia direto pra lá e lá tinha primeiro tempo, segundo tempo, intervalo, e voltava pra casa de noite. Então eu fazia muitas coisas pra ocupar meu tempo, já que meus pais não ficavam em casa, eu tive essa saída e meu irmão foi pro esporte, ele ficava o tempo todo no futebol, na luta, e eu assim, na dança, na música, me encontrando. No início era muito mais uma questão de gosto mesmo, mas também era na questão de ocupar o tempo, de estar com os amigos, de não estar em casa, eu odiava ficar de férias e era uma coisa que eu não gostava, porque eu sabia que eu tinha que ficar em casa fazendo comida, limpando a casa, cuidando do meu irmão, lidando com aquilo, eu odiava. Então eu sempre fazia colônia de férias, fiz sempre essas coisas assim, mas sempre fomos eu e ele. A gente tinha sim tv, dvd, assistimos muito tv, mas eu sempre fui muito arteira, minha mãe conta. A gente inventava várias coisas em casa, ficava cantando, coisas assim…
00:25:43
P/1 - Quem eram os cantores, ou uma música que vocês cantavam, na época?
R - Eu sempre gostei muito de música brasileira, eu fui cantora de banda de rock por uma tempo aqui na Maré, eu ouvia Cyndi Lauper sempre em casa, eu tinha os cabelos coloridos porque eu adorava os cabelos coloridos dela, e eu queria ficar igual, mas isso é uma influência da minha mãe, ela gostava também desses cantores, a gente ouvia Raul Seixas, Cássia Eller, mas também a gente ouvia músicas do momento, Kelly Key, Floribella, Latino, tudo que dava pra dançar, os funks a gente também gostava bastante, era uma mistura.
00:27:06
P/1 - Você comentou sobre as questões das operações, a importância dessa rede de vizinhança. Algum episódio que tenha te marcado mais, na infância? Talvez algum tipo de violência, alguma situação? É claro que você passou pela situação da casa, da moradia, mas teve um outro episódio que tenha te marcado mais, além da desocupação?
R - Eu falo nas poesias que a favela é um ‘Quilombo Urbano’, porque a organização que a gente tem hoje, é muito desta maneira. Sobre as operações, eu não gosto de comentar muito, porque foram vários episódios, mas já aconteceu da polícia entrar em momentos de operações e entrar lá em casa, então os vizinhos se colocaram muito a frente, então eu costumo trazer isso até para as minhas poesias, essas questão do ‘Quilombo Urbano’.
00:30:56
P/1 - A gente falou da sua infância, você comentou alguma coisa sobre as operações, e a relação com a vizinhança. Conta um pouco, dentro do período da infância, sobre essa casa. Se vocês brincavam na rua? Contar um pouco das crianças na rua. Como é que era?
R - Eu nunca fui de brincar na rua, porque eu sempre estava em casa cuidando do meu irmão, ela falava pra gente não ficar na rua, por cuidados e tudo mais, então a gente ficou em casa mesmo e nos projetos. Mas antes de eu frequentar os projetos, foi mais dentro de casa, então eu nunca tive essa lembrança de brincar na rua. Sobre a questão das operações policiais, isso foi presente na minha infância toda, era muito estranho ter que conviver com aquilo e o medo também, de ir para a escola e acontecer alguma coisa que eu não sei, sempre tinha que ter um time muito bom pra prestar atenção nas coisas, porque era eu e meu irmão, às vezes acontecia situações da polícia chegar na minha casa e o policial chamar meu irmão pra conversar e eu ligar pra minha mãe, pra ela vir do trabalho correndo. Na minha infância, minha mãe trabalhava nunca creche como recreadora, era uma creche no Pinheiro mesmo, então teve uma duas vezes em que a polícia chegou lá e eu consegui ligar pra minha mãe e ela vir, e sempre ela era muito questionada: “porque essas crianças estão sozinhas”?, mas ela não tinha o que fazer, porque essa era a opção. Depois de um tempo, ela começou a levar o meu irmão para o trabalho, durante muito tempo meu irmão ficava na sala com ela, a diretora permitia pela questão do que estava acontecendo. Depois que eu fui ficando mais velha e participando de mais projetos, meu irmão ficava com a minha mãe na creche o dia inteiro, assim nós fomos nos organizando. Teve uma vez que a polícia entrou, eu estava dormindo com o meu irmão, e eles conseguiram abrir a porta. E nesse dia eu não lembro de muita coisa, porque realmente eu estava dormindo, eu tinha 9 anos, os vizinhos entraram com os policiais, aí eles reviram bastante as minhas coisas, reviraram os brinquedos, e os vizinhos disseram: “Olha a gente vai entrar, porque a mãe dela está trabalhando, a gente conhece o pai e a mãe e a gente fica responsável por eles. Os vizinhos entraram e ficaram ali cuidando da gente, mas foi muito assustador quando a gente acordou, imagina você acordar com a polícia ali te olhando, meu irmão muito pequeno, eu ficava com muito medo, porque eu sempre achava que iam tirar a gente dos nossos pais, porque uma vez eles falaram que poderiam denunciar a gente pro Conselho, porque a gente estava sozinho, eles já ameaçaram assim algumas vezes, mas não tínhamos o que fazer, não tinha opção, minha mãe às vezes trabalhava em dois lugares, ela ia pra creche e depois ia pra gráfica, hoje ela só trabalha na gráfica, inclusive, mas ela fazia duas jornadas, ela ia na creche mais cedo e virava a noite na gráfica, chegava em casa 3 ou 4 horas da manhã, não tinha muito o que fazer, foi a minha infância inteira só dessas lembranças.
00:35:36
P/1 - Sobre o período escolar, fala um pouco das escolas, depois se puder entrar um pouco nos projetos sociais aqui na Maré. Que escola você estudou?
R - Eu estudei alguns anos no CIEP no Brizolão do Pinheiros, lá no CIEP eu conheci uma professora que foi muito importante pra mim, uma professora que me acompanha até hoje, e ela foi uma das pessoas que conversou com a minha mãe, dizendo que eu tinha uma veia assim pra arte, porque ela fazia pequenos teatros em sala e eu participava muito, e conversou com a minha mãe e ela nessa correria toda, ela falou: “ela tem talento, investe nela, ela é muito estudiosa e tudo mais.” Então essa professora foi muito importante pra mim, porque ela me buscava às vezes em casa para eu ir à escola, ela garantia que eu estava me alimentando. Quando eu fui para o Nordeste e voltei, foi no meio do período escolar, então ela conseguiu articular pra gente conseguir vaga, aí depois no fundamental eu consegui bolsa num colégio particular de Bonsucesso, aqui vizinho da Maré, no Carioca que é Suam, aí estudei lá até meu nono ano, final do Fundamental. No ensino médio, eu voltei para a escola pública, para o Infante Dom Henrique, em Copacabana, mas eu não gostava muito da escola, eu gostava dos projetos, mas da escola não me sentia muito à vontade, por vários motivos. Primeiro que quando eu entrei num colégio particular, eu me senti muito mal por várias coisas, por não me entender naquele espaço, por nunca ter visto inglês, então me sentia muito mal com essas coisas, eu sempre fui muito agitada por conta da arte, por ter essa questão da dança, eu sempre tive muita dificuldade em ficar parada, olhando pra frente, sofri muito bullying, muitas questões, então eu nunca gostei do espaço escolar, sempre tive um bom desempenho na escola, minha mãe sempre fala que nunca teve reclamação, problema comigo, mas eu sempre não gostava de estar ali. Eu lembro que no meu ensino médio, eu ia me rastejando pra escola, tinha dias que a diretora mandava eu ir pra casa porque realmente eu tinha um semblante de que não estava mais aguentando aquele espaço. Até porque, meus pais chegavam muito tarde do trabalho, eu aprendi a ter a jornada deles, então eles chegavam às 4 horas, eu dormia às 4 horas, acabou que eu durmo tarde até hoje, porque eu acabei me acostumando muito com essa questão, e eu entrava de manhã na escola e ficava muito cansada. No ensino médio eu fiz um preparatório aqui na Maré pra colégios técnicos, eu consegui uma vaga na Fiocruz para um laboratório de história, na época Arquitetura e Urbanismo, mas para estudar História da Saúde, e era uma bolsa do Programa de Educação Científica, que a mesma coisa do Programa de Educação Científica mas voltado para o ensino médio, estudei num colégio público normal, regular, no Infante e saia de lá e ia para o Fiocruz, só que como eu ia estudar em casa?, tendo barulho, tendo que fazer comida e tudo mais, então eu estudava na madrugada. Era muito complicado, foi muito difícil, porque eu não tinha um computador, não tinha algumas coisas e eu tinha que ficar na casa de algumas pessoas, biblioteca o dia inteiro. Então eu não aguentava mais o ambiente escolar, até por conta das pressões, estudar em Copacabana, era uma questão de chegar em Copacabana né?!, o transporte lotado, eu tive um desentendimento com uma professora por conta disso e foi muito marcante pra mim, porque minha mãe teve que ir na escola, eu cheguei atrasada com uma amiga que estava grávida, com uma barriga enorme, e a gente não ia pegar ônibus lotado porque ela estava com a barriga enorme, e aí a gente esperou um ônibus mais vazio pra ela poder entrar e ficar. Na época o 43 não tinha esse túnel novo, que ia mais rápido, demorava mais tempo pra chegar. A gente chegou e perdemos o primeiro tempo da sala de aula, a gente esperou o professor sair, respeitando o horário pra gente entrar no próximo, no próximo nós entramos, nisso que a gente entrou a professora falou um sermão, falando dos alunos que chegavam atrasados e aí eu fiquei muito chateada, porque eu sempre fui chata com essa coisa de estudar e tal, e eu falei: “Professora, você não sabe do que a gente passa pra chegar aqui, do que aconteceu pra gente chegar aqui.” E essa aluna grávida também estava comigo, na mesma sala, e aí ela falou um montão de coisas, falou que não queria nem saber, mandou eu calar a boca, aí eu fiquei com muita raiva. Eu comecei a ter uma crise de ansiedade na sala de aula, pedi pra sair da sala, ela falou que não era pra eu sair e que a sala era dela, enfim, bem autoritária. E foi muito interessante, porque os alunos, como eu era uma aluna que sempre estava na minha estudando, ficaram do meu lado, e era uma professora que já fazia muitas coisas com os alunos, só que ninguém falava nada: “Ah como eu sou bagunceiro mesmo, eu vou deixar.” No meu caso, a gente fez uma greve na escola e não assistimos a aula dela até o final do ano. Ela me chamou até de Hitler, para vocês terem uma ideia, ela disse que isso nunca aconteceu, que os alunos nunca se importaram com as brincadeiras dela e foi a primeira vez que eles se importaram.
