Projeto: Vestido Memórias - Legado e Identidade
Entrevista de Alexandre Nepomuceno
Entrevistado por Luiza Gallo
São Paulo, 10 de maio de 2023
Código da entrevista: VES_HV002
Transcrito por Selma Paiva
Revisado por Grazielle Pellicel
(00:44) P1 – Então, ‘bora’ lá! Pra começar, eu gostar...Continuar leitura
Projeto: Vestido Memórias - Legado e Identidade
Entrevista de Alexandre Nepomuceno
Entrevistado por Luiza Gallo
São Paulo, 10 de maio de 2023
Código da entrevista: VES_HV002
Transcrito por Selma Paiva
Revisado por Grazielle Pellicel
(00:44) P1 – Então, ‘bora’ lá! Pra começar, eu gostaria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R - Meu nome é Alexandre Nepomuceno, nasci em Campina Grande, Paraíba, em 1 de fevereiro de 1973.
(01:04) P1 – E te contaram como foi a história do seu nascimento?
R – Contaram (risos) várias histórias, mas eu acho que, como eu sou o único filho homem da casa, do casal, acho que era bem esperado. Meus pais tiveram minhas duas irmãs primeiro, nós temos três anos de diferença cada um, então quando eu nasci, acho que era esse filho esperado por ambos, mas é isso. Então, tem outras histórias também, que acho que estão associadas ao nascimento. Acho que antes disso, uns dois anos antes, minha mãe tinha perdido um irmão mais novo, então meus avós perderam um filho mais novo na casa, então sempre quando você tem uma perda, que vem uma criança, tem um bebê na família, acho que é um motivo também de alegria e um pouco uma espécie de cura desse luto, da tristeza. Então, eu acho que eu cheguei nesse momento, também. Por mais que tenha sido acho que dois anos, ou um ano depois, eu não sei bem agora, teve isso.
(02:15) P1 – Tem alguma história do seu nome? Por que escolheram Alexandre, você sabe?
R – Eu tenho um palpite (risos) que os nomes dos três filhos acho que denunciam muito a década [em] que a gente nasceu. Então, eu acho que estava muito em moda nos anos setenta nomes russos, tanto que eu sou Alexandre, minha irmã do meio é Georgiana e a irmã [mais velha é] Anna Karla. A própria grafia do nome da filha mais velha, Anna Karla com dois ‘enes’ e ‘k’, então eu acho que isso é bem um prenúncio do que estava em voga, na época, do nome, que é uma coisa super interessante pensar no nome que se dão aos filhos. Ontem, por acaso, alguém me falou que o nome mais usado desses últimos anos era, tinha sido Miguel, pra homem. Então, na época, acho que era isso, não sei, tem uma coisa associada a nomes russos, tanto que acho que colegas da mesma época têm nomes russos também. É isso.
(03:27) P1 – E como é a sua relação com as suas irmãs?
R – Sempre foi muito próxima, aquela relação de irmandade mesmo, fraternidade, então a gente tem uma ligação muito forte, apesar de não morarmos hoje na mesma cidade, mas a gente está sempre em comunicação, em contato, apoiando um ao outro, de alguma forma, e sempre que pode a gente provoca os encontros. Então, não à toa elas estiveram aqui recentemente, comigo, passaram dez dias aqui, as duas, junto com meu pai. E é isso, então quando estamos juntos, a gente quer aproveitar o máximo do tempo e é engraçado, porque parece que volta a ser criança também, de novo: a coisa do próprio humor, das brincadeiras, da ironia, então, essa coisa de riso e choro ao mesmo tempo. É muito engraçado, e isso tudo volta quando a gente está junto. É uma relação bem bonita. Isso digo porque sinto esse afeto, esse carinho nosso e dito por outras pessoas, que nos acompanham, de amigos em comum, primos que falam muito isso, dessa nossa relação e, bom, espero que continue pra sempre. (risos)
(04:47) P1 – E na infância, você lembra de alguma história muito marcante com elas, algum momento?
R – Nossa, várias, mas uma história (risos) muito engraçada tem a ver com essa irmã do meio. Minha irmã mais velha tem seis anos a mais, então quando a gente é criança, seis anos é muito. Então, pra mim, ela era uma irmã ali que estava... eu não tenho muita lembrança hoje de que a gente brincava junto, por exemplo, diferente da irmã do meio, que tem só três anos. E essa irmã era meio que meu ídolo, porque eu era bem mais novo, a irmã do meio era mais... sempre é mais sapeca, sempre foi mais ‘atirada’, de se jogar e eu mais retraído, mais tímido durante muito tempo, mais bobo, eu acho, então acho que eu tinha uma ingenuidade ali que não me deixava ‘me jogar’ muito pra vida, então eu me espelhava muito nela, no que ela fazia. Então, acho que ela foi a primeira de nós a aprender a dirigir, então ela pegava o carro e saía só, tinha essa coragem, dirigia moto, o que era meio incomum, ela adolescente, e aí uma coisa engraçada é que ela me ensinou... eu morava numa casa super grande em Campina Grande, na cidade, e a casa tinha um terreno enorme, com muitas árvores e ela que me ensinou a subir nas árvores, só que uma coisa que me marcou foi que ela uma vez me ensinou a subir em um pé de goiaba e me deixou lá, aí ela fez: “Bom, agora você vai aprender a descer sozinho”, sem a ajuda dela. Então, ‘bateu’ aquele desespero momentâneo, aquela coisa de medo, pânico; Mas ‘muito louco’ isso ter acontecido, porque a ideia era aprender de fato. Quando eu aprendi a descer da árvore, aí foi a primeira sensação que eu tive de grande liberdade, autonomia, porque nunca mais parei. Então, essa árvore, inclusive, era meu refúgio, nosso, foi meu refúgio durante muitos anos e eu devo a ela essa minha primeira... (risos) esse primeiro ato de coragem. Eu conto essa história já há muito tempo. Então, ela era essa irmã que a gente brincava e brigava ao mesmo tempo, na mesma medida. Então, durante muito tempo ela era mais forte que eu, ela batia em mim, até [que] depois eu comecei a ficar maior, a me defender melhor. Ela teve esse papel crucial na minha infância e também [na] adolescência. Até hoje somos muito próximos, de ambas. A irmã mais velha, com o lado do cuidado, mais maternal, e a irmã do meio era essa companheira mesmo, de várias passagens na vida. (risos)
(07:46) P1 – E seus pais, como você descreveria o jeito deles?
R – Os pais... bom, é uma família que vou te dizer: acho que a família tem essa característica, nós temos... acho que eu tive muita sorte, muito privilégio de ter vivido em um ambiente muito familiar, muito acolhedor, em todos os aspectos, de muito amor e muita proteção também. Então, a infância, a memória de infância é muito afetiva. Eu acho que se eu pudesse resumir em uma palavra a infância era muito essa coisa da proteção. Então, acho que a gente foi criado em um ambiente muito protetor, eu acho que até em excesso, mas isso acho que é uma característica da família como um todo, a grande família. Isso é estendido a tios, primos e tal. Eu acho que veio um pouco de uma herança dos avós, desse jeito de criar, de estar muito presente na vida dos filhos, então teve isso. Então, meus pais eram assim, meio que até escondiam um pouco os problemas, não deixavam transparecer em casa, então o ambiente sempre foi muito amoroso, muito afetuoso e, lógico, apesar disso, não eram pais permissivos, então uma casa também, que na época existiam as regras de como se comportar, do que não fazer, do que não pode falar, mas era uma família muito equilibrada nesse sentido: os filhos não deram muito trabalho aos pais. Os pais, na época, a gente via [eles] como rigorosos, mas com muito amor. Eu não sei, é uma mistura ‘muito louca’ essa, assim, mas não tinha um rigor de castração, não eram pais que puniam os filhos, eram pais que apontavam os caminhos ali, do que devia ou não fazer, podia ou não fazer. Acho que era muito natural e também um outro tipo de criação. Apesar de que, mesmo nessa época, nos anos setenta, a partir do anos setenta, minha mãe era muito curiosa e muito preocupada com a educação dos filhos e muito também, que era nato dela, curiosa de formas de educação novas, talvez inovadoras e que fossem mais construtivas, então ela lia muito sobre isso. Acho que participava muito da educação dos filhos na escola também, então se interessava de saber [sobre]. Então, acho que eles tinham essa característica. E entre eles tinha também um acordo ali, um acerto, uma sintonia como casal, também interessante, muito diferentes num aspecto, mas muito companheiros, então eu vejo os dois muito... ela [era] muito companheira dele, durante muito tempo da vida, acompanhando várias etapas, mas cada um preservando também sua independência no convívio com os amigos, com seus hábitos. Eu acho que ele [era] mais sociável, mais ‘pra fora’, ela um pouco mais intro, então se abrigava na literatura, na música, na casa, no cuidado da casa, era uma pessoa extremamente, acho que, detalhista com isso, com a casa, com o ambiente dela, gostava de fazer da casa um ambiente agradável, acolhedor, bonito. Eu lembro da casa passar por várias fases, esse negócio da casa passar por várias etapas. Então, sempre a mão dela ali, proporcionando isso. Bom, e acho que uma mãe também que abdicou muito da vida dela, profissional, pra se dedicar à família. Ela se formou junto com meu pai, eles se formaram juntos, em Direito, então nas imagens da formatura dela, ela está grávida, com um barrigão enorme, e ela trabalhou desde jovem, mas aí acho que nesse momento em que ela foi mãe de três filhos, ela abdicou ali da vida profissional, que eu tenho certeza que ela teria muito sucesso no que ela se propusesse a fazer, mas em compensação, a gente teve essa mãe super presente e participativa da vida dos filhos. Até a ‘partida’ dela foi assim.
