Projeto Belo Horizonte Surpreendente
Depoimento de Márcia Clementino Nunes
Entrevistada por Lucas Torigoe
Belo Horizonte, 18 de setembro de 2019
Código: PCSH_HV821 _ rev.
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Fernanda Regina
Revisado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 — Qual é o seu nome inteiro, Márcia? Onde você nasceu e em que data?
R — Márcia Clementino Nunes, nasci na cidade do Serro, Minas Gerais, em 29/10/1959.
P/1 — Você sabe ou lhe contaram qual foi o hospital em que você nasceu, como é que foi esse dia?
R — Sim, nasci na Santa Casa do Serro. Todos nós nascemos nesse hospital, embora morássemos em fazenda. Nasci lá e...
P/1 — Sua mãe lhe contou como é que foi... Seu pai...?
R — Não, a data, o momento do meu nascimento, não, mas eu tenho dois irmãos acima de mim, então eu sou a primeira menina, não é? Isso sempre muda um pouco no contexto familiar, assim. Então, decerto, foi comemorado, eu creio, de modo especial por ter sido uma menina. E o meu nome, Márcia, faz, inclusive, uma homenagem: parte do meu nome - “Mar” - vem de Marcílio, meu pai, e “Cia”, de Lúcia, minha mãe. Eu achei isso em um diário dela, ela nunca, de fato... Acho que ela não se lembrou de me contar isso, mas eu achei curioso como meu nome foi composto. Isso me honrou muito.
P/1 ─ Não sabia que era composto?
R ─ Não, não sabia que era composto para essa homenagem. Eu achei que, como é um nome comum, eu imaginava que esse nome tivesse sido por pura simpatia ao nome, mas foi pensado em juntar esses dois fragmentos de nome que, como eu falei há pouco, me honrou, porque eu me sinto muito… Fortaleceu muito meu elo ainda, até no nome, no modo como meu nome… Não é? Então aí... Bom, nós somos de uma família muito grande, somos 11 filhos, eu sou a terceira deles. E, na sequência, muitas crianças sempre chegando e a mamãe sempre muito intensa, muito afetuosa, muito atuante, ela era muito atenta à dinâmica social e cultural. Sempre envolvida com muita panela, muita comida, muita festa, muito movimento para fazer eventos que contribuíssem socialmente com um grupo com mais necessidade, uma vida muito intensa. Ela sempre muito, também, focada em fogão, em alimento. Bom, e no interior, em fazenda. E ela, nesse momento, depois que nós nascíamos, a gente voltava para a fazenda. E a primeira memória que eu tenho, assim, de criança, é justamente a gente indo para a escola, porque ela nos levava. Ela ia em um cavalo, inclusive... Eu tenho, assim, uma memória curiosa, ela sempre falou dela e eu tenho - é uma das mais antigas que eu tenho - ela no cavalo, com meu irmão mais velho atrás, o mais novo à frente, e eu assim, ela falava: “Na barriga da cela”. E ela já grávida de novo, porque somos 11. Nós íamos para a escola, ela dava aula para crianças filhos de agricultores, de lavradores, então de pessoas de origem muito humilde. Ela, com essa personalidade muito intensa, com muito fogo de vida, faz um gesto, assim, que vai marcar tanto a vida dela, como futuramente a minha também. É que, vendo-a muito jovem... Ela se casou com 20 anos e voltou para a fazenda, formou-se professora, como todos faziam: fazenda, cidade para estudar, fazenda. Cidade para nascer, fazenda. Era assim nossa vida. Mas, então, ela, como professora de escola rural, percebia que não havia, nesse tempo, merenda escolar, então, as crianças traziam coisas para comer. Traziam uma batata-doce cozida, cará, mandioca, banana. Ela percebeu, assim, que eles, em um gesto extremamente curioso, que parece exótico, mas aquilo chamou muito a atenção da professora que existia nela, da educadora, via que eles escondiam no mato quando o alimento era muito rústico. Mas quando eles traziam bolo, uma rosquinha, alguma coisa assim, uma quitanda - que a gente em Minas chama quitanda - eles exibiam, comiam perto do coleguinha. Isso é muito natural em criança. Mas ali, naquele momento, para mamãe não foi visto como uma coisa natural. Ela falou: “Nossa cultura alimentar está sendo levada para o mato, eu preciso resgatar, achar um modo de que essas crianças, sem ofendê-las, sintam orgulho daquilo que está sendo guardado no mato”. Então ela cunhou uma expressão chamada “merenda escondida”. E aí: “Eu quero trazer essa merenda que está escondida para cima da mesa, quero colocá-la sobre a mesa e dar a ela o valor que ela tem, que é um patrimônio gastronômico riquíssimo, alimentar, e nosso!” Ela chamou os pais para uma reunião, todos os pais vieram - o que também nunca havia sido feito; são gestos, assim, de vanguarda mesmo - chamou os pais para uma reunião, os pais vieram e ela falou: “Olha, seus filhos andam muito para vir à escola, ninguém aprende com fome, eu queria que vocês me ajudassem a fazer uma merenda para eles, porque daí a gente faz juntos, todos nós contribuímos e as pessoas alimentadas. E não tem o trabalho de cada um trazer”. E eles, com uma expressão muito, assim, “rústica”, de dizer, falaram: “Uai, dona Lucinha, a senhora está doida? Nós não temos, nós somos pobres, nós não temos como ajudar a senhora... A senhora é quem pode fazer”. Ela falou: “Não, mas se eu mandar dizer amanhã que cada um dos seus filhos vai trazer um pedaço de mandioca, isso vocês têm?” “Ah, isso nós temos!”. “Então tá, amanhã... Eu vou sempre mandar o recado: amanhã é o dia da mandioca, o dia do cará…”. E ela começou a fazer merendas compartilhadas, ela preparava... Se era mandioca, ela fazia o melado, comiam mandioca com melado, mas faziam coletivamente. O mais bonito é que ela preparava essa merenda com eles. Então, ela está fazendo uma coisa tão encantadora, tão rica. Eu acho que isso é geral, eu me comovo com o modo como ela começou a se envolver, com o nome dela, com o que, depois, ela fez pela cozinha de Minas, pelo resgate, pela preservação, pela divulgação, pela busca de valor. E ela... Estamos falando aqui de 60 anos atrás. Então, era um contexto histórico de desvalorização, de vergonha do nosso patrimônio alimentar. Ela fazia isso com as crianças e foi ficando tão consolidado na vida dela que, quando ela mudou para o Serro, quando chegamos ao tempo de outra escola, que não era mais a dela - ali eram as primeiras letras – quando o meu irmão mais velho chegou, no momento disso, aí a família toda mudou, nós mudamos para o Serro, nossa cidade natal, lá foi transferida como diretora escolar, como diretora escolar, ela logo já tinha um espaço muito maior para ela. Então ela fez horta, levou uma vaca da fazenda para tirar leite, os meninos tiravam leite de manhã, faziam a merenda toda também. Eles plantavam a horta, ela tirava o leite com eles. Então, foi uma história nova na cidade, na vida, a um ponto que isso foi levado tão a sério por ela que o próprio Secretário de estado de Educação foi visitá-la, falou: “Nós temos que levar esse projeto para o estado, é muito importante o que a senhora está fazendo aqui, dona Lucinha”. E junto disso, como professora, ela muito atuante, se tornou vereadora. Ela foi quitandeira, feirante, levou pela primeira vez à nossa cidade uma banca de revista, levou uma banca de frutas, isso com 11 filhos. Então, nós estamos falando de uma pessoa extremamente vibrante, realmente. A partir daí, em um determinado momento, meu pai, que sempre apoiou muito a mamãe e fazendo uns parênteses assim, que eu sei que o foco é buscar essas lembranças... O papai e a mamãe são primos de primeiro grau. Então, vou parar um pouquinho nessa coisa antes de falar deles. São primos de primeiro grau. Quando eles começaram a namorar e falaram da intenção de casar, nossos avós acharam que era um absoluto absurdo, porque o parentesco era um primeiro grau muito próximo, porque aí eu teria que falar uma coisa que é meio complicada do ponto de vista familiar: meus avós, paterno e materno, são irmãos, porque o meu bisavô perdeu a esposa muito jovem, teve alguns filhos, se casou com a... Ai, meu Deus, agora eu me confundi. É bastante confusa essa história, vamos deixá-la para lá. O fato é que ele são muito primos, o pai da mamãe é irmão, por parte de pai, da mãe do papai. É isso que é o nosso, por parte de pai, apenas. Então sempre cresceram todos juntos. Com essa história deles se casarem, os pais deles mandaram buscar um bispo, que, à época, era serrano, mas que morava no Amazonas: ”Não, só se o bispo falar que pode, porque como é que a gente vai deixar vocês se casarem?” Então, a história deles já era diferenciada. O bispo falou: “Não, eu prefiro que um médico diga, eu acho que se o médico... Eles se amam, querem se casar, deixa eu ver porque aí a questão agora é de saúde”. Aí a mamãe fez exame de sangue, não deveriam se casar, do ponto de vista do médico, mas ela camuflou esse resultado, não sei como, determinada que estava a casar, se casou e ela tem uma vida... Ela sempre foi muito religiosa e, ao longo de toda a vida, enquanto ela viveu e teve filhos, pelo menos durante o tempo em que ela ainda estava... Na hora das missas, ela ia e comungava. E não tem aquele ritual do vinho? Ela pedia a Jesus que mudasse o sangue dela, fato que, seja por fé, por milagre, ou por natureza, por benção, nós somos 11 e nenhum de nós... Porque, de fato, é um risco genético. Enfim, essa história do casamento dos dois foi muito bem-sucedida sob esse aspecto, que seria fundamental para a felicidade deles. Então, a mamãe indo para o Serro, papai sempre foi fazendeiro e político, se candidatou a Prefeito naquela época - dos anos 60 para 70. Sempre a mulher do Prefeito, da autoridade local, é quem recebia. O papai também era muito audacioso, muito idealista, achou que era o momento de fazer uma campanha política em prol do casario, que estava em extrema decadência. Ele tinha relacionamento com José Aparecido de Oliveira, que era então Secretário de estado de Cultura, depois ele foi Ministro, mas nessa época, Secretário de estado, ele falou: “Zé...”