Aí ela me chamou de Hitler, minha mãe foi lá, ela me chamou no facebook, chamou minha mãe no facebook, misturou coisas que não deveria, aí depois eu passei na faculdade, eu falei: “Eu vou passar na faculdade, porque ela falou tanta coisa, ela citou autores que eu já conhecia, Foucault, como essa mulher está falando de Foucault, se ela está transformando esse lugar mais do que uma prisão de regime autoritário?” Aí eu falei pra ela que eu sabia quem era Foucault, e ela ainda ficou falando besteira lá. Quando eu passei na faculdade, eu pensava: “Eu quero encontrar essa mulher no corredor, pra ela ver que a gente consegue ter acesso a esses espaços também, porque ser de colégio público às vezes é muito difícil, porque eles duvidam da gente, que um dia você vai ser colega de trabalho, e por isso que eu gostava de estar nas ONGs, nos projetos, porque nos projetos, eu aprendi que um dia era pra ser colegas de trabalho, o que eu sou hoje, hoje eu atuo num projeto em que eu fui aluna. Então nos projetos é que eu aprendi que eu poderia ser professora, por isso que eu preferia acabar logo a escola e ir direto para o projeto, porque eu não aguentava mais. Mas tiveram muitos professores importantes também, obviamente, faz parte.
00:41:47
P/1 - O que eu acho interessante que você está comentando, é sobre você, mas você acha que na escola o fato de você vir da Maré, morar na Maré, você ter como mulher um posicionamento diferente, isso que era mais conflitante?
R - Sim, totalmente.
P/1 - De onde você mora, quer dizer…
R - Sim, porque qualquer coisa que acontecia, às vezes eu nem estava no meio da confusão: “Ah, mas a Beatriz…”, porque eu sempre fui muito de externar o que estava acontecendo, eu sempre tive muito diálogo com a minha mãe, e ela falava: “Olha se você tem razão, você vai atrás, se você tiver razão, se você não tiver eu vou brigar com você.” Eu sempre tive essa liberdade muito grande com a minha mãe, então minha mãe sempre brigava na escola, ia lá entender o que estava acontecendo, e eu sempre joguei muito para a estética, qualquer coisa que estava acontecendo comigo, então eu sempre tive cabelos coloridos, sempre tive piercing, sempre tive um estilo mais alternativo. Minha mãe era chamada na escola, porque eu não podia usar um cinto colorido, essas coisas assim, então eu não gostava mesmo por conta disso, desses espaços, porque eles me rotularam de várias formas. E quando começou essa questão da sexualidade também, todo mundo me chamando de sapatão na escola, então eu não gostava de estar ali, e no teatro não tinha isso, era todo mundo livre, todo mundo pintando o cabelo, falando da sexualidade, eu preferia.
00:43:22
P/1 - Esse é um outro tema interessante, você comentou que ia para a escola com uma colega grávida. Como era o compromisso na juventude com os relacionamentos? os relacionamentos amorosos, como era isso?
R - A minha mãe sempre me instruiu muito, porque ela falava: “Você está vendo o que eu passo, não quero que você passe igual.”. Então ela sempre me instruiu muito sobre questões de como prevenir, como me defender, pra esperar o meu tempo, ela dialogava muito sobre várias questões que às vezes as mães das minhas amigas não conversavam, então minha mãe às vezes conversava com outras amigas, tinha amigas que não sabiam o que era ginecologista, e minha mãe falava: “Não, vamos lá, eu vou levar, fala com a sua mãe.” Minha mãe sempre teve esse papel de mediadora, eu não tive muitos problemas de relacionamentos nesse sentido, porque eu sabia muito me defender. Se um cara falasse alguma coisa que eu não gostasse, eu sabia o que falar, sabia como me defender, eu sempre tive muito medo de engravidar, então eu perguntava as coisas para a minha mãe mesmo, única coisa dos meus relacionamentos, é que eu sempre me entendi quanto bissexual, e na minha adolescência isso foi muito complicado, porque eu não sabia como dizer isso para as pessoas e como viver isso, porque eu não tinha muitas referências. A gente, às vezes, tem referência até de homens gays, mas não temos referência de mulheres lésbicas, pans e tal, então isso é um pouco mais complicado. Minha hoje super entende, eu tenho um relacionamento e ela está de boa, eu moro com minha companheira já faz um tempo, mas no início foi mais complicado. No início ela ficou meio assim “ o que está acontecendo aqui”, enfim, minha mãe tem uma postura muito maravilhosa em várias coisas, mas também está no tempo dela né?!. No início, nos meus quinze anos, ela percebeu que o meu grupo era um grupo diferente, e ela não reclamava não, todo mundo ia pra minha casa, só que ela começou a me pressionar: “Você vai me falar, você gosta de mulher?”, e aí eu não sabia o que responder, eu nem me entendia ainda, então quando ela começou a pressionar eu travei e não toquei mais no assunto. Eu só voltei a falar disso com dezenove anos, demorei, e eu sempre estudei muito, entrei na Fiocruz com quinze anos. Eu falei: “Cara essa é a portinha que eu precisava, então eu vou seguir isso aqui pra sempre”, então eu não falava mais sobre isso, aí depois, na época das eleições, quando emerge o Bolsonaro, aí emerge essa onda fascista, aí eu falei: “Eu preciso falar de novo com a minha mãe sobre isso.” Eu chamei ela pra conversar no meio da novela: “Mãe, precisamos conversar”, eu não sabia como dizer, comecei a chorar, passei mal, ela disse: “Filha, você está grávida? O que está acontecendo?” Eu falei, “não estou grávida é uma outra coisa que eu tenho pra falar.” Aí ela: “Eu já sei, você gosta de mulher né?!” Eu: “Eu não sabia como te falar”, ela já logo falou que tudo bem, “que na época eu só queria saber e não sabia como agir”, ela pediu desculpas e hoje vivemos todos bem.
00:46:44
P/1 - Que bom, e é um processo, no fundo, pras duas né?
R - É, com meu pai foi diferente.
P/1 - É isso que eu ia te perguntar. Como foi com o pai, como foi com o irmão?
R - Meu irmão é muito meu parceiro, eu criei ele praticamente, então meu irmão, tudo que eu fizer ele assina embaixo, ele vive comigo, está sempre comigo, na minha casa. Com meu pai foi complicado, a gente ficou sem se falar por quatro anos, e a gente volta se falar agora, inclusive. Então é a minha memória recente.
A gente está com a relação meio estremecida, eu não gosto de falar muito sobre isso, mas com ele foi mais difícil né!. Mas está indo no tempo dele também.
00:47:28
P/1 - Então vamos falar dos projetos sociais, pra gente chegar nas suas atividades artísticas, sua prática artística. Você comentou uma coisa interessante, que no teatro você se sentia mais a vontade, quer dizer, mais você. A sua possibilidade de se expressar mais, no ponto de vista do afeto, dos seus desejos, então como é que foi? Quais projetos você se vinculou? Era aqui na Maré?
R - Eu sempre fiz muitos projetos aqui na Maré. Eu fiz casa de Cultura, que hoje é o Museu da Maré, eu fiz Vila Olímpica, fiz o CEASM, onde eu fiquei mais tempo.
P/1 - Conta um pouquinho.
R - Primeiro eu comecei a fazer aula de dança.
P/1 - Qual tipo de dança?
