P/1 – Bom, primeiramente eu queria agradecer ao senhor, seu Antonio, pelo tempo, pela disposição e pela atenção.
R – Eu que agradeço pelo convite.
P/1 – Eu vou começar perguntando o seu nome, o local e a data do nascimento do senhor.
R – Meu nome é Antonio Favano Neto, nasci no dia 30 de julho de 1935 no Alto da Mooca. E aqui onde estou dando a entrevista eu vim morar nessa casa com oito anos de idade e hoje é meu escritório aqui.
P/1 – E qual o nome dos seus pais?
R – Meu pai é Vitorino Favano e minha mãe, Dolores Perez Favano.
P/1 – Eles são daqui do Brasil mesmo?
R – Meu pai era argentino e minha mãe espanhola, de Granada.
P/1 – E eles contam alguma história a respeito dessas origens, como que foi, eles vieram pro Brasil como?
R – O meu avô imigrou da Calábria pra cá e chegou aqui em 1912. Ele veio para o Brasil trazendo uma técnica que no Brasil naquela época existia um ditado que dizia: “Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil”. E ele veio com uma técnica da Itália pra matar saúva, matar formigas que tinha na Calábria. Ele viajava o interior de São Paulo fazendo essa técnica de matar formiga. E numa das viagens que ele fez na região de Mogi Mirim, Mogi Guaçu, ele conheceu a minha avó, casou com ela e depois de uns 15 anos matando formiga ele veio pra São Paulo morar na rua Valentim Magalhães, a terceira travessa aqui, isso em 1910. E, por conhecimento no interior ele começou a trazer cavalos de Minas Gerais e domava aqui no Alto da Mooca e vendia os cavalos para tração animal. E com esse conhecimento de Minas ele começou trabalhar com queijo. Então a minha família aqui na Mooca para os antigos ainda nós somos a família dos queijeiros. E por conhecimento de queijo em 1944 meu pai montou um armazém que chamava Altomare e Favano no Largo do Pari número dois, vendendo queijo. E de 44 pra cá nós vivemos na Santa Rosa até hoje.
P/1 – Você falou que sua mãe é de origem espanhola.
R – Minha mãe é de origem espanhola, granaína.
P/1 – E como eles vieram pra cá, seus avós?
R – Vieram como imigrantes e a Mooca naquela época era um bairro totalmente operário. E a Mooca, pelos terrenos dessa região que você está, os terrenos, em média, eram de dez de frente por 50 de fundo ou 15 de frente por 50 de fundo, os dois terrenos formavam os quarteirões de cem metros quadrados. E os antigos faziam uma casa pra morar na frente e atrás iam fazendo um quarto cozinha, um quarto cozinha e no fundo dois banheiros e alugavam, que eram os célebres cortiços da Mooca, o que não deixava de ser um pouquinho melhorado, mas uma favela, porque tinha um banheiro coletivo. E os imigrantes que vinham tinham que se sujeitar a morar nesses cortiços que foi onde veio minha avó e que meu avô, um pouquinho melhor que já estava trabalhado no interior tinha uma casa do lado e meu pai conheceu minha mãe e veio essa união do casamento de ambos.
P/1 – Então os dois se conheceram aqui na Mooca mesmo.
R – Foi aqui na Mooca.
P/1 – E o senhor falou que o senhor veio pra essa casa com oito anos.
R – Com oito anos. Antes disso eu morava na rua Valente Magalhães e meu pai foi morar na vila Zelina, onde hoje é o crematório da vila Zelina, era um morro abandonado chamado Morro do Hungarês. Era um húngaro que sumiu e ficou aquilo lá e do lado era vila Zelina. Pra você ter uma base, daqui só tinha a caixa d´água da Mooca, do restante dava pra avistar a igreja de vila Zelina, era tudo deserto. Daqui do Alto da Mooca pra frente tinha a caixa d´água da Mooca, tinha o Oratório, que por isso chama Estrada do Oratório, e não tinha mais nada, era Primeira Divisão, Segunda Divisão, Terceira Divisão. Asfalto não exista. Era a Mooca daquela época. E eu já saía daqui desta casa, eu com 12 anos de idade, a minha mãe me levava até o ponto final do ônibus aqui na rua Fernandes Falcão, eu estudava no Grupo Escolar Armando Araújo. Quando eu chegava da escola, pegava a marmita, que era marmita mesmo que hoje já não usa, e ela preparava a marmita para eu levar pro meu pai na rua Santa Rosa, 136. Levava na rua Santa Rosa, ficava com ele e depois voltava de carroça com a tração animal, aqui pra Mooca. Aqui do lado onde mora meu irmão eram as cocheiras que a gente tinha.
P/1 – O senhor nasceu aqui na Mooca, então.
R – Eu nasci aqui do lado.
P/1 – Não foi em hospital.
R – Nãoooo, naquele tempo hospital era pra bacana. Lembro até hoje, aqui na Mooca tinha a dona Maria Parteira. Parteira não tinha esse negócio de programar, a hora que começava as dores corria, chamava e era bíceps, era ferro, não tinha maternidade. Tinha uma maternidade pequena na Paes de , que era maternidade Santa Terezinha. E era raro, maternidade não era pra todo mundo, não.
P/1 – A dona Maria era bem conhecida aqui no bairro.
R – A dona Maria acho que foi mãe de meio Alto da Mooca.
PAUSA
P/1 – O senhor estava falando da Santa Rosa, do seu pai. Mas vamos falar um pouquinho mais aqui da Mooca. A sua família tem essa língua espanhola da sua mãe e essa ascendência do seu pai também. Como eram os costumes na sua casa, como era o cotidiano?
R – O cotidiano é saudosismo, né? Era família, família realmente. Aquela família que levantava de manhã e tomava o café da manhã. Aquela família de na hora do almoço estar junto, na janta estar junto. Essa rua que você vê aqui, quando era seis horas da tarde todas as famílias estavam na porta sentadas, conversando, porque tinha novela, quem gostava ouvia a novela e o resto na rua, as crianças brincando, tudo o mais. Então a essência família era maior, o diálogo era maior porque nós não tínhamos... cinema era matinê do domingo. Jornais, pra você ter base era comum passar gente vendendo jornal anunciando um crime que já tinha acontecido há quatro, cinco dias. Compravam um jornal velho, que era o jornal Diário Popular, e passavam vendendo o jornal no bairro de coisa que já tinha acontecido. A comunicação era muito difícil, era um negócio muito difícil. Mas existia amizade, as brincadeiras. Mas também tem coisa que muita gente fala “Ah, de antigamente, de antigamente”, mas antigamente a minha avó e minha madrinha eram famosas aqui no bairro como benzedeiras. Então naquela época, hoje você nem ouve falar, talvez o que eu vou te falar você nem conhece, mas você ouviu falar já em quebranto? Bucho virado? Então, era comum a criança, você entrava numa casa e dizia que a criança pegou quebranto, então benzia quebranto. A criança chorava era bucho virado, a mulher punha de cabeça pra baixo e benzia. Naquele tempo não se tratava dente, não se tratava canal de dente, você ia no dentista, doía o dente, arrancava o dente. Eu há muito tempo que não vejo alguém falar que teve que operar apêndice e na minha época de menino operava apêndice sem precisar. Aqui da onde eu estou, com 12 anos de idade saí eu e nove primos, todos da minha idade, fomos na avenida Álvaro Ramos num médico chamado doutor Catapano. E nós dez e mais uns 40 que estavam lá em uma sala onde você ficava sentado, ele vinha com um balde, a enfermeira dele junto, te punha um aparelho na boca e arrancava as amígdalas a sangue frio, jogava num balde e você pagava e vinha embora. E num dia a minha família operou dez Favanos das amígdalas, até hoje ninguém sabe por que operou. Porque diziam que as amígdalas atrapalhavam. Então quando se fala do saudosismo daquela época a turma não fala dos absurdos daquela época, entende? De você ir numa farmácia e em 20 pessoas tomar injeção com a mesma agulha, com o mesmo aparelho, a única coisa que fazia, punha na água um pouquinho fervente e essa agulha ficava um mês, dois meses. Então é sonho, é sonho, hoje você não vê um ser humano andando na rua e escarrando. Eu peguei época em barbearia que era lei ter escarradeira. Dentro da barbearia tinha escarradeira porque todo homem se não escarrasse não era homem, tinha que (faz barulho imitando). Então tem coisas que se a gente falar do passado, você vai ver os absurdos que existiam, que a turma fala das coisas. Eu, por exemplo, até hoje, quando eu fiz a barba a primeira vez o barbeiro aqui da Mooca me passou no rosto pomada Minancora, eu uso pomada Minancora até hoje. Mas tem coisa melhor do que a Minancora, eu uso desde menino. Então tem coisas que se você ver das partes antigas, a Mooca, eu morei aqui, vivi aqui, hoje moro em Moema, mas pra eu sair daqui e ir até a Praça da Sé naquela época de ônibus chegava a demorar até duas horas e meia. Porque quando você pegava a porteira da Mooca fechada – e naquele tempo o trem era a locomotiva do país – você às vezes ficava na rua da Mooca, passando a rua Borges de Figueiredo, 45, 50 minutos esperando a porteira abrir, que o trânsito pegava da porteira da Mooca até a Paes de Barros. Ônibus, os ônibus carregavam 26 passageiros, 30 passageiros. Então o progresso que houve, o que o mundo adiantou. Eu conto sempre pro pessoal, o meu avô, uma ocasião comprou um gramofone e os discos de acetato, acho que eram de acetato, desse tamanho assim, ele era italiano e ele comprou uns discos do Beniamino Gigli, Carlo Buti, Tito Schipa. E ele punha, dava corda e o disco tocava. E aos sábados e domingos tinha uma cômoda que era quase da altura da janela, ele punha o gramofone aqui com o fone pra fora e o bairro da Mooca ia ouvir aquele negócio que tocava. Então ele dava corda, quando estava no fim o cara estava cantando e ele vinha La donna mobile, ia lá e dava corda outra vez. Então para uma pessoa, que eu estou hoje com 80 anos, que eu peguei o gramofone e hoje eu saio daqui e pego um telefone e faço a programação, eu falo pra onde eu quero ir e ele me dá a programação, é um verdadeiro absurdo para um cérebro entender isso tudo, né? Pra entender isso tudo é um choque, é um choque de desenvolvimento que não dá pra entender.
CORTE NO ÁUDIO
P/1 – O senhor estava falando, seu Antonio, o seu avô tinha o primeiro gramofone do bairro.
R – O gramofone. Então você pega onde nós vamos chegar lá, mas quando comecei na Zona Cerealista para falar com Apucarana demorava em média 12 horas pra fazer um interurbano. E hoje, pra quem vê um gramofone e vê que eu saio daqui e falo o endereço da minha casa e ele me orienta pra ir, é um choque de cultura que se você analisar o progresso do mundo depois da viagem do homem pra lua, o mundo progrediu acho que dois mil anos em 20. Por isso que o saudosismo é bonito na parte só saudosista. Você nem sabe disso, mas na minha época de menino, de cada cem pessoas que morriam, tanto homem como mulher, morria de nó nas tripas. Por que? Qualquer dor que dava, dor de estômago, a pessoa fazia isso (faz algum gesto) e: “Fulano morreu do quê?” “Nó nas tripas”, o povo dizia que dava nó nas tripas e a pessoa morria. Você deve ver que deve fazer muito tempo que você não ouve falar de gente que morreu de úlcera. E úlcera de estômago todo mundo tinha. Então o progresso foi muito grande. Progresso no comércio, na ciência, na tecnologia, mas ele foi assustadoramente rápido pra quem veio da minha época. Eu peguei na época da guerra, era menino, mas cansei de ver carro a gasogênio. Carro a gasogênio era uma adaptação que se fazia pra por atrás uma fornalha, que aqui rua Lituânia tinha um camarada que fabricava umas bolas de carvão e que de manhã você ligava o gasogênio, enchia aquele gasogênio de carvão e saía com o carro viajando como se fosse gasolina. Isto tudo acabou. Então o pessoal tem muita saudade da coisa da sua infância e tal, mas de muitas coisas não tem saudade não. Aqui na Mooca o Nelsinho era amigo meu, o pai dele e o irmão viveram e mantiveram a família indo na Antarctica pegar gelo e entregar gelo nas geladeiras das redondezas aqui. Que a geladeira, por isso chama até hoje refrigerador mas é geladeira porque eles entregavam de manhã na porta uma pedra de gelo que a mulher tinha que pegar, quebrar, jogar em cima e embaixo, que o gelo gelava pra tirar, quem tinha, quem podia ter geladeira. Então o saudosismo é muito bonito. É bonito o pião que eu jogava, a bolinha de gude, tal, mas é triste dos outros lados.
P/1 – Você falou que tem um irmão. Você tem só um irmão?
R – É, infelizmente já não tenho, eles faleceram, mas ainda tenho a irmã, a Doroti, que nós éramos em quatro. Os dois mais novos morreram e eu e a Doroti, graças a Deus, por enquanto estamos por aqui.
P/1 – O senhor é o primogênito?
R – Hoje eu sou primogênito da minha família e sou decano da família Favano, sou o mais velho da família.
P/1 – Você falou da origem calabresa.
R – Meu avô era de Catanzaro.
P/1 – E o pessoal do bairro? Porque tinha muito italiano na Mooca. Qual é a origem dos italianos?
R – O bairro, a predominância do bairro da Mooca, porque você hoje está aqui no Alto da Mooca, a Mooca era mais embaixo, mas depois aqui, mas é Mooca. A predominância era um bairro italiano e em segundo espanhol e português quase no mesmo nível. E tinha uma colônia muito grande aqui, que a rua Lituânia aqui atrás chamava rua Hungria, que eram os húngaros que a gente chamava o girassol de _0:18:59_. Os húngaros, quando a gente ficava na rua aqui, as hungaresas ficavam com uma roupa grande cheia de girassol, punham na boca e como papagaio elas tiravam assim e comiam só a semente. E quando veio a guerra os húngaros saíram daqui, não que fugiram, mas tiveram que sair por causa de perseguições e foram pra vila Zelina, você vê que na vila Zelina hoje a colônia lituana, húngara é lá. Mas a predominância na Mooca era um bairro pobre e operário porque de cada cem moradores da Mooca, no mínimo 70 ou trabalhavam no Crespi, ou trabalhavam na Antarctica. E a Mooca demorou pra progredir porque ela era fechada, entre a porteira da rua da Mooca, a porteira da rua Visconde de Parnaíba, a porteira da rua do Hipódromo, e depois a Central do Brasil, ali onde está a Radial Leste. Então a Mooca era um bairro de difícil acesso. Os ingleses quando lançaram o Parque da Mooca, que é a parte ali onde está o Juventus, aquele loteamento do Parque da Mooca por trás da avenida Presidente Wilson tem a Antarctica, não tinha passagem porque era a estrada Santos-Jundiaí, então, a Mooca estava ilhada: tinha a Central do Brasil que não podia entrar, as porteiras que dificultavam e a Santos-Jundiaí que ia pra Vila Prudente, Utinga, que não podia passar pra cá. E os ingleses lançaram o Parque da Mooca e, inteligentemente, é uma obra que ainda hoje é a vida da Mooca, eles lançaram o viaduto São Carlos do Pinhal, que ainda hoje é a comunicação entre a rua Jumana que atravessa a estrada, passa por baixo. E aquele viaduto, quando os ingleses fizeram, foi uma obra porque aliviou a Mooca. Aquele viaduto ainda hoje, quem for lá pode ver que eles fizeram já prevenindo tem os trilhos do bonde, porque o bonde era o futuro na época. Eles fizeram o viaduto com o trilho do bonde. E isso que deu o impulso na Mooca, que ela começou por esta parte. Porque até fazer o viaduto você vê que a rua Visconde ainda não tem viaduto, o Hipódromo não tem viaduto e o viaduto da rua da Mooca foi feito há pouco tempo. Foi essa parte que os ingleses da companhia Parque da Mooca que deu o impulso pra Mooca. E até hoje você vê que a Mooca tem a peculiaridade de você encontrar, eu tenho vizinhos aqui do lado que eu estou com 80, ela está com 70 e nós fomos criados juntos. A Mooca ainda mantém uma parte da Mooca de uma vila, vai, de um bairro operário e tudo o mais.