. Meu pai é José Marcílio. José Aparecido: “Zé, nós temos que fazer uma campanha, olha como é que fica um patrimônio desses, uma cidade que é a primeira cidade a ser tombada como patrimônio arquitetônico, está caindo”. Aí, eles fizeram uma campanha, o Secretário José Aparecido se chamava José... A ‘Campanha dos Três Josés’, como ficou conhecida, foi uma campanha tão intensa e tão poderosa, que até o “Le Monde” noticiou. E a imprensa ia a todo momento para Serro, para documentar – jornalistas, políticos - porque a Campanha foi... E a mamãe recebia a todos - independentemente do nível de pessoas que iam, do grau de importância ou de fama, ou de poder político - com canjiquinha, com costelinha, com cachaça. Falava: “A cidade é pobre, esse alimento é rico, nós é que não sabemos a importância que ele tem”. E servia. E os familiares nossos... Isso eu era muito criança nessa época ainda, falavam: “Lucinha, você é doida, isso é comida de porco para servir para visita”. Porque era angu, canjiquinha... Agora mesmo, eu estava contando para um pessoal, dando um salto assim na conversa, nós fomos participar de um festival de cozinha mineira nos Estados Unidos e a mamãe ia dar uma aula para mulheres de jornalistas americanos, ensinava a fazer um prato bem típico, ela servia um consumê de canjiquinha e um tropeirinho. Ela tinha tradutor e tudo, eu me lembro que eu achei, assim, genial, uma jogada dela. Ela falou: “Olha, na minha terra isso é comida de pássaro, mas os mineiros adoram”. Então, foi aquele riso coletivo da espontaneidade dela, porque canjiquinha, por exemplo, é um farelo de milho, ela servia. Servia isso, servia cachacinha, porque antes dela, buscava-se o que podia e o que não podia para agradar. Um vinho, uma coisa... Ela não, então ela passou... Aí, isso deu muito poder a ela, muita força, muito reconhecimento a partir disso, essa determinação, o modo como ela serviu, o valor que dava, a defesa que ela fazia do nosso patrimônio alimentar foi escutado fora de Minas. Ela começou a ser chamada para fazer festivais e mostrar isso fora de Minas. Então, ela foi para Belém do Pará; Brasília, várias vezes; São Paulo; Rio de Janeiro, tudo quanto é lugar que chamava. Ela levava as cozinheiras locais, levava panela, levava ‘orai pro nobis’, levava tempero. Então foi assim, ela passou 20 anos da vida dela assim: falando da cozinha de Minas pelo Brasil afora, até que ela sente que chegou o momento. De novo a questão dos filhos, aí chegou o momento dos filhos precisarem trabalhar, então ela já saí do Serro para dar uma oportunidade de trabalho aos filhos, abriu esta casa onde nós estamos, em 1990 - já é uma empresa familiar. Ela já veio também trazendo para nós a compreensão daquilo que ela fazia e nos ensinando a levar à frente todo o trabalho dela. Então, resumidamente, essa é a história da mamãe, sempre com muito apoio do papai, ela não teria sido, na geração dela, do ambiente em que ela vivia - que é uma cidadezinha histórica, barroca, onde a mulher quase não era vista... Inclusive, nomeava-se assim: por exemplo, eu sou Márcia, de Lucinha, de Marcílio, de Antônio, de Eucebides, é assim que você identifica; então vai até a quinta geração mas, geralmente, do macho, do homem, da linhagem patriarcal. Mas a mamãe contou tanto com o apoio do papai - isso eu acho lindo, sabe? - que toda a vida ele se orgulhou de vê-la crescer, de realizar, porque ela não teria chegado tão longe como ela chegou, com tanto reconhecimento, fazendo tudo o que ela fez, se ele não tivesse apoiado. Eu penso que não, acho que dificultaria. Então, a imagem que eu fui elaborando, desse processo, observando à distância, um pouco dentro mas fora, é como se mamãe tivesse uma escada à frente e sempre papai a projetando para dar suporte. Imaginei, se fosse o contrário, ele ia puxar a perna dela. Então, essa é uma imagem que eu tenho dela e ela ganhou uma projeção enorme. Falando até - assim, por livre associação – ela, em outro momento, nós estávamos também nos Estados Unidos, no Instituto de Culinária da América, era o encontro de sabores latinos, então foram convidadas pessoas para representar a cozinha de cada país. O Brasil tem um tamanho continental, então em um primeiro momento parece que a Universidade estava com a intenção de levar um chefe de cozinha baiano, uma cozinheira da Bahia, porque eles achavam que era a cozinha mais nacional. Mas nós não sabíamos disso. Em um momento o convite chegou para nós, e era o prato escolhido para falarmos dele, levarmos para degustação, era feijoada, prato nacional. Ao final do evento, essa discussão que houve na escola sobre quem levar, uma das pessoas era estudiosa de literatura brasileira, isso é importante para o derradeiro, para o encerramento do... Na noite do encerramento do evento, ela pediu a palavra - a professora do Instituto de Culinária da América - e falou: “Olha, eu queria dar um depoimento aqui, que quando a gente pensou nesse Encontro de Sabores Latinos não foi difícil decidir o chefe do Chile, da Argentina, mas foi muito difícil decidir qual cozinha representaria o Brasil, não é? Uma cozinha amazônica? Ficou um peso muito forte para a Bahia, mas eu insisti muito que fosse a cozinha de Minas”. Porque ela tinha conhecido um trabalho nosso, chamado “História da Arte da Cozinha Mineira” e ela viu ali um argumento que a gente levantou, de que a cozinha mineira é uma cozinha de síntese étnica, porque ela é feita de uma influência tão africana, quanto europeia, quanto indígena, de modo muito equilibrado. Ela, então, insistiu lá que levassem a dona Lucinha; ela, estudiosa de literatura brasileira, falou no encerramento: “Olha, aconteceu tudo isso dentro da Universidade, eu queria dizer para vocês que nós estamos extremamente realizados com a pessoa que nós trouxemos, porque nós trouxemos a Dona Flor do Brasil”. Então ela fez um paralelo com a obra de Jorge Amado, aí, enfim, a mamãe marcou muito o tempo dela aqui, agora ela faleceu recentemente. Eu me sinto cada vez mais harmonizada com o trabalho dela e o maior elo entre eu e ela, inclusive, não foi nem um elo de nascimento não, porque a minha vida foi... Eu mudei... Assim... Eu fiz uma vida acadêmica, fui estudar História, pesquisar, fui professora, mas a maternidade acabou me trazendo um pouco, porque eu tive filhas gêmeas e o restaurante que ela havia fundado estava com extremo sucesso e eu vendo, assim... A escola sempre é muito difícil, muito trabalho para levar, as meninas crescendo, uma queria caneta, outra queria papel, eu levava muita prova para corrigir. Aí, as minhas colegas de trabalho falavam assim: “Marcinha, você gosta de dar murro em ponta de faca. O que você está fazendo aqui? Você está ficando doida? Olha o restaurante que vocês têm”. O restaurante era um sucesso na época em que abriu, porque ela já abriu com uma bagagem muito grande. Ela, com essa história toda, foi, assim, uma explosão. Mas não era a minha praia, eu nem sabia por onde começar a chegar aqui, mas com as criancinhas, eu falei: “Ah, não, aí eu posso dar uma ajuda”. Fui lá e falei: “Mãe, eu tenho intenção de pedir licença sem vencimento, cuidar das meninas e contribuir de algum modo”. Porque cozinhar eu não sabia, administrar restaurante muito menos, aí ela falou: “Olha, eu tenho uma tarefa para você”. Ela me deu uma tarefa que já foi um grande chamariz, ecoou muito fundo em mim. Ela era muito amiga de um escritor chamado Oswaldo França Júnior, conterrâneo dela, que em todos os eventos que ela fazia, ele participava, quando eram esses fora de Minas, como eu te falei. Quando ele ia receber prêmios de literatura, ele também a convidava .E teve um momento em que ele estava recebendo um prêmio importante de literatura - ele é autor de Jorge, um Brasileiro. Então ele foi chamado de “pena de ouro” e, no discurso de agradecimento, ele falou: “Dona Lucinha, a senhora, com suas colheres de pau e suas panelas de pedra, divulga mais Minas e nossa terra do que eu com a minha caneta de ouro”. Bom, então eles tinham esse elo: ele reconhecia o trabalho dela, e ela o dele. Ele falou: “Eu quero, o dia que você fizer a sua casa, eu quero uma mesa para ser o meu cantinho, um dia você vai ter a sua casa”. Ele que cantou a pedra que um dia ela teria um restaurante. Aí, a mamãe, quando decide fazer o restaurante, fala: “Eu vou fazer uma homenagem ao França e ter a ‘mesa do França’”. No entanto, seja pelo tumulto que é inaugurar uma casa, seja porque aconteceu uma fatalidade, um ano antes disso ele morreu. Ela achou que estava recente a memória dele, então quando aconteceu, em 1993, mais ou menos... Isso... As filhas nasceram em 1992, de 1993 para 1994, que eu levantei a possibilidade de ajudar em alguma coisa, falou assim: “Você vai então organizar uma homenagem ao França Júnior”. Nós bolamos uma homenagem onde a gente pediu mensagens escritas de escritores - até Jorge Amado mandou, inclusive nós pedimos manuscrita, a única mensagem que não veio manuscrita foi a dele, porque ele estava, na época, cego; então a Paloma, filha dele, falou que ele ditou para a secretária e só assinou. Fiz uma noite linda, de fechar a rua, com festa, com tudo, inaugurando o “canto do França”. Depois, uma coisa eu comecei a ver: todo dia chegava um estudante, um pesquisador, um jornalista para falar das raízes da cozinha mineira, para falar um pouco com ela, porque ela, quando veio abrir essa casa, estava tão consolidada, assim... Conhecimentos, uma bagagem sobre o nosso patrimônio alimentar, que ela tinha procurado uma pesquisadora local, falou: “Me ajuda a fazer uma seleção do que representa a cozinha de origem de Minas Gerais e da minha terra”. Então elas fizeram o levantamento, porque tinha que fazer uma seleção, tem milhões de pratos em Minas Gerais, não é? Como um todo mesmo na nossa região e tem ainda a questão do espaço, não é? Então, fez uma seleção. Fazendo essa seleção, ela atinou com uma coisa que, depois, virou uma ciência da nossa cozinha. É que a cozinha de Minas não poderia ser tratada em um bloco só, ela tinha dois grupos: a cozinha do tropeiro e a cozinha da fazenda. A cozinha do tropeiro era uma cozinha ambulante, que Minas, distante do litoral como era, a chegada, tudo, dependia de ser vindo do litoral e toda... Toda a nossa produção tinha que sair. Mas o que comia esse povo que vinha, que eram os tropeiros, que eram em grande quantidade? Aí, ela falou: “Era uma comida seca, a base é farinha, é carne de lata, é rapadura, é feijão”. “Então, eu vou tratar os pratos, vou tratar, meu restaurante vai ser separado por dois elementos: cozinha da fazenda e cozinha do tropeiro”. Cozinha da fazenda, na verdade, no certo momento, ela usou esse nome, mas Minas Gerais, quando começa o processo de ciclo do ouro, quando ele se estabelece, Minas não nasce rural, nasce urbana, porque descobre-se o ouro, faz um assentamento, é um arraial, é uma vila, é uma cidade, é uma Comarca. Então assim era. Só com a decadência do ouro é que houve a ruralização da economia. Então a fazenda vira um polo de produção, as pessoas passam a viver da terra, do gado. Mas, em um primeiro momento da nossa história não, é urbano. Só que a cozinha da fazenda podia ganhar esse nome porque a casa da vila, a casa urbana, tinha quintal, tinha horta, tinha pomar, tinha chiqueiro, são as grandes casas com quintais. Aí, essa cozinha então, da fazenda, o que ela é? É uma cozinha que pode ser molhada, a base dela é o angu, aí tem sempre couve, porque se você tem horta, busca sempre couve, pratos ensopados. Porque o angu é base, então vem o frango com quiabo, vem tudo, tudo que a gente conhece sobre a riqueza da cozinha mineira, esses pratos clássicos, que são diversos: rabada com agrião, dobradinha com feijão branco, feijão tropeiro, frango com quiabo e ‘orai pro nobis’ ao molho pardo, a maior parte deles usando angu como base e a couve como complemento, até lindamente, porque são as cores da nossa bandeira - verde com amarelo.
P/1 – Você estava falando como é que sua mãe e você dividiram o menu, a cozinha, que era a cozinha do tropeiro e da fazenda, você explicou...