R - Comecei fazendo ballet e jazz, fiquei bastante tempo no jazz, que eu preferia mais do que o ballet. Aí depois, eu comecei a fazer esses teatros na escola, aos pouquinhos, no Nordeste eu também cheguei a me apresentar, no aniversário da cidade, também cheguei a cantar a dançar lá, mas quando eu volto pra Maré, eu volto pra dançar jazz e aí eu conheço um projeto chamado, ‘Usina de Cidadania’, que era um projeto da Refinaria de Manguinhos, na Passarela 5, um projeto que foi fechado pelo Sérgio Cabral, na época teve um protesto em que eu estava com a minha mãe, inclusive. E esse projeto era maravilhoso, porque eram aulas de todas as atividades artísticas. Então eu fiz dança, música, teatro, fiz até luta. Fiz um monte de coisas, porque eu já estava ali, e passava o dia inteiro ali, então a gente organizava peças teatrais de espetáculos e apresentava na escola Sesc de Jacarepaguá, apresentava no Nelson Rodrigues, a gente apresentava em vários lugares. Então foi muito importante pra mim esse projeto, eu entrei com doze anos, eu faço parte de uma extensão desse projeto hoje, atuei como educadora também nele. Porque esse projeto, além de alguns professores serem da Maré, nós alunos, mesmo enquanto crianças e adolescentes, nós tínhamos um protagonismo, porque depois a gente estrelava o espetáculo num teatro profissional. Foi muito importante pra mim por isso e porque era uma escola de arte pra mim. Eu fazia música num tempo, depois teatro, depois passava pro jazz. Fora que no teatro, eu aprendi essa questão da liberdade, acho que um dos melhores momentos pra mim, tirando o palco, é a coxia, é atrás, porque todo mundo está ali se ajudando, a gente troca de roupa na frente do outro e ninguém se preocupa por nada, está todo mundo preocupado no seu desempenho, no seu cabelo, na maquiagem. Então eu aprendi muito também sobre dividir coisas, sobre sobreviver em comunidade, também no teatro. Eu fiquei lá até meus quatorze anos, quando eu saí para poder fazer um preparatório para o ensino médio. Foi bem triste, eu fiquei chateada, mas eu tinha essa vontade de fazer um preparatório, na época eu queria fazer Administração, porque é o que a gente pensa; “Administração para trabalhar”.
P/1 - Para ter empregabilidade.
R - É, na época eu pensei nisso, e eu saí por isso, depois eu voltei para a companhia que eles tinham, a companhia de teatro que é a companhia de teatro deles, a Companhia Buzina, que existe até hoje, hoje é a Buzina Social, um projeto independente que eu também atuo. Eu fiz isso, mas depois também dancei dança de salão, competi, fiz várias coisas, eu sempre fiz arte. Quando eu entrei na faculdade, foi uma grande questão também, porque a arte sempre esteve presente, como uma terapia, como para eu estar com meus amigos. Quando eu comecei a fazer projetos, na época eu não queria estar na minha casa, porque a minha casa era muito conflituosa, ou eu estava trabalhando em casa, fazendo as coisas, ou os meus pais estavam brigando, então eu também não queria estar neste lugar, os projetos eram muitos bons por isso, nas férias eu também podia estar lá, estar na colônia de férias, eu fiquei durante muito tempo em muitos projetos.
00:52:44
P/1 - E quem eram os seus colegas nesses projetos? Eram colegas da Maré?
R - Todos daqui e de outras favelas também, do Caju, eu tenho muitos amigos no Caju, que também faziam esse projeto da Refinaria, mas espalhados na Maré, todos eram daqui e muitos professores que também eram daqui. No Cecierj quase todos os professores são daqui, isso que era mais legal, porque eram professores do currículo escolar, de geografia, matemática, mas todos daqui, então eu criei as minhas referências nesse momento. Quando eu entro no CEASM, na “Usina”, eu aprendo de usar a arte como potência, como mulher de favela e de referência nordestina. e no CEASM eu aprendo o que é favela, porque que eu não tenho que ter vergonha de falar a palavra favela, porque que eu tenho que reivindicar a história da favela, então no CEASM foi importante também por isso.
00:54:38
P/1 - Você contou um pouco sobre os projetos sociais que você fazia, ou estava envolvida, talvez uma manifestação mais externa, atuar, cantar, dançar. E você contou que certa hora você começa a escrever, a fazer poesias, como isso muda na sua vida? Você lia poesias, você gostava de literatura, como que é isso, como você começa a se manifestar, como mulher moradora da Maré, na poesia, na escrita?
R - Eu sempre gostei muito de ler, como eu falei meu pai é gráfico, então os livros que batiam errado na máquina, ele trazia pra casa, e ele comprava muito livro no sebo pra mim, desde sempre, meu pai que me ensinou a ler, na realidade. Eu fico mal de falar do meu pai, desculpa, desculpa gente. Sobre a leitura, eu sempre li muita literatura, sempre tive muitos livros em casa, por conta dos meus pais, que trabalhavam, em gráfica, então sempre traziam os livros. Os próprios donos, muitas vezes os encarregados da gráfica, falavam: “Ah, acho que sua filha vai gostar desse aqui, pega pra você levar.” Então ele sempre trazia os livros pra casa, também sempre comprava livros em sebo, cresci rodeada de livros. E como os meus pais, principalmente o meu pai, ele só olhava a capa, ele sabe ler mas não entendia muitos assuntos, então ele olhava a capa e dizia: “Hum, esse aqui parece interessante, vou levar pra casa.” Então eu acabei lendo livros de todo tipo, e aí eu sempre gostei muito de literatura. Eu sempre tive esse contato com a leitura, desde muito pequena, comecei a ler com meus 6 anos, eu lia de tudo, muito gibi da Turma da Mônica, depois eu parti para os livros mesmo, mas a minha principal lembrança a começar a entrar no mundo dos livros, foi na escola quando eu estava pegando um livro de história, e aí na aba de curiosidades, tinha uma fala sobre Anne Frank, eu vi aquilo ali e fiquei interessada, mas como assim uma menina morreu e escreveu um diário, com 15 anos e tal… Aí eu fiquei muito interessada e fui atrás desse livro, numa biblioteca. Eu nunca tive o livro da Anne, eu dizia que: “Se eu for comprar o livro dela um dia, tem que ser o de capa grossa, todo diário.” Então eu fui atrás, consegui numa biblioteca esse livro, li, e reli várias vezes. Aí achei outros diários, e depois eu embarquei, li bastante Dan Brown, nunca gostei muito de ficção científica, sempre gostava mais de temas que me levassem pra história mesmo. Então mesmo uma ficção às vezes leva, eu não conseguia fantasiar as coisas. Eu nunca li Harry Potter, essas coisas. Por exemplo, um dos livros que mais me marcou foi Cidade do Sol, o Caçador de Pipas, os livros brasileiros eu gosto bastante, Graciliano Ramos, então eu li bastante literatura brasileira também. E aí foi muito interessante, porque quando eu tinha quatorze anos e fiz o preparatório no CEASM, teve uma excursão que veio de Amsterdã, com uma professora com seus alunos e ela tinha bastante informações sobre o museu, atual museu da Anne, que é a casa da Anne, museu em Amsterdã, e ela conhecia pessoas que trabalharam com o pai da Anne. Eu fiquei antenadíssima, na época, os professores já sabiam que eu cantava, pediram pra eu cantar nessa palestra com eles, depois veio um mediador, porque ela falava inglês e eu não sabia falar, então veio uma pessoa e mediou uma conversa nossa, foi bem legal. Depois ela me mandou postagens do museu, eu guardei isso com muito carinho no meu diário, eu sempre escrevi diário, dos seis aos meus quinze anos, sempre tive diário. Por mais que a minha geração não seja uma geração TikTok, tinha a galera que usava diário, mas já estava se perdendo muito essa coisa do diário, mas eu gostava muito da escrita, e no diário eu colocava tudo, a banda que eu gostaria de ter quando crescer, as roupas que eu gostaria de vestir, recortava coisas de revistas e colava, eu guardava cartas, guardava ingressos de show, de cinema. Eu tenho isso hoje na casa da minha mãe, sempre tive muito essa questão, sempre escrevi muito, chegando no Preparatório mesmo com quatorze anos, eu continuei lendo bastante, porque eu entendia mais ainda de história, eu tive contato com esses professores que me ensinaram sobre identidade, foi muito interessante, porque aí eu conheci Carolina Maria de Jesus, conheci essas literaturas que traziam mais pra perto, e eu já escrevia músicas também, porque eu sempre cantei e eu escrevia as músicas, com quinze anos eu tive uma banda de rock aqui na Maré. Na Maré tinha uma cena do rock muito forte, nesta época, tinha um evento aqui chamado Favela Rock, aí tinha uma banda bem conhecida aqui na Maré que era a Banda Algoz, eles eram parentes da minha melhor amiga, o guitarrista e o baterista eram tios da minha melhor amiga. Eu ia pra todos os shows e dizia: “Caramba, eu quero cantar num palco rock, é isso que eu vou fazer”, meu primo tocava bateria e eu fui pra casa dele um dia, ele tocava guitarra também e me mostrou um acorde, eu já falei: “Eu vou conseguir escrever uma letra e montar uma banda”, aí fiz maior articulação que a gente abrisse o show dessa banda aqui na Maré, então com quinze anos eu cantava em bar, minha mãe sempre estava comigo e era muito engraçado, porque a gente nem bebia e cantava nos bares, eles falavam; “deixa ela cantar.” Eu cantava em bar, cantava em roda de rima, cantava em eventos de skate, com as minhas composições. Era bem legal, porque a galera já estava aprendendo, foi um momento bem legal da minha vida, de ter essas letras aí na rua, soltas.