(12:33) P1 – Qual o nome deles?
R - Hermano e Penha.
(12:40) P1 – Eles se conheceram na faculdade?
R – Não. Eles se conheceram bem antes disso, acho que eles se conheceram na década de sessenta, meados... início da década, os primeiros anos da década de sessenta, e acho que, se não me engano, apresentados por uma amiga em comum, que acho que fez esse papel ali de ‘cupido’ dos dois. Uma amiga que tem a mesma relação de carinho com ambos, em uma dessas ela apresentou e falou pra minha mãe: “Você vai conhecer uma pessoa que tem tudo a ver com você”. Minha mãe acho que resistiu um pouco, no início, mas acho que foi impossível (risos) se preservar, se proteger, porque aí logo em seguida acho que ele encantou ali, com o charme dele. E foi isso. E aí é uma história bonita, porque eles casaram, acho que em 1965, se não me engano, o começo da vida dos dois, jovens, vinte e poucos anos e a vida profissional também, acho que várias fases da vida profissional, mas sempre juntos, então mesmo quando ele se lançou pra... ele foi comerciante, teve loja, ela o ajudava na loja, ele tinha uma loja de roupas de artigos masculinos, finos. É o que ele vendia. Então, camisaria, perfumaria, lenços. Enfim, era uma loja super charmosa e isso marcou uma época na cidade. E ela, recém-casada, foi ajudá-lo, então ela ficava... como ela amava esse universo estético, da estética, da cosmética, enfim, era vaidosa, então ela ajudava na loja fazendo isso, acho que escolhendo os produtos, exibindo. E ela também, depois, fez uma formação nessa área e passou a atender clientes femininas na loja, então ela fazia tratamento de pele, maquiagem, atendia as amigas e mulheres da cidade quando em algum evento, casamento. Ela fez a maquiagem de muitas mulheres conhecidas, que depois, muitos anos depois - agora vou dar um ‘salto gigante no tempo’ -, quando eu fui ter loja com ela, em João Pessoa (PB), mas aí de artigos femininos, e a gente vendia acessórios, roupas, bijuterias, muitas mulheres vinham na minha loja, na nossa loja, e aí contavam: “Nossa, sua mãe fez minha maquiagem do casamento e tem tudo a ver vocês terem essa loja hoje”. Isso, já quarenta anos depois. Então, são muitas histórias pra relembrar.
(15:42) P1 – E na infância, tinha algum parente da sua família que foi muito importante e significativo, pra você? Tio, primo...
R – Bom, como era uma família muito... é ainda uma família muito apegada, muito presente, são muitos personagens marcantes, que passaram, então eu nem sei se eu conseguiria falar em um. Tanto que eu fui imaginar em fotografias da infância, então eu comecei a pensar, foi difícil escolher poucas fotos, porque tem isso: os tios muito presentes, primos presentes também, os avós paternos, os avós maternos também, que eram muito presentes, então eu passava férias na casa de tios, dos avós. Um tio materno morou na minha [casa] quando eu [era] criança, minha mãe o recebeu em casa, o acolheu em casa, esse tio morou alguns bons anos na minha [casa], então era aquele tio que cuidava um pouco dos sobrinhos da forma dele, então era um tio mais brincalhão, mais bem-humorado, fazia muita brincadeira, um tio que ia buscar na escola. Era um tio mais jovem também, então era solteiro. Então isso marcou um pouco a minha infância, essa presença dele na minha casa. Mas a casa sempre foi também que estava [sempre] cheia de gente, então os tios iam pra minha casa passar férias, feriados, temporadas. Meus pais viajavam um bocado a trabalho, então sempre tinha uma prima que ficava na casa, mais velha, que dormia em casa e meio que fazia, às vezes, de cuidadora. Então, foram muitas pessoas que fizeram parte da infância. E sem falar nos avós, que eram também presentes. Então, acho que a família tem essa característica, de ser muito... acho que os melhores amigos dos pais são os próprios irmãos. Apesar deles terem muitos amigos também, que se tornaram tios afins nossos, sem falar nos padrinhos e madrinhas também, mas acho que tem essa relação. Como cada um deles tinha vários irmãos, se tornaram também os melhores amigos. Então, muito presentes na vida dos filhos.
(18:20) P1 – E dos seus avós, que recordações você tem? Tem alguma história muito marcante com eles, uma passagem?
R – Também algumas passagens bem interessantes, porque como eles estavam perto desde o nascimento de nós todos, ali, tiveram passagens importantes, então, mas eu lembro, vou falar uma que eu acho que é mais marcante, que é mais na velhice deles, mais próximo da ‘partida’, porque foi onde... bom, sempre convivi. Meus avós maternos tinham uma casa... a casa deles sempre foi uma casa que recebia as pessoas pra um café da tarde. Isso durante muitos anos, até o final. Então, a casa era um ponto de encontro dos filhos e filhas, netos, netas, de amigos deles e amigos dos filhos. Então, muitas vezes uma amiga da filha chegava na casa deles, porque sabia que tal hora o café ia sair e ia encontrar [com eles]. As pessoas iam visitar a cidade e paravam lá. Então, era meio que uma casa (risos) acolhedora, parada, nesse sentido. Então, imagina isso todos os dias, durante décadas. Então, essa casa, fosse em Campina Grande, quando eles moraram, ou em João Pessoa, era esse ‘porto’ seguro. E nós podíamos almoçar várias vezes da semana lá, com eles, ou passar pra tomar o café da tarde e encontrar meus tios, ou eu chegar mais cedo e esperar minha mãe, ou meu pai passar por lá, ou ficarmos pra jantar com eles, porque eles estavam sozinhos. Então, a casa sempre teve essa característica. Eu tinha morado no Rio por quatro anos, voltei pra João Pessoa e nesse meu retorno eu fui muito na casa deles, ia muito, até porque eles já estavam bem mais velhinhos e aí tentei aproveitar o máximo, então eu muitas vezes ia almoçar, dava o cochilo da tarde com eles, então meu avô saía da cama e ia pro outro quarto, pra eu poder ficar na cama dele, conversando com a minha avó. Isso, conversando horas. E, às vezes, eu não conseguia sair de lá e ficava até o café da tarde, porque no apego e não conseguir se desapegar mesmo, me separar, porque era tão rico, tão gostoso estar junto e aí eu buscava, ia conversar sobre... eu adorava perguntar a ela do passado, as histórias e ela começava a contar, depois ela ficava irritada, porque eu perguntava muito sobre o passado e ela não queria relembrar, aí ela chorava e ria na mesma medida. Era muito lindo isso dela, que ela era muito emotiva e uma personalidade muito marcante, muito forte como avó, como mulher também. Então ela era essa ‘figura’ agregadora, líder da família, ela que era líder, a figura feminina, a mulher da casa, em todos os sentidos. E uma mulher muito interessante, porque apesar de ser minha avó, a figura mais velha, não tem nada daquela figura social da avó. Pelo contrário, era uma mulher que jovem praticava esporte, gostava de jogar, adorava, acompanhava na televisão todos os esportes possíveis, campeonatos de vôlei, de futebol, ligava pros genros, pra comentar dos jogos. Bem incomum isso. Esse era um mundo muito masculino ali. Hoje menos, mas foi um mundo muito restrito ali, muito voltado pros homens esse lado e na casa dela não, era ela que era essa mulher que se interessava, que acompanhava os jogos, ligava, curiosa por isso, lia, se interessava por tudo que fosse novo, então ela era muito moderna num sentido, era uma companhia agradabilíssima. Então imagina, eu queria aproveitar o que eu pudesse. Tem essa coisa interessante, de eu ir pra lá almoçar, não conseguir sair e ficar a tarde e estendia, às vezes, pela noite, esperando meus pais, que iriam passar lá em algum momento do dia. Eu fiz isso algumas vezes e não me arrependo nada de ter ‘curtido’ ao máximo os dois. E ele tem esse, que remete muito à personalidade também, do cuidado de dar esse espaço. Ele saía do lugar dele, pra deixar que eu ficasse, porque ele sabia que eu gostava de conversar e ela também. Depois a gente se juntava. Ou, às vezes, ele estendia uma rede no próprio quarto, deitava e ficávamos os três conversando e ela lia o jornal, dava o cochilo dela, acordava, ia se ajeitar, pra receber as filhas. Então, tem passagens bem bonitas desse meu tempo com esses avós.