R – É, então a cozinha... Esses conceitos de cozinha da fazenda e do tropeiro, foram assim... Caíram como uma novidade na cidade, todo turista queria vir a esta casa, todo artista, todas as famílias, porque encontravam sabores que já não estavam dando sopa por aí afora, e foi um sucesso absoluto. Tanto que nós somos 11 filhos e mamãe tinha aquela intenção também de ajudar os filhos em uma oportunidade de trabalho. No primeiro ano, o sucesso foi tanto que um ano depois ela abriu mais uma casa; no terceiro ano abriu outra casa, já em São Paulo; passaram-se dois anos, mais uma casa em São Paulo também. Então nós ficamos por uns dez anos com quatro Casas Dona Lucinha, todas administradas por filhos. Ela se desdobrando em todas elas, mas esse conceito acho que foi assim fundamental para o sucesso da casa, porque trazia curiosidade, despertou uma visão, deu uma ideia de que havia muita cultura naquilo que ela estava fazendo. E o turista... Hoje eu tenho, assim, uma visão: a minha experiência, que mostrou que o turista é ávido por cultura. Se tem uma coisa que ele volta com conhecimento, aquilo faz uma diferença imensa para ele. Aí, bom, os anos todos se passaram com esse conceito e eu brinco que eu vim para levar à frente o trabalho dela, mas, por outro lado, para mexer um pouco também. Há uns cinco anos - por volta disso - eu tomei conhecimento de um fogão ecológico que um mineiro estava fazendo, porque uma coisa que era sempre perguntada a ela: “E o fogão a lenha, que é tão da alma do mineiro, onde é que ele fica?” Ela falava: “Aqui não pode ficar”. Eu estou no centro, por exemplo, esta casa está na Savassi, as pessoas vêm de terno, de gravata, vão para uma reunião, fogão provoca fuligem, fogão pede um lugar para ele, pede um ambiente, ela achava que seria desequilibrado ter um fogão a lenha em um ambiente como esse. Eu dou razão a ela porque, de fato, emite muito calor, muita fuligem. Mas, passado um tempo, eu tomei conhecimento desse estudo que um mineiro estava fazendo, de fazer um fogão a lenha, de transformar, ele estava interessado em uma nova tecnologia do fogão a lenha, então é o ecofogão. Eu achei isso curiosíssimo e falei: “Gente, eu poderia bem - já que a gente tem dois buffets, fazenda e tropeiro - eu poderia transformar o ambiente que vai ter o nome de cozinha da fazenda, mas como ele é menor, é uma coisa mais... Mas eu vou tirar um buffet e vou misturar os pratos, que não vai dar para ficar tudo da fazenda no fogãozinho a lenha”. Aí, eu fiz uma certa confusão com esse conceito dela, mas, por outro lado, eu agreguei um valor muito grande, porque o fogão... A gente pôde ter um fogão a lenha, que era sempre o sonho dela mas ela achava que não era lugar para ele. Ao menos como demonstração, ele não emite fumaça, não emite calor, então ele tem a graça e a lembrança da importância do fogão a lenha para a nossa cultura. Aí eu fiz e liguei para ela. Nessa época, ela já não estava muito frequente aqui, já um pouco afastada por razões de saúde, eu falei: “Mãe, eu estou pondo um fogão a lenha aqui”. Ela falou: “Onde?” Eu falei: “No salão”. “Uai, mas como? E a fumaça?” Eu falei: “Ele não tem”. “E o calor?”. “Não tem”. Ela ficou meio sem compreender, mas ela confiava em mim. Aí, um dia, ela foi chamada para fazer uma entrevista aqui, eu deixei o fogão aceso, lindo, cheio de pratos, ela entrou, foi das emoções, assim, que eu acho fortes que eu tenho, que tem coisa que você tem aquele flash de lembrança de uma pessoa, de uma situação, de um contexto, essa ficou tatuada em mim. Ela tinha os olhos azuis muito grandes, quando ela entrou e viu o fogão aceso, dentro do salão, foi muito comovente, porque ela ficou assim, já foi rodeando o fogão e olhando, mexendo nas panelas e falou: “Márcia, como é que pode isso?” Porque da geração dela, fogão a lenha era... Não sei se vocês já viram um fogão a lenha, a cozinha é cheia de picumã. Cora Coralina tem um poema belíssimo, que chama “Todas as mulheres”. E ela trata da mulher cozinheira e fala: “Cozinha pretinha, toda cheia de picumã, taipa de lenha, porque lenha...”. Enfim, esse não é... Então assim... Eu rompi um pouco o conceito em parte, que a gente sabe que a cozinha de Minas tem, de fato, essas duas vertentes, mas ficou um pouco... Eu agora juntei as estradas, entendeu? Tem o fogão, tem o buffet, mas tudo com os pratos meio misturados, mas tem a representação de todos eles aqui.
P/1 – E hoje, quantas casas estão ativas?
R – Com a marca Dona Lucinha são três. Em São Paulo, ficamos com uma casa apenas, com o passar do tempo são três.
P/1 – Duas são aqui em Belo Horizonte?
R – Esta é a nossa casa matriz e ela manteve sempre... São trinta anos esta casa. A construção desta casa é fato curioso porque nós nascemos em uma cidade barroca, os sobrados são os sobrados antigos, então nós crescemos nessas casas. Quando meu irmão - um dos meus irmãos - achou esta casa para alugar, ela era extremamente moderna, moderna, mesmo: teto de gesso rebaixado, iluminação dicroica, laguinho de peixe na porta, e nós que morávamos sempre em prédios mais velhos, de assoalho, de esteira, achamos a casa a coisa mais linda do mundo. A mamãe falou: “A casa está ótima, só que assim não me serve”. Chamou o mestre de obras, marceneiro: “Eu quero dormente, esteira...”. Então, tudo que era moderno... Olha só, que visão, você já pensou ela trazer uma cozinha tão de raiz, em um ambiente que não tinha nada a ver com ela? Então, o lago de peixes foram armários de demolição; as janelas da casa tudo em dormentes, tirou tudo e mandou tecer esteiras de taquara. Então é muito moderno que ela fez isso, de trinta anos atrás o que hoje é um templo, hoje é um templo de cultura mineira, de gosto colonial, de decoração. Ela deu ambiente à cozinha.
P/1 – Você estava falando da casa, não é?
R – Aí a mamãe quis a casa com a cara daquilo que...
P/1 – Ela cresceu.
R – Que era a nossa... Era o contexto da cozinha em que ela ia cozinhar, o que ela fez muito bem porque ia ficar uma desconexão absurda, mas para nós, a gente queria aquele ambiente novo, lindo. Mas, enfim, ela estava certa e, curiosamente, virou história. Porque não havia esse gosto, na época, de dormentes rústicos, por exemplo. Um dia, ela... Nós temos uma peça na varanda, que ela faz um arco, ela chegou, os marceneiros estavam aplanando, ela falou: “Não, pelo amor de Deus não faz isso”. Eles falaram assim: “Dona Lucinha, depois que a gente fizer a sua casa nós não vamos ter mais trabalho na cidade, que eles vão achar que a gente é sem capricho”. Então tudo dela tinha história, ela falou: “Não, é isso que eu quero. Vocês vão conseguir sim, é que eu preciso dessa casa rústica”. Bom, enfim, ficou a casa até hoje, graças a Deus, são passados 30 anos e ainda encanta as pessoas, criou uma harmonia muito boa no espaço e uma energia muito bonita porque há pessoas que me dizem: “Márcia, você está a 30 metros do coração, por exemplo, da Savassi, tão próxima, um quarteirão, 30 metros da Contorno. E você entra aqui é como se você se transportasse para o universo de origem nossa”. Então isso comove muita gente, em uma cidade que virou cosmopolita. O mineiro é muito apegado às raízes e o turista, de modo geral, também deseja, ele tem uma imersão. Há momentos curiosos em que eu vejo pessoas, de fato, se emocionarem, se emocionarem, assim, porque lembraram da avó, da mãe, do não sei o quê, enfim. Então, ela tem algo que diz, a casa diz, a cozinha diz. Eu acho que era o grande desejo de mamãe, então ela fez uma coisa que ela sabia o que estava fazendo e ela permanece acontecendo, mesmo com ela, agora, à distância, não é? Então é um pouco da história da casa e da nossa cozinha. Bom, enfim, depois que a gente fez o “cantinho do França”, ela me deu uma segunda tarefa. Aí ela já foi me encaminhando para um outro caminho. O fato é que, quando as minhas licenças sem vencimento - de todas as escolas que eu tinha - venceram, eu não sei que dia foi, eu nunca mais voltei à escola. Esse passou a ser meu lugar, curiosamente, o que não era, eu não tinha a menor... Parecia que era um universo, mas é um conceito meio assim, dos contrários se atraem, porque o contrário de mim, virou eu própria (risos). Mas aí eu era muito procurada por pessoas, estudantes, para falar sobre cozinha mineira, falar sobre essa coisa da cozinha da fazenda. A mamãe escrevia muito, ela estava sempre... Ela era antenada mesmo, fazia textos falando da cozinha da fazenda, textos sobre a cozinha do tropeiro, fazia poemas narrando a história de cada ingrediente que ela achava fundamental para a nossa cozinha. Por exemplo, ela escreveu um poema chamado “As mil faces do milho”, onde ela narrava tudo do milho, tudo que se faz do milho, a importância do milho, desde a ancestralidade dele, até tudo que se pode fazer com ele, até óleo, que agora faz, ela fez um... Porque ela compreendia, ela pensava muito como professora, que, para criança, para gostar, para ter interesse sobre as coisas da nossa história, se você poetizasse, fizesse de modo lúdico, aquilo tocaria muito mais profundamente a criança; então ela fazia esses versos. Enfim, ela começou a falar... Uma pessoa de mil afazeres, mãe de onze filhos, quatro restaurantes, viajando a todo momento para representar a cozinha de Minas e falava que queria fazer um livro. Eu falei: "Mãe, pelo amor de Deus, não há espaço de tempo e de energia para uma coisa”. “Ah, tenho que fazer um livro, um livro, um livro”. E eu entendia que fosse um livro de receitas, até que houve um momento que eu achei inacreditável: eu entrei no nosso escritório, a mamãe estava com um caderninho na mão - eu tenho esse manuscrito - desenhando, ela estava só com um caderno de espiral, estava com caderninho de espiral e caneta, acho que nem um lápis ela tinha, de pauta, desenhando os fogões, desenhando o fogo de chão, desenhando o fogão de cupim, fogão de jiral, fogão de três pedras, fogão de não sei o quê, o forno. Aí eu a vi desenhando, eu falei: “Mãe, por que você está desenhando?” “Porque eu acho que a gente precisa, no nosso livro, falar sobre a evolução dos fogões. Porque não há como... As receitas evoluem de acordo, elas são criadas e sofrem evolução de acordo com esse processo de fogões”. E, no primeiro momento da descoberta do ouro, tudo que havia aqui era fogo de chão, depois fogão de barranco, fogão de jirau, foi um processo evolutivo da nossa tecnologia de cozer. Aí eu achei aquilo, bateu em mim uma intenção que me capturou para o livro, porque eu falei: “Gente, ela quer falar muito mais, uma pessoa que está desenhando o processo de evolução dos fogões”. Mas ainda assim, eu acreditei muito no projeto do livro, falei: “É um livro que então não será mais um livro de receita, ele vai tratar de história e de lembrança, ele tem três pilares muito importantes para ser trabalhados”. Mas o fato é que a vida dá tanta volta e eu jamais pensei que esse texto ficaria sob a minha responsabilidade. Eu não tinha capacidade emocional para uma coisa dessas e nem me sentia preparada, mas nós contratamos... Houve uma equipe contratada para fazer o livro: um excelente fotógrafo; uma historiadora serrana, Dóia Freire, para fazer a consultoria em História; um escritor para fazer o texto. E a mamãe era muito sedutora de linguagem e tudo, e os textos, ele que era um escritor treinado para o texto, produzia textos muito com características biográficas, parece que ele não conseguiu separar o assunto que era para aquele livro, da pessoa, entendeu? Era para ser um livro um pouco mais teórico, com passagens, assim, biográficas, porque a cozinha dela estava atrelada à história dela, evidentemente, mas estava muito... Pesava muito para o biográfico. E todas as vezes que eu via os textos, eu falava: “Eu acho que...”