01:03:15
P/1 - Sobre o que você escrevia?
R - Isso, que é engraçado. Hoje eu olho essas letras e falo; “caramba!”, muita escuridão, porque eram muitas coisas que eu falava sobre a minha casa, mas de outra forma, por exemplo, algumas letras falavam, “venham logo me salvar, me tirar desse lugar”, umas coisas assim. Mas fazia também o rock, eu cantava Plebe Rude, eu cantava Legião Urbana, esse rock mais alternativo. Eu sempre gostei de músicas brasileiras, minhas referências sempre foram essas, tinha referência da Cindy Lauper e Janis Joplin, mas principalmente brasileira, então eu andava com blusa do Raul Seixas, essas coisas assim. As letras eram dessa forma, hoje eu consigo entender mais, como eu com quatorze anos escrevia umas coisas tão difíceis de se falar hoje, porque eu olho e são coisas tristes mesmo, todo mundo cantava, meus primos adoravam e tal, hoje eu entendo mais, de fato eu não queria morar naquela casa, eu sempre quis sair de casa, era um sonho sair de casa, não pela minha mãe mas pela questão de não ter um quarto, de não ter um espaço, de não ter um silêncio. Então as minhas letras falavam basicamente sobre isso.
01:04:35
P/1 - Você lembra de uma letra?
R - Ah, eu lembro de algumas , mas eu tinha quatorze anos, mas tinha que a galera cantava muito e era muito engraçada, nem sei se eu chego no tom da época.
“... venha logo me salvar, preciso sair agora desse lugar, venha logo e me tirem daqui, não estou sobrevivendo a tanta escuridão, solidão e julgação…” enfim, era mais ao menos isso, mas era gritando, e era desse nível todas as letras, e tinha algumas que falavam que eu era a escuridão, eu estava entrando e eu queria sair e do final eu era, umas coisas que hoje eu entendo mais, e foi muito bom de eu ter tido essa oportunidade, de externar a cena do rock. Eu achei muito massa de eu ter dito esse apoio na época, não tinha muitos instrumentos e a gente conseguiu emprestado, apoio, então eu escrevia muitas músicas.
01:05:38
P/1 - E era uma menina muito nova né?
R - É, muito legal ver isso hoje, esse apoio, mas eu escrevia essas músicas e a cena do Slam, ela aparece num outro momento da minha vida, que eu estou mais velha, mais velha entre aspas né!, (risos), que eu já estou com meus quase 20 anos, que é o momento onde eu já frequentava rodas de rima, freestyle, mas eu nunca fiz freestyle.
01:06:06
P/1 - Conta um pouquinho. O que é moda de rima, freestyle?
R - Freestyle é uma roda que você faz a rima na hora, você batalha, mas fazendo na hora, você inventa a rima na hora. Vão lançar um tema e na hora você vai inventar uma rima e vai batalhar com outra pessoa, e vocês vão batalhando, tem roda de sangue, que é um julgando o outro e tem a roda do conhecimento, que é uma batalha porém voltada mais para assuntos como machismo, lgbtfobia, racismo, e tem essa batalha do conhecimento. A do sangue também entra, mas é mais um apontando o outro. Mas eu sempre fui de frequentar muito a cena do rap, frequentava esses lugares, e depois eu começo a conhecer o Slam, com a cena das mulheres que é muito forte, que é o Slam das Minas, Martina, Regiane, uma galera que eu assisti e falava; caraca, como essas mulheres são grandes, num palco contando as suas narrativas, contando as suas histórias. Então eu comecei a frequentar batalha de Slam, assistia, e aí onde eu fiz pré-vestibular e eu me tornei educadora de história em 2016, lá eu comecei a puxar essa cena de um sarau. “Gente vamos fazer um sarau?” Para juntar os alunos, chamar eles, não precisa ser um sarau de todo mundo em silêncio com a poesia, porque nossos corpos não são assim. Pode ser um sarau, mas com vários tipos de arte, aí eu comecei a puxar com uma galera, que também era artista, e a gente conseguiu organizar o primeiro sarau, que hoje é chamado de Sarrau. Todo mundo conhece o Sarrau do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré, e aí a gente começou a fazer. E no sarau, que tem até hoje, parado um pouco por conta da pandemia, é um espaço muito importante porque a gente começou a trazer os artistas da Maré, era um lugar de pré-vestibular, mas era um dia em que a gente conseguia arrecadar dinheiro, porque a gente também não tem patrocínio, e mostrar a arte da galera. os próprio professores se apresentavam, eu me apresentava, , os alunos se apresentavam. Então no Sarau, começou o Slam das Minas, aí eu conheci esses poetas, essas poetisas, eu comecei a conhecer elas e assistir e admirar cada vez mais. E aí teve um dia, numa conversa com uma amiga, ela me fez uma pergunta que me deixou muito intrigada, ela perguntou qual era o nome da minha bisavó, das minhas bisavós, eu fiquei caramba, qual o nome da minha bisavó. Eu fiquei muito intrigada com aquilo, aí eu sabia de uma bisavó que é o meu nome e sabia de uma outra bisavó do nordeste, que é a Kátia Regina, sabia do nome dela, mas eu não sabia de mais nada, uma eu sabia um pouco mais da história e não sabia de mais nada, e não sabia dos bisavôs, um hiato, eu fiquei tempo pensando nisso, pesquisando, correndo atrás, porque eu fiquei realmente intrigada com aquilo ali. Aí um dia, eu estava num ônibus lotado. voltando da faculdade, voltando da UERJ, no ônibus eu consegui sentar neste dia, eu peguei meu planner, eu ando sempre com meu planner, porque eu gosto muito dessa coisa de marcar data, e aí eu com o planner fazendo revisão de datas, eu fiquei maior tempão olhando para a janela e começou a vir várias memórias, várias reflexões, aí é a minha primeira poesia que eu falo: “Olha esse retrato Beatriz, dá pra colocar num quadro e ver a história dos seus antepassados.” Eu comecei a reescrever dessa forma, eu falo que o Slam , por mais que eu seja historiadora, mas é o Slam que me traz essa possibilidade de reescrever a minha história, de contar uma narrativa minha, obviamente que eu posso fazer isso na academia, mas é diferente, é contar a narrativa pra minha galera, não só contar as dores mas contar as vitórias também. Só que no início, quando eu comecei a escrever poesia de Slam, é um momento de libertar, de você escrever todas as suas dores, então dá pra perceber que eu trago essa narrativa, de falar da minha avó, de falar da minha mãe, de falar das histórias de dor, das alegrias, das conquistas. Eu trago muito isso pro Slam, eu falo que ele me dá essa voz, de reescrever a minha história. O Slam surge aí.
01:10::45
P/1 - Mas o Slam originalmente, ele surge em que contexto? O que é efetivamente o Slam? É um movimento, um estilo de declamar poesia, uma possibilidade de você manifestar dor, amor, vitórias individuais? Porque se torna uma competição, por exemplo?
R - O Slam vem do norte americano, que é ‘a grande batida’, algo que bate com força, e a nossa poesia é assim. Ele surge da periferia mesmo, da cena preta, da galera de periferia que vai internalizar essas dores, que vai internalizar as suas narrativas. No Slam a gente vê muita história, retrato de colonização, as nossas questões enquanto mulheres, lgbts, ele vem da periferia mesmo. Hoje, atualmente no Rio de Janeiro, na maioria das favelas tem o Slam. Tem o Slam Caju, tem o Slam da Maré, tem o Slam da Baixada, tem o Slam Laje. Tem vários Slam 's que hoje é uma competição muito séria, inclusive, a gente compete no regional para tentar uma vaga no estadual, para tentar uma vaga no nacional e posteriormente no mundial. Hoje o Slam está na Bienal e em todas as cenas da arte, hoje o Slam é reconhecido como uma batalha séria. Essa coisa da batalha é muito interessante, porque por mais que seja uma batalha, não é um sentimento de: “Eu preciso derrubar e matar o meu oponente, a gente sobe no Slam com uma preocupação de levar a mensagem, de fazer com que a pessoa sinta alguma coisa com a nossa mensagem. A gente até fala que se o poeta errar, é porque a plateia não passou energia, a nota é dada do sentimento de quem está sentindo, a gente não escolhe a dedo quem é o avaliador, o jurado. Eu já participei de uma roda de Slam, a primeira que eu ganhei, os jurados eram crianças, todas as crianças do piscinão de Ramos. Chegamos no piscinão e aí, caraca não tem jurado o que vamos fazer?, tinha muita criança, as crianças falaram eu quero, eu quero, e a gente: caraca, será que as crianças vão levar a sério?, e foi ótimo, eles levaram super a sério, me chamaram de tia, ficaram torcendo, foi super legal, e eles entendiam quando era uma parada que fazia sentido pra eles, porque falava das realidades deles também. O Slam é isso, é uma batalha, mas ninguém está ali pra ser inimigo de ninguém, eu me senti muito acolhida no movimento do Slam, porque no início eu tinha receio em recitar, demorei bastante pra recitar minha poesia, e a primeira vez que eu recito é no evento do Julho Negro, no evento que teve no Museu da Maré.