(23:46) P1 – Dessas histórias e várias perguntas que você fazia pra ela, na cama, tem alguma que ficou registrada pra você?
R – Eu falei que ela ficava irritada das histórias, (risos) porque... bom, pra mim tudo era interessante. Eu perguntava principalmente sobre tudo: como ela conheceu meu avô, os primeiros anos de casada... ela casou muito jovem, com quatorze anos, ele um pouco mais velho do que ela, talvez quatro anos, se eu não me engano, então imagina, uma criança. Então, eu tinha muita curiosidade em saber como era a cabeça de uma criança casando e logo em seguida sendo mãe, então ela começava a contar e depois ela parava, chorava, porque ela dizia: “Eu não quero contar, relembrar, porque foi muito tristíssima essa minha fase da vida, porque...”, e ria falando isso. [Falava] também da dificuldade que foi, porque imagina: acho que alguém com quatorze anos tendo que lidar com um casamento. O marido, apesar de ser um pouco mais velho, também era uma criança, então meio que sendo forçados a serem adultos, na marra. E casaram por amor, mesmo. Não é porque ainda podia existir casamentos arranjados, ali. Eles casaram por amor, uma paixão avassaladora, que durou até o final, mesmo. As próprias fotos mostram isso: o carinho dos dois. Eu vou voltar também e falar quando, às vezes, eu ia à tarde, lá, pra esse café [da tarde na casa deles], eles estavam tão amorosos um com o outro, que eu deixava, eu que ia pra rede. Eles ficavam na cama e eu sei que eles, muitas vezes, dormiam de mãos dadas. Então, foi um casal que se amou muito, namorou muito também, o que é legal. Mas eu perguntava sobre isso, esse início da vida, que eu tinha muita curiosidade e aí ela contava um pouco, ia falando, até vir a emoção, ela chorava, ria e brigava comigo, (risos) que eu estava sendo curioso demais e estava ‘puxando’ pela lembrança dela e que isso era dolorido, enfim, doloroso, mas ela era essa ‘figura’ enigmática também e carismática. Então, por isso que ela ria e chorava ao mesmo tempo, porque ela sabia que ela estava escondendo algumas coisas que não eram tão tristes assim, mas que talvez fosse uma história... imagina, isso ela já tinha perto de oitenta anos, ou até já com oitenta anos. Eu estava falando de memórias de quando ela tinha quatorze. Mas eles tiveram uma história bonita disso, de casarem muito jovens, terem construído essa família, ela teve oito filhos, então eu fico pensando: você ter oito filhos, num tempo em que... e eles tinham, passaram por uma série de dificuldades na vida, de altos e baixos também, não é fácil você manter uma casa dessa forma, mas aí acho que um pouco o que minha mãe herdou e fez isso acontecer e na junção com meu pai também isso funcionou bem, era ter essa casa onde o amor era a tônica. O afeto, o amor eram a tônica da casa. Então, por mais que tenham tido várias dificuldades e isso estava expresso nessa emotividade dela, ela conseguiu construir isso, uma família que se ama, se cuida e está presente um na vida do outro, os tios se preocupam com a vida dos sobrinhos, os primos uns com os outros, cada um no seu lugar, respeitando a privacidade também, as opções de vida, enfim, mas pessoas que você pode contar, chegar junto na necessidade, nos momentos mais críticos da vida. Então, eu acho que isso foi construído por eles, nesse ambiente que foi assim. Então, eles tiveram várias fases. Negócios. Meu avô foi comerciante, depois perdeu tudo, mudou de cidade, mas sempre trabalharam, ela também. E ela, logicamente, foi essa dona de casa, pra dar conta de criar oito filhos, formar oito filhos. Então, teve isso.
(28:35) P1 – E como que era essa casa, em Campina Grande?
R – Era uma casa incrível e curiosa, porque meu pai comprou essa casa de alguém que tinha acabado de construí-la e eu sei que esse homem que construiu essa casa faleceu, não chegou a morar na casa e a família vendeu essa casa, meu pai comprou e fomos morar. Era uma casa engraçada, porque era uma casa com um projeto, uma casa curiosa, porque ela tinha – uma casa boa, grande, espaçosa – uma série de cômodos meio estranhos. A casa tinha primeiro andar, mas era feito esses cômodos que ninguém usava muito, quartos menores, cubículos. A casa tinha um terraço no último andar, na parte mais alta da casa, meio que um mirante onde você via uma parte da cidade, que era interessante, só que virou nosso playground quando criança. Como ninguém nunca viveu lá, a não ser esse tio, quando foi morar conosco, que ele dormia lá em cima, no primeiro andar, essa parte de cima virou o nosso grande playground, onde a gente brincava. Eu cheguei a morar lá já um pouquinho mais velho, quis ter um quarto só, independente. Mas era uma casa gostosa, porque era isso: casa que tinha área livre, jardim, árvores, essa tal árvore que me acompanhou na infância, depois aprendi a subir da árvore no telhado da casa. Então explorava a casa ao máximo. Uma casa acolhedora, mas curiosa nesse sentido, porque tinha esses ambientes meio ‘malucos’, que iam se formando. E morando em São Paulo, hoje eu me deparo com casas muito parecidas em arquitetura, pensando na forma arquitetônica da casa, disposição, revestimento, tipo de planta. Acho que tem uma coisa meio que datada, também. E essa casa, ‘volta e meia’ eu me lembro dela. Não à toa escolhi algumas fotografias que mostram essa casa, porque ela está muito forte na minha lembrança e das minhas irmãs também.
(30:54) P1 – E as brincadeiras de infância?
R – Várias. Disso, de aprender a subir em árvores e ficar no telhado da casa, meio que ali fazer um esconderijo. Brincávamos muito entre nós, eu e minha irmã, essa do meio, e eu também tinha alguns primos, então eu visitava a casa dos primos, que eram próximas, [e] eu poderia, inclusive, ir a pé da minha casa pra casa dos primos, ou recebê-los em casa. Então, aquelas brincadeiras tradicionais, de esconde-esconde, polícia e ladrão, brincar com seus próprios brinquedos. Eu também fui uma criança que lidou muito bem em brincar sozinho, apesar de ter isso, primos e irmã, mas nunca me senti só, nem tive solidão quando criança, nunca tive essa necessidade de estar sempre em contato com outras crianças. Eu acho que isso é um traço da minha personalidade, mesmo. Então, eu acho que criava muitos mundos paralelos ali, brincando sozinho, com brinquedo, personagens. Enfim, acho que tinha isso, e a casa ajudava. Como era uma casa espaçosa, com muita área verde também, acho que ela ajudava a você ter brincadeiras diversas ali, nesse lugar.
(32:25) P1 – E lembranças da escola, nessa primeira infância? Teve algum amigo muito marcante, algum professor, professora?
R – Como era a escola que nós todos estudávamos, minhas irmãs e eu, a diretora da escola conhecia meus pais, tinha uma relação também de proximidade, de um pouco de amizade ali. Era uma escola pequena, então não era aquela escola enorme que você é mais um na massa de alunos, ali, era uma escola menor, onde os pais eram mais presentes na vida dos filhos, mais presentes também no acompanhar das somas de educação ali. Hoje eu vejo, fazendo meio que uma retrospectiva, também era uma escola que já era um pouco mais avançada, em alguns sentidos, em alguns aspectos, em relação à educação, do que ela propunha abordar, de temas e práticas. Imagina, estou falando isso da década de setenta. Então, eu fui criança e estudei nessa escola em plena ditadura militar, eu e minhas irmãs, então eu tenho muitas imagens da gente fazendo aquele tradicional desfile de Sete de Setembro, marchando. Era de praxe as escolas fazerem isso, mas, ao mesmo tempo, eu lembro também que a escola proporcionava uma série de outras atividades culturais que eram muito interessantes. Então, lembro de fazer visitas ao Museu de Arte Moderna e Contemporânea da cidade, que não à toa era um museu fundado por Assis Chateaubriand, derivado da criação do Masp, então tinha um acervo também de arte moderna interessante ali - menos arte contemporânea, mas muito mais arte moderna. Então isso fez parte da minha primeira fase de infância, da educação. Eu lembro que a diretora da escola também era uma pessoa de muita cultura, de muito conhecimento, muita curiosidade também, então ela tinha um interesse em conhecer as culturas indígenas. Tinha o acervo, acho que na própria sala dela também, de objetos, então acho que isso aguçava nossa curiosidade como alunos, feira de Ciências, enfim. Então, era uma escola muito dinâmica em um sentido e eu tenho muita memória dessa escola, porque era meio uma extensão da casa, por ter essa conexão. Então, os pais muito presentes, minha mãe muito presente também na nossa educação. Eu lembro que ela sempre estava nas reuniões de pais, ou nos eventos também e muitas pessoas que fizeram parte dessa minha primeira infância ali, nessa escola principalmente, então eu hoje tenho uma certa convivência com pessoas dessa época, ainda. Ou seja, a gente está falando aí de cinquenta anos, praticamente, de convivência. Pessoas que fizeram parte da minha primeira... jardim de infância, alfabetização, fiquei... saí da escola entre treze e quatorze anos. Então, foi um longo tempo para conviver com essas pessoas. E várias professoras marcantes. Uma delas que até hoje ‘volta e meia’ encontra as minhas irmãs e ela era professora de Português, professora Sel e ela ensinou minhas irmãs, a mais velha, depois a mais nova e me ensinou e marcou a todos nós, porque ela era excelente como professora, cuidadosa, carinhosa, mas eu lembro também que ali ela já apontava pra algo que eu vim a saber que eu tinha afinidade, que era com isso: a escrita e a leitura. Português tinha uma coisa que eu gostava, me dava bem, então eu lembro que muito criança eu escrevi histórias, é uma pena não ter guardado isso pra depois, pra reler isso e anos depois fui ser professor, hoje sou professor e pesquisador, então acho que essa professora, temos esse carinho grande por ela, por essa figura, mas eu particularmente tenho essa memória de ali ela já ter apontado quais seriam as minhas afinidades, então, ligada a esse universo das artes, da cultura, da literatura. Foi isso.