. Aí a gente tentava, o editor falava: “Olha, vamos realinhar o texto”. Como a gente tinha um prazo para entregar o texto - fomos patrocinados pela lei de incentivo para fazer o livro - eu falei: “Olha, inclusive o patrocinador está patrocinando um livro que especula formação da nossa cozinha, não é o momento. Depois, em um outro momento, vai ser lindo fazer um livro da vida dela, ela tem história para contar”. Aí eu fui chamada no escritório pelo editor, ele falou: “Marcinha, preciso fazer uma conversa com você, hora tal”. Eu fui: “Marcinha, deixa eu lhe falar: você nos alertou para uma coisa, você está coberta de razão: todos os textos continuam textos-características, tem que ser você”. Eu falei: “Eu?” Ele falou: “Você que vai fazer esse texto, eu vou te dar três argumentos do por que tem que ser você: você é formada em História, você é filha da dona Lucinha e você está no ambiente do restaurante. Então...”. Eu fiquei perturbada com isso e aí, inclusive, saí de lá e falei: “Mas eu não tenho tempo, eu administro um restaurante, eu tenho filhas pequenas, eu não tenho, eu não sei, eu não estou pronta”. Ele falou: “Não, mas você vai conseguir, nós temos uma equipe toda”. Eu muito sintonizada. Fui à livraria me alimentar um pouco de um conteúdo mais teórico, aí fui para casa, com os dois primeiros livros que eu comprei, que havia muita pouco produção historiográfica sobre a nossa cozinha, muita pouca coisa nesse período - nós lançamos o livro em 2001 - muita pouca coisa. Então havia um vazio para eu me apoiar um pouco, tinha uma coisa muito intuitiva. Aí eu fui para casa e aconteceu um fato muito lindo, porque minhas filhas, muito pequenininhas - tinham de seis para sete anos - que quase não me viam, primeiro porque eu trabalhava em escola, não me viam; depois, quando eu vim para o restaurante também não, eu trabalhava muito, realmente. Aí eu fui assumir a minha característica, fui abraçando assim, eu não ficava em casa. E restaurante não tem sábado, não tem domingo, não tem feriado. Bom, eu não ficava em casa, eu falei: “Olha, mamãe vai ficar aqui para estudar um pouco, vou ajudar a vovó a fazer um livro, mas eu não vou ficar aqui para brincar com vocês e tudo, vou ficar estudando”. Porque eu tinha que dar para elas uma... Ia mudar alguma coisa na nossa rotina, aí uma delas pegou um papel e fez - eu tenho emoldurado isso - ela fez uma cartinha escrevendo assim, toda desenhadinha como se fosse um papiro: “Mamãe, em seu livro você vai falar de mil coisas, muitas anotações importantes, como os escravos dormiam, comiam...”. Aí ela teve um texto tão assim: “Muitas anotações importantes, então você deve contar piadas para acalmar quem lê”. Uma cartinha com um texto parecido com esse de uma menininha, eu achei tão linda aquela coisa, falei: “Ciana, esse livro não é da mamãe, é da vovó, então essa cartinha que é linda, você tem que fazer uma para a vovó”. Aí ela mudou: “Vovó, em seu livro...”. Aí, desse livro até consta, em uma página, essa cartinha impressa. Eu comecei a estudar para fazer o livro. Mas eu já estava me preparando, do ponto de vista teórico, só que eu não conseguia porque o livro era um livro para ser escrito na primeira pessoa, quando eu me dei conta, é isso que me engasgava. Porque nós somos 11 irmãos, a mamãe sempre, por conta desse trabalho e dessa intensidade dela, por mais presente que ela fosse, para a minha personalidade muito tímida, muito miúda, muito arredia, todos meus irmãos são muito eufóricos, eu não era. Hoje eu sou muito, assim... A vida foi me trazendo esse domínio, mas eu era uma menina muito acanhada, muito assim do porão, gostava de decorar poesia, gostava de pensar, era muito diferenciada lá de casa. Eu então, vendo mamãe tão assim no mundo da comunicação, no mundo do alimento, o pessoal até brinca, eu sou a menor de todas lá de casa, a que menos come e tudo, que acho que assim... É quase como se aquele mundo não fosse o mundo que eu teria escolhido para mim, porque a mamãe, eu a via muito mais pública do que maternal, para mim. Para os meus irmãos não, porque eles chamavam por ela. Então, quando... Aí, eu falei: “Gente, foi até muito terapêutico para mim, fazer o livro”. Aí, ficava assim... “De que jeito eu faço esse texto? Que horas que eu acho esse momento de pôr esse texto na primeira pessoa?” Aí, foi curioso porque foi bonito, eu acho que foi bacana o que aconteceu. Eu acordei com uma frase... Estava tão inquieta com o negócio, o negócio estava tão engasgado em mim... Com uma frase: “Sou uma mulher dada a ousar”. Eu não sei se eu fiz a frase semi dormindo para acordada, ou se eu sonhei com a frase, só sei que eu levantei da cama e comecei a escrever: “Sou uma mulher dada a ousar”. Aí o texto desabrochou dentro de mim de tal modo que houve momentos que foram momentos comoventes, entre nós. Que eu fui ler para a mamãe uma parte de um texto, que falava de uma cena do pai dela, que eu pequenininha... (emoção).
P/1 – Você estava falando que você foi contar para sua mãe um excerto que você estava escrevendo...
R – Houve um momento em que eu cheguei em pontos que a mamãe se comovia. Um fato curioso foi quando eu levei para ela um texto - eu me lembrei - no ambiente do texto que naquele momento se falava, que era uma descrição do universo da fazenda. Isso virou um box do livro, eu me lembrei de que você tem que expressar como que as pessoas vivem, assim, a rotina, os sons, os cheiros, a rotina. E o meu avô... Eu me lembrei de um caso do meu avô, que ele amava tomar café, ele não vivia sem café, ele era muito, assim, amigo de todo mundo, mas ele ia participar de um casamento de uma pessoa, em uma fazenda, e a dona dessa fazenda ele não tinha tanto costume, porque ele tinha o hábito de ir para a cozinha pegar café, tinha amizade com todo mundo, ele não conseguia ficar sem café, e não conhecia tanto a dona da casa para ir à cozinha pedir café. E festa em fazenda durava três dias. Então, ele chamou os amigos - doido para tomar um café - chamou os amigos e falou: “Olha, eu vou bolar um plano com vocês, eu vou passar mal no banco da varanda, na hora que a dona da casa vier - certamente ela vai vir - vocês vão falar que isso costuma acontecer comigo, mas que um café me sara”. Aí, dito e feito, ele começou a desmaiar, a dona da casa vem e fala: “O que está acontecendo com ele?” “Ah, não sei, ele, às vezes, tem isso; geralmente um café melhora”. Ela correu na cozinha e mandou passar um café para ele. Ele contava que quando... Dizem que ele contava - porque eu não o conheci - ele foi levantando quando o cheiro foi chegando, ele tomou o café e melhorou, tudo era uma estratégia para ele tomar café na fazenda, porque ele ia ficar três dias na casa, precisava ter café, porque senão seria um café só nas horas de convite, ele queria ter acesso à cozinha. Ela pegou a mão dele, pegou ele pela mão, levou ele lá na cozinheira - cozinha de casa de fazenda fica lá no fundo, é inacessível, é só doméstica mesmo - e aí: “Olha, quando ele quiser um café, você passa um café novo para ele”. Eu não conheci meu avô, mas eu não ouvia de criança os casos dele, entre outros mil. Eram casos que eram pouco falados, acho que a mamãe não sabia que eu sabia desse caso, então eu vi os olhos dela se encherem de lágrimas, assim. “Nossa, mas como é que você sabe dessa história de papai?” Ficou muito escrito de um jeito muito bom, ela ficou muito emocionada. Então, isso foi nos aproximando de tal modo, eu dela e do tema da cozinha, eu dela e da herança que ela tinha, dos conhecimentos que ela tinha, me preparando mesmo para hoje, por exemplo, que estou, assim, eu acho que eu já falei nesse momento aqui, mas foi forte a passagem dela para nós, foi muito súbita e ela, com toda essa história e com todo esse nome que ela construiu, então eu fiquei, de fato, em dúvida se a gente teria fôlego, força, capacidade para conduzir, pelo menos de modo razoável e assim... Com grandeza, o legado dela. Eu duvidei, mas eu acho que ela foi vindo. Isso tudo nos ajudou, todos nós, nós somos muitos filhos, eu acho que por conta do livro, eu me sinto mais afinada; o livro, esse que nós trocamos, assim, vivências tão emocionais, mas intelectuais também, culturais - isso nos fortaleceu muito. Então eu tenho levado à frente, agora com mais segurança, sabe?
P/1 – Em que ano ela faleceu?
R – Agora, faz quatro meses.
P/1 – Quantos anos ela tinha?
R – Com 86 anos. A mamãe faleceu jovem, jovem para a vida de hoje. Um mês antes dela falecer, eu celebrei aqui um aniversário de 100 anos e a senhora estava muito bem, eu falei: “Tem 30 anos da casa, primeiros 100 anos que a gente comemorou”. Fiquei muito contente com isso. Mas foi uma vida muito plena, então 86, a gente julga pouco, mas plena. Quando ela adoeceu, que ela não teria... Ela não saberia viver sem essa plenitude dela, ela fez isso, olha... Aí foi bom, sem sofrer, não é.
P/1 – Seu pai faleceu também?
R – Papai está com 90 anos, é uma família com onze filhos, todos... É muito natural em Minas Gerais famílias desse tamanho, mas graças a Deus, ela não perdeu ninguém. Ela era extremamente amorosa, extremamente afetiva com a família, ligada, queria saber tudo de todo mundo, de todos netos, dos genros, das noras, dos 60 afilhados, entendeu? Então assim... Ela não teria preparo emocional, seria péssimo, ela foi muito abençoada no que ela fez, tinha uma grandeza muito grande, muito humanizada, via o mundo, assim, essa coisa dela com o alimento é muito acima da comida; alimento para ela era vivência, era humanidade. Ela tinha, por exemplo, uma pegada social muito forte, ela saía... A gente trabalhava sempre com buffet, porque o que ela queria... Como ela viajou tantos anos fazendo cozinha mineira fora do Brasil, Brasil afora e fora, ela achava que o modo de mostrar tudo que Minas tinha de cozinha, era o sistema de buffet. Quando ela abriu o restaurante, ela falou: “Eu quero é fazer um festival de cozinha mineira, não quero mostrar um prato, quero mostrar uma parte significativa”. Então, o restaurante nasceu com isso, só que do almoço para o jantar sobrava muita comida porque são muitas panelas. E ela, que nasceu em fazenda, que respeitava o alimento, que via o alimento como sagrado, ela falava: “Eu não posso jogar”. Porque na roça, na fazenda, você tem porco, galinha e nada desperdiça, uma coisa gera outra. O porquinho está lá, tudo vai para o chiqueiro, porque não tinha o que fazer, ia para o lixo. Eu não consigo viver fazendo isso, eu não posso jogar uma comida limpa e sem um conservante, sem nada, fora, eu não consigo fazer isso. Aí ela bolou uma coisa que funcionou muito bem. Ela fez uma parceria com a Polícia Militar, a polícia vinha aqui às quatro da tarde, buscava um panelão, um sopão que ela fazia, e distribuía esse sopão nas comunidades mais carentes. Como a comida era muito saudável, o que ia para eles? O chuchu, o quiabo, o jiló, o frango que quebrou do dia e o da noite era congelado, então juntava o sopão, ela alimentou mais de mil pessoas durante muito tempo, chamado Projeto Sopão. Então, você vê que a dimensão social do trabalho dela, sempre preocupada. Dessa preocupação com a comida que estava indo para o lixo, nasceu o Projeto Sopão. Ela tinha uma grandeza em tudo o que ela fazia, eu tenho um reconhecimento muito grande como filha e vejo que esse reconhecimento virou amplo, porque nos surpreendeu, inclusive, com essa morte súbita que ela teve, as inúmeras, incontáveis expressões de reconhecimento, de homenagens, de depoimentos. No velório dela, por exemplo, chegou uma senhora de uma região muito pobre de Minas Gerais, chamada Vale do Jequitinhonha, viajou a noite toda, de lenço na cabeça - eles falam ‘fado’ - falou: “Viajei, não podia deixar de vir, meu filho está vivo por causa de dona Lucinha, meu filho teve câncer”. Então, são coisas assim... A cada momento você tem uma comoção, você tem uma história, você tem uma expressão do que ela fez. Então, era de fato uma pessoa muito iluminada, de espírito muito elevado que marcou a passagem. A gente fica muito honrado com isso, é muito intensa a história dela. É um aprendizado que me enriquece muito, me humaniza, me provoca a tentar, pelo menos navegar na mesma direção, não é?
P/1 – Você ainda vai descobrindo outras coisas que ela fez?