P/1 – E como que funcionavam essas porteiras? Porque tinha bastante pela cidade, né? Tinha no Brás também.
R – Bom, você imagina que a porteira do Brás elegeu o governador de São Paulo, Ademar de Barros, pra fazer um viaduto. O Ademar de Barros inaugurou o viaduto do Gasômetro três vezes. A Mooca era fechada e o Brás também tinha o problema do viaduto. Mas o Brás era só o problema do viaduto, a Mooca, não. A Mooca tinha as três porteiras, a estrada que não dava entrada e a Santos-Jundiaí.
P/1 – E como funcionavam essas porteiras?
R – Essas porteiras funcionavam que quando o trem chegava tocava um sino, um sino muito alto, uma campainha e conforme a campainha tocava, parava. Eram duas porteiras, a metade da porteira fechava pro trem e quando vinha tinha funcionários que tocavam e fechavam a porteira. E às vezes você pegava trem de passageiro e o trem de carga, quando você pegava o trem de Santos que ia pra descarregar na Sorocabana, pra descarregar onde é a Santa Rosa ou vice-versa, às vezes você ficava parado na porteira durante mais de 30 minutos porque os trens eram grandes e lerdos e não tinha como passar. E quando não o trem parava pra esperar o outro, a Mooca ficava parada.
P/1 – E a mesma coisa no Brás?
R – O Brás a mesma coisa.
P/1 – Você chegou a acompanhar o pessoal se abastecendo com o trem de carga lá na porteira do Brás?
R – Não, o trem de carga na porteira do Brás não tinha.
P/1 – Não tinha?
R – Não. Tinha um pedaço na rua 21 de abril, que a gente chamava Estação do Norte, onde é a estação Presidente Roosevelt, que trazia mercadoria, pequenas cargas. Porque o Brasil é um país tão peculiar que é o único país do mundo que tem três bitolas de trem, né? Bitola estreita, bitola pequena e bitola larga. Então o que tinha? O transbordo de mercadorias que vinham, por exemplo, do Paraná, paravam ali na rua Bresser pra poder transportar pra outra bitola pra ir pro Rio de Janeiro, o transbordo de carga não era feito na estação, só carga pequena. Então nós trabalhávamos com queijo que vinha de Bom Jardim e de Baependi, e esse queijo sim, ele parava ali na Visconde de Parnaíba, que a gente ia com a carroça da Santa Rosa pegar. Mas o trem de carga não, era mais passageiro nessas estações.
P/1 – Vamos voltar um pouquinho só pra gente fechar essa parte aqui do bairro. E como era a sua infância aqui no bairro da Mooca?
R – É o que eu te falei, a infância foi maravilhosa. Futebol, campos de futebol. Hoje o pessoal diz de piscinões. Então você vai ter uma surpresa: o maior piscinão que tinha em São Paulo começava onde é a Arno hoje e ia só até Santo André e São Caetano. Quando dava as enchentes, as chuvas, naquela época tinha um carro que vinha dos Estados Unidos, o concessionário a firma Studio Becker, era na avenida Presidente Wilson, perto de onde foi a Ford. E quando estava a época de chuva, de São Caetano, onde estava o Matarazzo até onde está a Arno, formava um rio e de acordo com o que ia escoando a água devagarinho ia pegando o Tamanduateí, ia pro Tietê, então ela parava aqui e inundava as enchentes, porque lá tinha o vale. Com isso acabou o vale. Mas na minha época de infância a gente passava ano nadando, que na época era tipo o rio das vacas, a lagoa, a gente nadava nessas águas que se formavam onde é o campo do Juventus hoje, de lagos que formavam e que ia esvaziando devagarinho e na outra chuva ainda tinha lugar pra nadar e tinha lugar pra pescar lambaris e tudo o mais. Eu cansei de pescar lambari do rabinho vermelho no Tamanduateí. Então a infância foi maravilhosa. Mas o que tinha? Ninguém fala que eu, por exemplo, sou canhoto, não escrevo com a esquerda. Sabe por que eu não escrevo com a esquerda? Porque quando na escola eu pegava a caneta com a mão esquerda os professores tinham um compasso de madeira que eles faziam e na ponta tinha um tipo de um prego que era pra firmar pra fazer o compasso. O professor vinha com aquele compasso aberto e quando eu pegava a caneta com a mão esquerda ele me espetava na mão. Porque era preguiça minha de querer escrever. Eu devo a ele hoje que eu escrevo com a direita e com a esquerda, mas eu nasci em 35, sou canhoto. Meu irmão Ademir nasceu em 44 e em 44 já não era proibido ser canhoto. Mas até 40 era proibido ser canhoto, então você na escola falar que não estava enxergando te punham na frente, você falava que não enxergava você apanhava! Era uns absurdos de uns absurdos, mas era bonito. Era bonito por quê? Na idade que você está é tudo bonito, né? Fruta, você pegava aqui da onde era o Oratório que hoje é o Hospital São Cristovão, daí pra frente tinha chácaras, você pegava laranja, caqui, o que você precisava você ia pegar. Mas qual era a população de São Paulo? População de São Paulo era pequena, né? Então a infância foi bonita. Você tem saudades? Tenho, sem dúvida nenhuma, mas eu queria ser jovem agora, não queria ser jovem quando eu fui.
P/1 – Você falou de futebol, você jogava muita bola?
R – Nossa!!! Futebol se jogava demais, se jogava demais. Eu mesmo quando jovem fundei aqui, onde estou aqui fundamos o Flor da Mooca que foi um time que jogou muito tempo. Mas se jogava de sábado, de domingo, domingo de manhã, domingo de tarde. Mas também não tinha diversão não, ou jogava futebol ou não jogava nada. Então no inverno você pegava lata de óleo, punha um arame, fazia um buraquinho embaixo, pegava a brasa da casa da gente, aquilo virava que era um perigo, escapava, machucava todo mundo, e punha na rua, no inverno, pra ficar em volta do fogareiro contando história, brincando.
P/1 – Tem alguma história desse fogareiro, você lembra bastante?
R – História que tem do fogareiro é que aquilo, era uma turma, né? Então você virava o fogareiro, com o vento pegava brasa, então eu ficava esquentando e o outro ficava e cada um ia virando o seu pra ficar no quente. E às vezes o fogareiro escapava porque era arame e machucava um ou outro.
P/1 – Eu digo algumas das histórias que vocês contavam entre si, se tinha alguma marcante.
R – Mas as histórias da nossa época eram mais lendas que história, né? Então pra você ter uma base, aqui embaixo morava uma família de mulatos e o Teodoro era meu amigo. E pro bairro, aqui, o pai do Teodoro era lobisomem. Então quando ele passava a gente se escondia porque era lobisomem (risos), entende? Aqui na frente era o empório do seu Máximo e até hoje está aí, era uma quadra coberta de bocha, vinha gente de São Paulo inteiro jogar bocha, era um esporte italiano. Na rua Barretos tinha o clube de malha, que era mais os portugueses que jogavam malha. Então era bonito. As quermesses das igrejas eram uma coisa maravilhosa. Mas também a turma não esquece que na escola não queria saber se você estava bem ou ruim do intestino e duas vezes por ano você tinha que tomar óleo de rícino e vir pra casa porque você fazia as necessidades no caminho. Então tem coisas que se tornam lendas. Então lobisomem, a mula sem cabeçai, de sair à noite que a mula sem cabeça atacou. Que eram coisas folclóricas que hoje você vê que não tinha... não tem nada a ver, o saci pererê hoje pra nós é lenda, pra muita gente cresceu, viveu achando que era verdade. É essa a vida de antigamente.
P/1 – Você gosta bastante de futebol então.
R – Adoro.
P/1 – Você torce para algum time?
R – Torço pra Sociedade Esportiva Palmeiras. Virei agora porque eu era palestrino, até ante ontem eu era palestrino (risos).
P/1 – E aqui no bairro ainda tem muita gente que torce pelo Juventus.
R – Tem. Aliás, o Juventus, há dois anos até bonito vocês pegarem numa manhã o Juventus e ver a beleza que é os jogos do Juventus de manhã, lota o estádio. Tá certo que no estádio cabem quatro, cinco mil pessoas, mas a Mooca como clube predomina Palmeiras e Juventus.
P/1 – E a bocha e a malha eram muito populares quando o senhor era criança, como que é?
R – Hoje já nem existe Quer dizer, existe, mas não aqui na Mooca. Mas a bocha era um jogo tipicamente de italianos e a malha, português.
P/1 – O seu pai jogava?
R – O meu pai jogava bocha. Porque o campo era aqui na frente, né?
P/1 – E era bom?
R – O meu pai não (risos), mas o meu avô era ótimo.
P/1 – O senhor ficava vendo ele jogar?
R – Ficava. O meu avô era ótimo. Porque a bocha tem segredo, tem um buraquinho, a bocha é uma bola que tem um buraquinho que você põe a mão, mas aquele buraquinho é o que te dá o pêndulo, então quem sabe jogar, sabe o lado que vai por aquele buraco que dá a curva da bola. A bocha tem o bolim, então é uma bola pequenininha e você joga pra encostar no bolim. Quando você vê que não dá pra você encostar, você canta para o juiz que você vai atirar no seu adversário, então ele vem com um ponto, marca a distância que está, que a tua bola tem que bater dali pra frente pra tirar. Então é um jogo muito inteligente e muito bacana de jogar. Mas hoje ninguém mais joga.
P/1 – Você falou do gramofone. Quando você era criança não tinha rádio?
R – Os primeiros rádios que a minha família pôde comprar, você ligava o rádio e eram válvulas. Enquanto a válvula não acendia como uma lâmpada não tinha rádio. Quando ela acendia ele começava a roncar. E aí você ouvia, mas você ouvia, tanto é que tem uma piada da época de um português que chegou pro outro e falou: “Escuta, você está falando em inglês, como é que você aprendeu?”. Ele fala: “É porque eu chego em casa à noite e eu fico ouvindo a BBC de Londres e aprendi”. E ele falou: “E como é que ouve a BBC de Londres?” “Você muda o canal do rádio pra AM e FM e passa a BBC de Londres, você vai aprender a falar em inglês”. Passados três meses ele encontrou o português e falou: “Aprendeu a falar em inglês?” (faz barulho), que ele só pegava o chiado do rádio. Depois de muito tempo veio o rádio com olho mágico, era um rádio que você ligava, quando as válvulas começavam a esquentar o olho mágico ia acendendo. Ele acendia e ia abrir assim. Quando a válvula começava a esquentar ele vinha, quando ele fechava, você aumentava o volume que o rádio estava no ponto. Esse é um rádio da época e ainda tem, a turma tem por aí. Quando saiu o toca discos, as vitrolas, que eram chamada de vitrolas, você punha uma por uma. Quando saiu o Pacar, era um toca discos que você punha quatro discos, foi uma revolução, caía um por vez. O som era péssimo, na época era o que havia de mais, era o bom. Então, quando saiu a televisão teve um rapaz que lançou uma fábrica aqui na rua Fernandes Falcão com a rua do Oratório, o Vozo, ele punha na vitrine da loja dele uma televisão, ficava 200, 300 pessoas para assistir televisão. O meu pai numa época comprou uma televisão chamada Sylvania, que ela tinha um neon em volta da tela que dava a impressão que era maior e ele copiava meu avô, ele punha aqui na janela pra fora e o bairro vinha assistir televisão aqui na porta, porque era pouca gente que tinha televisão.
P/1 – Vocês viam muito futebol ou ouvia no rádio?
R – Não, futebol a gente era fanático. Mas naquele tempo futebol, aí sim, naquele tempo futebol, nós saíamos da Mooca, palmeirense e corintiano ou palmeirense e sãopaulino, você quando entrava no campo, você estava sentado e não sabia quem tava do seu lado, você só percebia pra quem a pessoa torcia na hora do gol. Porque eu sou palmeirense, o cara que está do meu lado eu não sei quem é. Se o Corinthians marcava gol, o cara do meu lado pulava: “Gol!”, aí eu sabia que o cara do lado era corintiano. Ou ele ficava sabendo que eu era palmeirense. Então havia amizade, não havia briga. E se houvesse briga era um briga leal, era briga de mão, não tinha essas bandalheiras que você vê hoje. Você podia levar um filho no campo tranquilamente. Hoje é gangue, é um negócio... eu, por exemplo, na idade que eu estou eu não vou no futebol, eu não sei o que vai acontecer, mas gostaria de ir.
P/1 – Vocês iam ver jogo aonde? Qual estádio que o senhor gostava mais?
R – O estádio que eu, que qualquer paulista gosta, não tem estádio no mundo igual ao Pacaembu, não existe. Mas a gente ia à rua Javari, ia na fazendinha, campo do Corinthians, no Parque Antarctica, campo do Palmeiras. Que o primeiro Parque Antarctica não é o do Palmeiras lá, é passando a rua da Mooca, onde está o viaduto da rua da Mooca, se você olhar do seu lado esquerdo, descendo no sentido cidade, ali era o Parque Antarctica. Era um campo da Antarctica e que o Palestra jogava lá, que era aqui por causa da Antarctica. Mas a gente ia em todos os campos com plena liberdade. E não tinha, ia de ônibus, tomava-se o bonde, descia na avenida São João e ia a pé pra avenida Pacaembu, as torcidas todas juntas. Ou então ia por trás, subia e saía na avenida Paulista pra pegar o bonde. Tinha as preliminares, então os clubes, o jogo começava oito e meia e começava a preliminar seis horas. A gente chegava cedo pra ver os aspirantes, que a preliminar era dos aspirantes que eram os garotos aspirantes a serem titular. Mas isso tudo já passou.
P/1 – E você tinha algum ídolo do Palmeiras?
R – Ah, mas naquele tempo você pega, quando eu vejo esses camaradas beijarem o distintitvo do clube e no dia seguinte estão em outro. Eu sou palmeirense, mas nós tivemos um Waldemar Fiúme, Oberdan, Lima e outros jogadores, porque os Lima tinha dois irmãos que só jogaram no Palmeiras. Você pega no Corinthians, no Corinthians você teve um Luizinho, você teve um Idário, você teve um Goiano. No São Paulo você teve o Rui, Bauer, Noronha, você teve jogadores que realmente, você pegava qualquer torcedor, ele sabia a escalação do time porque o jogador nascia e morria no time. Realmente, na rua Américo Vespúcio aqui na vila Prudente morava o Idário, que era filho de espanhol, o Idário era chamado de sangue azul. O Idário nasceu Corinthians, morreu Corinthians. Então era totalmente diferente, você sabia os nomes dos jogadores. O próprio Santos teve Manga, o Elvio, teve o Vasconcelos. A Portuguesa foi um time que chegou a dar pra seleção paulista nove jogadores e oito pra seleção brasileira. Os jogadores nasciam e morriam num clube. Era totalmente diferente. O Idário morreu morando na rua que ele morava, o Idário quando morreu teve que correr uma lista pra fazer o enterro dele porque ele morreu pobre. Mas o mundo era outro, né?