(37:27) P1 – Na sua casa vocês ouviam música? Tem essa recordação? Ou assistia TV, algum programa marcante, algum artista marcante, algum livro?
R – Tudo isso. (risos) Muita música. Todos os dias, praticamente, se ouvia música na minha casa. E nos finais de semana, minha mãe nos acordava com música, então sábado e domingo era de praxe a gente acordar já com som na casa, que acho que era feito de propósito também. Então, por exemplo, escutar os artistas que hoje eu escuto e que aprendi a gostar, amar: Elis Regina, Gal Costa, Caetano Veloso, Rita Lee, aprendi em casa. Rita Lee, apesar de ser mais jovem, de ser outra geração - não era da geração da minha mãe, era uma geração posterior -, mas a minha memória de infância de Rita Lee - por exemplo, falando nela, que ‘partiu’ agora - era essa. Os verões, na minha casa, os veraneios já em João Pessoa, e a minha casa de Campina Grande. Então, tinha isso: a música sempre fez parte da nossa vida. Tudo que eu entendo, aprendi de gosto musical, curiosidade, tenho isso hoje, hábito de criar playlists, por exemplo, de música, pra mim e pros amigos, indicar coisas, resgatar coisas antigas que estão sendo relançadas, veio daí. Essa memória de acordar com música é muito marcante pra todos nós, eu e minhas irmãs, então a gente até... eu reproduzo isso hoje, na minha casa. Lógico, os podcasts hoje dividem atenção com a música, então eu vou fazer meu café ouvindo podcast e depois vem a música. E livros também. Meus pais tinham uma família amiga, minha mãe era muito amiga dessa família que era de livreiros. Algo também raro, em extinção hoje. Então, era uma família que foi criada à base de livro - chamada Livraria Pedrosa, em Campina Grande. José Pedrosa. Então, ele tinha essa livraria, criou os filhos com essa livraria, os filhos trabalharam com ele, então minha mãe frequentava muito a casa, desde... eram amigas de adolescência ali, essa família, e então a gente foi criado com esse contato com os livros. Hoje, eu e minhas irmãs, temos livros com a etiqueta da livraria ainda, com assinatura ou dedicatória. Então, sorte de ter tido uma casa que teve isso, proporcionou esse contato muito cedo com esses dois universos, falando só desses dois universos: literatura e música. Televisão também, sempre. Imagina, a gente está falando aqui de uma época que a televisão estava presente maciçamente nas casas. Não à toa eu não tenho televisão em casa hoje, [de] gostar. Quando eu quero acessar, eu pego o computador e vejo streaming, nos canais gravados, mas não tenho televisão. Acho que a música é mais forte pra mim do que a televisão, apesar de vir de uma geração que foi muito televisiva. Década de setenta e oitenta, eu estou falando das décadas onde a televisão estava no seu auge de produção, de programas de TV, as novelas como algo marcante na nossa cultura também. A família inteira acompanhava a novela. Não à toa eu fico hoje revendo novelas antigas, pego o canal, faço assinatura da Globoplay, vou rever uma novela, ou episódios ali, só pra resgatar um pouco dessa época. Mas, ainda assim, eu confesso que a música é mais forte. Você perguntou de artistas, acho que eu falei alguns. E literatura também, acho que era uma época também que minha mãe lia muito livro, os tios também gostavam de ler, então eles trocavam entre si livros. Acabava um livro, indicava, trocava com os irmãos, entre eles e a gente herdou isso também. Então, literatura mesmo. Menos poesia, [era] mais romance, enfim. E tem alguns deles que foram marcantes; eu lembro, tenho imagens dos livros na estante da minha casa. Tem um livro do Ariano Suassuna, O Reino da Pedra, que até hoje existe, está na minha casa lá, em João Pessoa, mas eu lembro dele na estante da minha casa. Minha mãe adorava, lia de tudo. Ou seja, já era uma mulher que estava muito ligada, bem antenada, um pouco, com o que estava sendo lançado pra geração dela e pras mulheres da sua época também, então ela lia de Simone de Beauvoir a outros autores ali, que surgiam. Então eu e minhas irmãs fomos criados com isso. Eu tinha uma irmã que adorava, na época, Vinicius de Moraes, então ela tinha todos os discos, o namorado a presenteava com os discos e livros, e eu e a minha irmã do meio, apesar de ser mais jovens, a gente ia ali meio que se enfronhando, pelo que a gente via e acessava, mas ainda bem que eu acho que não à toa minha casa também é cheia de livro. Hoje, [na minha casa, tem] mais livro do que eu pesquiso, do que eu estudo, mas a literatura me interessa muito mesmo e eu gosto de ter o livro, de folhear, de ver a capa, a arte, tudo isso.
(44:39) P1 – Você contou que por volta dos treze, quatorze anos saiu da escola. Queria saber se você mudou de cidade, pra qual escola você foi, pra qual cidade você foi.
R – Nós saímos de Campina Grande pra morar em João Pessoa, já foi uma grande mudança, então foi por volta dessa idade que nós mudamos. E isso: mudou de cidade, casa nova. Apesar de nós termos ido morar numa casa que já era nossa, então era onde passávamos os verões, a casa foi só modificada pra abrigar, agora, a família pra sempre, que era uma casa de veraneio, uma casa muito simples, muito pequena, muito rústica. Era casa de praia ‘classicona’, teve muitos anos chão de areia ali, era casa pra você usar, sem muita preocupação. E aí meu pai demoliu essa casa, fez uma casa maior, que ia nos abrigar: eu, minhas duas irmãs e meus pais. E aí foi isso: casa nova, cidade nova, escola nova. Foi um período bem de adaptação a essa nova realidade, mas mudou completamente a nossa dinâmica em relação a tudo. Eu tenho várias histórias desse período. Primeiro momento, não foi muito fácil, como criança que está numa cidade nova, que está numa escola que tinha outra característica diferente daquela minha, que era pequena, onde todo mundo se conhecia, onde eu conhecia a diretora, a vice-diretora, as secretárias, o pessoal da limpeza, tinha essa extensão de família, mesmo. O porteiro da escola, o vendedor de pipoca da escola, então, essas pessoas fazem parte da minha memória de infância, total. Então, você circulava, convivia com essas pessoas que lhe acompanharam durante décadas e você tem um ‘corte’ ali, quando você se muda de cidade e vai conhecer novas pessoas. Então fui pra uma escola muito grande, o Colégio Marista, onde existiam, sei lá, seis turmas na minha série, ou mais. Onde eu era, de fato, como eu falei, mais um aluno ali. Então, essa coisa da própria identidade. Você vai se adaptando, tentando construir você com você mesmo, com os outros. Enfim, foi difícil, acho que o primeiro ano foi bem difícil. Não à toa eu fui muito à Campina Grande nesses primeiros anos. Posso lembrar também. Eu lembro que inclusive tinha primos que estudavam na minha escola anterior e me chamavam pra, no São João, ir na festa junina. Então, eu fui muitas vezes ainda na festa junina daquela escola, que já não era mais a minha, mas sim de outros próximos, e eu lembro que eu cheguei até, se eu não me engano, [a] dançar quadrilha sem ser aluno. Sabe aquela coisa? De tão apegado que eu era à escola. Então, eu fiz algumas viagens com o colégio antigo e até fazer um mundo meu ali, mais confortável, na escola nova, demorou, então acho que se aguçou inclusive esse meu lado mais tímido, mais retraído que eu tinha, ali, nesse colégio novo. Acho que passaram-se anos até eu conseguir ter uma desenvoltura, mas que nunca foi uma desenvoltura (risos) lá essas coisas, não, porque eu nunca me engajei, por exemplo, nos esportes da escola. Eu fazia natação numa escolinha de natação vinculada ali, associada, mas que não era... eu não participei de time esportivo na escola, ‘viajei’ pouco nesse sentido, morava longe, um pouco distante do colégio. Então, como eu falei: eu morava nessa praia onde a gente tinha casa de veraneio, era uma praia que até hoje é mais habitada durante os verões. Durante o ano, já está mais habitada hoje, bem mais, nem ‘sombra’ do que foi no passado, mas é uma praia essencialmente de veraneio mesmo. Ela fica mais movimentada, mais cheia nesse período de janeiro, fevereiro. Então imagina: você mora já num lugar e não tinha muitos amigos, não tinha vizinhança e João Pessoa é uma cidade que é engraçada, ela é criada muito por núcleos ligados aos bairros, então você tinha as turmas que se formaram em sua infância, adolescência de acordo com os bairros onde elas viviam. Então, a Praia de Tambaú; a turma de Manaíra, que era outro bairro; a turma do Cabo Branco. Outro bairro também que é bem característico lá: Bairro dos Estados. Eu não tive isso, porque eu morava longe, ninguém queria ir pra minha casa, porque dava, sei lá, quinze, vinte minutos de carro, apesar disso não é nada pra uma cidade como São Paulo, mas era considerado longe. Então, teve esse período, mas aí logo depois ficamos muito entre nós, a família, ali: meus pais, minhas irmãs também. Mas é isso, aí a irmã, um pouco depois, casou, minha irmã mais velha casou, saiu da casa, ficamos só eu e a outra. Alguns anos depois, essa [outra] irmã também casou. Então, foi um período marcante por isso. Essa foi uma outra fase, onde você está um pouco abandonando ali, deixando, iniciando o processo de deixar de ser criança. Entre seus quatorze, quinze você vai já criando um outro jeito, encaminhando pra um outro formato também, de pessoa. Então, essa mudança pra João Pessoa marcou isso, essa minha mudança de fase. No começo [foi] mais difícil, depois fiquei adaptado, mas aí eu acho que também falar sobre isso hoje me faz ver como foi rica essa minha infância, de memória gostosa, afetiva. Não à toa, quando eu volto à Campina Grande hoje, que minha irmã mora lá, minha irmã mais velha mora em Campina Grande, e ela sabe desse meu lado, então ela busca ativar essa memória em mim, passar pelos lugares que eu gosto de ver, de rever, as pessoas, reencontrar pessoas do passado. Então, como é uma cidade menor, uma cidade pequena, proporciona isso, mas essa foi minha mudança de casa, cidade, escola.