R – Sim, é diário, quase. É diário. Outro dia veio aqui uma menina falando comigo que, quando a avó dela morreu - todo mundo muito pobre, com muita dificuldade - mamãe foi a primeira pessoa a chegar, tomou conta de tudo, mandou preparar alimento, porque no velório de interior tem uma comedoria danada, eles muito pobres, ela falou: “Olha, nós estávamos perdidos”. Foi uma morte de uma pessoa muito intensa, uma pessoa extremamente simples mesmo, mamãe tomou conta de tudo. Ela falou: “O que eu puder fazer por ela e por vocês, o que sua mãe fez no velório da nossa avó...”. Toda aquela família grande, ela fez tudo. Acho que pagou tudo, fez tudo. Depois falou assim: “Vem me abraçar. Queria te abraçar, te dizer...”. Então, acho que vem coisa por aí ainda.
P/1 – Faz quatro meses só, então você duvidou mesmo que poderiam tocar o barco?
R – Ah, duvidei.
P/1 – Você está na matriz aqui.
R – Na hora uma coisa assim, que ficou para mim como se fosse um... Não tinha ponte, eu não vi ponte, assim, sabe? Foi um momento... Tem um vago e eu não consegui pular de lá. Assim. Mas, engraçado, foi muito difícil recomeçar sem ela. Para todo mundo, os funcionários todos... Sabe como é que ela entrava aqui? Todos tomavam benção para ela, um por um, se ela estivesse aqui hoje, ela já teria feito um gesto que ela fazia com todos, ela abençoava com sinal da cruz todas as pessoas que ela via, abençoava. Então, funcionário por funcionário ela abençoava, cada um tomava benção, ela já chegava alegre, chegava dançando, chegava cantando. O recomeço era só choro, os funcionários todos, todo mundo só chorava, ninguém tinha capacidade de fazer nada. A casa era tão triste, lavadores de carro, pessoas que eu vou te contar... Até gente que a gente sabe que quebra, que rouba, que faz ponto aí para isso, vieram todos me dar os pêsames, porque ela conversava com todos, abençoava todo mundo, eles vinham aqui me abraçar, entendeu? Então assim... É um legado que se me perguntarem qual é o principal legado dela? É o tamanho da humanidade que estava contida dentro dela, porque patrimônio cultural cada um tem sua contribuição, são mil riquezas que Minas tem, mas é bonito porque ela muito jovem já via isso, ela foi percursora na visão disso, tanto que há muitos depoimentos de pessoas, assim, extremamente capacitadas para fazer isso, que falam: “Olha, Minas deve a dona Lucinha o que a cozinha mineira hoje está vivendo; esse ‘boom’ deve-se a ela, porque ela defendia com unhas e dentes”. Mas assim... Questionada, criticada, esse sistema nosso de buffet, por exemplo, foi bastante criticado, até por empresa local, pessoal mais intelectualizado por um lado, os locais. Porque o povo de fora dava valor. Se é grosseiro mostrar a comida mineira assim, isso é... Entendeu? Ela trazia pensando assim: “Eu quero mostrar a riqueza, a diversidade”. Mas era visto como menos gastronômico você ter tudo, porque não era aquela coisa de um preparo mais... Mas ela passou por tudo isso e sempre segura, ela falou: “Não, eu preciso, eu quero, cada um faz o seu trabalho, mostra do seu jeito, mas a minha cozinha eu preciso mostrar essa diversidade, essa riqueza, eu quero guardar os modos de fazer, outras pessoas que criem, que recriem”. E acabou que eu também hoje entendo isso, eu sempre penso assim... Há que se pensar assim, mas isso é uma cozinha de tradição, é inegável, essa cozinha de tradição é uma cozinha antiga, é uma cozinha que não sai de moda, eu acho que é extremamente moderna, porque a tradição, ela conversa com o futuro. Então hoje eu penso: “Olha, como é moderna a nossa casa”. Um arquiteto que entra aqui fica deslumbrado, ele fala: “Nossa, como ela tem harmonia arquitetônica, como que remete”. Assim... Não foi feita a casa com arquiteto, não foi com ninguém, foi com ela: “Eu quero a harmonia da... Expressar o gosto colonial, gosto das fazendas, não sei o quê”. A cozinha artesanal é uma frase dela que eu não vi, enquanto ela viveu, eu não a vi... Ela sempre falava assim: “Na minha cozinha não tem abridor de latas”, isso ela falava sempre. Mas um programa depois que ela morreu... Foi tanta imprensa fazendo, falando, falando, falando, muita coisa dela, porque ela gravava sem parar, aí, um programa que se chamava Perfil, da Assembleia Legislativa de Minas Gerais... Acho que foi um momento de esplendor de mamãe, é um ‘trem’ de uma grandeza, ela desabrochou feito rosa ali, foi uma coisa muito bonita. Uma certa hora ela falou assim: “Porque a minha maior inimizade é com abridor de latas”. Ela sempre falou que na cozinha dela não tinha abridor de latas, mas aí eu falei: “Gente...”. Me deu um estalo, um outro ‘insight’ de mamãe. Mamãe não teve inimigos, o maior inimigo dela era o abridor de latas, e há pessoas que chegam aqui e falam: “Ela era canhota?” Porque eu escrevia na parede e assinei em nome dela. Eu falei: “Essa frase eu vou pôr aqui”. “Ela era canhota?” “Não, ela não se dava bem é com lata mesmo, a comida de lata”. Ela sempre defendeu esse patrimônio alimentar de origem, da batata-doce, do cará, do jiló, é isso que ela... Nada disso era de lata. E outra frase dela, que eu cresci com ela, hoje eu vejo cozinheiro e chef de cozinha replicando isso, eu acho que isso é bonito porque ecoa, não é? Mas é: “Primeiro ingrediente que se põe na panela é o amor”. Mamãe sempre, sempre... Desde menina eu escuto mamãe falando essa frase. É dela: “Primeiro ingrediente que se põe na panela é o amor”. Você vê se ela, diante de um tacho, na panela... Tem até um fato, assim, legal, porque houve um momento em que vários chefs de cozinha de Minas Gerais foram convidados, inclusive ela, para irem a um festival em Madrid, um festival gastronômico mundial, de expressão muito forte, mundial, muito forte. E ela... Estavam todos muito tensos, ela já muito experimentada, mas todos muito tensos porque a responsabilidade de mostrar Minas em um festival de grande visibilidade, o certo é que os chefs estavam tensos. Um deles, recentemente, me contou que eles tinham... Alguns tinham que fazer pão de queijo, mas que uma certa hora ela percebeu que eles estavam nervosos, assim, de ficar bom, de não sei o quê, de sovar. Ela deu umas dicas legais para eles e, de repente, quando ela percebeu que eles estavam tensos, ela brincou de um jeito que ela arrumou um jeito de dançar com a massa de pão de queijo, ela dançou com a massa; dizem que o povo relaxou completamente a partir daí, sabe? Então, são depoimentos bacanas de como é que ela tinha jogo de cintura com a vida. Eu falo muito dela porque eu acho que contribui para a gente ser melhor, não é? Com essas lições de vida que ela foi deixando, ela foi assim... As expressões de gratidão de chefs de cozinha de Minas foram emocionantes, todos tinham... Porque eles eram, de certa forma, concorrentes, em um certo sentido da palavra, mas para ela nunca foi, então eles todos falando: “Olha, a dica que ela me deu, como eu mudei a partir disso que ela falou, isso que ela fez, isso que ela fez, o que ela me ensinou”. Então, foram todos com muita expressão de gratidão, sabe? De homenagem a ela.
P/1 – Ainda na trajetória dela até hoje, como é que está então o Dona Lucinha na cozinha mineira atual? Tem um pessoal querendo modernizar tudo ou a vanguarda? Tem essa briga ou não?
R – Não. Aconteceu um momento, nessa última década, um movimento, assim... Como a cozinha mineira vem ganhando, de fato, respeitabilidade, houve uma tendência assim de... Eu acho que isso é processo natural de amadurecimento, de um grupo sempre achando que a cozinha mineira tinha importância, mas que ela tinha que ser apresentada de modo refinado, sofisticado, o que não está desprovido de justificativa, mas foi ficando muito gourmetizado, sabe? E releitura daqui, releitura dali. Chegava ao ponto do tropeiro, você nem saber o que você estava comendo, sabe? Então ficou assim, quase que caiu em... Aí, no processo natural de amadurecimento disso, acho que até as próprias pessoas foram com vontade muito grande de refinar, de fazer releitura, foram vendo que nem tudo que é muito criativo é bom, porque achava que a criatividade era o ó do borogodó. Então assim... “Tem que mudar tudo, mudar todos os jeitos de fazer”. Nossa praia é a outra, é manter os modos tradicionais de fazer, o que não elimina a importância daqueles que fazem, mas não estava ficando bem-feito, porque parecia quase o mesmo movimento de vergonha, aquilo que a gente tinha: “Tá bom, é importante, mas não pode ser assim”. Entendeu? Aí houve muito esse movimento, sobretudo aqui em Belo Horizonte, que é o cartão-postal da cozinha mineira, porque o interior mantém, de modo mais contínuo, está mais inscrito nas mentalidades, nos movimentos de longa duração. Agora aqui, por ser a Capital, então houve muito esse movimento, mas ela falou: “Não, eu reconheço, respeito, só não faço, não é o que eu quero fazer, não é o que eu vejo, eu acho que isso compromete muito o sabor da ancestralidade, da riqueza gastronômica que a cozinha mineira tem”. Porque tem uma sabedoria, falando assim mais teoricamente, sobre a cozinha mineira. Eu, às vezes, brinco: “Qual é o borogodó dela?” Porque, de fato, hoje ela é uma cozinha respeitada universalmente. Então, uma coisa que eu acho que, em algum momento, tenha mencionado aqui hoje, é que foi uma razão de lá, nos Estados Unidos, a professora falar: “Olha, essa cozinha que melhor representa a cozinha brasileira”. Foi uma compreensão de que a cozinha mineira, por razões históricas... Com a descoberta do ouro, nós estávamos muito distantes do litoral, em uma região muito montanhosa, de muito difícil acesso e habitada por índios, então a dificuldade alimentar no primeiro momento do ciclo do ouro foi imensa. Você descobre o ouro, vê uma riqueza imensurável de metal, de riqueza mineral, mas a alimentação, o que você tinha? Aquilo que os índios comiam, do ponto de vista do que tinha no local. Tinha abundância de caça e de pesca, certamente uma região linda, mas não para o número de pessoas que chegaram. Com o anúncio da descoberta do ouro, no primeiro ano, chegaram às minas seis mil pessoas; no segundo ano, trinta mil. Há estatísticas para isso, um local que é habitado por índios, tribos indígenas, seis mil pessoas? Nas minas, que são poucas, as minas são pedacinhos, é Ouro Preto, Tiradentes, Diamantina, Serro, Sabará, São João del-Rei, é isso aí. Nessas cidadezinhas, nesses arraiazinhos, seis mil pessoas e depois virou para trinta. E depois... E depois... Tanto que Ouro Preto, em determinado momento, tinha população superior à de Nova York, no auge do ciclo do ouro. Mas então, a questão alimentar, nesse primeiro momento, foi importantíssima. As bandeiras - as entradas e bandeiras - que era o bandeirante que chegava, ele tinha preocupação com isso... Havia registros de roças plantadas, de cana, de milho e de mandioca, só que outros que chegavam, muitos também chegavam, viam roças, colhiam aquilo e iam... Nem sempre aquelas bandeiras, quando voltavam, achavam as roças plantadas, então, aquilo foi um desarranjo alimentar. Em um primeiro momento, há registros de pessoas morrendo de fome. O que isso tem com a formação da cozinha mineira? Tem tudo a ver. A cozinha mineira cresceu e se formou em um ambiente adverso, então o que precisava era aproveitar todos os saberes, todos os sabores. Eu falo que era uma comida... Todos os ingredientes. Uma comida despreconceituosa, uma primeira fonte alimentar que sustentava muito índio. O que serviu de alimentação, em um primeiro momento, foi bicho de taquara, que é uma lagarta que vivia na taquara, que era muito cheio de taquara - taquara é esse bambu que dele faz a esteira. Nele dá uma lagarta, assim, que os índios sempre se alimentaram de muita proteína, então até bicho de taquara serviu de nutrição e tinha que se usar. Preconceito você podia ter? Não podia. Você está com fome, você come. Um europeu tinha que comer bicho de taquara. Caça, brotos, tudo era fonte alimentar, mas isso não se faz do dia para a noite, então, a formação da nossa cozinha, ela dependeu de