P/1 – Você lembra a sua primeira Copa do Mundo? Ou uma que te marcou mais?
R – Diversas me lembro porque a que o Brasil foi campeão a primeira vez a minha filha tinha um ano. E a Copa do Mundo que o Brasil perdeu eu estava com meus primos no Pacaembu assistindo Espanha e Suécia, o terceiro e quarto lugares, quando o Brasil perdeu o jogo e o Pacaembu ficou vazio. E você pegava aquela avenida Pacaembu a turma andando a pé, era pior do que estar acompanhando um enterro. Nós não nos conformamos, quer dizer, nenhum brasileiro. Mas como não podia ir pro Rio eu fui assistir o jogo e foi Espanha e Suécia decidindo o terceiro e quarto lugares. Aquele foi o trauma da vida.
P/1 – Agora vamos encaminhando um pouquinho. O o senhor falou que o seu pai chegou na Santa Rosa pra comercializar o queijo.
R – Queijo.
P/1 – Como que foi essa história?
R – Porque o meu avô já era queijeiro e depois meu pai, com o Altomare, eles montaram o depósito no Largo do Pari. Do Largo do Pari eles foram pra rua Santa Rosa, 136. A rua Santa Rosa já tinha lá o palácio, que na época chamava-se Palácio das Indústrias. E ele montou na rua Santa Rosa, 136. Começou a trabalhar com laticínios, depois começou a trabalhar com marmelada, goiabada. Naquela época se vendia goiabada em caixas de cinco quilos e os empórios levavam e cortavam na hora. Então tinha marmelada, goiabada e pessegada. E aí ele começou a por outros produtos, vendia muita rapadura. Então quando eu nasci o meu pai já estava na Santa Rosa. E eu com dez, 11 anos de idade comecei a levar marmita pra ele lá e continuei na Santa Rosa. Mas em 1960 eu fiquei com a firma do meu pai e saí dos produtos de laticínios e tudo o mais e passei a trabalhar com cereais.
P/1 – O senhor sabe a origem da rua Santa Rosa?
R – A origem? Sim. A origem da rua Santa Rosa foi por homens que tinham visão e não é que eles quiseram montar a Santa Rosa lá, teve um motivo pra montar. O Brasil naquela época transportava produtos em trem e os trens chegavam com mercadoria na Barra Funda e no Largo do Pari, ali é que era feita a distribuição pro Rio e tudo o mais. Então por questão de logística, como a mercadoria chegava no Largo do Pari, ali foi se formando a Santa Rosa, porque era mais fácil pegar de lá. A origem da Santa Rosa foi a estação do Pari, não é a estação do Pari que veio pela Santa Rosa, o Pari veio primeiro. Então você ia no Largo do Pari, você via chegar engradados de galinha, vinha cabritos, porcos, pequenas produções agrícolas, abóbora. E vinha arroz, feijão, milho. E foi daí que nasceu o comércio na Santa Rosa. Porque se fosse pra fazer a Santa Rosa planejada ninguém iria fazer lá porque a Santa Rosa sempre foi o lugar mais baixo de São Paulo, brejo, era um charco, a Santa Rosa sempre enchia de água. Mas pela comodidade de estar lá perto é que foi feita a Santa Rosa. Você imagina que do lado da Santa Rosa, onde hoje é a rua Américo Brasiliense, era o depósito de carvão coque da companhia inglesa, que descarregava o coque que vinha de Santos e do Largo do Pari até a Companhia de Gás na rua do Gasômetro, por isso que chama gasômetro, tinha um trenzinho que eram seis vagões, uma locomotiva pequenininha que saía carregada de carvão e vinha no gasômetro. Ele encostava. Então esse trenzinho tinha locomotiva, que era pequena, a locomotiva e seis vagões. Ele encostava no gasômetro, parava, tinha uns ganchos que pegavam ele aqui e naquela época virava os seis vagões de uma vez numa gremalheira pra produzir o gás de São Paulo. E por incrível que pareça, nas bocas de lobo em volta saía o gás, perigosíssimo, você passava na Santa Rosa, na rua do Gasômetro, na rua da Figueira, saía o gás da produção de gás. E você vai estranhar, as mulheres levavam as crianças pra respirarem esse gás que diziam que fazia bem pros pulmões. É um veneno e levava, era comum levar lá. Essa era a companhia de gás e esse trenzinho da Santa Rosa ficou muitos anos transportando. Quando os caminhões começaram a aumentar de tamanho paravam nos armazéns da Santa Rosa e o trenzinho não podia passar. Aí os trenzinhos pararam e esse transporte começou a ser feito com caminhão, que foi aberta a rua Mendes Caldeira pra pegar por trás a Monsenhor Andrade pra descarregar no Gasômetro.
P/1 – E quando dá essa transição do trem, que o trem vai sendo deixado de lado?
R – Década de 60, 75 parou.
P/1 – Então é mais ou menos na época, um pouco depois que o senhor assumiu o empreendimento do seu pai.
R – Sim. Foi.
P/1 – Foi bem nesse momento.
R – Foi. Inclusive foi um problema pro bairro porque os trens dos ingleses sempre foram perfeitos, podem falar o que quiser, quando saíam do gasômetro os trens saíam cobertos e os caminhões não. Então se tornou um problema pro bairro inteiro que se transformou num pó tremendo aquele transporte dos caminhões com o carvão.
P/1 – E o senhor ia ajudar seu pai lá na Santa Rosa desde pequeno?
R – Sempre trabalhei, desde pequeno. Eu ia, levava a marmita e ficava trabalhando. No meio cerealista eu passei por tudo, desde office-boy, naquele tempo se pagava título nos bancos. Eu saía e eu fazia, eu lembro de cor, eu fazia os pagamentos pro meu pai, fazia os pagamentos pro Nestor Pereira e fazia os pagamentos com a _0:49:42_. E por incrível que pareça, eles preparavam a duplicata com o dinheiro enrolado, eu punha no bolso, fiz isso muitos anos, nunca fui assaltado, era um monte de dinheiro. Saía a pagar banco por banco. Então você chegava, demorava, você fazia o trajeto, chegava no banco, entregava a duplicata, o banco te dava um número, você ia, entregava em todos os bancos ali no setor bancário, entregava e você voltava no outro pra pegar seus números e ir pagando, porque se você ficasse ali esperando você não conseguia fazer todos os pagamentos.
P/1 – E como era a Santa Rosa e a Zona Cerealista em geral nessa época que o senhor era boy lá? Movimentos, os carregamentos, como que era?
R – O carregamento na Santa Rosa sempre foi manual e um dos motivos do comércio cerealista acabar foi justamente esse, porque nós éramos muito fortes no abastecimento e nunca ninguém fez uma previsão de fazer estacionamento. Então os armazéns na Santa Rosa, a média dos armazéns não chega a mais do que seis metros de frente. Pode ter um que tenha 18, mas a média não passa de seis. Então cada um tinha a sua carga e descarga na porta. Mas de repente você passou a ter carreta com 26 metros e quando eu encostava uma carreta para descarregar no meu armazém, os meus três vizinhos, ou quatro, ficavam sem poder trabalhar. Começou a complicar, o cliente deixou de vir e os atacados começaram a montar. Tanto é que o primeiro a sair do meio cerealista foi a Comercial Importadora Benjamin que foi pra Marginal. Da Importadora Benjamin, o Atacadão foi pra rua Mendes Caldeira, quando ele percebeu a coisa ele foi pra Marginal também. Quem saiu do meio cerealista se tornou o que hoje é o atacarejo. Quem ficou, quebrou; não quebrou faliu, mas quebrou como empresa. Porque o camarada hoje não pode sair de Itaquera, ir na Santa Rosa fazer uma compra porque pra começar ele leva duas multas do radar, chega lá e não tem lugar pra estacionar, o guarda multa porque não é área de carga e descarga e nós passamos a viver do passado.
P/1 – E quando o senhor assume o senhor falou que muda o perfil da loja. O seu pai mexia com laticínios, doces, essas compotas em geral...
R – E eu passei a trabalhar com cereais.
P/1 – Com o que o senhor trabalhou?
R – Eu sempre me dei muito bem com feijão. Então eu montei filial em Apucarana, eu tive filial de compra de feijão em Catanduva. Cheguei a ter em Céu Azul, em Formosa do Oeste. Porque a gente ia sempre atrás da produção. Naquele tempo não tinha o que tem hoje, o camarada que planta feijão com pivô. Hoje você tem plantador de feijão que colhe 50, 80, cem mil sacos. Naquela época o feijão só era plantado no carreador do café, onde tem o café o dono da fazenda tinha a colheita do café e o carreador do café era do meeiro. E o meeiro plantava feijão ou milho. Então nós tínhamos que ir atrás de onde estava a produção de café pra comprar o feijão do meeiro. Eu cheguei e outros chegamos a formar a _0:53:36_, no ciclo do café atrás a gente ia pra comprar o feijão do meeiro. Não tinha produtor. Eu quando presidente da Bolsa eu dizia que o Brasil tinha o maior produtor de soja do mundo, que era o Olacyr de Moraes, o maior produtor de arroz do mundo, que era o Érico Ribeiro, produtor individual. Nós tínhamos os maiores produtores de cana, que hoje são os Omettos. E o maior produtor de feijão naquela época produzia 200 sacos, era tudo agricultura de subsistência. Nós chegamos a ter numa época no Brasil, e a Bolsa tem esses arquivos, nós tínhamos 200 variedades de feijão.
P/1 – E o senhor viajava muito então atrás desses pequenos produtores.
R – Não, nós tínhamos caminhões que iam lá na produção comprar. E quando da minha filial em Apucarana era comum chegar o produtor, que a gente chamava de cobrinha, era um saquinho que eles faziam que ele tinha um tanto assim, ele dava um nó. Então ele pegava o feijão que ele produziu, punha naquele saco e dava um nó, punha outro e dava um nó. E ele chegava e dizia: “O senhor quer comprar feijão?” “Quantos sacos você tem?”. Ele abria e dizia: “Tem cinco sacos desse, oito desse”, ele ia pondo da cobrinha, se eu não queria comprar ele punha e ia vender pra outro. Ninguém produzia o que se produz hoje. Hoje você tem dois tipos de feijão que dominam o mercado brasileiro, o carioquinha e o preto. E antes você tinha centenas de qualidades de feijão.
P/1 – E por que o feijão?
R – Boa pergunta. Boa pergunta. O porquê do feijão. O motivo do arroz e o feijão ser a base da alimentação brasileira tem uma parte de sabedoria popular. O casamento do arroz e feijão, que o arroz é um cereal e o feijão não é cereal, é uma leguminosa, é o único casamento no mundo de que a dona de casa de manhã faz o arroz e feijão pro almoço dos filhos e faz a mais pra jantar do marido, pra família, e na hora da janta ela pega a marmita do marido, lava, pega o arroz que ela fez de manhã e o feijão, põe na marmita, frita um bife e um ovo, põe dentro, fecha a marmita. O marido leva pro serviço sem geladeira, esquenta e está bom. Então naquele tempo não tinha geladeira, qualquer outra mistura que você fizesse, arroz e lentilha, arroz e grão de bico, arroz e qualquer outra coisa, em 12 horas no verão você ir pra roça ou ir pra tua fábrica e esquentar a marmita está estragado. O arroz e feijão, um bife e um ovo frito sem geladeira, põe na marmita, à noite dorme, leva pro teu serviço, na hora do almoço esquenta, pode comer que está bom. O brasileiro não aprendeu a comer arroz e feijão por isso ou por aquilo, é porque não estragava e naquele tempo não tinha geladeira. Então qualquer marmita que você levasse, qualquer uma, se você pegar arroz, feijão e frango ela estragava. Você põe arroz e lentilha, estraga. O arroz e feijão até hoje, quem está no sertão e tudo o mais, põe arroz, feijão, um bife, farinha de mandioca, 24 horas pode comer que está bom. Este é o motivo do arroz e feijão.
P/1 – E como era o armazém na época do seu pai e o que você mudou?
R – Eu só mudei porque eu tive mais tendência por cereais do que por produtos industrializados. E posso falar que foi o erro da minha vida. Porque na época meu pai era um comerciante de miudezas. Nas devidas proporções da época, meu pai seria um Atacadão. E eu fui pro cereais, eu devia ter continuado, né? Mas eu gostei mais dos cereais e foi uma virada errada, mas o meu negócio mais foi cereais.
P/1 – Mas como era o armazém fisicamente? Localização?
R – A localização do meu primeiro armazém foi na rua Benjamim de Oliveira, 55, era um armazém pequeno e que a gente trabalhava como todos os armazéns na Santa Rosa eram pequenos. A nossa base mais era em Apucarana e os caminhões chegavam porque nós dependíamos muito naquela época da venda de feirantes. Então, era o feirante que comprava. O forte do comércio não era supermercado. Tanto é que o seu Manuel do Barateiro era feirante. Diversos grandes supermercados hoje eram feirantes, dependia da feira livre. Mas sempre foi, mesmo na época era antiquado. O atacadista não teve uma visão, da visão que ele tinha de safra e tudo o mais, ele não teve uma visão do que o país ia desenvolver pra poder fazer um armazém que facilitasse carga e descarga. Por exemplo, o atacadista, eu sempre digo, sem ofender minha classe, o atacadista na verdade, naquela época, ele tirava o “a”, ele era tacadista, ele vivia de tacadas. Ele pouco ligava pra freguesia, ele queria trabalhar, então ele não investiu no negócio dele. O atacadista sempre foi o patrão rico de uma firma pobre, quando no mundo sempre a lei, é quase que uma lei, é ser patrão pobre de uma firma rica. Então você pegava na Santa Rosa atacadista que tinha naquela região 80 propriedades e não queria ter um empregado pra carregar e descarregar saco, ele contratava chapa. Então tinha os chapas que ficavam lá. Eu recebia um caminhão de feijão, eu chegava: “Vai lá, pega três chapas pra descarregar o caminhão”, combinava o preço, pagava e não queria ter empregado, não investia no negócio. O atacadista, sem exceção, não investiu no seu negócio. Que é diferente do tom pejorativo, nós dizíamos que tinha um atacado do rio pra lá que era a rua Paula Souza e a rua Cantareira e do rio pra cá que era a rua Santa Rosa, a Benjamim de Oliveira. E o pessoal chamava o alto meretrício e o baixo meretrício. O pessoal do baixo meretrício não acompanhou o crescimento.
P/1 – Quais eram as diferenças entre esses dois?