(52:05) P1 – E colegial? Essa época de escolher com o que quer trabalhar, a área de estudo, como foi esse momento?
R – Mais difícil. Acho que colegial é uma fase bem emblemática, pra todo mundo, que se mistura com a adolescência, porque, no fim, o adolescente é muito problemático, de ter embates com os pais, de ser um adolescente tido como clássico, que um pouco quer se desgarrar, quer meio que não se associar aos pais. Eu não tive isso. Então, segui meio que um contínuo entre infância e adolescência e pega essa fase do colegial. Foi mais difícil me adaptar a uma escola nova, acho que foi um amadurecimento forçado, ali, [o] primeiro amadurecimento, quando você se depara com uma escola maior, com pessoas diferentes, com práticas diferentes das suas; sem falar da escola, do colégio, das matérias. Então, foi um colegial, uma fase, eu digo menos alegre nesse sentido, porque é isso: você se depara tendo que tomar decisões que você nunca tinha tomado, ou nunca aprendeu, foi ensinado a tomar ali e isso tem muito a ver também com o futuro, com o que você vai ser quando crescer, [com o que] você vai trabalhar. A gente nunca é preparado suficientemente pra isso. E acho que na minha trajetória, a gente foi menos ainda. Então não foi uma coisa planejada, [não foi] muito pensada e ligada ao que eu tenho de aptidões e afinidades, por exemplo. Eu vejo até porque a minha trajetória também profissional e de educação foi meio ‘torta’, por atalhos. Eu fui fazer Administração, me formei em Administração de Empresas. Cheguei até a fazer uma pós-graduação nisso, especialização, que não tem muito a ver comigo mesmo. Hoje, eu sou professor, virei professor de Moda e Pesquisa em Artes Visuais, então olha o salto, mas até chegar nisso - por isso que eu falo que foi de atalho - foi um caminho em ziguezague, parecia um caminho errante, mas hoje eu me vejo muito mais confortável nessa minha trajetória, no que eu decidi e escolhi fazer. Mas talvez teria sido mais fácil se eu tivesse sabido lá atrás. [Quando eu] estivesse na escola, já, ter buscado esse caminho: “Não, deixa eu ver aqui quais são as minhas habilidades, o que eu me sinto mais confortável fazendo”. Administração era o caminho mais natural. Na época, meu pai tinha negócios e então meio que… sabe esse papel de filho sucessor, que vai seguir o mesmo caminho do pai? Então, eu fiz isso sem muita vontade mesmo, sem pensar muito. Fui. Mas eu acho que como a gente não pode trair a própria natureza durante muito tempo, pelo menos, hoje eu me encontro nesse lugar. Então mesmo com esse ziguezague todo, eu acho que estou fazendo algo que me conforta mesmo, que me deixa mais à vontade, mais instigado a fazer, que é o universo que eu atuo, transito hoje. Mas era isso: do colegial pra graduação acho que a dificuldade era essa, não conseguir de jeito nenhum ali me enxergar o que eu poderia fazer. E não foi nem culpa de ninguém, nada foi imposto, mas eu sinto que tinha uma falta de preparo mesmo. Não tive, talvez, a maturidade suficiente que me levasse a ‘bater o pé’ [e] dizer: “Não, eu gosto disso, eu farei isso”. Nem sabia ainda.
(56:30) P1 – Se você puder contar pra gente um pouquinho dessa sua trajetória, assim como foi o desenrolar de começar a trabalhar, quais trabalhos você foi fazendo, como foi chegando na sua área atual, essas bifurcações, esses caminhos.
R – Como eu fiz Administração… [fiquei] muito tempo pensando nisso: meu pai trabalhava com turismo, hotelaria, em Campina Grande, João Pessoa, então meu primeiro trabalho foi com ele, aprender a trabalhar. E é ‘louco’ isso, porque você meio que trabalha sem ter uma função específica. Eu, às vezes, quis ter muito uma função específica, porque tem uma rotina, práticas ali, mas nunca aconteceu isso, então eu ficava meio que circulando. Era uma coisa meio ali muito em torno da figura dele, que era um negociador nato, tem um perfil profissional interessante nesse sentido, porque ele era, é essa ‘figura’ carismática ainda e isso transparecia nos negócios. [Em] Hotelaria [se] trabalha muito com pessoas, com serviço, então tem um lado interessante. Eu atuei em várias áreas dentro de lá, do negócio, então, mas sempre ao redor: área comercial, então eu viajava, ia pros eventos de hotelaria, ou de venda dos eventos ligados ao turismo. Então uma prática muito voltada pro comercial, pros eventos. Isso foram muitos anos, porque imagina: eu me formei, não via outro universo de possibilidade ali, até ter a chance de me mudar pro Rio de Janeiro. E a mudança pro Rio de Janeiro era muito pensando em fazer outra coisa, dar uma guinada profissional. E como era mais difícil fazer outra coisa na mesma cidade, porque não só eu fazia já aquilo, já trabalhava com ele, mas você é visto pelos outros também como essa figura, os outros lhe veem também nesse lugar, não conseguem lhe enxergar também fora dessa configuração. Então, acho que é mais difícil você, estando numa cidade [em que todos te conhecem], fazer esse trânsito, essa mudança de rumo. Então, mudar de cidade pra favorecer. Fui morar no Rio de Janeiro com vinte e poucos anos. E lá, estando no Rio, é um outro momento de vida pessoal, morar só, ou morar junto, criar novos amigos, novas amigas no Rio de Janeiro, uma outra cidade, completamente diferente do que eu vivia, de realidade. Então, muito forte pra mim esse período do Rio de Janeiro. E aí, no Rio, eu fui, poderia ter feito várias coisas profissionais ali, ou ter feito outras formações e fui fazer uma formação em Moda, à época. Também ali muito gostava, tinha essa afinidade, me interessava, mas muito ‘louco’, porque, na formação em Moda, eu fui ver que a minha afinidade maior era História da Moda, da Arte. Foi o que eu me encantei. Então, nunca fui muito bom na parte prática, técnica, nunca me identifiquei com a prática do estilismo, nesse sentido. Até fazia coisas interessantes na criação, gostava, fui atuar com figurino, criação de figurino logo depois, ou paralelo a formação, era o que eu gostava, porque exigia uma pesquisa, uma proximidade com o fazer teatral, cênico, a leitura de um texto. Então olha como as coisas vão se encaixando depois. Eu fui fazer figurino profissionalmente ali, muito no meio que eu circulava, entre amigos, pessoas próximas, que atuavam, ou dirigiam. Então, foi isso: essa formação de moda me abriu esse lugar, mas eu me via menos como um criador de moda, como designer de moda e mais como, já, pesquisador. Então, o trabalho com figurino proporcionava isso. Eu nunca fui do fazer manual, ali, as práticas manuais. Nunca tive essa habilidade. A habilidade era de pesquisar, pensar, ter ideias, conceber, projetar nesse sentido, da pesquisa. E aí voltei pra João Pessoa, depois de alguns anos, fui trabalhar também com cultura, aí já continuei trabalhando nessa área. Então fui trabalhar numa Fundação ligada ao governo do estado e eu era assessor cultural. E era uma Fundação enorme, então você tinha todas as áreas ligadas à cultura: artes cênicas, artes visuais, cinema e eu, como assessor, lidava muito com os projetos de cultura na época, fui trabalhar com uma equipe de duas mulheres que já eram assessoras há décadas lá, bem mais velhas que eu e me ensinaram muito, aprendi muito com elas, com as práticas, ali, de elaborar um projeto, de revisar um projeto, de criar propostas, ajudar a coordenar um festival de arte, por exemplo, organizar e coordenar algumas áreas de um festival, receber as pessoas, pensar na própria curadoria do festival como um todo. Isso foi muito rico pra mim. Então, a partir dali surgiu a ideia de ter a loja com minha mãe.