vir muita coisa também de fora. E essa é a importância das tropas, que buscavam, que traziam sementes, plantação, gado - gado chegou mais tardiamente - porco para estabelecer os chiqueiros, casais de frango - frango e franga para formar terreiros, esses eram tão frágeis que a maior parte deles morria nessa chegada do litoral, eles vinham amarrados de cabeça para baixo, só pelas pernas, em um cipó, isso na minha infância eu me lembro demais, o povo vendendo galinha amarrada assim. Então, morriam. Até que se formaram os terreiros. Tanto que, na tradição da cozinha mineira, há três estágios, do ponto de vista da presença das carnes, da formação da nossa cozinha. Abundância de carne de porco, porque o porco, por ser um animal rústico, bruto e que vivia no canto - qualquer cantinho você cerca, você cria um porco e com qualquer resto - então o porco é a maior fonte nutricional do mineiro, porque não tinha... Você entendeu? Foram estágios. Depois, com a formação dos terreiros, a gente tinha muito frango, muita galinha, muito ovo, a fartura disso, mas demorou. Tanto que até na minha geração, frango, comida de frango, era galinha; pratos à base de frango era comida de domingo, ou para parturiente; a cozinha mineira tem uma receita - é uma galinhada, galinha de mulher parida - era feita para recuperar, guardar canja para doentes, entendeu? Então não era comida, era comida festiva, de domingo, de aniversário, porque era caro, era difícil. E gado, muito mais tardiamente, porque para você ter pastos de gado você tem que ter oferta de sal. Sal, imagina os litorais, Rio, São Paulo e Bahia eram os abastecedores, as rotas de abastecimento que ligavam a Minas eram feitas desses três caminhos: o caminho da Bahia, o caminho de São Paulo, o caminho do Rio. Mas são muito distantes, trazer sal era uma epopeia, trazidos em lombos de burros, em bruacas, em balaios, em bornais de couro; se chovia, vazava, pesava, então sal era raro, tanto que uma boa comida mineira, ela praticamente prescinde do sal, ela usa muita erva, muito cheiro de erva e pouquíssimo sal, se bem-feita, porque não tinha nem como, não é? Então, assim foi se formando essa rica cozinha de Minas. Com a decadência do ouro há a ruralização da economia, aí o estabelecimento do gado se expande, surge então a tradição queijeira, aí vem essa iguaria que Minas ama, que é o pão de queijo, porque a fartura de leite levou à produção de queijo, então, tudo é um processo. Aí, para isso, tem uma outra conexão lá atrás, que a gente já falou: é preciso um forno que controle a temperatura. Já vem então a tecnologia do forno. Tudo já conspirava, o ambiente de uma cozinha típica, tudo se torna típico quando todas as coisas conspiram em abundância, fartura de milho leva... Você quer ver uma curiosidade, que eu acho muito rico, culturalmente, falar disso? Minas, por ser um território muito molhado - ele tem muita queda d’água - a queda d’água levou à facilidade de fazer os moinhos de pedra, então, os excessos de quedas d’água possibilitaram a tecnologia dos moinhos, a fartura... Como tinha muito milho, levou à fartura do fubá; a fartura do fubá levou à produção... A comida mais típica que a gente dava para os escravos era angu, porque tinha em abundância. Então, o angu - a fartura de milho - a cozinha típica tem que ter ingredientes em abundância, então vira típico porque vira comida do povo, a comida local. Uma comida de elite não é uma comida típica, ela é de uma fração de gente. Então o angu, por exemplo, foi transformado na principal fonte alimentar dos escravos, e feito sem sal porque não havia sal. E havia abundância, muito fubá, e por que havia abundância de fubá, voltando para trás? Porque havia muita queda d’água, então havia os moinhos de pedra. E o milho era nativo, abundante, então, essa presença forte do milho na nossa alimentação, seja para fazer o angu, seja para tudo, as quitandas, não havia trigo. Toda a nossa fonte alimentar, tirando os pratos quentes, alimentação das merendas, do desjejum, a maioria delas é à base ou de mandioca ou de milho: bolos, broas, cuscuz, milho assado; são tantas as possibilidades de se comer milho. E mandioca, pães de mandioca, pães de milho, bolos, mandioca cozida, mandioca com melado, e aí vai. Era essa a rotina da alimentação mineira. O livro trata, separadamente: tem um capítulo dedicado à mandioca, outro ao milho, outro à cana. A cana não é nativa, não é nossa, mas ela se adaptou tão bem ao nosso território que ficou como sendo, se tornou nossa, assim, não é? E a abundância da cana, leva à abundância da rapadura, à tradição da cachaça. Então, Minas tem um patrimônio gastronômico riquíssimo, hoje cada vez mais reconhecido porque é uma cozinha que se formou sem preconceitos. Todo o saber do índio, do negro, do branco, era fundamental. O branco tinha que comer bicho de taquara, o africano trouxe cultura nativa como a indígena, então isso é bonito porque elas se entendiam muito bem, conheciam ervas, conheciam brotos, tudo se aproveitava. Munheca de samambaia era uma comida muito usada, junto com costelinha, samambaia, que era mato, munheca de samambaia na costelinha. Mamão verde. Está verde ainda, mas você cria. Há que apressar o tempo, não havia coisa, então você mistura com a costelinha e faz mamão verde com costelinha, a banana da terra vira iguaria. Tudo! Você cria, você é instigado a ser criativo, além do que a nossa mão de obra... Como a mão de obra escravizada era a africana, então, se você tem pessoas para fazer, você carrega aquelas pessoas para fazer, e a sabedoria dos africanos, do ponto de vista de cultura, era uma coisa imensa, poderosa. Assim, foram criadas relíquias da nossa cozinha, vindas das mãos africanas, com influências indígenas e influências europeias, sem dúvida. Há um prato que expressa completamente essa fusão, que é o frango com quiabo e angu: o quiabo é africano, o angu é indígena e o frango é europeu. É um prato importantíssimo da nossa tradição alimentar e fruto de ingredientes vindos de três continentes, então claro que fundiu o ingrediente, o saber de três povos. Essas coisas vão dando à cozinha mineira essa dimensão universal, nutricional, cultural, estética assim; enfim, são riquezas que estão nela, não é? Assim também na nossa doceria, porque aí já a doceria é toda portuguesa, europeia, há razões para isso porque índios e africanos são culturas mais tribais naquela época, muito nativas, muito cheias de terra, de sabedoria vinda da terra. A nossa medicina é toda vinda deles, nossos saberes, nossos chás, isso tudo vinha deles. Mas os doces que a gente herdou deles, era a doçura da fruta e do mel. Já a doceria portuguesa e as quitandas, isso é influência toda portuguesa na nossa mesa: as frutas, os doces em compotas, tudo transformado em doce, a cultura do açúcar que o português tinha, o conhecimento da quitanda veio também e enriqueceu muito a mesa mineira, porque você tem essa diversidade de pratos, frutos dessa fusão e tem uma doceria linda também, tem esse conhecimento da tecnologia do queijo que veio trazida de Portugal para nós. E daí, as coisas foram se frutificando.
P/1 – E a história do café, como é que fica?
R – Do café? O Brasil teve vários ciclos econômicos. O primeiro foi o extrativista - o ciclo do pau-brasil - em que nossas florestas foram devastadas. Fala-se pouco disso, mas aquilo foi um assassinato, pau-brasil saindo daqui para queimar, isso eu acho uma tragédia ambiental, mas à época foi assim, não adianta. Eu acho que até isso... Bom, pau-brasil é uma madeira maravilhosa, ela é linda, de uma rigidez... Mas isso já passou. Aí vem o primeiro ciclo econômico propriamente dito, que é o ciclo do açúcar, que a região Nordeste foi aquela coisa do açúcar, mas a ambição da Coroa Portuguesa sempre foi achar riqueza mineral. Aí, com a descoberta do ouro, toda a economia se volta - a vida econômica da colônia - para a extração de minérios - Minas é a alma desse ciclo. Com a decadência do ouro, vem o ciclo do café, que foi outra fonte de enriquecimento. Vem a mão de obra do imigrante, aí já assalariada, dentro de um outro contexto de mão de obra. Minas também tem grande tradição, mais para o Sul, de cafeiculturas de máxima qualidade. E caminhando um pouco com isso, porque a dimensão territorial de Minas é muito grande, não é? Então ela tem terra e terroá para tudo. Agora, tem um ciclo chegando para outras coisas que jamais – eu, pelo menos - jamais supunha que Minas pudesse ter com tamanha qualidade: azeites, que estão premiados no mundo todo. Cachaça já vinha essa onda, queijo também, café a gente teve um ciclo importante, embora o ciclo do café tenha sido mais forte em São Paulo. E Minas mais na tradição leiteira. A gente fala muito da coisa do café com leite, Minas com leite. Mas azeite, tem outra coisa que... Azeite me chama muito atenção, mas há outras novas produções gastronômicas em Minas que estão ganhando... Água, por exemplo, as águas de Minas são maravilhosas. Mas azeite me surpreende, porque não era uma região que tinha tradição de plantar oliveiras; mas há terrenos bons, está se fazendo bons azeites.
P/1 – Vamos voltar então para a sua infância. Você cresceu no Serro. Para quem não conhece, onde é que é o Serro? Como é a cidade?
R – Serro é uma cidadezinha pequena, realmente pequena, que fica na Serra do Espinhaço, no Nordeste de Minas Gerais. Ela foi sede de uma Comarca no período colonial, foi a maior Comarca em dimensão territorial, ela quase fazia fronteira com a Bahia. Mas, com a decadência do ouro, foi aquela que, de todas as cidades, a que viveu maior decadência, porque era a mais distante de todas as outras Vilas. Ouro Preto, mais próxima desse polo; Tiradentes e São João, mais próximos de Rio e São Paulo; Sabará, mais perto daqui. O Serro ficou sem estrada, sem riqueza mineral, ficou na vivência da localidade. Eu nasci nessa cidade, com muita cultura gastronômica, com esse patrimônio que a gente está falando o tempo todo dele e com o patrimônio cultural e de religiosidade popular imenso, entendeu? E todas as tradições ali, sendo cozidas, se mantendo, não é? Se mantendo em água morna. A gente de lá, sentia necessidade de mais novidade de estrada, sempre sentimos, mas isso nos enriqueceu muito do ponto de vista, hoje é uma joia. Há um hino muito bonito que fala um pouco do Serro, o Hino do Serro. Começa assim: “No alto azul do espinhaço, cheio de ouro e cristais, qual águia fitando espaço, Serro de Minas Gerais”. É uma cidadezinha que é curiosa porque, no meio dela, tem uma escadaria e uma igreja no alto dela, é um cartão-postal. Mas é chamada terra do queijo, porque aquela região - a gente falou muito da dificuldade de sal - o queijo é muito precoce na nossa região porque nosso terreno era muito salitrado, terreno salitrado, terreno salitrado, as primeiras levas de gado que chegavam exigiam menos sal, porque lambendo a terra eles tinham essa porção um pouco nutricional. Então, é muito precoce a tradição queijeira, é um casario muito bonito. Diamantina, que é onde se descobriu diamante, pertencia à Comarca da Vila do Serro do Frio; então, era uma Comarca muito poderosa, muito respeitada, mas com a decadência foi ladeira abaixo. Então, ficou um lugar muito pobre. Eu sei também, assim, que todo esse movimento que a gente falou que papai fez uma campanha de revitalização, de falar desse lugar, de chamar atenção para ele, contribuiu muito para virar um pouco essa página. E o trabalho da mamãe também, que foi ganhando muita visibilidade. E além do que a cidade já tinha como potencialidade. Hoje, saem de lá queijos premiados, por causa de uma turma jovem, que está fazendo pesquisa, que está antenada, então as pessoas estão voltando para lá, está tendo mais emprego, a economia está se revitalizando. Mas foi uma cidade que por um tempo, assim, quase morreupor falta de oxigênio, mas manteve uma vida própria muito intimista, muito rica; então hoje virou uma joia. Nós, assim, afetivamente, todos nós somos muito ligados com terra natal: “Foi de lá que eu vim”.