01:13:46
P/1 - O que é o Julho Negro?
R - O Julho Negro são vários eventos, no mês inteiro, para falar dos debates sobre os direitos da população preta, favelada. E nesse evento eu aparecia, eu estava lá assistindo e meu amigo falou: “Canta alguma coisa lá pra gente.” Porque normalmente me chamam pra cantar, aí eu falei: “Tá, beleza.” Aí pensei: “Será que eu recito a minha poesia aqui, neste momento?, acho que sim, estou com todo mundo que eu conheço e tal.” E eu recitei a primeira vez a minha poesia, que é a poesia do meu nome, que é a poesia onde eu falo que vou colocar meu nome em algum lugar, e foi muito legal porque eu não imaginava que eu teria uma recepção boa, e neste dia que eu recito, estão as mães vítimas de violência me assistindo, então foi muito importante pra mim, porque elas me acolheram muito, porque na poesia eu falo alguma coisa sobre os filhos delas, elas ficaram muito felizes e vieram num apoio muito grande. Foi ali que eu falei: “Eu quero fazer Slam, eu quero recitar poesia”, porque eu já escrevia há algum tempos as músicas e até algumas poesias pequenas, mas eu não me via naquele movimento de poesia, Carlos Drummond de Andrade, eu não me via naquilo ali, eu até lia essa galera, gostava muito de alguns sonetos, gostava muito de ler, mas eu não me via neles, eu achava que poesia era só aquilo. Quando eu conheci o Slam, quando eu vejo MC Martina num palco, fazendo poesia, falando da vida dela, da mãe dela, caraca ela é poeta e é muito grande, e é tão foda tão quanto, então foi desse movimento que eu engatei assim no Slam e aí não parei, participei de várias coisas depois disso.
01:15:40
P/1 - Eu queria que você falasse desse seu processo criativo. Como você cria uma poesia? Você escreve sozinha, sai na hora, você lê, você decora? Você tem temas que te tocam, são momentos muito próprios da sua vida, uma determinada emoção, uma determinada situação de vida, por ser mulher, por ser morada da Maré. Como é esse seu processo criativo?
R - É muito espontâneo, porque eu não sou uma pessoa que escreve uma frase e deixa lá pra depois reescrever. Eu sou a pessoa que, ou sai tudo agora, ou não vai sair essa poesia. É muito espontâneo, a primeira vez que eu escrevi uma poesia, eu escrevi num ônibus e escrevi ela inteira, a segunda vez, era uma parada que estava acontecendo na minha casa, ainda morava com os meus pais e eu estava muito frustrada, fui ao banheiro e me tranquei e fiz uma poesia inteira. Então é sempre numas situações assim, onde eu consigo escrever, a pandemia também, eu cheguei a escrever poesia também. São sempre nessas situações que eu escrevo, obviamente eu tenho referências, Maria Angelo, como as próprias poetas do Slam das Minas e de outros Slam ‘s que eu gosto, mas só acontece, eu não fico vendo muito não, está ali e acontece, mas eu sempre trago essa questão de historicizar, como eu sou da História, trago muitos fatos históricos, um pouco do que eu já sei, eu já recitei em sala de aula para os meus alunos, isso foi muito interessante, foi um episódio bem legal, porque eu recitei numa aula, eu acho que eu falava da Revolução do Haiti, eu recitei pra eles porque eu dou aula de História Geral, aí na outra semana eu voltei pra essa turma e os alunos estavam ansiosos pra me ver. O que está acontecendo, todo mundo agitado, era uma turma de quatorze e quinze anos, aí eu perguntei pra uma aluna, “o que está acontecendo gente?” “Professora, uma aluna fez uma poesia muito melhor que a sua” (risos), eu falei: “está ótimo”, não precisa ser, - não, mas a dela está braba, e ela veio falar comigo; - Ah professora, eu ouvia sua poesia e vi que eu tinha uma coisa pra falar, e eu também escrevi, mas eu não sei se está bom porque eu não sei escrever direito. Eu vi que era uma coisa incrível, e ela recitou no Sarau, e falou, e foi a coisa mais linda. Isso é muito legal, eu trago isso bastante pra sala de aula, porque eu falo para os alunos que eu não conseguia ficar sentada e olhando pro quadro, porque eu vou fazer isso com eles, né! A questão do EAD também é muito triste, a gente está enfrentando vários desafios por conta disso.
01:19:17
P/1 - É muito interessante ouvir você. O Slam é um movimento ligado à causas sociais, a gente pode dizer, né! São causas feministas, lgbt, causas sociais. Então de que forma, esse teu viver aqui na região da Maré, realmente é quase um espaço de criatividade pra você, acho que são elementos que possibilitam essa tua escrita, né?
R - Sim, totalmente. Porque não que o Slam não fale de amor, de alegrias também, mas mesmo quando a gente fala de amor e de vitória, ainda é resistência, então sempre está ligado a essa questão. E a favela ela me inspira de várias formas, tem uma poesia que eu falo, “andando pela favela a gente pode perceber, que o movimento não pára", e aí eu falo do barulho, que silêncio é uma coisa complicada, para a gente lidar com o silêncio, “que o grito é poético”, muita resistência, “a gente fala alto por ser resistência”. Então eu acabo usando vários elementos, a pipa, vários elementos do que eu vejo e do que eu vivi também, porque como eu faço o Slam para reconstruir uma história, que esse foi o meu primeiro objetivo de fazer Slam, eu eu sempre acabo mesclando bastante com as minhas vivências, com a minha história, com o história da minha família, e tudo que eu sei eu tento reconstruir um pouquinho, aí eu jogo numa poesia; descobri isso aqui, ah então vou falar sobre isso e tal. Às vezes eu escolho escrever, eu falo, vou tentar escrever escrever alguma coisa agora, mas às vezes é super natural mesmo e só acontece.
01:21:06
P/1 - Você poderia falar uma poesia sua pra gente? Uma que te toque especialmente, neste momento te toque mais.
R - Pode ser!
P/1 - Pode ser? Por favor.
R - Tem uma que se chama, “O alto da Pipa”, que na minha infância toda eu sempre ví pipas no céu e meu irmão sempre foi viciado em pipas, então eu falo assim:
E tava lá, no céu várias pipas, no chão várias vidas
Meninos e Meninas, empinando sonhos e cortando as armadilhas
Nas mãos, várias linhas, ou até mesmo um carretel, para que as chances sejam infinitas
O menor olha a pipa, e lá está ele, logo em cima
É assim que eu quero ver meus menores
Voando alto, sem medo de bala perdida
Uma vida onde o caveirão não é alternativa
E que a operação só aconteça nas salas de cirurgias
Nas mãos a certeza, de um menor que sobreviveu à um país racista
Amém minha mãe diria
Axé a ancestralidade grita
Porque a favela, é o Quilombo daqueles que foram condenados pela necropolítica
Política da morte, pra você que não sabia
É o estado de ascensão decidido pelas nossas vidas
2019 na Maré foram mais de 21 dias que não teve menor na laje soltando pipas
E nem criança na escola mais
Ainda tem uns otário que vem me falar de meritocracia
Eu não tenho paciência pra burguesia
Pego a vaga na faculdade, mas vive pedindo cola pra cotista
Isso quando eles não pedem pra gente comprar droga e levar pra pista
Ah tá, que eu vou cair nesse seu papo de esquerda cirandista
Onde a minha pauta só cabe, se for pra fazer mídia
Chega da população preta representando 75% das vítimas de homicídios, nos jornais e revistas
Eu quero te fazer um convite com a minha poesia
Me promete que toda vez que você ver o menor na laje soltando pipa, tu vai olhar pras mãos soltando a linha
Um fio que significa a construção de uma vida
E lá no alto, no topo da pipa, somos Eu, Você, e o Menor
Contrariando as estatísticas
E rum quero ver, favelado no poder
E rum quero ver, o meu povo vencer.
Então, essa é o “Alto da Pipa”.
01:23:24
P/1 - Que lindo, que expressivo, e trata de tantos temas, de tantas possibilidades, permite tanta reflexão sobre isso. Quer dizer, sobre viver, sobre criança, sobre uma cultura da favela, sobre a favela, sobre a violência, sobre negritude, sobre os problemas sociais que a gente vive. Então parabéns!
R - Obrigada.