R – Mentalidade. Do lado de lá é o que agora é pejorativo no bom sentido, eram os burros dos portugueses e do lado de cá eram os inteligentes dos italianos. Os portugueses quando perceberam que o cliente dele de Marília deixou de vir porque a viagem estava difícil, eles foram e montaram filial na região de Marília. Quando eles perceberam que Ribeirão Preto deixou de vir, eles foram e montaram filial na região de Ribeirão Preto. Aí a Paula Souza e a Cantareira deixaram de ter o movimento físico, mas não deixaram de ter o movimento comercial. E nós, o nosso freguês da Penha que deixou de vir, nós não montamos uma Santa Rosa perto da Penha, nós não montamos uma Santa Rosa em Itaquera, nós não montamos Santa Rosa em lugar nenhum, nós achamos que éramos os donos da verdade, que pela minha sabedoria de buscar o feijão lá no interior o cliente tinha que vir atrás de mim aqui. E as grandes empresas diz que dependiam do atacado porque as empresas não vendiam pra feirante, feirante não tinha crédito e nós vendíamos. Quando surgiu a era do supermercado as empresas começaram a vender direto pro supermercado e o supermercado começou a ter um poder de compra melhor do que o nosso e a nossa diferença de preço deixou de existir e acabou o nosso meio. Mas acabou por incompetência nossa e minha, e minha. Eu lutei e o meu meio sabe, eu lutei sempre pra tirar o Santa Rosa de lá. O Sagasp copiou o nome, porque era nosso, ele copiou o nome do Tagasp, que era Terminal Atacadista de Gêneros Alimentícios do Estado de São Paulo. Onde hoje é o Parque do Povo, não, ali, pegava o Ceasa, Parque Villa-Lobos. Onde é o Villa-Lobos, aquela área foi doada pra nós pra ser o Tagasp, porque ia ficar o Ceasa e o Tagasp. No Governo Montoro eu consegui a área onde é o Juqueri, uma área de dois milhões e meio de metros quadrados pra fazer o terminal atacadista lá, e o Dadá é testemunha disso e o meu meio não quis sair. No Governo Montoro, foi 80 e pouco, área doada, nós tínhamos que começar as obras, o nosso meio não quis sair porque ia ficar muito longe e nós não tivemos visão. Eu estou me incluindo no meio, nós não tivemos, nós achamos que éramos os donos da verdade e de repente... Bom, só pra você ter uma base, sem ofensa, a Santa Rosa foi o último setor do comércio de São Paulo a usar computador. A Santa Rosa até há pouco tempo estava emitindo nota fiscal com papel carbono. Só parou de emitir quando a lei proibiu. Então, o motivo do comércio cerealista ter acabado não foi o progresso, foi a mentalidade.
P/1 – Você falou do Ceasa, que tinha o espaço, o Tagasp ia ser ao lado do Ceasa. Qual era a diferença do pessoal do Ceasa em gêneros, no produto, pra Santa Rosa?
R – Um complementa o outro. O Ceasa nasceu do comércio da madrugada que era feito na rua Paula Souza, Cantareira e avenida Mercúrio, dos produtores de hortifrutigranjeiros que vinham, o Mercadão não comportava e eles vendiam na rua.
P/1 – O Mercadão não comportava.
R – Não comportava.
P/1 – Mas o Mercadão era grande.
R – O Mercadão sempre foi grande, mas não comportava. Então, ao redor do mercado os caminhões vinham, paravam e faziam o comércio. E começou a criar problema pro trânsito, então fizeram o Ceasa pra levar o produto hortifrutigranjeiro, batata e cebola, porque na Santa Rosa a gente recebia, tinha dia de receber entre batata e cebola 200 caminhões. Então esse comércio foi levado pra lá. E automaticamente era pra ir junto nosso comércio. Foi quando esse pessoal que não tinha propriedades no local acharam bom ir para o Ceasa. E quem tinha propriedade achou que iria desvalorizar e não concordou em ir. Foi só isso.
P/1 – Agora vou focar um pouquinho na Santa Rosa. Como era o dia a dia do trabalho do cerealista? Como era estruturado o trabalho? Por exemplo, você falou de ir atrás do produto lá, os pequenos produtores. Como era isso, vocês ligavam. E como era feita a distribuição porque a Santa Rosa distribuía pro Brasil inteiro.
R – Esse é o que eu estou te dizendo que não houve previsão, a Santa Rosa não distribuía pra ninguém, quem queria vinha buscar lá. Nunca teve um atacadista que distribuía, esse é que foi o mal. Porque era tão cômodo e era tão difícil trazer mercadoria, que quando chegava tinha quem queria, entende?
P/1 – Mas abastecia pro Brasil inteiro.
R – Abastecia o Brasil inteiro.
P/1 – Como que era isso? Como era essa dinâmica de abastecimento?
R – O caminhão chegava, você já tinha comprador pra vender. Nenhum armazém da Santa Rosa tinha capacidade de armazenar o que ele vendia em três dias, cerealista. Os armazéns eram pequenos, a rotatividade era muito grande. A rotatividade era enorme. E tinha os armazéns gerais. Então aqueles que tinham mais dinheiro, ele podia se dar ao luxo de prever se ia subir ou baixar, ele punha nos armazéns gerais.
P/1 – E as ruas em si eram movimentação constante.
R – As ruas eram interrompidas. Na rua Santa Rosa, o trânsito chegava a fechar a entrada da Santa Rosa pra poder circular. A Senador Queirós ficava interrompida, era uma loucura.
P/1 – Você falou dos chapas, sempre teve chapa trabalhando?
R – Tem até hoje.
P/1 – Sempre teve, desde o começo da Santa Rosa.
R – Sempre teve.
P/1 – Como era essa dinâmica do chapa?
R – A dinâmica do chapa era uma turma normalmente de pessoas de cor, porque na minha vida a gente sempre falava que tinha a raça branca, preta e amarela, agora falar preto dá cadeia, então raça negra. Então normalmente eram da raça negra que ficavam nas esquinas, homens muito fortes, pra pegarem serviço diariamente. Eu acho que a Santa Rosa foi o primeiro lugar do mundo onde foi feita a terceirização, porque eu nasci com terceirização, naquele tempo não tinha. Então a carga chegava e era terceirizada a descarga.
P/1 – E o público-alvo do seu armazém era basicamente os feirantes?
R – Não.
P/1 – Não?
PAUSA
P/1 – Eu ia perguntar para o senhor, seu Antonio, quais eram seus principais consumidores, o público-alvo maior.
R – Não era só o público-alvo maior, era o público que tinha, eram os feirantes. E nós tínhamos regiões que tinham os dias certos pra vir, o Vale do Ribeira, o Vale do Paraíba, a parte aqui de Sorocaba, tinha uns clientes que vinham na parte da manhã. Então você tinha a Baixada Fluminense, cada um tinha o seu dia pra fazer compra. Então o nosso público, naquele tempo você não tinha as grandes redes de supermercado que tem hoje. O pai do Abílio tinha a Doceira Pão de Açúcar, que era padaria e depois virou doceira. Quando ele montou o primeiro supermercado, o Nestor Pereira, que tinha armazém na Santa Rosa, veio com o pai do Abílio, seu Valentim, apresentando na Santa Rosa e falou: “É um amigo meu, tem padaria, pode vender para ele que é gente boa”, porque as companhias nem sabiam que existia supermercado. Veio pra cá o Supermercado Sirva-se mas era de uma multinacional e não tinha dado certo. Então nós dependíamos dos varejos, dos empórios, dependíamos dos feirantes e do pessoal do interior, que eles já automaticamente vinham. E pessoal do Vale do Paraíba até a Baixada Fluminense, os cariocas já vinham menos porque também os hábitos alimentares eram diferentes. O Brasil é um país que é um continente. Por que você pega uma rede de supermercado, vamos dar o exemplo que não está menosprezando ninguém, um Paes Mendonça, um Bom Preço, líder estourado na época do mercado na Bahia e no Recife e vieram pra São Paulo. O Paes Mendonça, que pra mim sempre foi um fenômeno, ele montou na Marginal do Tietê e na Marginal Pinheiros. Quando o Mamede veio pra cá, ele achou que ele tinha força mais do que um Pão de Açúcar. O sobrinho dele também veio achando que tinha força. Realmente eles tinham muita força, mas eles tinham força lá no estado deles, lá no país deles se fosse um outro país, se fosse na Europa São Paulo era um país, Recife era outro país, então no país deles. Quando o Mamede veio pra cá, que ele inaugurou a primeira loja, ele inaugurou baseado na força de compra que ele tinha na Bahia. Ele trouxe muita cocada, muita farinha de mandioca. Quando ele viu, aqui ele não tinha o poder de compra de produtos paulistas, não cresceu, ficou nas duas lojas. Porque os usos e costumes são muito diferentes, o hábito alimentar é diferente, o arroz que vende em São Paulo não é o arroz que vende no Rio. O sabão que vende no Rio de Janeiro não é o sabão que vende aqui. Então é um comércio muito diferenciado que ele não podia ser dominador total. E o comércio atacadista se especializava mais no comércio de São Paulo e adjacências. Era difícil você vender mercadoria pra Bahia, você vendia muito pra Bahia quando dava uma falta de mercadoria. Naquele tempo era tão absurdo a coisa que você pra mandar açúcar pra Bahia, que o açúcar de São Paulo era melhor que o açúcar da Bahia, tinha uma reserva de mercado que não podia entrar, o açúcar tinha que ir escondido, tinha que ser praticamente um contrabando. Então isto também prejudicou muito o comércio e a expansão. Depois que a Santa Rosa deixou de ter o poder quem enxergou, o Martins, por exemplo, se tornou um grande distribuidor. O Atacadão, por ter estado lá, foi meu vizinho durante muitos anos, privo da amizade deles até hoje, o Atacadão percebendo, montando o primeiro atacado pela Santa Rosa, pela Mendes Caldeira ter ficado pequena, problema de carga e descarga, eles foram pra Marginal. Depois do Atacadão foi o Cofesa. Você vê, o Cofesa que era, em capital na época mais forte que o Atacadão, por mentalidade só de pensar em São Paulo não teve o sucesso do Atacadão, ele alugou pro Correio, hoje é o Correio lá. Porque ele não teve a visão de abastecer o Brasil. O Atacadão, por ser uma firma que veio do Paraná, que na época era Comercial Mercantil Parizotto, ela não fechou a filial do Paraná, ela continuou em São Paulo e mandando pro Paraná, do Paraná foi pra Tocantins, foi pra Mato Grosso. O Atacadão foi atrás da freguesia, ele tirou proveito da lição do que aconteceu com os outros. E nós não tiramos. Você vê que na Santa Rosa, vamos dizer, entre eu, meu pai e outros que estão lá, eu estou falando em cem anos de comércio. Você não tem uma firma da Santa Rosa, do comércio atacadista, que tenha uma marca. Por quê? A Santa Rosa sempre foi firma pobre de um patrão rico e firma de um dono que era o capataz, que ele mandava, ele fazia, ele é que era o inteligente, ele cuidava do pagamento, ele cuidava de tudo. E quando ele envelheceu ele não formou quem ficasse no lugar dele. E quem ficou no lugar dele porque é filho ou porque era genro não era do ramo. Então não é porque meu pai era goleiro do Santos que meu pai ficou velho e eu vou jogar no gol, não dá pra jogar. Foi esse o motivo que hoje a Santa Rosa não existe mais.
P/1 – Você tem alguma história especial, algum cliente especial, muito amigo, que tem uma história marcante?
R – Tenho.
P/1 – Pode contar uma pra gente?
R – Posso. Eu posso contar porque eu acho que são coisas que tira como exemplo e eu vou contar uma história pequenininha, chama-se Josemo da Bramil de Três Rios. O Joselmo vinha, ele tinha um defeito na perna, ele vinha com o caminhão dele que ele não podia dirigir o caminhão, com o motorista, com um empório lá e ele vinha, fazia compra, meu cliente, cliente do Benjamim, cliente de todo mundo. Hoje ele é dono da marca Bramil. Ele com visão em Três Rios, hoje ele é um dos grandes empresários do Brasil vindo de caminhão toda semana pra Santa Rosa, tirando lições e construiu um império. Você tem o seu Manuel que construiu a rede Barateiro. Enfim, todos os supermercados, de todos os supermercados você pode pegar que não tem ninguém, a não ser agora, que trouxe um capital e montou supermercado. O supermercado é tudo, se você pegar de pequenos comerciantes, de pequenos feirantes que pegaram o nicho e acompanharam e tiveram coragem de fazer. Eu vou te contar uma passagem que talvez como está gravado alguém possa se ofender. Mas uma ocasião eu estava na Bolsa de Cereais de São Paulo e eu tinha montado uma rede de varejos que chamava-se, eu até fui censurado depois, o nome era Tira Prosa e eu montei 15 lojas. O Tira Prosa na época não tinha produto empacotado, era uma rede que eu fiz que trabalhava com produtos, nada frigorificado, mas tudo produto de pobre. Em dado momento, por ter o espírito atacadista, que era eu que mandava, eu que ordenava, eu que fazia, eu que não fazia, eu perdi controle. Quinze lojas, vendia barbaridade, eu perdi o controle. E num dia eu descobri que eu estava sendo roubado demais porque não tinha computador, naquele tempo era gente de confiança e controle. E eu parei com a empresa, praticamente quebrei. E um dia eu estou na Bolsa e um grupo de grandes importadores da Bolsa me chamaram que queriam montar um supermercado e se eu queria fazer parte do grupo. Eu não vou dar nome, mas os dez que me procuraram fizeram a proposta de que eu entrava sem capital, só com meu know-how do que eu tinha aprendido e apanhado e nós ficaríamos com 11 donos e eu com participação igual, para eu levantar o que precisava. E eu levantei: “Pra montar uma loja boa”, isso depois dos estudos, “nós temos que pegar naquela época um terreno de no mínimo mil metros quadrados e fazer uma loja de no máximo 400 metros quadrados com isto, isto, isto, isto” “E os 600 metros?” “Os 600 metros pra área de estacionamento”. “Para uma aula de 400 metros nós vamos precisar de tantos check-outs. Um check-out custa tanto, cada máquina custa tanto”. E fiz um levantamento pra eles. Na hora que eu apresentei o custo da loja, o que eles queriam colocar de capital não comprava o terreno. Mas aí resolveram investir. E aí um deles: “Quer dizer que eu vou comprar um terreno de mil metros quadrados e vou deixar 600 metros pra por carro? Quem tenha carro que ponha onde ele quiser, não em cima do meu dinheiro, em cima do meu dinheiro, não”. E lá morreu a sociedade porque os dez maiores importadores do nosso meio naquela época, um falou: “Com esse dinheiro eu trago tantas caixas de alho”, o outro falou: “E eu trago isto”. E não montamos. A área que nós íamos comprar é na Avenida Ibirapuera com República do Líbano, onde está o Pão de Açúcar hoje. E o Pão de Açúcar está lá, o terreno vale uma fortuna, mas está pondo carro lá porque é onde dá o dinheiro pra ele. Então, questão de visão, questão de ver, questão de um monte de coisa. Não é que eu seja perfeito, não, porque eu também montei essa rede com 15 lojas e quebrei. Depois montei a Rede Povão de Alimentação com 13 lojas, foi a primeira empresa automatizada do Brasil em varejo e quebrei. Mas não quebrei por falta de visão, mas quebrei por achar que era muito sabido e podia fazer tudo.
P/1 – A gente falou um pouco dos clientes, vamos falar um pouco dos produtos. Quais os principais produtos que o senhor vendia como atacadista de cereal? Dentro do feijão quais as variedades?
R – Ah não, variedade, na época o feijão que comandava o Brasil... porque naquela época o Brasil tinha duas safras de feijão, a safra das águas, que é a época das águas, e a safra da seca, duas safras. Então você guardava o feijão seis meses porque produzia e acabava. E tinha o feijão roxo, que o feijão roxo dava praticamente junto com a safra da seca. Feijão roxo da região de Unaí, Formosa, Carmo do Paranaíba, Patos, era o feijão. Então o feijão caro, o feijão bom, era o feijão roxo. Mas às vezes o roxo não dava pro ano inteiro. Quem comandava o mercado em São Paulo era o feijão opaquinho mineiro. E depois tinha o jalo,o rajado e mais 80 tipos de feijão: olho de pomba, cara suja, oito nove. O oito nove era um feijão tipo opaquinho, só que mais graúdo e ele chamava oito nove porque a vagem dele dava oito ou nove grãos, não dava sete, não dava seis, não dava cinco. Então quem comandava, o carro-chefe durante o ano inteiro era o opaquinho. E o feijão jalo, por ser um feijão mais graúdo e levemente adocicado vendia mas não caía muito no paladar brasileiro e na marmita que eu te falei o jalo não dava tanto efeito. Depois é que vieram outros tipos de feijão.