(01:02:39) P1 – Antes disso, tem algum projeto que você lembra, que foi bem importante pra você?
R – O projeto, acho, mais importante, era um festival nacional chamado Fenart, Festival Nacional de Arte, que chegou à sua 13ª edição, 15ª edição, não lembro, porque eu saí eu acho que entre a 10ª e 11ª, se eu não me engano. Era um festival gigantesco, super importante nacionalmente, reconhecido nacionalmente como um festival importante, de todas as linguagens artísticas. Então, era um festival, como ele tinha essa grandiosidade de abarcar todas as linguagens, no mesmo espaço você lidava com todos os setores da Fundação, nós interagíamos muito entre nós, pra conceber um festival dessa grandeza e era um festival que tinha muito apelo popular também, na cidade, era muito visitado e dos artistas que queriam muito estar lá, se apresentando e sendo um grande encontro de colegas, parceiros. Eu falo isso da música, do teatro, da dança, das artes visuais. Olha como era bem rico o festival! Pra mim foi muito marcante. E não posso esquecer também: enquanto assessor de cultura dessa Fundação, eu fui convidado pra fazer parte de um corpo curatorial ligado ao artesanato do estado. Então, eu era curador, junto com um grupo de outros acho que seis ou sete profissionais, cada um vinculado a uma instituição, representando uma instituição do estado, sendo curadores de um programa de artesanato. Esse, pra mim, foi o meu primeiro contato com a curadoria. Então, a gente fazia o levantamento, mapeamento de todos os artesãos do estado, recebíamos os artesãos na curadoria, ou fazíamos visitas in loco às cidades do estado, então fui muitas vezes, junto com outro colega, ou uma colega, pra uma cidade do interior da Paraíba, conhecer uma artesã que morava numa casa, em cima de uma pedra, longe de tudo, e fazia uns santos de madeira maravilhosos, incríveis e que ela aprendeu por conta própria. Então, existia isso: a gente podia tanto ter esse contato com os artesãos lá na curadoria, na casa, no espaço físico onde a gente trabalhava, como o que eu achava mais legal, era viajar, a gente ir até eles. Essas foram experiências marcantes pra mim, nesse período. Então, eu era assessor cultural da Fundação, mas também era curador do artesanato, junto a esse grupo de pessoas, que eram todos mais velhos do que eu, homens já todos, na sua maioria, aposentados, então eram professores da universidade federal, outros da universidade estadual, todos ativos, mas com muita ‘bagagem’, muita experiência. E eu aprendi muito nesse período, com eles.
(01:06:02) P1 – E aí, depois, foi montar uma loja.
R – Aí tudo junto. Aí apareceu, surgiu essa oportunidade da minha mãe ter uma loja. Foi isso, [e] eu fui como coadjuvante. Ela queria ter uma loja. Tinha, inclusive, uma loja já pronta, de uma tia que estava se desfazendo, queria passar a loja, aí ela teve muita vontade de ter outra atividade - a loja tinha a ver com a história de vida dela e do meu pai - e eu: “Tá, eu dou uma ajuda, vou dar um suporte aqui” e fui, mas não tinha como só dar suporte, era uma atividade que demandava muita atenção, uma prática ali de você viajar, vir pra São Paulo. Eu vim muito à São Paulo, por exemplo, fazer as compras, conhecer os shows-rooms, fazer pesquisa de prospecção de marca, pensar em uma coleção, na venda, na montagem do espaço físico, no layout da loja. Enfim, ‘entrei de cabeça’ nisso. Saí da Fundação, de tudo e fiquei na loja com ela. A loja ficou... depois ela já nem viajava mais comigo pra cá, eu vinha sozinho, ela ficava na loja e eu fazia essa parte, que é cansativa, você passar uma semana São Paulo, Rio, ou até às vezes nas duas cidades, fazendo isso, as compras, ou pesquisa, enfim. Enquanto na loja... tem tudo a ver: eu era formado em moda, tinha uma loja de roupa e acessórios, fui chamado pra dar uma aula. Uma amiga minha, de muitos anos, estava coordenando, foi chamada pra coordenar um curso técnico de moda na cidade, o primeiro.
(01:07:53) P1 – Onde?
R – Em João Pessoa. E isso era uma Fundação de educação, na época chamava Funetec, que era nos moldes de uma escola técnica federal, mas muito vinculada a essa Fundação, então era interessante, porque era um perfil de aluno diferente de um aluno de universidade, ou faculdade e de um curso livre. Era um curso de formação técnica, era quase profissionalizante mesmo, então eram pessoas muito interessadas em aprender seu ofício. E ela coordenou, montou esse curso e foi chamando pessoas que tinham a ver com moda, que tinham formação em moda. Primeiramente não tinha muita gente com a formação na área. Eu era um dos amigos dela que ela sabia que tinha tido essa formação, então ela me ‘catou’: “Vamos lá” e eu fui dar aula. A minha primeira disciplina foi ligada à cultura, aprendendo ali e foi uma experiência muito rica. Eu dei aula acho que a partir de 2006, até 2010, e enquanto isso foi criado o curso superior de moda na cidade, no estado... na universidade. Uma outra colega, que eu indiquei pra dar aula nessa Fundação e no futuro, depois, foi chamada pra ser coordenadora do curso superior e aí fez o caminho inverso: “Vou levar vocês todos pra lá, comigo” e fomos todos, esse grupo primeiro da Fundação foi todo pra lá, pra esse centro universitário, que era uma instituição privada de ensino muito antiga, muito tradicional, nos moldes do que é a PUC hoje, em São Paulo, a PUC Rio, uma instituição formada por padres e que tinha uma presença, importância na cidade, no estado, muito grande, assim como um centro de formação, de educação e teve a ousadia de criar esse curso de moda, que não era muito a cara da instituição. A universidade, a faculdade era muito voltada pra Direito, Administração, pra outros cursos assim. Não tinha área de Saúde, na época. Tinha Psicologia, que era um bom curso, então o curso de moda foi meio ‘divisor de águas’, um curso meio inovador, disruptivo, com esse corpo docente jovem, de pessoas que atuavam na área, aliando teoria e prática. Um curso que foi desenhado pensando nas potencialidades regionais, muito bem elaborado como projeto acadêmico. Então, fiquei lá sendo professor e dono de loja, até que a universidade me chamou mais, eu cheguei em um ponto que eu tinha que escolher uma coisa ou outra e aí, quando a universidade me chamou mais eu fui me dedicando, podendo me dedicar mais e também ganhando mais disciplinas, a prática docente: orientar trabalho de conclusão, pegar uma disciplina, pensar no projeto de pesquisa, de extensão, ajudar a organizar um evento acadêmico, então eu me encontrei nesse lugar como professor, de fato. Pensar numa pós-graduação, uma outra pós-graduação, foi quando eu fui pensar no meu mestrado, alguns anos depois e aí foi em artes visuais, eu já tinha essa afinidade com história da arte, da moda, então eu queria fazer História da Arte, ou o universo das artes visuais, mas pensando já em curadoria, que foi algo que eu me encantei profissionalmente também, então foi daí e é importante falar também que daí, nesse meio tempo ali, nesse intervalo, foi quando minha mãe faleceu e aí eu fiquei só na loja e, mesmo tendo continuado ali sem ela acho que por uns dois anos, ou um pouco menos, ia perder um pouco a graça sem ela ali. Por mais que eu tenha ‘tomado as rédeas’, ficado à frente da loja muito mais, mas ela era a ‘figura’, a razão de ter havido aquilo tudo. Então, foi dolorido, doloroso partir, sair da loja, mas o sonho era dela, de fato, nunca foi meu. Mas eu gostei muito do que fiz ali: fiz amizades incríveis, me vi comerciante, vendedor. Nunca imaginei que eu fosse um bom vendedor e era, as pessoas falavam de mim. Hoje eu encontro pessoas que têm coisas da loja ainda. A loja fechou em 2008 e as pessoas falam: “Alê, eu guardo coisa da sua loja e estão novas como quando eu comprei”. Eu fiz amizade com os donos das marcas aqui em São Paulo, na sua grande maioria, se transformaram em amigos, muitos deles, pessoas que hoje eu convivo também, deixaram de ser parceiros profissionais e viraram amigos. Então, foi uma época muito feliz até essa loja, mas aí eu me vi professor e amando ser professor, conviver com alunos agora, ajudar na formação das pessoas, tendo contato com gente muito jovem, no início da vida ali, em seus dezoito anos, pensando o que fazer, vendo moda como um caminho a seguir, profissional; outros que já estavam rompendo barreiras, porque ou já estavam estudando outra coisa, ou eram formados em outro curso e queriam ir pra moda. Então, imagina isso: você convencer a família que quer abandonar Direito, ou Medicina, pra fazer moda. Então, a gente, como professor, tinha esse papel também ali: ajudar nessa conformação de rumo, de futuro, de convencimento que era uma área viável, sim, as pessoas poderiam ter um futuro profissional, pessoal, estudando, fazendo moda. Não sei se eu esqueci de falar uma coisa desse período, mas acho que bom, posso falar mais horas aqui sobre isso: o meu encantamento de ser professor.