01:23:52
P/1 - Quando que você escreveu essa poesia?
R - Essa foi na pandemia, porque eu fiquei muito em casa, eu sempre ia pra laje com a minha companheira fazer alguma coisa, um churrasco, ou sei lá, só tomar uma cerveja na laje, que era a única saída. E a gente ficava olhando pro céu, sempre tem muitas pipas, muitas pipas, e estava também na época, lendo Achille Mbembe de necropolítica, juntou uma coisa com a outra, eu falei: ah, vou tentar escrever isso aqui, aí um dia eu consegui, sai uma frase e aí já sai a poesia toda.
01:24:27
P/1 - E você já apresentou ela? Já teve a chance? Foi feita num momento de pandemia, mas você já teve essa oportunidade? E se sim, qual foi a reação do público?
R - Eu cheguei a fazer um vídeo, postei no Instagram e no Igtv, também já competi com ela no Slam Quarentena. Teve Slam online, é muito estranho, não digo que é estranho, mas o Slam é energia e a gente acaba tendo algumas dificuldades, como a internet que fica travando e se travou a gente acaba não entendendo o poeta, isso pode vir a prejudicar, mas a gente seguiu na resistência mesmo de tentar fazer esse Slam acontecer. Eu recitei no Slam Caju Online e no Slam da Quarentena, eu passei pra final nos dois, do Slam Caju cheguei a ganhar uma edição e foi bem legal. Os jurados eles lançam as notas no chat da Live, a gente faz uma Live, no Slam Quarentena eles lançavam a nota no chat e a nota vai de zero a dez, mas no Slam não damos nota menor do que nove, para não desvalorizar o poeta, porque a gente entende que toda escrita é uma escrita e é válida, então não damos menos de nove, isso é uma regra mesmo, mas é uma coisa que a gente sempre gosta de reforçar, e não é porque a pessoa não é boa, claro que ela é, é uma escrita, mas às vezes o Slam tem a ver com entonação, com o corpo, o que toca… E aí a pessoa recitou pela primeira vez, ela está nervosa, por isso a gente tem essa coisa de ser mais que nove. Eu cheguei a recitar bastante, no Slam Caju é diferente, a gente mandava o vídeo de 1 minuto, muito complicado fazer uma poesia de 1 minuto, aí tinha um formulário que as pessoas votavam durante 2 dias, alí a gente ia passando por cada fase, mas é bem trabalhoso, e agora eles mudaram pra ser Live mesmo. Eu participei de alguns Slam online mas eu acabei cansando, porque é bem diferente, entra umas pessoas na live que às vezes eu não quero que escutem minha poesia, não por uma questão de que eu não quero que escute, mas por exemplo, eu não recito para a minha família, porque como eu estou falando deles, então eu ainda não me sinto à vontade, sempre eu fico com muita ansiedade. Tem algumas poesias que sim, essa por exemplo toda a família conhece, mas outras que falam da minha mãe, ela nunca ouviu, teve uma Live que eu estava apresentando de um evento, era um evento chamado AGORA, como se fosse uma intervenção artística, todo mundo no mesmo horário abrir uma Live pra fazer uma intervenção, eu entrei e comecei a recitar e minha mãe aparece no meio da poesia: “Nossa, o que é isso, eu nunca ouvi”, e aí eu: “gente, desculpa, esqueci, não consigo.” Porque para mim, ainda é um processo, falar de dores nunca é fácil, falar de dores pra quem viveu contigo essas dores, é mais difícil ainda. Então pra mim ainda é um processo, eu trabalho muito em terapia essa coisa de me expressar, sempre fui da arte, mas nunca fui de falar sobre mim, sempre recitava monólogos de outras pessoas, no Slam eu venho falar sobre mim, e é um pouco mais difícil. Logo que eu participei, eu saio, tenho uma crise de ansiedade e saio, não consigo, acontece. O bom é que eu tenho muito acolhimento. Só que o ruim do online, você fica sozinha sofrendo, então eu acabei não participando.
01:29:02
P/1 - O Slam então é autoral? Quer dizer, é seu, a sua poesia a partir de vivências e experiências, de uma narrativa sua, construída pela poetisa ou pelo poeta?
R - Pode recitar poesias de outras pessoas, mas não pode competir com poesias de outras pessoas. É obrigatório ser poesia autoral, senão você é desclassificado, então todo mundo que está no Slam, está com a sua poesia lá aviada na língua. Claro que a gente pode ler a poesia, mas aí perde a emoção, então a gente se acostuma a não ler as poesias.
01:29:41
P/1 - Outro aspecto que eu achei interessante, é sobre o julgar. Quem é juiz, quem julga?
R - Os jurados, são pessoas que estão ali mesmo, não são pessoas que a gente seleciona, por exemplo; você está já está tantos anos e você vai ser jurada, normalmente são parceiros, pessoas que estão ali participando, óbvio que se for uma competição nacional, aí tem uma outra questão, escolher um jurada porque está valendo um prêmio grande, não que esses regionais não valem, é valendo uma vaga pra final, pra competir. Aí tem as regras de cada lugar, mas eu por exemplo, participo mais como jurada de alguns Slam ‘s, porque como eu falei, não estou querendo mais recitar online, eu faço os vídeos e coloco lá, mas eu não estou mais conseguindo participar de Lives grandes, online, sentada em casa. Agora eu faço mais vídeos, e às vezes eles me chamam pra eu ser jurada, eu falava: gente eu vou ser jurada, e às vezes eu não consigo. É tão difícil julgar a poesia do outro, julgar um trabalho do outro, então a gente vai pelo critério da emoção.
P/1 - Isso que eu achei interessante, é totalmente do emocional, do sentido, do que te toca.
R - É isso, do que te toca, esse é um dos grandes critérios do Slam. E tem funcionado bastante, está aí há décadas.
01:31:10
P/1 - E aqui na Maré, tem um grupo de mulheres, por exemplo? Ou é um grupo misto?
R - Tem o Slam Maré Cheia, que não é um Slam de Mulheres, é um Slam da galera daqui, tem algumas pessoas da Maré que são do Slam das Minas, são mulheres de várias favelas e tem esse Slam, mas o Slam Maré Cheia é bem legal e vem aí descobrindo vários talentos, foi o primeiro Slam que eu batalhei também, foi bem legal porque eu batalhei com colegas, foi bem a vontade estar com eles.
01:31:50
P/1 - Que tipo de emoção ou envolvimento, que a sua arte ao escrever poesia ou participar do Slam, te trás que nenhuma outra experiência de vida te proporciona? Quer dizer, quando você está ali ou está escrevendo ou recitando, qual a emoção, o que você sente, que nenhum outro momento da sua vida você sente?
R - Eu sempre fui da arte, da música, do teatro, da dança, a dança faz parte também da minha trajetória, só que com o Slam é diferente, porque além de ser o momento de eu gritar o que eu estou sentindo, não só as minhas conquistas, mas as dores também, eu tenho o acolhimento muito grande de quem está em volta, e eu consigo atingir muita gente também, e isso é muito legal, eu me sinto feliz com essa questão. Porque já teve rodas de Slam em que eu recitei, que mulheres vieram conversar comigo depois, falando que passavam pela mesma situação, falando que se sentiam representadas, ou falam: “Nossa você tem um cuidado muito grande em trazer certas pautas e isso é muito legal.” Porque tem um cuidado pra falar de pautas indígenas, outras coisas também. Então, o Slam me trás essa liberdade, no palco, gritando, um trabalho meu e é muito gratificante. Eu gosto muito de estar no teatro atuando, mas estar recitando algo que é meu, que durante um tempo foi desvalorizado, hoje é a minha preciosidade, é muito importante na minha vida. Na Monografia eu até coloquei numa página, um Slam meu, porque eu começo a escrever pensando em reescrever a minha história, e pensando em todas essas questões e todos os lugares que eu estou. Então quando eu finalizo a monografia, eu tenho que finalizar com um Slam, porque é o que vai fazer a liga de tudo, trago muito isso também.
01:33:56
P/1 - Como é que você finalizou a sua monografia?
R - Eu finalizo, não sei se eu lembro, mas eu acho que é a poesia onde eu falo, Maré meu Quilombo, que fala assim: “É ascensão da professora favelada, construindo suas narrativas, mostrando quais são as suas histórias que os alunos vão levar pra casa”
Isso pra mim é… enfim… essa poesia rodou bastante, foi bem legal, essa é a mais marcante pra mim.
01:35:13
P/1 - Beatriz, você falou do seu TCC, que você finaliza com o Slam no seu TCC, você opta por fazer um mestrado na Casa de Oswaldo Cruz, continua nessa interface de história e saúde. Você tem um tema de estudo, muito interessante. Eu gostaria que você falasse um pouco, o que te aproximou dessa temática?