P/1 – O carioquinha não saía muito?
R – O carioquinha foi a revolução. No Brasil houve duas revoluções: quando acabou o arroz amarelão, que veio o que a gente chamava de arroz americano, que é o agulhinha, que acabou com todos os outros arroz, e o carioca, mas o carioca foi um aborto da natureza. Muita gente fala que o carioca foi o Instituto Agronômico de Campinas que fez. Não, o carioca não foi feito por ninguém, quem fez o feijão carioca foi a natureza e depois o Agronômico de Campinas aperfeiçoou. O feijão carioquinha é uma mistura de pólen do feijão chumbinho com o bico de ouro que existia na época, o pólen se misturava e começou a dar um feijão rajado miúdo. Como naquele tempo não se produzia semente, só pra você ter uma base, quando eu deixei a presidência da Bolsa, 30 anos atrás ou mais, a média de produção de feijão do Brasil era 18 sacos por alqueire porque o produtor plantava o filho da própria terra, então você plantava semente, você colheu 20 sacos de feijão, você plantava, na outra safra você colhia 19, 18, estava diminuindo. Aí quando o Guilherme Afif Domingos foi secretário eu levantei essa tese com ele e a secretaria começou a vender semente e a coisa mudou. E esse feijão carioquinha quando entrava, você recebia um caminhão de feijão e às vezes no caminhão de feijão vinha 10, 12 tipos de feijão, tinha uma tábua quadriculada com pequenos buracos, parecia um jogo de dama e o chapa passava, você furava o feijão e cantava pra ele: “Carioca!” “Chumbinho!” “Lustroso” e no armazém você ia pondo separado porque aí os feirantes vinham e escolhiam. Tinha um furador pra escolher que não tinha maquinação de feijão. E começou a entrar esse feijão rajadinho. A gente guardava como rajadinho. E não tinha saída, feirante não queria, mas o pessoal da Baixada Fluminense vinha e comprava o feijão mais barato que tinha na Santa Rosa. E a gente dizia: “Ó, tem o rajadinho aí”. E eles levavam. E lá na Baixada Fluminense os cariocas chegavam e diziam: “Tem rajadinho?”, e a gente mudou, quando entrava feijão fazia assim: “Separa pro carioca!”, que era carioca que comprava. E pegou o nome de carioca o feijão e dominou. Dominou porque ele realmente é bom. Mas não foi desenvolvido por ninguém, foi a mistura de pólen que produziu o feijão carioca e quem comprava o feijão? Aí na falta de feijão que deu em 66 ou 68 qualquer feijão servia. Você imagina que no Rio chegou a misturar soja com feijão preto, porque não tinha feijão.
P/1 – O que foi essa falta de feijão?
R – Questão climática. Tanto é que eu fui preso e me soltaram porque o Figueiredo, que se tornou meu amigo, ele falou: “Plante que o João garante” e o produtor plantou e faltou feijão e ele mandou o Exército pegar feijão na lavoura a preço mínimo. E eu caí na besteira de falar: “Na próxima vez vocês plantam que o João toma”. E aí você já viu o que deu, né? Mas quando deu essa falta de feijão o paulista passou a comprar feijão carioquinha também.
CORTE
R – E aí na falta de feijão que teve, que tinha tabelamento, foi na época que o Quércia mandou pegar boi no pasto, houve problemas climáticos, a turma vinha e o feijão carioca, que era para os cariocas, deixou de ir e a gente na Santa Rosa vendeu feijão. Nessa falta de feijão quem comprou o carioca voltou e queria mais. “E o carioquinha?”, o carioquinha foi pegando esse mercado. Isso foi a redenção da agricultura brasileira porque hoje o carioquinha praticamente detém mais de, não vou dizer 90%, mas sem ser no Rio ele detém mais de 90% do mercado e deu pra padronizar, melhorar e aperfeiçoar as sementes, que aí sim o Instituto Agronômico de Campinas e tal desenvolveu um trabalho espetacular e que sedimentou de vez. Hoje você não tem mais o camarada furando, furando, tipo 1, tipo 2, põe pra lá, põe pra cá. Fora a maquinação que melhorou, as máquinas melhoraram, pro arroz melhoraram. Então dentro dessa tecnologia toda que houve, tanto na eletrônica, na ciência e tudo o mais, também na classificação de cereais melhorou muito.
P/1 – E no Rio ele não é unanimidade.
R – Mas está dominando. Ele não é unanimidade na cidade do Rio, no estado do Rio o preto já não é líder de mercado, não.
P/1 – E só mais um pouquinho sobre a Santa Rosa. Todo mundo fala das enchentes. O senhor pegou alguma enchente?
R – Eu quebrei três vezes com enchente. A enchente na Santa Rosa era um negócio absurdo. Porque é o que eu te falei no início, é uma baixada. Se você chegar na Santa Rosa por qualquer lugar de São Paulo é a baixada. Se você pegar as histórias da fundação de São Paulo, quando você vê o Pátio do Colégio, a parte onde está o Brás era o que a gente pode chamar de mangue, é um mangue, aqui isso tudo foi aterrado, onde está os ingleses e tudo era terra preta e mangue. Então se você pegar a Santa Rosa da rua do Gasômetro, pra não por mais pra trás, até o rio, ela tinha um desnível de quase oito metros. Se você pegar quando vem da avenida do Estado, onde estavam aqueles prédios que agora vai ser o Museu, Mercado, ela tem um desnível de mais dois metros. A Santa Rosa é uma bacia, então quando chovia enchia de água. Dou mérito ao Maluf, mas por um engano ou por uma bamba resolveram o problema da Santa Rosa. Qual foi o problema? Para eles fazerem aquela passagem da avenida do Estado que passa por baixo do viaduto, não tinha aquela passagem, a avenida não tinha. Então precisava fazer na avenida do Estado a passagem pra comunicar com a marginal. Então foi feito aquele semi túnel. Pra fazer o semi túnel tiveram que fazer uma parede de concreto pra proteger o viaduto e o concreto pra água não invadir. Esse concreto, eles levaram até a avenida Senador Queirós. Aonde forma a bacia da Santa Rosa, que você pode ir lá agora passar e filmar, onde forma a bacia fizeram uma parede de concreto que segurou a água do rio que entrava na Santa Rosa e parou as enchentes. Foi uma bamba que parou as enchentes. Porque onde está a Santa Rosa, você pegando a rua Carlos Souza Nazaré, avenida 23 de maio, o nome original dela era avenida Itororó. Da onde está a Beneficência Portuguesa corre o córrego Itororó, o riacho Itororó que na chuva é um tormento. Então ele descia lá onde está a 23 de maio e desembocava no Tamanduateí pela rua Carlos Souza Nazaré. Se você chegar na avenida do Estado com a Carlos Souza Nazaré, tem um negócio grande que é onde desemboca o Itororó. Quando foi 66, do lado de cá onde está a árvore e tudo o mais chama ilha do sapo porque enchia de água. O motivo de chamar ilha do sapo é que enchia de água. Então pegava a água do Tamanduateí, do Ipiranga aqui encontrando com o córrego Itororó e caía tudo na Santa Rosa, porque a Santa Rosa é lá embaixo. A Paula Souza não tinha enchente. Então você tinha enchente onde está a Light e onde está o Ceasinha hoje, ali enchia. Houve uma época que não choveu do lado de cá e choveu só pra cima, as águas do córrego Itororó saíam do lado de lá passando por baixo da Paula Souza, ela saía e entrava na Santa Rosa direto, porque ela pegou aquela parede de concreto que foi feita resolveu o problema da Santa Rosa pra não ter mais enchente. Mas é a tal coisa, é tanta falta de visão, e que eu estou me pondo no meio, que era comum as enchentes que aquele tempo você jogava tudo fora. Eram comum as enchentes e a gente não saía de lá. Não saía. Quer dizer, você quebrava. Por quê? Como eu sempre digo, eu achei que eu era atacadista, mas eu era tacadista, eu dizia: “Deixa a água levar, na primeira tacada que eu der aí de uma falta de mercadoria e tal”. A Santa Rosa era tão, ainda tem uma parte pequena, mas só pra você ter uma base: a pessoa colhia batata em Piedade, ele carregava o caminhão pra vir pra Santa Rosa pra vender. Ele vinha vindo. Choveu no Paraná, a batata que vinha do Paraná não dava pra passar na estrada. A batata de Piedade que não pegou a chuva, quando chegava no comércio da Santa Rosa, num dia foi vendida por dez, era vendida por 20, por 30. Então era um negócio tão violento que pode vir enchente que não tem problema. Eu estudava no Coração de Jesus à noite, eu saía da Santa Rosa, pegava o ônibus Estações ali na Rangel Pestana. O Estações pegava a Estação Roosevelt, depois subia, pegava a Estação da Luz e Sorocabana. Na praça da Sorocabana eu descia pra ir no Liceu Coração de Jesus. Eu era ofendido pelo pessoal porque eu era filho de tubarão. Naquela época o culpado pela alta de mercadoria eram os tubarões da Santa Rosa, que a turma achava que a gente manipulava preço de mercadoria porque a mercadoria subia. Hoje a mercadoria sobe, é o clima. Naquele tempo também era o clima, só que a fama era dos tubarões da Santa Rosa. E a Santa Rosa era... porque quando a gente fala Santa Rosa, de poder de mercado e tal, a verdade é o seguinte, a Santa Rosa mexia com cereais. Vamos incluir cereais que não é? Batata, cebola, alho, arroz, feijão. Mas os verdadeiros comerciantes, os comerciantes que compravam mesmo e que tinham o poder de compra não eram os da Santa Rosa, não, eram o da Paula Souza. Era João Veríssimo, Júlio Meca, F. Monteiro, era a loja da China, Gonçalves Sé, Dias Pastorinho, era ali em cima. Eles compravam cereais de nós, entende? Os comerciantes estavam lá. Então esse núcleo abastecia realmente o Brasil.
P/1 – E a Bolsa de Cereais, quando ela surge?
R – A Bolsa de Cereais de São Paulo, está aqui agora.
P/1 – É de 23, né?
R – É. A Bolsa de Cereais de São Paulo está com 90 anos, vai fazer 91. A Bolsa de Cereais de São Paulo nasceu embaixo de um parreira que existia no Largo do Pari. Então naquele tempo, talvez você nunca ouviu nem falar, mas o que hoje tem de postos de gasolina, não na mesma proporção, mas você tinha no Largo do Pari um chafariz muito bonito, redondo, com uma bica de água. Sabe aquele chafariz que tem ali na Avenida São João? Igual aquele, não tão bonito, esse chafariz tinha água corrente, não era água recuperada, que os cavalos vinham, paravam, paravam as carroças, você tirava o freio do cavalo e abastecia para eles tomarem água. Então tinha o bebedouro de água aqui na Paes de Barros, no Largo Santo Antônio do Pari era pro cavalo. E a turma de ir no Largo do Pari comprar mercadoria que vinha do interior, comprar e retirar, um dia se reuniu um pessoal da Paula Souza e da Santa Rosa e falou: “Vamos fundar uma agremiação pra gente se congregar”, e fundaram a Bolsa de Cereais de São Paulo. A primeira sede da Bolsa de Cereais de São Paulo foi num armazém na rua Paula Souza e depois foi pra avenida Plínio Ramos. Passados uns tempos reuniu o Fernando Monteiro e o..., me esqueço o nome do outro, eles compraram um terreno na avenida Senador Queirós e resolveram fundar a Bolsa de Cereais de São Paulo, fundar o prédio. E eles tiveram a ideia que o comércio da Bolsa de Cereais de São Paulo era muito forte, eles tiveram a ideia, por isso que eu digo das inteligências, que eu digo que o meio Santa Rosa foi que fez a primeira terceirização do Brasil e eles lançaram o prédio que na época era o maior conjunto de concreto armado do mundo, eram 66 mil metros quadrados. Era e é, está lá. E o que eles fizeram? Eles lançaram o projeto de uma Bolsa e quem comprasse uma unidade no prédio, duas ou três, pagava 10% a mais do valor pra fazer a Bolsa de Cereais de São Paulo. E quem comprou o prédio incorporou a Bolsa. Então foi feita uma Bolsa suntuosa, ela é suntuosa até hoje. Não tem utilidade mas é (risos). Foi feita a Bolsa. Então o nosso comércio era tão forte que quem não era do nosso meio não podia comprar em unidade na Bolsa. E esse prédio foi incorporado só para comerciantes da Bolsa, comerciantes e cerealistas. Foi incorporado rápido e foi feito o prédio. Quando entregaram a Bolsa pra Bolsa, a nossa sede era na rua Plínio Ramos. Nós tínhamos a propriedade mas não foi previsto as instalações. Então foi feito um leilão da sede da Bolsa, quem comprasse a sede com o dinheiro mobiliar a Bolsa inteira. E foi feito isso. Foi vendido a da Plínio Ramos e foi feita a Bolsa de Cereais de São Paulo que está lá até hoje. Então a Bolsa hoje tem 6 mil e 600 metros lá e foi quem incorporou que pagou, quer dizer, foi preço de custo. Era preço de custo mais 10 ou 20% na época pra construir a Bolsa.
P/1 – E qual é a função da Bolsa? Quem trabalha lá, quais são as atividades?
R – Veja, hoje praticamente a Bolsa não tem função. Não é só a nossa, nenhuma no mundo. Por quê? A Bolsa naquela época era um órgão regulador, é reconhecida por todos os poderes e nós efetivávamos a venda das safras. Então naquele tempo nós tínhamos diversos tipos de arroz, arroz agulhinha, alfinete, amarelão, broi, cateto e feijão aquilo que eu te falei, diversos tipos. Tinha diversos tipos de milho, não existia o milho híbrido, então tinha o milho catetinho, o milho asteca, o milho pra cavalo. E o produtor quando vinha pra vender, ele trazia na Bolsa. Aquele que o cara não ia comprar dele ele trazia na Bolsa. A Bolsa tinha umas mesas grandes que eram dos corretores. O produtor trazia e ele punha numas caixinhas azul que a gente tinha, ele punha o que ele tinha pra vender e você ia fazer compra. Então eu via um feijão que ele tinha lá. Vamos por, caixa azul era o arroz. Eu via o arroz e dizia pro corretor: “Quanto é esse arroz?” “20 reais”. Olhava, examinava. “Vou ficar com mil sacos”, ou 500 sacos. Ele pegava aquela amostra, ia no registro de negócios: “Ó, o Favano ficou com mil sacos desse arroz”. Tinha uma lata que era macho fêmea, ele pegava aquela amostra, punha dentro, fechava, passava uma fita colada. Eu assinava na emenda que comprei o arroz, o corretor assinava e se o produtor estava lá assinava também. Um pouco da amostra ficava comigo, um pouco da amostra com o corretor e outra amostra ficava no registro de negócios. Quando o arroz chegava eu conferia. Se não estava igual ao que eu comprei eu ia na Bolsa reclamar que o arroz não estava de acordo. Aí tinha o juizado de pendência de negócios, que eram os quatro ou cinco maiores especialistas no ramo que reuniam e examinam quem tinha razão. Porque a gente costumava dizer que tinha o _1:46:26_ mercado, subiu a amostra confere, não subiu mesmo que a amostra está igual também não confere. Examinava e dizia: “Não, realmente você tem razão, o arroz está pior”. E o juizado estipulava quanto valia a menos. Esse juizado trabalhou muito tempo e foi até juridicamente pra pendências jurídicas o juizado dava. Por que? Variava o arroz de safra, variava de lugar. Hoje não, você compra um arroz agulhinha, quando você compra o camarada diz: “Eu estou te vendendo o arroz agulhinha tipo 1”. O tipo 1 tem de zero a 10% de quebrado. Quando ele chegar, se ele veio com 15% de quebrado, tem o deságio. Hoje a soja é a mesma coisa. Antes não tinha a classificação, era amostra. E não tinha quem vendia, hoje tem os commodities. Hoje o camarada na China compra soja no Brasil, no Paraguai, na Argentina e no Afeganistão sem ver amostra porque ele vai comprar a soja tipo 1 ou tipo 2 que ele vendeu tem tanto de pureza, tanto disso. Se chega lá diferente paga menos. A Bolsa em si deixou de ter a utilidade legal. A Bolsa até há pouco tempo era a única no Brasil que dava curso de classificação de cereais.