P/1 – Como é que era a fazenda? Descreva-a para mim.
R – A fazenda? Em geral, as casas de fazenda têm dois andares, assim, com varandão. A casa do meu avô, quando nós morávamos, era uma casa de um ambiente só, mas com um terreiro do lado, horta na frente, tinha um engenho, eu lembro muito de fazer rapadura, as tachadas de rapadura. Mamãe sempre foi muito ligada à plantação, papai também, fazenda tinha que plantar, viviam disso: gado, leite... Eu lembro muito de muitas mulheres, assim, na porta da casa, ralando mandioca para fazer farinha, secando a farinha, então assim... Tradições antigas, fazendo as tachadas de rapadura, de melado, e fazendo rapadura, fazendo cachaça, produzindo tudo, colhendo. Então, era como qualquer outra fazenda, mas muito produtiva, tudo ali com muita fartura, gente para todo lado, gado saindo, vende gado, chega gado, planta horta, sabe? Tudo muito, assim, muito intenso, a casa muito movimentada, que mamãe tinha filhos sem parar. Lembrança, assim, muito comum a todas as outras pessoas, mas o que mais me faz elo de memória com a fazenda é a mamãe com os tachos, à beira do fogão, fazendo tachadas de doce, doce de leite. Eu me lembro assim, ela me punha em pé na cadeira, que eu não dava altura, para eu ficar perto dela fazendo doce. Eu lembro muito dela fazendo tachada de doce de leite, eu ainda muito miudinha, então das mais antigas memórias que eu tenho, acho que de mamãe, talvez seja a primeira: ela com o tacho. A fazenda produtiva e tudo acontecendo: mata porco, abre o porco, leva para a cozinha para poder fazer o preparo das carnes; leite, a gente ia para o curral todo dia de manhã, tem um hábito assim, a gente ia com a caneca com o café - quando a gente crescia um pouco mais - porque aquele primeiro leite, tirado assim, sai morno do peito da vaca, aí você toma o leite. Havia uma vaca escolhida para isso, sempre a melhor vaca, a mais sadia era a da família, toda a roça fazia isso. Você buscar o leite, ia para casa também, para ferver, fazer nata, fazer manteiga, fazer quitanda, mas a gente ia buscar o leite da vaca, todo mundo ia. Isso era delicioso, a gente ia para lá, no curral, aquele cheiro de manhã, a gente já ia com café, ou a garrafa de café ficava lá, aqueles homens simples, muito canto, muita sanfona, uma vida de fazenda é um universo, não é uma coisa de recorte, ela é um universo, é uma vida que tem tudo, tem os cheiros, tem o preparo, tem o plantio, tem a colheita, aquela coisa universal, autossuficiente, um mundo.
P/1 – Como é que era para você ir para a escola? Você saia desse universo e ia para outro?
R – É. Mas quando eu ia com mamãe para a escola, para eu não ficar sozinha, ainda era muito pequena, nessa escola rural. Mas quando chegou o tempo do meu primeiro irmão estudar, era o tempo de eu começar. Então eu estudei mesmo já no Serro, já não era tão pequenininha e menino de interior não tem a dependência de ninguém ficar levando. Mamãe com 11 filhos, professora, não era assim não, a gente era independente, a gente trabalhava, todo mundo tinha tarefa, fazia por mais... Então, também não havia perigo, a gente levantava, café da manhã, aí já não ia mais o peito da vaca, que já não era roça, aí nós comíamos uma coisa que todas as manhãs fazia na nossa casa, porque era de baixo custo, porque todos gostavam e porque é muito forte para você passar uma manhã inteira - a escola era muito longe da minha casa, você tinha que atravessar a cidade inteira, subir uma escadaria e chegar nela, ela fica no alto da igrejinha de Santa Rita, nessa escadaria toda. Eu morava mais próximo da Matriz, então andava muito, bom, enfim... Era a comida que a gente tinha, não havia pão, nem padaria tinha, fazia fubá ensoado, chamava. Você pega fubá, umedece o fubá com água e sal, o sal já diluído na água e umedece o fubá. Aí você solta esse fubá, depois que ele está úmido, esquenta muito uma panela de fundo grosso, põe manteiga com óleo e leva esse fubá e vai pingando na água e mexendo, mexendo com garfo para ele ficar solto, ele vai cozinhando. É demorado para fazer, mas quando a gente levantava já tinha uma panela desse tamanho, aí depois que ele está bem cozido - tudo é à base do fubá - aí já está temperado, já teve sal, já está bem cozido, sabia que ele estava cozido assim, bate a colher nas costas, você escuta o barulho de barriga inchada, é assim que a gente sabe que um ensoado está pronto. Aí, depois que ele está bem cozido, você pica queijo em cubos, joga lá dentro e desliga o fogo, abafa de novo e salpica um pouco de açúcar por cima. E come isso com café. Maior alegria acordar com um prato de ensoado, assim. Lá na minha casa, todos amam ensoado; às vezes, tem que fazer ainda ensoado para os meus irmãos. Eu até que perdi um pouco essa tradição, mas faz na panelona e todo mundo vai comer. Aí, comia-se isso, era o nosso café da manhã, ia para a escola, eu era interessadíssima em escola, em aprender, gostava, era curiosa, mas era tímida, então eu ficava recuada. Adorava decorar poesia, ficava lá no meu cantinho, porque a casa cheia de gente demais, mamãe fazendo coisas demais, isso sempre foi muito marcante para mim. Mas aí, era aquela rotina de fazer dever, de tarde ia brincar na rua, jogar peteca, pegador, que a gente chamava, um se escondia, a gente acho que procurava, brincadeira de criança, assim. Fui crescendo muito nesse ambiente, mas saí muito jovem do Serro, porque eu queria fazer Faculdade. Então, eu me formei e já logo saí. E nunca mais voltei a morar lá. Com 17 anos eu saí do Serro, fui fazer Faculdade, namorei, mas nunca perdemos vinculo, claro, não é?
P/1 – Por que você escolheu História?
R – Eu escolhi, na verdade, Filosofia, eu comecei a fazer Filosofia. Uma das vezes em que eu voltei ao Serro, em um desses encontros memoráveis que papai fazia, com intelectual de todo lado, teve encontro de escritores lá. Estavam Lygia Fagundes Telles, Ziraldo, não me lembro mais quem, pessoas assim super... Zé Aparecido levava essa turma toda. Eu não me lembro quem era, uma escritora famosa, na época, eu novinha, fazendo Filosofia, eu era um pouco exótica, eu acho, assim... Me interessava por um mundo... Eu queria aquilo que era menos palpável. Aí ela falou com papai: “Como é que pode uma menina dessa idade fazer Filosofia?” Aí ela falou assim: “Deixa eu te falar uma coisa? Não faz isso agora não, você está procurando um gato preto em um quarto escuro, não é hora”. Falou comigo, assim, com uma doçura... E aquilo, no momento, eu achei curioso aquilo e achei que eu estava mesmo, mas eu continuei fazendo Filosofia por um tempo. Depois eu fui sentindo que, realmente, precisava de uma coisa, estava sentindo falta de uma base mais sólida, até para que eu desfrutasse mais, quando eu fui tomando consciência da amplitude do estudo que é a Filosofia, da amplitude, do ilimitado de conhecimento que há. Eu achei que não tinha preparo emocional, intelectual para ela. Falei: “Não”. Aí, fiz reopção por História, para depois voltar para a Faculdade. Então, a História trouxe para mim uma coisa que eu agradeço muito, porque eu tive a chance, dentro da História, de desenvolver um estudo que me trouxe imenso prazer, a que eu me dediquei trinta anos para fazer. Publiquei, no ano passado, um livro que eu intitulei: Festa do Rosário do Serro. O Serro tem essa potencialidade cultural, sobretudo da religiosidade popular. Então, uma festa que há lá na cidade há 300 anos é a Festa do Rosário do Serro. Eu me interessei muito, vamos dizer, atiçada por uma aula de um professor que estudava, o estudo era sobre as Irmandades. Como é que as populações da Colônia tinham se organizado em Irmandades; elas eram delimitadas por cor da pele e classe social. As Irmandades dos negros, esses negros de Irmandades, a historiografia, de algum modo, os tratavam como negros de igreja. Aí, eu fiquei ferida com aquilo, no sentido de que qual outra opção caberia a esse negro? Lá nas nossas Minas, lá no Serro, o que caberia a ele? Fugir custaria muito caro, o suicídio, muito caro; ele não tinha outra opção. Então, ele não podia ser considerado negro de igreja, no sentido pejorativo de que se entregou às estruturas dominantes, ele estava ali fazendo... Aí, veio uma imagem na minha cabeça, que era o momento de danças, que caboclos e marujos lutavam com espada e flecha e lutavam mesmo, lutavam assim... Era uma luta que eles queriam... Teve registros depois, no meu estudo, de um machucar o outro, mas eram danças. Falei: “Se há essa expressão simbólica de guerra, é simbólica porque é uma dança, numa festa, mas se há essa guerra simbólica entre eles, o negro escravizado estava querendo dizer alguma coisa, ele estava se expressando, ele não tinha outro modo, então a Festa do Rosário é um escape, é uma expressão de tudo que ele vivia, eu vou investigar essa festa simbolicamente, antropologicamente, eu vou esmiuçar essa festa”. E me dediquei a escutar, a pesquisar, a conversar, a registrar, mas nunca publiquei. Fiz minha monografia em História, fui registrando, fui analisando, fui juntando, fui conversando e depois de 30 anos, com esse tema, assim, em ebulição dentro de mim, eu acabei fazendo o livro e foi um registro muito... Graças a Deus, todas as análises das pessoas que fazem, falam sobre ele, sentem que foi um livro que contribuiu muito para o registro, para a compreensão e, sobretudo, por uma coisa... Voltando às frases intuitivas e tão inteligentes da mamãe... Um dia, ela falou que gostaria de fazer mais um livro, com um jornalista, eu falei: “Mãe, mais um?” Ela falou: “Sim, o que não está escrito, o vento leva”. Então, hoje eu sei que o vento não vai levar uma porção de coisas, eu consegui registrar cantos, resingas, performances de rua, letras em todos os cantos, de todas as danças, está tudo registrado, tudo que foi possível, não é? Então, é um modo que fica aí para eles, para o dançante, para o devoto, um material que eterniza, possibilita às gerações pelo menos o não esquecimento de uma história tão rica quanto essa. É uma das expressões mais importantes de religiosidade popular de Minas, ou se não, a mais - eu acho que é a mais - e uma das mais importantes do Brasil, a Festa do Rosário do Serro, vale conhecer.
P/1 – As suas filhas, como é que foi? Elas nasceram, o nome delas, como é que foi? Como estava sua vida na época? Você falou um pouco.