R - Quando eu entro na Fiocruz em 2013, eu entro sem saber o que é a História da saúde, eu falava: “Caraca eu vou estudar a vacina, vou estudar coisas de química, biologia, o que é isso?” E aí eu me deparo com o periódico no jornal do século dezenove, chamado Mãe de Família, que é um jornal de um médico e vários médicos escreviam para as mães da época, para as letradas obviamente, da sociedade fluminense, daqui do Rio de Janeiro mesmo, e escrevia para vulgarizar noções de higiene e de saúde, toda aquela questão do higienismo na época, repreendendo as ama de leite, falando sobre as mulheres não quererem amamentar e tudo mais, e falando todas essas questões, dos filhos das amas ficarem sozinhos, aumentando a mortalidade. Então eu fui me aproximando disso, porque eu fui pensando nessas questões, ama de leite, crianças sozinhas, fui me aproximando desse tema, porque eu via que isso não é de agora, é ancestral né, isso já vem de um tempo, de que a gente fica sozinho em casa, cuidando do irmão. E a minha orientadora, ela me cutucava nisso, ela sempre jogava essas coisas pra mim, perguntando, como era a minha vida, até mesmo pra saber o que eu queria estudar, aí tinha coisas que ela me falava sobre o periódico, e eu falava: cara, isso aqui é muito parecido com o que aconteceu comigo, mesmo sendo em tempos tão diferentes. Cada vez mais eu fui estudando esse jornal, mesmo tendo várias críticas, porque são homens que escreviam para mulheres, repreendendo Amas de Leite que estavam aí obrigadas ou porque eram escravizadas, ou porque precisavam de dinheiro, várias questões. Eu me aproximei desse tema, terminei o ensino médio, defendo esse tema no final do meu ensino médio, defendo ele na Politécnica, e aí na minha Faculdade, no outro ano eu já entro na UERJ, com 18 anos, e no Pibic no primeiro período, a minha orientadora falou pra mim que tem um acervo, que está sem ser utilizado, de uma Casa dos Expostos, que é uma roda de abandonados, onde você colocava a criança numa janela giratória, ela girava e entrava pra dentro da instituição. Ele está lá, pergunta se eu gostaria de transcrever, se eu queria utilizar, eu na hora disse que queria, quero ver, quero dar uma olhada. Fui nesse acervo, era o final do orfanato, onde hoje é um lugar que recebe crianças vítimas de violência, acabou que eu ainda tive contato com as crianças, levei meu grupo de teatro lá, fiz visita, fiquei lá no lugar de vez. Fiquei lá nesse acervo, transcrevi mais de 2 mil registros, de 2016 até 2019, eu transcrevi esse número grande, numa tabela excel, que hoje é a base de dados da Fiocruz.
P/1 - Maravilha, obrigada.
R - Estamos aí… E nesse material, eu comecei a ver como as crianças eram abandonadas. Porque eu comecei a estudar à época de 1870, pra entender se as mulheres pretas vão recorrer à essa instituição, já que é que qualquer pessoa poderia, está dizendo ali, que qualquer mulher pode deixar a sua criança. Fora que o que a gente entende como abandono, é coisa nova, não existia essa coisa de pediatria, não tinha hospital para criança, não existia assistência à infância como a gente conhece hoje, então essas instituições funcionavam como esses espaços de assistência, e eu tentando entender se as mulheres pretas recorriam a isso. Ora, a lei do Ventre Livre nasceu em 1871, se toda a criança filha de uma mulher escrava, depois de 1871 é livre, será que elas vão deixar as crianças nessas instituições, para recorrer à uma liberdade.? Fui estudando, fui comparando dados, fui vendo que não é bem assim, tem uma grande quantidade de crianças pardas, várias nomenclaturas de cor, parda, pardo claro, pardo escuro, que são cores que demonstram a hierarquia da localidade, que iam pela cor. Ser preto é ser escravizado, o número de pardos vai aumentando no final de 1880, por questão de status social, de liberdade, e eu fui entendendo aquilo alí, fui percebendo, até mesmo porque eu tenho acesso às cartas das mães que abandonavam as crianças. Então é forte ver, porque elas eram muitos condenadas, até mesmo no final do século dezenove, quando começa essa coisa de pediatria e institucionalização das profissões de saúde, elas começam a ser muito condenadas, só que elas colocam que elas estão fazendo isso não por amores impróprios, filhos fora do casamento, como a metade do século dezenove como as pessoas falam, mas porque elas são mães solos, na maioria delas. A gente percebe que elas são mães solos, porque se a mãe está doente, ela abandona a criança, porque ela não tem como cuidar, se ela não tem leite ela abandona a criança, se ela está sozinha, se é gêmeos, se está doente, se ele é um cadáver, elas também abandonam cadáveres, eu comecei a reparar essas questões. Tem bastante mulheres estrangeiras também, e tem muitas amas que eu consigo ver nesse material, para onde as crianças vão, para a casa das amas, então é um material riquíssimo.
01:41:35
P/1 - As amas é o quê?
R - As crianças ou eram amamentadas na instituição, porque não tem leite em pó, esse leite que a gente conhece hoje, ou elas eram amamentadas dentro da intuição, por amas dentro da instituição, ou elas vão para criação externa, com amas externas, que recebe um valor, e são levadas a criação externa. Só que aí tem várias fraudes, porque o próprio senhor da criança abandona, depois faz a mãe pegar de volta como ama, pra receber em cima daquela criança. Existem várias fraudes, várias questões, eu atualmente não adentro as questões das Amas, porque são outras coisas e tem outras pessoas que já fazem essa questão. Mas eu fico olhando, fico olhando o meu recorte, meu 1880/1900, eu olho a questão da cor, para entender como dá esse fluxo na virada da república, porque eu vejo que o número de pardos aumenta, ali na década de oitenta, depois diminui em noventa, no Rio de Janeiro, mas a minha pesquisa hoje ela é de Salvador também, porque eu descobri um acervo que não está sendo utilizado, então é meu, peguei pra fazer um recorte pequeno, porque o do Rio já está feito, porque justamente eu sei que não vou responder e vou levar para o doutorado, já pensando… Eu hoje trabalho essa questão racial, pensando nessas mulheres, mães solo, gênero e saúde, porque saúde debilitada às vezes é questão de pobreza. Tem uns autores que falam, algumas doenças do intestino é pelo mau uso da água, pelo lugar insalubre, são essas coisas que eu estou estudando e levando para a qualificação.
01:43:27
P/1 - Hoje como é o seu dia? Você trabalha, estuda, escreve. Como é o seu dia? Como é a sua casa, com quem você mora?
R - Hoje neste período de pandemia, impactou muito, por mais que eu tenha essa vida acadêmica, quem já foi Pibic sabe que a gente não ganha muito, então são 400 reais por mês, e muita coisa da minha renda, esses 400 reais por mês, e a arte. Eu fiz muita arte no ônibus, fiz muita arte no trem, muita arte no metrô, recitava Slam e recebia um dinheiro por algum evento, eu fiz muitos eventos, 2019 eu fiz bastante eventos, fiz festa infantil com grupo de teatro, eu sempre me meti nessas coisas, isso tudo era parte importante da minha renda. Virou 2020 a pandemia, eu já morava sozinha, então pagando aluguel e tal, veio a pandemia e pegou parte da minha renda, foi bem difícil no início. Eu cheguei a fazer apresentações em eventos online, mas depois foi caindo, porque a galera também estava se cansando, eu também e todos nós fomos cansando, minha renda ficou bem debilitada nesse período. Eu já namorava, ela também morava sozinha aqui na Maré, a gente conversou: “Vamos juntar essas contas, vamos ver se dá certo”, e a gente foi ver se rolava. A gente foi morar juntas em março do ano passado, estamos juntas até agora, morando juntas agora já se estabilizou melhor, porque eu passei no Mestrado, aí a bolsa é um pouco melhor, dá pra alugar um lugar melhor, maior, a gente conseguiu alugar um lugar maior hoje, pra eu ter um quarto pra estudar, hoje meu irmão vai na minha casa estudar, ele ainda vive com a minha mãe. Hoje eu morando com ela, a gente se apoia muito, ela faz os meus vídeos, ela também tem essa coisa da arte, isso é bem legal porque a gente se apoia bastante, tanto financeiramente quanto emocionalmente. Porque a pandemia foi muito difícil, ainda mais pra gente que tem essa vida na arte, pra todo mundo, mais pra quem vive com o público e ser professor também é lidar com o público, então eu sempre lidei com a arte também como uma questão de controlar a minha ansiedade, pra controlar como terapia. Até essa questão do estilo também, eu fiquei em casa e não fiz nada, eu não arrumei nada, durante 2020 inteiro eu não cortei cabelo, eu não fiz nada, isso mexeu muito com a minha autoestima, muito com a minha ansiedade, já tive crises maiores, revivi coisas que eu não queria comigo mesma, tendo ela, mas tendo que lidar com aquilo sozinha, foi bem difícil, ainda estou voltando pra esse momento. Como a gente se mudou para um apartamento, agora estou conseguindo ter o espaço melhor para estudar, então está sendo um pouco melhor, mas ainda assim é muito difícil, viver em pandemia, sabendo que meus alunos faltaram porque eles não têm celular, porque eles não têm internet, e eu encontro eles nas ruas às vezes e eles me falam isso. Uma vez eu pedi uma quentinha na minha casa, quem veio me entregar foi um aluno do pré-vestibular, e ele me pedindo desculpas: “Professora me desculpe, mas eu não estou assistindo sua aula porque eu não tenho celular, eu estou trabalhando e vou comprar um celular.” Você fica assim, e aí o que eu vou fazer, não quero mais dar aula?, é muito complicado. Eu vivi muito essa questão e estou vivendo ainda, a pandemia me afetou muito nessas questões.