P/1 – Como que era esse curso?
R – Nós dávamos aula pra ensinar a pessoa, tinha professores e tudo o mais, ensinar como é que se classificam os cereais e tal. Então a Bolsa tinha um significado muito grande.
P/1 – Por tudo o que o senhor falou parece que ela gerava um conhecimento grande sobre o assunto.
R – Total.
P/1 – Você falou dos levantamentos sobre as variedades. Isso era feito continuadamente?
R – Continuadamente. E a Bolsa, por incrível que pareça, em pendências judiciais, quando era briga grande, os juizes consultavam a Bolsa e a Bolsa era fator decisório na pendência judicial. Porque nós éramos um órgão reconhecido e era MUITO forte. Só que hoje ele deixou de ter utilidade. E a Bolsa também cometeu um erro muito forte. A Bolsa era o único lugar no MUNDO que você pagava pra comprar. Para eu comprar mercadoria na Bolsa eu tinha que dar 0,5% ou 1% pro vendedor. Então o que acontecia? Pra comprar na Bolsa o vendedor ganhava comissão. E eu sempre combati, desde a minha militância, que em qualquer lugar do mundo paga comissão quem vende, não quem compra. Como a Bolsa cobrava de quem comprava, o camarada começou a atravessar. Você comprava uma mercadoria dele e tinha que pagar pra você a comissão. Depois eu ia direto e comprava dele. Por quê? Nós tínhamos um corpo de 50 corretores, não podia ser mais do que 50, e esses 50 corretores, cada um tinha sua especialização. Você tinha corretores, um exemplo, o Mario Saldon e o Nardinho que eram especializados em ervilha, lentilha, grão de bico, alho. Tinha o Chumbinho que também era. Você tinha o Barbosa que era especializado em milho pipoca. Cada um especializado em uma coisa e ele realmente dominava aquele setor. Mas você comprava e pagava, emitia o recibo e pagava. Com a modernização, o transporte. Hoje você vende uma soja, um commodity de soja, você vendeu o commodity você não sabe quem comprou, vai no navio, você não pra quem foi e está tudo certo. E arroz a mesma coisa. Esse negócio de registrar a marca de arroz, hoje é arroz tipo 1, tipo 2, tipo 3, baixo padrão. Feijão carioquinha a mesma coisa. E você imagina, de duas safras de feijão que nós tínhamos por ano, hoje no Brasil, na sua casa, você é casado? A sua mãe compra feijão novo o ano inteiro. Hoje não tem mais feijão velho. Porque hoje o camarada vai plantar pra colher cem mil sacos de feijão, ele planta programado: daqui 90 dias eu vou colher tantos sacos, tantos sacos, põe o pivo e sempre tem feijão novo. Então a coisa mudou demais e determinados segmentos da comercialização deixaram de ter razão de ser.
P/1 – E o senhor foi presidente da Bolsa.
R – Fui.
P/1 – Quando foi o período, como que era na época, ou tem alguma ação que o senhor fez marcante lá dentro?
R – Ah tem. Tem, mas não por meu mérito. Nós pegamos a época do governo militar e onde o governo teve anos de safra abundante e naquela época, hoje ainda tem, mas naquela época era o preço mínimo. O que era o preço mínimo? Tinha o AGF e o EGF.O AGF era Aquisição do Governo Federal e o EGF, Empréstimo do Governo Federal. Você colhia mercadoria e você achava que o feijão hoje valia dez, como produtor, e que daqui a três meses ia valer 15. Então você ia no Governo e fazia um EGF. E o Governo te emprestava dinheiro por x dias no valor do preço mínimo. Então o governo te dava o dinheiro mas não adquiriu a mercadoria. Você punha no Armazéns Gerais e aguardava o que acontecia. O que podia acontecer? Você não vendeu pro governo e fez um empréstimo. E na hora que você vai vender o feijão ficou velho e o governo te pagava oito e o mercado agora só te paga quatro. Problema teu. Você fez um AGF, Aquisição do Governo Federal. O governo comprou, pagou e armazenou e esperava o que acontecia no mercado. Quando deu falta de mercadoria o governo começou a leiloar os produtos dele. E nós na Bolsa de Cereais idealizamos, por intermédio do Salvador Firace, os leilões na Bolsa de Cereais de São Paulo. Então a Bolsa teve um papel fundamental na distribuição de mercadoria do Governo Federal, que na época, na época, já se fazia o que se faz hoje, né? Se comprava estoque do governo a qualquer preço e o leilão acabou com isso. Vendemos, nós tivemos durante três anos a Bolsa de Cereais de São Paulo fazendo os leilões com o faturamento em dinheiro maior do que a Bolsa de Valores. Então era uma venda onde fazia o leilão, o comprador pagava no ato 10% e depois pagava o restante no prazo de retirada, que tinha 30 dias pra retirar. Mas o fato mais marcante que teve, eu vou dar nome das pessoas, foi quando o Furlan, que foi ministro, era um garoto ainda, não era ninguém na Sadia, mas a Sadia já era da família dele, eles fizeram um levantamento e previram que ia realmente faltar milho. Ele fazia parte da Bolsa e ele falou, eu não era presidente ainda: “Favano, vai ser problema agora pra festa de fim de ano o milho, tal, tal”. E o Delfim era ministro. E nós falamos com o Delfim. E uma coisa eu me vanglorio, que enquanto eu fui presidente da Bolsa nós passamos por todos os governos e sempre bem com o governo porque nunca mentimos, sempre falando a verdade. E o Delfim falou: “Pô, mas vai faltar milho, vai estourar preço de peru, vai estourar preço de frango, vai estourar preço, como é que nós fazemos?”. Eu falei: “Compra milho dos Estados Unidos”. Ele falou: “Mas dá tempo?”, eu falei: “Compra milho porque quando chegar outubro gela o Golfo e não dá pra trazer milho e os Estados Unidos guarda, é lei, duas safras de milho”. De acordo com a nova safra ele vende um pouco de milho, mas ele mantém duas safras de milho em estoque, que é estoque estratégico. Porque o americano acha que se houver uma guerra, um conflito, ele tendo milho de estoque em 60 dias ele produz frango para o americano comer e ele produz ovo e guarda estoque de ovo, gema de ovo, o americano guarda um ano. Se tiver uma guerra o americano tem um ano de gema de ovo pra comer. Eu falei: “E tem um milho lá, é milho impróprio pra consumo humano porque é um milho já com três anos, mas é próprio pra ração. Compra o milho e carrega”. Naquela época já há problema de dinheiro e nós idealizamos com o Delfim, que ele achou que ia dar errado, de carregar o milho, o governo comprava o milho, carregava, ele me dava a programação do navio com a programação de entrada aqui e eu leiloava o milho na bolsa pra chegada do milho no porto. O Brasil comprou 15 caminhões de milho, 15 navios de milho, conforme carregava no Golfo ele dava, nós leiloamos o milho. O navio estava pra encostar em Recife pra abastecer, tal, tal e tal, no navio tal e tal, foi vendido. Está nos anais, foram vendidos 15 navios de milho, em dois dias o milho estava viajando, o comércio deu os 10% de sinal, o milho chegou nos portos, não entrou em nenhum Armazéns Gerais, os compradores retiraram o milho e abasteceram o mercado. Na minha gestão o que mais marcou foi isso. Fora o que nós trabalhamos em padronizações. Houve época em que o camarada empacotava feijão roxo em pacote roxo, feijão preto em pacote preto pra enganar o consumidor. Padronizamos embalagens, padronizamos classificação. A Bolsa era muito atuante. E a Bolsa fez parte de todos os conselhos e tudo o que houve nos governos. Porque era realmente atuante. Mas hoje deixou de ser. Com o aperfeiçoamento e tudo, grandes nomes, grandes cooperativas que trabalhavam. Você pega o que foi no cenário brasileiro a Cooperativa Agrícola de Cotia, deixou de ser, diz quebrou. Quebrou, mas ela foi muito útil. É que quando ela deixou de ser útil quem ficou, quebrou. Mas foi eu diria a Bolsa, a Bolsa foi um marco no comércio brasileiro.
P/1 – E quando se deu o ingresso do senhor na Bolsa?
R – De datas eu sou meio ruim, viu, mas, 35, eu fui diretor da Bolsa com 40 anos. Olha, eu comecei a militar na Bolsa em 55.
P/1 – E aí você foi diretor.
R – Eu fui diretor muitas vezes, depois fui vice-presidente dois mandatos e fui presidente mais dois mandatos.
P/1 – Quais os mandatos de presidência do senhor na Bolsa?
R – 88 até... eu pra data, rapaz, eu tenho memória boa para um monte de coisa, pra data eu sou ruim demais.
P/1 – Mas foi nos anos 80, então.
R – Oitenta, noventa.
P/1 – E você estava falando dessas questões da ditadura militar. O governo militar influenciava muito nessas questões, tanto pro, você falou muito da Bolsa, mas também pros atacadistas, pro comerciante direto? Como é que era?
R – Sim. Porque é o seguinte. Eu tenho certeza que ele não está vivo porque já naquela época ele era velho. Existia um homem forte no governo chamado General Glauco de Moraes, que ele achava que tinha que vender o feijão por tanto e ele não queria saber se o produtor está ganhando ou não. Então eles impunham determinadas, como foi o Quércia, o Quércia não era militar, mas ele mandou invadir fazenda em São Paulo e pegar boi. O cara estava com o boi lá, ele pegou o boi pra vender o boi barato. Havia grandes interferências. Tanto é que o Golbery do Couto e Silva chegou a mandar misturar soja com feijão preto pra vender mais barato. Então ele conseguiu o milagre de por a soja, que demora quatro horas pra cozinhar e não é feijão, porque alguém falou pra ele que era feijão, soja, mas não é, soja é uma oleaginosa, feijão é uma leguminosa. Então quando você punha o feijão soja, que nós apelidamos de black tie, quando você punha os dois, ficava aquela gosma que a soja estragava o feijão, o feijão estragava a soja. E por incrível que pareça, o carioca é muito criativo, eles iam no mercado e compravam a preço de tabela soja misturada com arroz e na porta do supermercado eles separavam, jogavam a soja fora e vendiam o feijão mais caro, pelo preço que queria, porque faltava feijão. Mas ali nós tivemos problemas climáticos grandes e uma política agrícola totalmente errada. Que foi depois que surgiu dos erros, é que veio... pô, no Rio Grande do Sul o produtor de arroz deixou de plantar arroz porque não era justo o governo resolver que um saco de arroz vai valer 18 reais, um saco de feijão vai valer 32 reais. E o cara plantava. Porque você não sabe, quando você joga um produto na terra, você não sabe quanto vai colher. Se você colhe muito o preço abaixa, se você colhe... então posições criaram grandes problemas no abastecimento. Mas no abastecimento geral, de carne, de tudo. Eu acho que um dos maiores erros do governo federal foi o abastecimento. Mas também tem uma coisa: pra quem pretendeu trabalhar na época e não se envolver em política, ninguém pode reclamar de militar, não. Você pode reclamar da política que eles fizeram, mas perseguição militar não houve, na minha parte nunca vi. Agora, de política errada sim, política agrícola errada.
P/1 – E nessas questões o sindicato foi um parceiro importante?
R – O sindicato sempre foi parceiro porque é o seguinte, a Bolsa é uma entidade sem fins lucrativos e ela não interfere na política, ela é apolítica. A Bolsa é um órgão orientador, tanto é que a Bolsa em impostos ela não é isenta, ela é imune, é acima de isenção. Então a Bolsa não compra, não vende, a Bolsa não é uma entidade que você chega e deixa: “Eu estou apertado e quero vender esse arroz de 10 por 5”. Ela não compra. O que pode acontecer é dela procurar um corretor especializado em arroz e falar: “Ó, ele quer vender, vê quem compra”. O sindicato não, o sindicato representa a classe. Se você falar com o Dadá, que na época era presidente. Não, era o Euclides na época, grandes problemas com o governo. O governo tabelava, o governo importava. Tinha um problema ele importava, ele proibia importação. Na época no Brasil estava sobrando farelo de soja porque tinha crise, caiu a avicultura, sobrando farelo de soja e queria exportar e não podia, depois deixou exportar, mas tinha que produzir, condicionava muito. Fez cotas. Cotas não gosto nem de falar. Porque dentro do desespero da inexperiência que tinha. O que nós tivemos ainda, que o Delfim, mesmo sendo Ministro da Agricultura que na época ele não sabia o que era um abacaxi e uma berinjela e foi Ministro da Agricultura ele tinha coerência, ele se consultava, ele pedia opinião. Então o sindicato teve problemas. Problemas de tributação, problemas de portos. Se você perguntar pro Dadá teve problemas. Teve tanto problema que eu fui o fundador da Abrace, Associação Brasileira do Cerealista, como presidente da Bolsa eu fundei a Abrace pra pode brigar com o governo porque com a Bolsa eu não podia. Porque você não compra, você não vende. Então nós éramos um órgão orientador. O que aconteceu? Muitas vezes, como eu te falei do milho, muitas vezes o governo resolvia, e isso só vou omitir nomes, o governo numa ocasião chegou e falou: “Eu vou dar 40 cartas de crédito pra trazer tantos navios de arroz”. Então ele fez um leilão das cartas de crédito. Quando foi o leilão eu fui para o ministro atual e falei: “O senhor vai vender 40 cartas de crédito pra trazer arroz e o senhor vai trazer esse arroz justamente na época que o Rio Grande do Sul está colhendo arroz. Quer dizer, o produtor foi sacrificado o ano inteiro, agora quando ele vai colher porque está faltando arroz agora”. Eu falei: “O arroz vai vir de avião? Vai vir de navio. Até o arroz chegar aqui, ele vai chegar no mês de colheita do Rio Grande do Sul. O senhor vai querer baixar o arroz do brasileiro, não é justo o produtor brasileiro ter um lucro agora do que trazer o arroz?”. O leilão foi suspenso. De quem ia comprar essas cotas até hoje não fala comigo. Por quê? Você ia carregar o arroz pra chegar certinho. Então o que eles precisavam é de orientação. Como eu te falei agora, os Estados Unidos planta o milho, guarda como reserva. Quando os Estados Unidos vende o milho, o milho americano que entra em qualquer país do mundo, ele vem com uma cláusula: “Impróprio para alimentação humana”, porque ele já tem produtos pra não estragar, ele tem uma série de coisas. O Brasil, eu sempre falei, o milho que nós produzimos, o que sai da lavoura pro navio, podia ser vendido todo ano pra consumo humano na Europa e nos Estados Unidos e com a metade do dinheiro compra milho impróprio para consumo humano. O mesmo navio que leva traz. Porque o nosso milho sai da lavoura pro papo da galinha. O Brasil se tiver uma emergência pelo que hoje representa o milho na alimentação animal, o Brasil já tinha que estar pensando também em ter no mínimo meia safra de milho de estoque.