(01:14:34) P1 – Eu queria, antes do encantamento de ser professor, o que te encantou e o que te fez escolher, buscar moda, se formar em moda. Isso no Rio ainda. O que te fez ir atrás? Teve algo?
R – Então, acho que não teve nada muito forte, no sentido de me ‘puxar’ pra moda, mas pro universo da criação, pensando aqui, das artes como um todo. Como eu estava querendo mudar de área radicalmente eu poderia ter feito até artes cênicas, porque meu universo, muito, era próximo, meu companheiro, à época, meus amigos eram todos das artes cênicas ali, na sua grande maioria. Então, eu poderia ter feito isso, mas não queria parecer que eu estava seguindo o mesmo caminho de outros. Pensando aqui também, lá atrás, eu poderia ter feito artes visuais, mas não conhecia ninguém da área ali, até então, não sabia muito bem e uma das minhas grandes amigas, com quem, inclusive, eu morei no Rio e é uma das pessoas muito marcantes desse período meu, no Rio de Janeiro, que me apontou: “Por que você não faz moda? Você tem um apuro interessante, estético, você se interessa por isso” e eu meio que estava lá no Rio, não estava com essa pressão enorme pra fazer essa transição, então eu estava com tempo, ainda me via jovem, podendo ‘quebrar a cabeça’ e fui fazer moda. Se eu tivesse dado mais um pouquinho de tempo talvez eu tivesse ido já pras artes visuais direto, mas parecia um universo muito distante de mim e fui pra moda e foi ótima essa formação, fui pro Senai Cetiqt no Rio, que é uma excelente escola no Rio de Janeiro, mas era uma formação técnica em moda, não era nem um curso superior. Já tinha o curso superior, era formado, tinha uma pós-graduação, então eu fui fazer. Pra mim, um curso técnico estava ‘de boa’, ok e foi ótimo, porque foi isso: foi uma coisa até lúdica, parece que estava voltando pra época de colégio, experimentando coisas e tendo contato com áreas que eu nunca imaginei que fosse ter, de desenho, aprender desenho, a fazer montagem de trabalho gráfico com as mãos, tudo manual. Nem usava as ferramentas digitais ali, nessa época. E aí tem uma coisa muito forte nesse período, que me faz ver que eu faço o que faço. Eu tinha esse professor de História da Arte, que era um senhor já, próximo de se aposentar e era a ‘figura’ mais icônica do curso inteiro, estava lá desde o início, era conhecedor nato da história da indumentária, então ele dava aula, me lembro dele falando assim, dos detalhes, das imagens, da vestimenta e tal e dos períodos artísticos também, vinculados a isso e eu me encantei com essa matéria e, como eu falei, eu não era muito bom em trabalhos manuais. Eu me lembro que eu falei pra vocês, aqui. E aí ele começava a passar uns trabalhos criativos, inspirados nas épocas históricas ali e não era nunca assim: “Pesquise sobre tal período e faça um texto, um artigo”. Não. Era assim: “Crie um convite pra uma exposição, ou pra um desfile de uma coleção tal, com essa temática. Crie uma capa de agenda inspirado no período egípcio, por exemplo, e tal”. Eu me desesperei, porque eu falei: “Bom, eu não sei nada, não tenho habilidades manuais pra fazer isso” e a gente não usava as ferramentas digitais ali, como a gente usa hoje, eu nem tinha também essa formação e comecei a observar o que as pessoas faziam, quem melhor fazia na sala, da turma e era uma colega minha da escola, que era arquiteta, tinha vindo da arquitetura e ela tinha uma perfeição, um apuro com os trabalhos dela e aí eu pedi ajuda, falei: “Eu quero aprender a fazer tão bem quanto você” e ela, de fato, me ensinou. E eu lembro que o primeiro trabalho que eu fiz foi isso, era uma capa de agenda e ela me ensinou como pegar um papel, escolher, cortar, colar e eu fiz essa capa inspirada no Egito, tirei uma nota boa, aí ele já me percebeu, me notou. Até então eu era mais um ali, não tinha grandes saltos criativos, mas eu me apaixonei pelos trabalhos, pelo que ele propunha e foi isso. Aí eu lembro que ele fez um dos trabalhos, entre os inúmeros que eu fiz, meio que um concurso entre a sala, de melhor trabalho e era o trabalho de criar uma fantasia de carnaval. Rio de Janeiro, essa cultura de escola de samba e eu fui fazer esse trabalho. Eu: “Caramba, o que eu vou fazer? Não sei desenhar”. Tinha pessoas que vinham da escola de samba, já, na turma, com aqueles desenhos maravilhosos, croquis e eu: “Nunca vou fazer isso. Bom, vou saber o que eu sei fazer bem: vou pesquisar”. E fui pesquisar, fui ‘beber’ na mitologia, peguei um mito da mitologia ali, das fiandeiras, as mulheres que fiavam, teciam, fiz uma analogia com o nordeste, criei uma fantasia de baiana, do carnaval, inspirado nisso, na mulher fiandeira, rendeira. Fiz um desenho, que pra mim é tosco, do jeito que eu sabia fazer, mas o trabalho estava muito bem escrito, porque eu fiz uma defesa do trabalho, que nem todo mundo fazia, meio quase um memorial descritivo, explicando o conceito do trabalho. E ele amou esse trabalho e meu deu prêmio, eu fui premiado, ganhei o melhor trabalho da sala. Então, (risos) depois disso eu falei: “Bom, isso é o que eu vou fazer agora: vou pensar na criação por outro lugar. Se eu não domino a ferramenta, a prática, o desenho, eu vou na pesquisa, lá atrás e vou saber descrever sobre isso também”. E não eram trabalhos feios, não, eram bonitos, mas que tinham essa manualidade, então eu fazia muita colagem, eu buscava isso: colagem com papéis diversos, texturas, forma e a escrita. Então, tem tudo a ver com o que eu penso hoje em atuar: curadoria, com exposição, montagem curatorial, concepção de uma exposição, lidar com artistas diversos, distintos, criar um elo, vínculo entre artistas tão diferentes assim, pensar num tema de uma exposição. Acho que a gênese disso aí está lá, nesse momento que eu tive, de iluminação mesmo: “Nossa, encontrei algo que me sinto bem fazendo!” e reconhecido também, acho que é muito esse lugar, alguém reconhecer em você uma habilidade.
(01:22:43) P1 – Você, hoje, como professor, acha que ‘carrega’ um pouco desse seu professor, nessa possibilidade de...