R – Então... Eu me formei em História e, a partir daí, comecei a dar aula e levando a minha pesquisa paralelamente, mas professor para sobreviver tem que trabalhar bastante, eu dava aula em inúmeras escolas e tudo. E depois de um tempo, uns cinco anos depois que eu me casei, engravidei e aconteceu comigo um fato, assim, que eu pirei, na verdade. A mamãe teve onze filhos. No momento em que ela teve gêmeas... Eu tenho que voltar nela mais uma vez... Foi muito curioso, porque nossa cidade, eu já falei várias vezes, morávamos em prédios, porque tem sobrados, tem sobrado, tempo de chuva, chovia uma temporada inteira, mamãe, nessa época, ela tinha seis filhos de fraldas, não havia fralda descartável, não havia ainda eletricidade, até em uma parte dessas crianças, ainda não havia nem eletricidade, entendeu? Tinha uma luzinha, assim, mas não tinha ferro elétrico, era ferro a brasa, as fraldas eram de pano, não secavam o suficiente para tanta criança. Então, às vezes, ela tinha gente para ajudar, mas eu me lembro de um dia, que ela com as duas menininhas, as gêmeas pequenininhas sobre a cama dela, assim, eu ajudava ela muito, eu já tinha coisa de sete anos, ela estava secando uma fralda, assim, na cama, não sei o porquê, era noite, devia ter precisado mais, e o ferro encostou na perninha de uma delas. Eu me lembro de que ela chorou muito e eu fiquei apaixonada de ver a Ana Cristina com a perninha queimada, eu falei: “Gente, eu nunca quero ter gêmeos, que coisa horrível ter esse tanto de menino”, pensei uma coisa assim. Um pensamento em que eu falei: “Para mim, isso eu não quero, não pode acontecer uma coisa dessas, isso não é o certo, o certo é ter um tempo para cada um”. Pois eu engravidei, aí consciente, na certeza absoluta de que eu tinha um menino e que meu menino chamava Artur, que era um menino, já tinha escolhido o nome dele, mas o médico... Minha gravidez estava indo muito bem, eu falei: “O senhor não vai pedir ultrassom, não?” Ele falou assim: “Olha”... Eu tinha, na época, um plano de saúde que me dava direito a um ultrassom. Ultrassom era, mais ou menos, novidade, não era tão comum. E eu: “Você não vai pedir ultrassom, não?”. Estava curiosa. Ele falou: “Você vai querer saber o sexo?” Eu falei: “Quero, eu já sei, é um menino, mas é bom saber”. Aí, ele falou: “Não, então a sua gravidez é clinicamente perfeita, vamos deixar para seis meses que dá para ver com mais certeza”. “Então tá, seis meses, eu vou esperar meu aniversário de casamento”. Esperei mais um mês, já eram sete meses que eu estava, de gravidez. Fui fazer ultrassom, eu trabalhando sem parar, todos os meses que eu ia lá a minha gravidez era clinicamente perfeita. Quando o moço colocou o negócio para fazer ultrassom em mim, ele falou: “Qual dos dois você quer saber o sexo primeiro?” Eu achei que ele estava brincando. Eu achei que ele estava brincando, ele falou... Ficou impaciente: “Qual dos dois?” Eu notei a impaciência dele, decerto ele jamais imaginou que eu não saberia. Eu olhei para a televisão, tinha duas cabecinhas prontas para nascer aqui em baixo, assim... Eu olhei, e você imagina uma pessoa entrar em parafuso, em pânico, a minha barriga era desse tamanho, aí meu marido, nessa hora, ficou atento perguntando como é que as crianças estavam. Eu chorando, chorando, saímos de lá com exame de duas crianças, ele falou assim: “Dá para ver que uma é menina, a outra criança é impossível ver porque está muito apertadinho”. Fomos para o médico, na sala de espera, uma senhora do meu lado “Por que ela está chorando?”, “É porque ela vai ter gêmeos”. Ela falou: “Não, mas com essa barriguinha?”. Eu mais chorava, porque eu achei... A imagem que eu tinha era que as crianças estavam todas agarradinhas dentro de mim, assim. Eu tinha ajudado a criar, cuidar de um primo meu que teve um problema seríssimo de saúde; nos meus 15 anos, em vez de viver uma juventude, assim, como é natural, eu estava obcecada por ele, ajudando, porque ele nasceu com um problema gravíssimo, eu quase que me tornei... Eu me sentia mãe dele também, então eu dediquei anos da minha vida a ele, ao Cassinho, cuidando dele. Então, eu via o que era uma criança que não era saudável, eu tinha a maior preocupação com a saúde. Na minha gravidez, eu cuidei muito da minha alimentação, muito de tudo, preocupada com o drama que eu vi do que é uma criança doente. Aí, eu já pensei: “Nossa, vai ser tudo que eu não queria na minha vida”. Chorei 15 dias sem parar. Todo mundo: “A Márcia vai ter gêmeas”. O assunto era: “A Márcia vai ter gêmeas”. Porque, gente, eu não engordei nem nove quilos na gravidez inteira, para vocês terem ideia do que era a minha barriga com sete meses, com duas. Chorei 15 dias. “Não preocupa não, faz um ultrassom de alta resolução, que você vai ficar mais calma, porque ela teve o primeiro filho dela com lábios leporinos, então quando ela engravidou do segundo, ela pirou também”. Aí, já tinha essa tecnologia de uma coisa mais avançada, custava caro, na época. Eu fui fazer, o médico falou comigo: “Olha, essas crianças, não dá para saber o sexo das duas; de fato, tem uma menina, mas elas são tão saudáveis que qualquer dessas crianças que você quisesse me dar, eu escolheria de olhos fechados”. Desse momento para lá eu me senti... “Em vez de eu estar chorando, vou me sentir abençoada, vou ser mãe de duas crianças”. Senti-me abençoada. Mudou. Com 15 dias eu estava me sentindo a pessoa mais feliz do mundo. E, de fato, nasceram duas crianças super saudáveis, de parto normal, eu as amamentei por sete meses, fui super cuidadosa com elas, assim… Dediquei-me de um modo muito curioso com filho, porque, à época, não era hábito fazer uma coisa que eu inaugurei, pelo menos na nossa roda familiar. Eu calculei o seguinte: criança que nasce não sabe o que é açúcar, nem o que é sal, então elas não conheceram açúcar até quase dois anos e nem sal. Enquanto dependeu de eu fazer o alimento delas, eu fiz o mais natural possível. De alimentação natural mesmo, elas cresceram sem nunca tomar um antibiótico, o primeiro foi aos 14 anos para fazer uma cirurgia, aquele negócio que dá no nariz, adenoide? Eu acho que chama. Foi a primeira vez que elas tomaram um antibiótico. Lindas, saudáveis, muito capazes com tudo, então foi uma experiência linda a minha maternidade, eu fui muito abençoada.
P/1 – Quais os nomes delas?
R - Ciana Nunes Guerra e Cibele Nunes Guerra.
P/1 – Por que esses nomes?
R – Os nomes? Eu combinei. Meu marido escolheu Cibele, eu escolhi Isabela. A gente resolveu quando a gente ficou sabendo que nasceriam duas crianças; não tinha ainda certeza do que seria, mas já tinha nome para menino - se fosse menino seria Artur. Uma menina já era, então eu já tinha escolhido Artur com Cibele, aí deu que era outra menina, nasceu, então ia ser Isabela. Aí aconteceu um fato também, assim, razoavelmente curioso, que nós saímos da Maternidade, mamãe com uma e eu com outra. E mamãe olhou um quadro, assim, pregado na parede, falando assim: “’Se ama’ uma instituição de amamentação”. Aula para ensinar mãe a amamentar. Ela falou: “Márcia, estou lembrando da prima mais bonita que nós tivemos, chamava Ciana”. Eu falei: “Mãe, que nome bonito”. Ela lembrou da Ciana, fez um comentário, por causa da ‘Se Ama’, instituição de amamentação. “Que nome bonito, mãe”. Eu falei: “Duilinho...”. Meu marido se chama Duílio, ele estava pagando a Maternidade. “Duilinho, eu gostei desse nome: Ciana”. Ele já ia para registrar. Ciana, eu achei tão sonoro. Aí, bom, registrou, Ciana e Cibele. Passaram-se muitos anos, veio aqui um tio meu - o tio mais antigo da família - ele vinha aqui muito conversar com a gente, tomar café. Aí, dessas primeiras vezes que ele veio, eu falei: “Antoninho, você sabe que eu tenho uma filha que faz homenagem ao nome da sua prima?” Mamãe falou que ela era prima dele. Ele falou: “Qual?” “A Ciana”. Ele falou: “Não, ela chamava Emerenciana; era o apelido dela”. Então eu brinco com a Ciana que quase que ela se chamou Emerenciana; foi assim a escolha do nome delas. Hoje elas estão com 26 anos, a Cibele se formou em Administração, está com uma carreira muito bem-sucedida, e a Ciana vai se formar em Medicina este ano e vai realizar um sonho da mamãe, porque a mamãe desejou, jovem, ser médica - ela queria ser médica. E nenhum dos netos ainda se formou médico, e a Ciana quis ser médica. A mamãe ficou na maior felicidade por ter uma neta médica, porque ela queria ser médica, mas o avô dela era médico, ele falou que não deixava a neta dele ser médica porque teria que ver homens nus, então isso não era para ela, não era para mulher, cuidar de homem, aí o vovô não deixou. Então, a Ciana está realizando esse desejo da mamãe e eu sempre brinquei... Mamãe estava doente, eu falava: “Segura o tranco, porque você vai ter que receber o diploma da Ciana”. Ela faleceu antes, não é?
P/1 – Como é que foi contar um pouco da sua história?
R – Olha, eu não sabia o que viria. Sei daquilo que está contido na gente, mas a gente nunca tem noção daquilo que vai vir, é uma catarse, não é? Porque vem coisas, vem lembranças, assim, eu me sinto honrada por ter pessoas me escutando, mas eu sempre falo - eu até perguntei a você antes: “Tem tantas outras pessoas para você escolher”. Eu sei que hoje eu tenho uma contribuição a dar, sobretudo histórica, com relação à coisa da cozinha mineira, mas não vejo, na minha história de vida, nada assim que merecesse uma deferência dessas. Mas, para mim, é bom porque registra, fica registrado, para o futuro, fica aí o material. Eu me sinto honrada de saber que minha história vai ficar aí. Isso está me confundindo - eu fiquei sem graça com a pergunta - mas feliz. Acho que foi uma experiência... É uma experiência curiosa, porque o outro é toda escuta e é tão raro isso, não é? É bonito esse conceito do Museu da Pessoa porque dá escuta à pessoa. É bonito, eu acho que, juntando as histórias, deve ser uma coisa bastante importante, não é?
P/1 – O que mais você sonha?
R – Meu sonho? Eu vivo em estado de gratidão, o sonho é sempre uma ambição, um desejo. A maior alegria que eu tenho é que eu me sinto bem, é porque eu vivo em estado de gratidão, então isso fica quase que, assim... Não te priva de sonho, mas o estado de gratidão, ele não te projeta tanto assim, não é? Eu acho que eu já sou... Essas conquistas, essa vivência tão harmônica que eu tenho, essa herança que Deus me permitiu ter, que é falar em nome, projetar a história da mamãe, poder levá-la à frente, ser herdeira de um legado tão lindo, ter filhas como as que eu tenho, ter amigos, uma família tão linda, quer dizer, tudo para mim é gratidão. Agora, sonho? Coisa que sempre foi para mim o objetivo é viajar, conhecer o mundo, conhecer coisas, conhecer pessoas e, atualmente, por conta desse trabalho de tanta dedicação, foi o único momento da minha vida entre... Que eu fui tão assim focada em uma coisa só, porque antes eu era a maior aventureira. Viajei o Nordeste todo de carona, Europa toda, era uma aventureira. O povo faltava me matar lá em casa, me achavam muito fora do que eles poderiam estar. Então, mas eu vivi isso muito, agora esse tempo da minha vida está completamente de cerca. Não é cercado de aprisionamento não, mas de foco. Então, na hora em que eu tiver uma condição, acho que o sonho que eu poderia falar aqui é um sonho que eu alimento, é voltar a ter uma experiência mais de conhecer outros lugares, viajar um pouco sem a preocupação que o trabalho me dá muito. Eu trabalho por paixão. O trabalho por paixão, ele não tem a mesma conotação de trabalho, não. Todo dia é um dia novo aqui para mim. Eu recebo pessoas diferentes, eu converso, eu vou aqui, eu vou ali, eu faço, eu passo de um lado para o outro, assim, mas meu dia é aqui, entendeu? Então, quando eu trouxer alguém para fazer, assim como a mamãe fez a passagem para mim, quando essa passagem for feita, do ponto de vista da continuidade do restaurante, se ele tiver que continuar, aí eu vou me soltar um pouco, curtir.
P/1 – Obrigada, viu, Márcia?
R – Uai, eu que agradeço. Agradeço demais essa escuta, o carinho, a escolha, a oportunidade de falar tanto assim de mim, não é? Nunca tive.
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