P/1 – Eu vou fazer uma pergunta um pouco mais introspectiva. O senhor ficou muitos anos tanto na Bolsa e em relação direta com os atacadistas ali da região e com sindicato também, com o próprio Dadá. Algumas histórias dessa amizade que provavelmente o senhor desenvolveu ao longo desse tempo com algumas pessoas, alguma história interessante, de bons amigos desse período todo de Santa Rosa, de sindicato.
R – Eu vou ser imodesto em falar pra você. Na Santa Rosa, se eu numerar uma amizade eu vou mentir. É tanto amigo, é tanto amigo, mesmo eu tendo sido político classista eu posso te falar uma coisa: o Dadá, politicamente, maior inimigo que eu tive na minha vida. Particularmente, um grande amigo, um grande amigo. Porque eu nunca misturei política com classe. Eu te falei dos amigos que não falam comigo. Não falam comigo comercialmente, entende? Por quê? A Santa Rosa, esse núcleo que eu te falei, um tanto quanto retrógrado em ter lá em cima, a Santa Rosa era uma cidade do interior onde todo mundo é amigo. Não tem inimigo na Santa Rosa. Pode ter o camarada que não gosta de mim porque eu sou palmeirense. Tanto é que o Dadá, ele não vai ver esse filme, mas eu estava dizendo pro Dadá outro dia, ele jogou o problema pra mim. Eu estava querendo fazer pelo sindicato uma confraternização de pegar todo cerealista, que já não são muitos, com mais de 70 anos e prestar uma homenagem pra eles. Porque essa história do comércio atacadista foi feita por homens que por incrível que pareça, hoje, se você me perguntar quantos doutores formou o meio cerealista, são muito poucos. Mas em sabedoria, em conhecimento e em visão é um negócio espetacular. Então enumerar amigos não dá, não dá, porque graças ao bom Deus eu não tenho inimigo. Se eles forem meus inimigos eu não tenho. Então eu sou bem recebido aonde eu vou, eu sou reconhecido aonde eu vou. O sindicato me consulta, eu consulto o sindicato. Não sou sócio do sindicato, entende? Quando precisamos estamos juntos. Então amizade na Santa Rosa é um negócio muito bonito. A pena da Santa Rosa é que com acabar a Bolsa e o Sindicato, o Sindicato era dentro da Bolsa, eles se reuniam todos os dias. Quando era meio-dia, meio-dia e dez, dentro da Bolsa mantinha uma sala, não separada, mas uma sala, com 18 lugares que descia a turma do sindicato pra almoçar e nós almoçávamos todos juntos, todos juntos. Como diz o outro: negócios, negócios, amizade à parte. Então amizades, graças ao bom Deus, vou na Santa Rosa eu me sinto dentro da minha casa. Tenho armazém ainda na rua Mendes Caldeira. E eu tenho uma coisa que me entristece um pouco. Por eu ter sido filho de atacadista na Santa Rosa eu comecei a militar muito cedo na carreira de classe, eu nunca tive amigo da minha idade, os meus amigos sempre tinham dez, 15 anos a mais do que eu. Então eu vou te dar um exemplo de meu ídolo, faleceu há pouco tempo: José Tucci. O José Tucci tinha a idade do meu pai, então eu hoje estou com 80 anos, os meus amigos daquela época já se foram, né? Ficaram os que vieram da minha época, mais novos, mas a amizade continua. Nós ainda temos um restaurante aqui na Mooca que a gente toca sexta-feira vai almoçar sete, oito, nove amigos. O Dadá com o Sindicato, quando é aniversário de algum nós nos encontramos. O Dadá pelo Sindicato, o Sindicato do Comércio Atacadista, faz um jantar de confraternização, a gente se encontra. O meio está acabando. Agora pena que a hora que este pessoal vai embora acaba mesmo, né? A memória vai ficar aí no que vocês estão fazendo porque, infelizmente...
P/1 – Lá atrás quando todo mundo baixava a porta do armazém, vocês se encontravam, vocês faziam alguma confraternização também?
R – Nós tínhamos o restaurante que almoçava todo mundo junto. Falama já morreu. O Clovis Marchetti, ele estava no fim da rua Eurípedes Simões de Paula, que era seis horas, até as oito horas a gente ia lá, tomava um whisky, ou na casa do outro, ou num restaurante, ou num bar, era comum. A churrascaria da Bolsa, do lado tinha La Berlengas, o restaurante de um português. Era sair da Bolsa e ir lá pro La Berlengas, encontrava todo mundo. Então histórias, tem histórias de grandes amizades, tem. Hoje é que o mundo ficou tão materialista que às vezes a gente sente pena quando, sem dar nome, quando morre um amigo, você vai no velório e vê que está só você no velório, entende? Quando você esquece ou não soube que o amigo morreu e você vai na missa de sétimo dia e você vê que está você e mais um ou dois. Então nós temos no nosso meio, que a gente costuma dizer, tá filmando é bom, nós costumamos dizer que o Silva é o comunicador de mortes, o Silva quando liga e diz: “Tudo bem?”, eu digo: “Quem morreu?” (risos). Antes, só como memória, o Antonio Marchetti, quando morreu, eu fiz uma missa pra ele dentro (emocionado) da Bolsa. Tinha mais de 500 pessoas e de repente você vê que materializou. Quando você fala em amizade, pra quem é da minha década, da minha época, é um negócio que machuca muito. Você estava começando a entrevista e eu falei: “O Romeu Fiod morreu”. Morreu em Valinhos. Ninguém foi. O Jorge Curi da _2:17:09_, uma bandeira no nosso meio, morreu, não tinha ninguém. E isso machuca, isso machuca. Não sei se a materialização, o desinteresse, e cada um é cada um. Quando você pega um homem que é meu exemplo, o Euclides Carli, que já faz, hein Euclides, faz três anos que você não sai dos 93, mas tudo bem. Um homem ativo ainda no Sesi, ativo na Federação do Comércio, participando dos nossos almoços aqui no Di Cunto, de tudo o mais. Porra, será que isso tudo é só uma amizade de comércio? Eu com o Dadá eu nunca vendi nada pro Dadá, eu nunca comprei nada dele. Com o Euclides eu nunca vendi nada, eu nunca comprei nada dele. Então, é triste quando você vê determinadas coisas que você vai dizer, você vai numerar. Hoje, por incrível que pareça, se eu enumerar os amigos, são tão poucos que estão vivos que dá pra enumerar, mas eu não quero esquecer ninguém, né? Então a satisfação que a gente sente, às vezes, de encontrar os amigos. Porque encontrar em velório já está difícil, ninguém vai. Mas nesse último jantar do Sindicato. A satisfação que eu tive de ver o Hugo Saporito lá, não tem dinheiro que paga, entende? Por incrível que pareça. Não é homenagem, que eu não vou prestar homenagem, mas nesse último jantar do sindicato eu encontrei o Dadá que eu achei que ele não ia no próximo jantar, eu encontrei o Dionísio que achei que não ia no próximo jantar. Encontrei (emocionado).
PAUSA
R – Encontro o Hugo Saporito também, já velho, que o Paulo levou ele lá. Eu acho que isso tudo é muito mais que dinheiro. É respeito, é agradecimento, é uma vida. Quer dizer, eu estou com 80, eu tenho 70 de Santa Rosa, entende? Então você vê de quando um saco de alpiste que vinha do Marrocos, vinha com 90 quilos e o ser humano tinha que carregar, você vê um saco de pimenta que vinha da China com 80 quilos e tinha que descarregar. E um trabalho bem feito pela Fao, pela Bolsa e tudo o mais, em fazer um saco pesar menos. Você vê onde chegou a agricultura brasileira. Você vê a padronização. Você vê hoje que a dona de casa não tem que parar de atender o filho dela pra ficar catando o arroz, tirando a semente do arroz, que a turma dizia assim: “Tem essa coisinha preta no meio do arroz”, não é coisa preta, era semente. Que hoje a dona de casa não precisa lavar o arroz. Pegar um feijão que você não precisa catar, isso é dignificante. Agora, ganhou dinheiro? Eu posso dizer por mim, está aqui no meu escritório, eu dependo do meu trabalho ainda com 80 anos, está aí meus funcionários eu venho todo dia trabalhar porque eu dependo do meu trabalho. Acho que não ganhei dinheiro, mas ganhei uma vivência muito grande, né, que acho que é o que vale.
P/1 – A gente vai dar uma guinadinha aqui já pra dar uma encerrada, seu Antonio. O senhor falou desses 70 anos de Santa Rosa, de toda essa transformação. Ali na região, o que mudou nesses 70 anos, de quando o senhor foi pra lá criança ajudar seu pai, pegar queijo lá na carroça e agora que o senhor falou que ainda tem o armazém lá, né? Qual é o balanço das mudanças?
R – O balanço das mudanças. Então eu vou te falar como mudou e entra o sentimentalismo. Aonde hoje vão construir o Sesc, é museu, né? É museu e teatro, ali onde estava a antiga Praça São Vito, que tinha a estátua do agricultor que está no Ceasa hoje, ali moravam os comerciantes da Santa Rosa. Na Rua Benjamim de Oliveira, nas casas, os donos dos armazéns moravam embaixo. Era família e trabalhando. O que mudou na Santa Rosa? Do jeito que acabou o comércio, apodreceu o local. Hoje onde moravam os Marziona mora traficante. Na rua Mendes Caldeira, onde eu tenho armazém, que eu preciso ter por causa da firma que eu gerencio de Belo Horizonte, mora bandido em cima do prédio. Aquela parte apodreceu. Não é que ela estragou, ela apodreceu. Hoje é um lugar indigno até pra morar. Por sorte e pela valorização imobiliária, pegado à igreja São Vito foi lançado um prédio muito bom, classe média, que já está habitado. Na rua Mendes Caldeira com a rua da Alfândega, lançaram o prédio que está habitado. Por sorte ali vai mudar. Mas vai mudar pra local residencial, não vai nunca mais ver Santa Rosa. Porque o governo fica falando de reativar aqui, reativar lá, se você pegar hoje o setor da Santa Rosa, eu vou te dar assim, o setor da Santa Rosa está com a estação da Luz do metrô, ele tem a estação São Bento do metrô, tem a estação Sé do metrô, tem estação Brás do metrô. Ele tem a estação Roosevelt, tem o metrô do Brás que faz o transbordo. Nesta parte aqui, lugar desvalorizado, prédios velhos, o governo dá pra fazer ali prédios de moradia pra toda deficiência de moradia que tem em São Paulo, tendo as maiores estações do metrô, três estações rodoviárias, é só parar e fazer. Por que? A Paula Souza está acabada, Santa Rosa está acabada, a Mendes Caldeira está acabada. Você vai na Monsenhor Andrade, você vai ali e você deixa o Senai, deixa a rua do Boculismo que foi tombado o moinho do Matarazzo e faz tranquilamente, com infraestrutura, com tudo, lugar pra por mais de 250 mil habitantes. Agora, Santa Rosa que a gente imagina, esquece, ela acabou. Ela acabou.
P/1 – O senhor vislumbra um futuro ali pra Santa Rosa virar alguma coisa?
R – Ah, virar alguma coisa sim. Eu vislumbro aquilo como a Santa Rosa virar um local maravilhoso, com um Parque Dom Pedro maravilhoso na frente, que é um Ibirapuera, um Parque Dom Pedro maravilhoso do lado de cá. Do lado de lá não porque já tem a subida, mas do lado de cá, até a estação do Norte, fazer prédios em colunas o melhor bairro residencial de São Paulo.
P/1 – Mas então acabar com o comércio.
R – Não pode ter mais comércio lá, não cabe comércio. Olha, São Paulo é o único lugar do mundo, de cidade grande, que passa carreta com quatro eixos. Em qualquer lugar do mundo não pode passar carreta de quatro eixos. A Santa Rosa, se você quiser levantar, da avenida Mercúrio, onde começa a avenida Mercúrio e Santa Rosa, até desembocar no rio Tamanduateí, tem uma das maiores obras de arte do Brasil. A coluna de águas pluviais da rua Santa Rosa foi feita por artesãos italianos e ingleses, é uma chaminé deitada no chão, feita de tijolinho. Não é cano, ela é feita de tijolo, um por um. Você imagina uma chaminé deitada que sai da companhia do gasômetro e vai até desembocar no rio. Não é cano. Em cima dessa obra de arte passa caminhão com 50 toneladas, amigo. Com 60 toneladas. Então você pega, na rua Mendes Caldeira, na rua do Lucas, na rua da Alfândega é um crime deixar entrar caminhão de três eixos com mais de 20 metros de comprimento que ele não consegue fazer a curva. Então, como é que você vai fazer um comércio num lugar que em linha reta dá o quê? Não dá um quilômetro e meio da Praça da Sé. Esquece. Ali tinha que ser aproveitado pra levar povo, levar povo. Tem estação Dom Pedro do metrô. Então você pega estação da Sé está a um quilômetro. A estação Dom Pedro está a 800 metros. A estação do Brás está a 500 metros. Do outro lado você tem a estação São Bento, está a um quilômetro e meio. Você pega a estação da Luz, está a um quilômetro. Depois você pega a Sorocabana. Está lá, está feito, gente! Acorda, prefeitura, está feito! Tá feito. Agora comércio lá? Não tem como estacionar, tem radar, tem ônibus, esquece. Leva aquele camarada que precisa trabalhar na cidade, que tem que aproveitar o metrô, leva ele lá. Leva, desapropria, paga honestamente o que vale, está tudo no chão, aquilo está tudo caído. Você tirar os dois prédios novos que fizeram, o Jamal que era a tecelagem que foi tombada pelo patrimônio histórico e agora que a prefeitura desapropriou do chinês o Moinho Matarazzo, o resto está tudo no chão, é só derrubar e fazer, gente! Está tudo podre, tudo caído. Não tem uma construção naquela região da Santa Rosa com menos de 80 anos. Aproveita aquela região. Pra mim aquela região seria, não é maloca, não, não é pra pegar os drogados e por lá não, é pra fazer decente pro cara morar, pro cara que é garçom, pro cara que trabalha na cidade, está lá pra fazer, o loteamento mais barato de São Paulo está lá.
PAUSA
P/1 – Vamos voltar um pouquinho. Agora a gente vai encerrar aqui. O senhor comentou que o senhor estava fazendo o Liceu lá. Qual foi a sua formação depois que o senhor saiu da escola?
R – Eu fiz o Liceu. Depois, como eu pendi para o comércio eu fiz o que na época chamava-se Técnico em Contabilidade, contador. Fiz numa escola de comércio. Estudei no 30 de Outubro e depois me formei aqui no Brasilux, na Mooca, em Técnico em Contabilidade que chamava na época.
P/1 – No Liceu o senhor fez o ginásio então?
R – Ginásio e, como é que era?
P/1 – O colégio?
R – Depois, em cima do ginásio tinha o...
P/2 – Científico.
R – Científico.
P/1 – E você tem alguma lembrança boa de lá, algum professor marcante?