01:47:30
P/1 - Você tem várias tatuagens no corpo. Você pode porque chegou a fazer e quando?
R - Essa tatuagem é recente, é desse ano, eu já queria muito fazer essa tatuagem, mas eu sempre tive receio. Porque eu estou na Fiocruz desde os 15 anos e por mais que lá seja um espaço em frente à Maré, eu falo que foi na Fiocruz que eu entendo que eu não sou branca, não porque alguém me tratou mal, mas a gente percebe a diferença. Eu entrei lá, “nossa que espaço é esse?”, e por mais que seja em frente à Maré, os meus pais não frequentavam a Fiocruz, meus amigos não frequentavam a Fiocruz, eu ia na Fiocruz tomar vacina e voltava , então quando eu entro na Fiocruz pra estudar, entrar num laboratório, aí já na minha cabeça: “Eu preciso alisar o cabelo pra entrar aqui, tenho que comprar roupas novas pra entrar aqui”, e eu comecei a achar que eu tinha que fazer isso. Quando as pessoas me perguntavam de onde eu era, e eu falava que era da Maré, óbvio que pela equipe eu tive um acolhimento muito grande , mas pelos alunos que transitam por lá, nem sempre foi assim, já teve questões lá dentro que eu passei, que não foram legais, pela galera que vai assistir algum simpósio e acabam me apresentando: “Olha ela está aqui e vai ganhar vocês” eu percebo algumas coisas, alguns comentários, e eu passei por essas questões e demorei muito pra construir essa identidade. Eu pensava, “nossa vou fazer essa tatuagem mas onde eu for apresentar um trabalho vai aparecer que eu sou da Maré e que eu sou de favela.” Mas essa da pandemia, foi esse momento de pensar: “onde eu chegar as pessoas vão saber que eu não sou do asfalto, eu sou de favela, eu posso falar o mais bonito que for, eu posso me vestir o mais bonito que for, mas está dentro da minha essência e está tudo bem. Eu também quis fazer essa tatuagem, porque eu estava passando por uma questão de auto estima muito grande, fiquei com um problema grande de baixa de autoestima nessa pandemia, comecei a tomar medicamentos, porque estava bem difícil de lidar e como eu sempre joguei pra estética, sempre, então eu decidi fazer uma tatuagem porque vai me fazer melhor. A tatuagem foi a saída também, eu conversei com a minha companheira, ela me deu de presente essa, que é uma mulher com duas espadas, uma mulher de chapéu do cangaço, uma cangaceira com duas espadas, porque a minha família tem muito essa coisa das facas, minha mãe gosta muito de faca. Essa tatuagem já está me rendendo questões, eu fui pra um hotel recente na Lapa, com meu irmão, ele está fazendo algumas provas militar, ele também está com muita ansiedade e querendo arrumar um emprego, fazendo prova, se dedicando à várias coisas, aí eu achei uma promoção num hotel e falei com ele pra irmos pra lá, porque assim ele dava uma relaxada, uma respirada, eu também estava precisando e fomos. Chego lá com a minha tatuagem, estava aparecendo, e na recepção do hotel eu tive o meu primeiro baque, o cara perguntou o que estava escrito, o recepcionista, eu: Made in Favela e aí ele começou: “Como é que você tem coragem, que vergonha, você é da favela mesmo?” “Sim, eu sou do Complexo da Maré.” E meu irmão nunca tinha ido para um hotel, ele já ficou ali… “O que esse cara quer?” E meu irmão é muito tímido, e ele já queria ir embora, na hora de tomar café ele perguntava se podia entrar: “Claro, eu paguei”, só que ele já ficou assim. Eu cheguei a reclamar com a gerência, também não fui mal recebida pela gerência, falaram que eu não podia interpretar a posição de um recepcionista com a do hotel, mas ele está dentro do hotel, eu nunca passei por isso, entrei no aplicativo da Defensoria Pública porque o Procon não abre essas questões, mas é muito triste, porque no dia, era tarde da noite, era sexta feira, meu irmão ia fazer uma prova no outro dia, então estávamos todos cansados. A gente acha que vai conseguir reagir a essas paradas, porque nós já estamos acostumados, eu faço isso e eu faço aquilo e vou conseguir reagir, na hora ninguém reage, na hora você só fica, porque que isso está acontecendo comigo. Na hora eu só queria a chave do meu quarto e subir, na hora eu só fui grossa e falei: “Me dá a chave que eu quero subir, eu já paguei.” Eu só fui grossa ali. Vamos ver o que vai ter pela frente, vai criando os calos, mas não era pra ser assim.
01:52:51
P/1 - Sonhos?
R - Sempre tem né! Sempre fui determinada para fazer as minhas coisas, porque eu sempre quis ganhar dinheiro pra sair de casa, esse foi meu sonho e eu consegui, agora é esse, comecei a construir em cima da casa da minha mãe, vamos ver no que vai dar, mas eu tenho muito sonho mesmo em construir essa carreira acadêmica, porque eu continuo sendo a primeira da família, dentro de uma Universidade, quero muito que outras pessoas entrem na Faculdade, já estou incentivando todo mundo entrar na Faculdade, mas eu continuo sendo a primeira da família, e é o que eu espero, terminar agora o Mestrado, ingressar no doutorado, estou fazendo uma escola de intercâmbio, vamos ver se vai dar certo, estudando inglês como uma maluca, porque é uma dificuldade que eu tenho mesmo, quem sabe um dia ser uma professora universitária, eu faço várias metas para os meus planos, sou capricorniana né, faço várias metas e uma hora vai, eu sou chata, uma hora vai.
01:54:01
P/1 - Como você se vê hoje? Mulher, moradora da Maré, historiadora, poetisa de Slam, como você vê hoje a Beatriz?
R - É muito complexo, porque eu também perco de vista isso, eu só percebo quando outras pessoas falam, quando meus alunos falam, muito louco, quando a minha companheira fala, minha mãe fala, principalmente meus alunos. Eu já dei aula para crianças, num projeto na Buzina, eu dava uma aula chamada Voz do Buzineiros, era uma roda de conversa que a gente falava sobre várias questões, que os alunos mesmo traziam, porque eu dava reforço escolar, eu percebi que ninguém trazia dever de casa, eu falei: “Não vai funcionar, vou fazer outra dinâmica.” Eu levava uma cartolina em cada aula, em cada encontro, e lançava um tema: “O que vocês acham sobre isso?” e a gente falava várias coisas, eu percebi que a vida deles era muito parecida com a minha e eles foram se identificando, mas era muito engraçado, porque eles não achavam que eu morava na Maré, eu dava aula na Vila do João e eu falava: “Gente eu moro no Pinheiro tá?” e eu brincava assim, “ah eu fui num baile”, e eles achavam que eu não morava aqui, e eles achavam que eu morava em Copacabana, porque professor, aí teve um dia, que aliás é daí como eu me sinto, eu estava na porta de casa e um aluno passou e viu a minha casa, eu estava entrando em casa e ele passou com os amiguinhos, devia ter uns 9 anos ele, aí no outro dia no encontro ele falou pra todo mundo: “A tia mora no Pinheiro mesmo, em frente o bloco tal”, pronto, ali criou-se uma identificação, um elo forte. Hoje eu encontro essas crianças, que já não são tão criancinhas mais, mas a gente se encontra e é muito legal, porque eles já sabem onde eu moro, eles falam: “Tia vou passar na tua casa”, eu gosto muito dessa relação, ás vezes é chato porque você está num baile, mas eu amo e tenho muito carinho por eles.
01:56:15
P/1 - E a ideia de que mora aqui, é professora, pode ser professor né? Isso é importante.
R - E eu entendo porque eles não enxergam, porque eu também não enxergava. os professores falavam que era daqui e eu achava que era coisa do outro mundo. Eu encontrei um professor no baile, foi uma coisa maneira, o cara é acadêmico, faz faculdade e está no baile. Eu cresci a vida toda ouvindo, que baile não era lugar de pessoas que fazem faculdade, baile não era lugar de meninas de casa, aí quando eu deparo com essa galera frequentando esses espaços eu vi que não é bem assim que funciona. Pra mim é muito importante por isso também.
01:57:03
P/1 - Você gostaria de comentar mais alguma coisa? A gente vai finalizar. O que você achou de compartilhar um pouco com a gente?
R - É diferente falar sobre a minha trajetória, não costumo falar, algumas coisas mexem um pouco comigo, espero que saia um trabalho bonito, e é isso.
01:57:28
P/1 - Então eu te agradeço, agradeço imensamente por esse compartilhar, obrigado Beatriz, obrigado equipe.
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