R – Puta, Padre Avelino Canazza. Tinha o padre Geraldo Cintra. Depois disso eu continuei militando. Se você viu aí que me deu a emoção de falar dos amigos, isso tudo eu devo ao Liceu Coração de Jesus. O Salesianos deram princípios de vida, deram respeito à família, respeito aos mais velhos. Na minha época de Liceu existia uma matéria que hoje ninguém nem conhece chamado Compêndio de Civilidade, onde eles ensinavam como se dirigir ao mais velho, que você nunca deve esticar a mão pro mais velho, primeiro tem que esperar que ele te estique. Te deu princípios. E depois de muitos anos eu voltei no Liceu Coração de Jesus e participei muito tempo do que na época chamava de cursilho, que era o curso de vivência cristã. Então é outra parte que você tem saudade, de que ninguém imagina na minha época de Liceu Coração de Jesus, o glamour de uma avenida Campos Elíseos, de uma alameda Glete, de uma igreja do Liceu Coração de Jesus. Do Largo da Estação Sorocabana. A beleza da estação da Luz, o povo bonito que andava lá. E de repente às vezes eu vou no liceu e vejo que eu não posso entrar no liceu porque os drogados estão dentro do Largo Coração de Jesus. Então isso dói, dói muito, entende? Mas é a vida, né? Então o Liceu pra mim foi de suma importância. Eu posso te dizer que depois de me formar no Liceu eu participei de outras escolas, mas nunca uma escola que eu frequentei alguém me orientou o que era Deus, Pai e Espírito Santo, o que era respeito à mãe, como era respeita um professor, como levantar de um banco do ônibus e dar o lugar para uma mulher. E como pegar um garfo na mão, isso eu nunca vi em escola nenhuma, eu só vi no Liceu. E na época tinha outros colégios. Os maristas, tinha o São Bento, o Arquidiocesano e outros colégios bons na época.
P/1 – E foi um pouco mais tarde que o senhor começou a namorar também?
R – Ah não, eu comecei a namorar. Quer dizer, eu casei cedo, né? Eu casei com 21 anos.
P/1 – Como o senhor conheceu a sua esposa?
R – A minha esposa é aqui da Mooca. Está a foto aí, a minha bisneta com 15 anos, cara! Olha aí, ó, em 2015 e 2016. As bisnetas, 15, dez, cinco e 11.
P/1 – Então foi na infância mesmo, vocês cresceram juntos.
R – A Lourdes eu conheci na infância.
P/1 – Qual o nome dela?
R – Lourdes. A Lourdes era filha do meu barbeiro. Ele não era dono do salão, ele trabalhava no salão. E o dono do salão casou. E a festa foi aqui embaixo. E eu vim na festa, que eu não conhecia a filha dele. E eu vim na festa porque o Chico era o barbeiro e eu vim. E comecei a dançar com a filha dele e dali pra frente casamos.
P/1 – Foi o seu sogro que te ensinou a passar Minancora, então.
R – Foi, foi ele.
P/1 – E quantos filhos o senhor tem?
R – Um casal.
P/1 – Veio uma pergunta que eu esqueci. Quando o seu pai foi trabalhar lá na Zona Cerealista, o pessoal aqui da Mooca, pelo que você tinha falado é mais calabrês.
R – Não, italiano. O calabrês porque até que na Mooca não sei se tem muito calabrês, mas tem muito italiano. Aí meu pai foi pra lá. Meu pai era um camarada muito popular, ele era muito comunicativo. Ele foi pra lá em 44 e nunca mais saiu de lá. Ele saiu uma fase só, que ele saiu da Santa Rosa e foi para o ramo de restaurante e comprou o restaurante Barsotti, na rua do Carmo, mas depois não se deu bem e voltou pra Santa Rosa.
P/1 – E o pessoal lá na Santa Rosa é tudo barês, né?
R – Vamos dizer, 80% barês.
P/1 – E não tinha diferença?
R – Não, tanto é que a turma acha que eu sou barês. Não tem diferença. O barês é muito comunicativo, né? O Dadá, o nome dele é impronunciável e tem amizade dos barês como se fosse filho de barês. O barês em amizade, eles são exemplos.
P/1 – E já pra encerrar, seu Antonio, perguntar um pouquinho sobre as suas atividades hoje em dia. O que o senhor faz?
R – Desculpe que eu dei risada, as minhas atividades, eu sou censurado por todo mundo. Porque é o seguinte, eu não ponho o dinheiro como valor principal na vida, mas eu sempre fui muito, modéstia à parte, eu sempre fui muito criativo. Eu sempre fui meio saindo na frente. E todo cara que sai na frente é porque ele está na frente e o que ele faz não dá certo na hora e dá certo depois. Então você diz o que eu faço hoje. Faz sete anos que eu faço publicidade com a Rede Pão de Açúcar. Eu patenteei uma peça, tive uma ideia e parti pra área de Publicidade. Depois eu lancei há pouco tempo uma loja virtual onde eu vi que você compra, eu vou dar um exemplo só, você compra 100 gramas de pistache no supermercado e você paga 20 reais. Vinte reais é 200 reais o quilo. Eu lancei uma loja virtual onde eu vendo um quilo por 80. O comparativo. Você compra três folhas de louro num pacotinho, paga um real e o louro custa 20 reais o quilo, mas o quilo de louro é um. Então eu lancei essa loja virtual onde eu faço entrega pelo correio. E depois vieram outras ideias, né? Agora eu estou lançando outro produto. E eu não paro, eu não paro porque quando menino eu lia sobre o Caruso e o Caruso dizia que o sonho dele... um dia falaram pra ele: “Pô, você já ganhou muito dinheiro, muito filme, para de cantar”. Ele falou: “Não, se Deus for bom comigo eu quero morrer cantando”. E Deus foi bom com ele. E eu queria que se Deus for bom comigo me deixa morrer trabalhando. Porque até hoje eu tenho um grupo de amigos que fazem 27 anos que a gente se encontra todas as manhãs, pode ser frio, chuva, sol, e caminhamos cinco quilômetros no Ibirapuera todo dia às cinco e vinte da manhã. Quando está chovendo nós caminhamos embaixo da Marquise. Quando é seis e dez, seis e quinze estamos numa padaria, há 27 anos na mesma padaria, tomando um belo café da manhã e quando é oito e meia, nova horas eu estou aqui trabalhando. O que eu não quero é me sentir inútil. Não quero dizer útil, né, não sei se sou útil, mas não quero me sentir inútil. Então eu me espelho em pessoas que eu admiro. Desses exemplos, um é o Euclides Carli. Eu economicamente não poderia quase parar de trabalhar. O Euclides, tanto financeiramente como economicamente pode trabalhar, 94 anos, trabalha todo dia. Então eu acho que o trabalho é tudo na vida do ser humano. Você quando trabalha e fazendo o que gosta, trabalho é o maior descanso do mundo. Você estando trabalhando no que você gosta, não vem falar que está cansado porque não cansa. E a vida é essa. Então o pessoal pergunta pra mim – e muitos ficam bravos. Uns me chamam de Antonio, quem me conhece bem me chama de Nico, então a pessoa diz: “Seu Antonio, quantos anos o senhor tem?”, eu digo: “Se Deus me ajudar mais uns seis ou sete” “Como assim?” “Não, eu tenho isso, agora o que eu já tive, eu já tive 80, (risos) agora quantos eu tenho, uns seis ou sete”.
P/1 – E nos momentos de lazer o que o senhor gosta de fazer? Eu sei que o senhor gosta de trabalhar mas, você gosta de música? Assistir futebolzinho.
R – Eu gosto de futebol. Eu gosto de ler. Então na minha casa, como no momento eu estou sozinho, ligado numa música boa, um livro pra ler, futebol. Recreação, caminho no parque. Tenho coisas de velho, gosto de ir na feira de antiguidade, gosto de ir na Praça da República. Sou vidrado em palavra cruzada. Se eu vou numa reunião que está atrasada, na minha pasta tem palavra cruzada. Eu procuro fazer com que minha cabeça não pare. E procuro também não deixar porcaria dentro dela, então eu procuro. Gosto muito de conversar, como você já notou. E às vezes uma praia, mas eu sou avesso a pegar um feriadão e ir pra lugar que tem muita gente, não por não querer estar perto de gente, porque eu acho que não tem necessidade na idade que eu estou sofrer pra pegar pedágio, pegar isso e aquilo. E gosto também de às vezes entrar dentro de mim mesmo, né? Não tem nada como conversar com a gente mesmo.
P/1 – Você falou de ler, de escutar música, tem um grande autor que você...
R – Não, não. Por incrível que pareça eu ganhei pra dar pra minha enteadinha um livro do Sérgio, um amigo meu, que é a história de uma baleia, que eu dei os parabéns pra ele. Então sobre o que ele colocou. Então eu não tenho um autor preferido. Eu não gosto muito de livros de auto ajuda, mas eu gosto muito de livro de biografia, entende? Há uns anos eu li o livro do Bill Gates. Quando eu li o livro eu achei um monte de absurdo o que ele pôs no livro dele. E eu digo pros meus amigos: “Leia o livro que ele escreveu 25 anos atrás, está dando tudo certo o que ele falou”. O livro do Ford. Você lê a biografia dele, ele te dá ensinamentos fantásticos. Então é o que eu me baseio mais.
P/1 – Você falou que está sozinho agora. A sua esposa faleceu?
R – A minha esposa faleceu, mas eu já estava separado dela. Então agora com 80 anos sozinho é curtir sozinho mesmo. Tem as netas, tem as bisnetas, então vamos curtindo aí.
P/1 – E quais são seus sonhos para o futuro?
R – Pro futuro? Eu posso te falar o seguinte, um dia um amigo me falou um negócio. Eu não discuto religião, mas eu acho que o ser humano, se você tirar temência dele, que uns falam que é fé, outros, se tirar a temência dele, o ser humano é mais animal do que uma fera. Então eu frequento minha igreja, não estou dizendo que eu estou certo, e a turma diz: “Você vai na igreja pra pedir o quê?”. Nunca entrei numa igreja pra pedir nada. Só peço pra agradecer. Então o que eu posso pensar pro futuro? Se Deus me der a condição de vida que ele me deu até hoje, que o meu médico me ligou outro dia perguntando por que eu briguei com ele, que faz exatamente 22 anos que eu não vou no médico. Se ele me der até o fim da vida isso daí já não preciso mais nada, não, tá bom demais. Realizei, diz que o homem tem que plantar uma árvore, eu plantei um monte. Dizem que tem que escrever um livro, eu escrevi, escrevi “O Feijão Nosso de Cada Dia”. Amizades, tenho. O que mais eu posso querer? Falar que eu preciso ganhar dinheiro? Não, eu gostaria de não precisar ter que pedir, mas do restante tá bom. Porque o dinheiro você tem uma fase pra ganhar, né, a vida é de fases. Então a fase de ganhar dinheiro, ganhei muito, não soube segurar, perdi, então não perdi nada porque não era meu. Mas angariei um monte de amizades, sou um homem que onde eu vou não me envergonho do meu passado. Onde eu vou o camarada diz: “Ah, eu conheço Fulano de tal” “É meu amigo”. Quando você pode falar de cara cheia de que você conhece Fulano, é porque alguém vai perguntar de você. Eu sei de uma coisa de mim, quando você falar: “Eu estive com o Nico”, o cara pode dizer pra você: “Porra, aquele porra louca, aquele cara só pensa merda”. Ou aquele cara, tal. Mas desonesto, sem vergonha, traidor, não. De eu ser persistente, de eu defender meu ponto de vista até o fim, isso eu tenho, eu procuro reconhecer meus defeitos. É um defeito? É. Mas daqui pra frente saúde pros netos, pros bisnetos, pras bisnetas e um fim de vida tranquilo. E deixar um arquivo desse aí está bom demais, né?
P/1 – O senhor escreveu um livro?
R – Eu escrevi “O Feijão Nosso de Cada Dia”.
P/1 – Sobre o que é?
R – Sobre feijão.
P/1 – A história do feijão?
R – Só sobre feijão. Inclusive uma passagem do feijão eu conto de que o feijão... porque o feijão é ingrato. Ele é ingrato porque ele sobe e baixa muito de preço. Só pra você ter uma base, o doutor Euclides Carli na fazenda dele plantou feijão. Quando o feijão estava pra colher estava 220 reais o saco. Aí pra colher teve que esperar o sol, mas quando o sol bateu no feijão dele, bateu no dos outros também. Quando ele trouxe pra vender pra São Paulo estava 80. Então eu digo que o feijão nasce, porque o feijão não é um grão, né? O feijão é duas metades que se unem. O feijão não é cereal, é uma leguminosa. Então a turma diz feijão é cereal. Não é. E feijão não é grão. Então o feijão nasce na vagem, ele nasce meio grão aqui e meio aqui. Ele nasce assim. O sol vai batendo, ele vai fazendo isso aqui. Quando o sol está a pico ele faz isso aqui e gruda. Quando ele gruda ele faz assim e pede perdão a Deus porque ele vai ferrar ou quem comprou ou quem plantou (risos), um dos dois. Então eu fiz um livro na época sobre quem plantava feijão, como era o feijão e tal. E foi quando eu fundei a Abrace. Fizemos dois mil exemplares, está no Ministério da Agricultura, que é O Feijão Nosso de Cada Dia, do _2:49:10_. E agora eu tenho um outro livrinho aí pra sair que é mais... e o Euclides está me pedindo pra fazer alguma coisa sobre as memórias da Santa Rosa, né? Aí vamos estudar, vamos ver se faz.
P/1 – Queria que você contasse pra gente como que foi contar essa história, o que você achou dessa experiência?
R – Olha, sem falsa modéstia, não foi uma experiência, foi uma coisa que eu queria fazer, sabe? Eu queria fazer porque diz que um povo sem memória não vale nada. E um meio como o cerealista, que não ficou nada escrito, não vou dar nome mas quando você pega um camarada que fica numa entidade de classe com mais de 80 anos e joga fora os arquivos da entidade, jogou fora a memória, não tinha memória. E eu fiquei feliz porque vocês anos atrás entrevistaram o Romeu Fiod. Do meio cerealista você me falou agora que entrevistou outros. Fica uma história, se alguém quiser pelo menos alguma história. Porque o meio cerealista não tinha. E isso me preocupava, me preocupava porque você pega um meio que tanto trabalhou, tanto fez, porque os meus antecessores você não podia exigir que ele fizesse alguma coisa porque você pegava um camarada que veio de Bari, que lá ele já tinha pouca instrução e ele veio pra cá analfabeto, ou semi analfabeto. Se ele deixou a terra dele ele veio aqui pra viver melhor do que vivia lá. E ele pegou um caminho que começou ganhar dinheiro e ele acumulou dinheiro porque ele não precisava de cultura. Quando ele ganhou dinheiro e que ele podia dar cultura aos filhos dele, viu que aquilo não era vida pra eles e foi. Quer dizer, do nosso meio cerealista você tem o doutor Júlio Verário que foi dono do Nove de Julho, dono do Hospital Bandeirantes. Você tem gente que saiu de lá, que viu que não era, o próprio filho falou: “Não, isso não é pra mim”. Porque ser cerealista é como o cara nascer cantor, bailarino ou jogador de futebol: tá nele e não dá como ensinar, não tem como ensinar. Eu não posso ensinar o meu filho ser pícaro, bobo ou esperto como eu. Eu não estou dizendo que eu sou esperto. O meu filho pode ser mais inteligente ou mais bobo do que eu, não tem como transmitir. Então o meio cerealista não houve transmissões. Você pega a família Tucci, foi dono do Banco da Economia, foi dono da construtora Arena, foi dono de grandes empresas. E os filhos deles, nenhum deu pro comércio, mas são grandes homens, deram pra outras coisas, não formou isso. E preocupava, preocupava. Como é que você pega um setor que abasteceu o Brasil durante muitos anos, com um milagre, você me fez sérias perguntas, onde a gente guardava estoque. Não tinha estoque. Era uma dinâmica tão grande. O just in time de hoje nós fazíamos há 60 anos. Não era que o atacadista tinha um estoque. Não! Era uma rotatividade. Só que não deu tempo de fazer a história. E até que enfim, graças a Deus, apareceram vocês pra fazerem uma parte dessa história. Então eu não vou dizer o que eu achei, eu não achei nada, eu só quero agradecer de vocês terem feito.
P/1 – Imagina, a gente que agradece, seu Antonio, foi incrível.
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