R – Muito. Completamente. Ele era uma ‘figura’ muito engraçada também, curiosa, até a aparência dele, parecia um professor da moda antiga, um mestre: barba grande, que pegava naquela barba assim, sério. Uma aula que muita gente achava monótona, porque ele era muito detalhista. Bom, no futuro outros alunos acharam minha aula monótona, fui dar aula de História da Arte da Moda e Cultura de Moda, teórica pra caramba. Eu tenho alunos que encontro hoje, que virei amigo e as pessoas: “Alexandre, dava sono, mas era muito boa sua aula, muito interessante, mas eu não atentava pra quão importante isso seria pra mim” e outros que amavam e foram fazer seus trabalhos finais inspirados nas aulas, escolheram fazer seus trabalhos de conclusão inspirados no que eu ensinei, mas isso é parte da educação, você vai encontrar pessoas diversas, com afinidades diversas. Eu acho que o ‘barato’ de ser professor é isso: você poder ter essa sabedoria, mesmo, ali, emocional, de lidar com pessoas tão diferentes, distintas e cada uma com a sua potencialidade. Então, eu virei amigo. Era um professor, acho que nesse sentido nunca fui um professor... eu era sério com certa medida, com o que eu me propunha a fazer. Eu era muito coerente com o que eu planejava fazer e amava o que eu estava fazendo, então eu mantinha uma seriedade que as pessoas enxergassem isso, os colegas e os alunos também, mas nunca fui aquele professor chato, apesar que tinha uma fama que as minhas provas eram muito difíceis, que eu era... mas não era. Talvez fossem difíceis pra quem não conseguia ficar acordado. (risos) É um desafio você ensinar arte e lá atrás eu também fui crescendo e aprendendo como professor. Eu acho que as minhas primeiras aulas como professor de História da Arte eram aulas que eu tinha aprendido também. Então, eu era muito guiado pelo que me foi ensinado e seguindo uma corrente muito padronizada de História da Arte. Ao longo do tempo eu fui me desvencilhando disso e propondo coisas novas, outros olhares, pra uma arte que não fosse tão hegemônica, tão euro centrada, que a gente falasse sobre arte brasileira, que a gente trouxesse artistas brasileiros e brasileiras que não estavam nos livros, de falar mesmo de arte do mundo, mas trazer obras que não estavam nos livros também e porque não estavam, driblar a censura que a educação faz, que o ensino faz também, porque escolhe umas coisas e não outras. Então, sempre que eu podia trazer o que não estava escolhido oficialmente, pelo ensino, eu trazia, levava. Então, isso, pra mim, é aprendizado. Talvez mais pra mim do que pros meus alunos. Então, por isso que eu acho incrível ser professor, porque você nunca está pronto, nunca sabe tudo, mesmo. Às vezes é até clichê essa palavra, frase: “Você nunca sabe tudo”, mas professor você está o tempo inteiro em contato e também em embate com o seu próprio conhecimento, porque o que você fala hoje talvez não seja interessante e viável daqui a dez anos. E não é que você vai abandonar, mas você vai ter que revisitar o que você fez, falou, escreveu. Eu acho que é uma prática obrigatória pra quem lida com conhecimento. Então, hoje eu sou bem melhor professor do que eu fui há dez anos, com certeza, mas eu tinha isso: como eu gostava dessa área, eu queria que meus alunos amassem o que eu estava lendo, coisas que eu: “Nossa, como eu passava isso pra aluno de graduação, primeiro ano em Cultura de Moda, passar um texto desse, que era antropologia pura”. Nem eu sabia muito bem ali, (risos) mas eu queria que saíssem alunos de moda e que a moda não fosse só o que a moda se apresenta pra gente: só a imagem pela imagem, sem o contexto que ela carrega, ou sem a leitura da imagem, ou sem você fazer a crítica necessária pra época, pros estilos, pros criadores, enfim. Eu queria proporcionar uma visão crítica, de fato, e isso tinha que vir e o ensino que eu propunha ali era também um pouco intuitivo, não era uma coisa... eu não queria proporcionar um ensino enrijecido, ‘engessado’. Eu queria que alguém se encantasse, como eu me encantei lá no passado. E, lógico, você nunca consegue isso 100%. É ilusão. Mas quando eu consegui isso com um grupo de alunos, dois, três pra mim já era maravilhoso, estava feliz.
(01:28:27) P1 - Plantar a semente.
R - Plantar a semente. As outras pessoas, às vezes, não tinham contato na época, mas iam ter depois, iam lembrar daquilo que eu falei. Mas continuo sendo isso. Eu dou aula hoje na pós-graduação, alunos com outro perfil, porque já estão no mercado de trabalho, são profissionais, mas é o mesmo encantamento que eu tinha lá, com esse outro professor e sala de aula não adianta: você planeja, programa, faz plano, ela acontece no momento, na hora, é no ‘calor’ da hora. Por isso que às vezes tem turmas que são ótimas, que geram afinidade, discussão e turmas que seguem silenciosas. Às vezes o embate demora um pouquinho a coisa engrenar, porque é isso: está falando de gente, são pessoas em convivência, em contato. Eu adoro ensinar por isso, porque sempre é uma surpresa o encontro com uma turma, mas nunca é ruim, nunca é pouco.
(01:29:37) P1 – Pensando na peça de roupa, no casaco, pensei que o Rio foi um momento de reencontrar com essa peça. Não sei muito bem. Se você puder contar pra gente.
R – O Rio... vou pensar aqui, um pouco, só... não, o reencontro foi aqui em São Paulo, mas ela foi comigo pro Rio.
(01:29:59) P1 – Ela foi com você?
R – Foi.
(01:30:01) P1 – Tá. Então, conta essa história pra gente.
R – Ela foi comigo pro Rio. Como essa peça, que é esse casaco do meu pai, que eu brincava criança - depois a gente pode ir lá, eu vou buscar o casaco –; porque é isso, as coisas da infância, algumas marcam muito forte: um lugar, um cheiro, essa casa que era lúdica por si só e eu lembro de abrir o guarda-roupa dele e ter esse casaco que, pra mim, batia nos pés, eu arrastava ali e eu brincava. Entre as brincadeiras que eu falei pra você, era, sei lá: detetive, polícia e ladrão, às vezes sozinho, às vezes nem tinha um companheiro, ou companheira ali, brincando, mas eu colocava aquilo, já ‘encarnava’ essa ‘figura’ e a gente, criança, nessa época... hoje já não é considerado bom você brincar com arma de brinquedo, mas ali, tudo que a gente tinha de brincadeira era isso. Os meninos ganhavam logo um revólver de brinquedo, era cowboy, faroeste, policial, detetive, os filmes acho que estimulavam isso. Então, eu tinha um desses que eu brincava. Devia ter visto um filme, ou uma série que mostrava esse ‘cara’ assim, então eu ‘botava’ no bolso um revólver de brinquedo, pegava uma pasta velha do meu pai, que já não usava, enchia de papel e virava o detetive. Muito engraçado isso, quando eu penso. E era a minha brincadeira com esse casaco. Quando eu fui morar no Rio, esse casaco ele já nem usava mais, já era peça de figurino, e eu como atuava no figurino, vou levar pro Rio de Janeiro, vou usar em algum momento, de alguma forma. Nunca usei de fato e aí esse casaco ficou no Rio, eu me mudei pra João Pessoa, naquelas coisas de mudança volumosas eu lembro que fui de carro do Rio pra João Pessoa, nem tudo coube, então as coisas ficaram no Rio, com os amigos, ali, pra resgatar no futuro e nessa coisa de mudança, quando você perde meio o controle onde as coisas estão, eu perdi o casaco de vista e só fui, de fato, me dar conta dele quando estava em São Paulo, visitando uma amiga aqui, que morava aqui em São Paulo. Fui visitá-la na casa dela, quando chego lá no quarto tem uma ‘arara’ com várias roupas, porque ela tem uma amiga figurinista e nessas roupas estava o meu casaco e eu falo: “Esse casaco é meu”, “Como assim?”. E ela me chamava de Xande: “Xande, é seu?”. Eu falei: “É”, “Está aí. Esse casaco está com a Dani, que é figurinista, ela usou, está usando, mas está aí, leva, ou depois pega esse casaco”. Eu estava ali visitando, tomando um café, não ia levar esse casaco pesado assim, deixei. No que eu deixei perdi de vista mais uma vez o casaco, porque essa amiga, a vida dela também, várias mudanças: saiu de São Paulo, casou, separou, foi morar no Rio, saiu do Rio, voltou pra João Pessoa, a vida... ciranda, reviravoltas e eu perguntava a ela e ela ria, pensando nesse casaco: “Xande, como tu quer saber desse casaco que eu vi há cinco anos?”. Imagina, isso já tinha se passado talvez uns dez anos e eu sentia muito, que eu lembrava dele e lembrava que eu tive contato de novo, tão perto e não resgatei. Então, era uma falta, que eu lembrava, ‘volta e meia’, desse casaco, porque estava na memória de infância, ora, vindo morar aqui em São Paulo, como eu falei: a casa, o bairro me lembra as casas da minha infância, essa casa da minha infância, então está tudo conectado. E eis que um dia, como eu gosto de roupa, de brechó, tal, comprar coisa em brechó também, comecei a ver o perfil de uma loja que eu sigo, frequento, um desses brechós que vendem também on-line, quando eu comecei a ver: “Vou ver aqui se tem um casaco”, ia chegar o inverno. Quando eu rolo, assim, vejo um casaco muito parecido com esse e aí eu amplio a foto, vejo que ele tem o mesmo padrão, falei: “Não, não pode ser. Aí é muita ‘viagem’”, porque ele tem um corte específico, um tamanho, um tecido, uma lã que tem uma trama, tem um desenho. Eu falei: “Bom, só tem um jeito de saber se é esse: é se eu conseguisse ver o forro”, porque o forro está na minha imagem, estampado, marrom com laranja, desse jeito e quando eu vou passando as imagens tem uma foto do casaco aberto e é esse forro. Eu falei: “Bom, é meu casaco, (risos) o casaco do meu pai” e aí, num impulso, eu compro o casaco. Porque eu falei: “Bom, meu medo agora é perder, deixar”. Nem era caro. “Eu vou comprar, pra garantir”. O casaco ficou lá uns dois, três dias, depois eu fui pegar e quando eu pego o casaco, que eu vi, era ele. A etiqueta da loja do casaco eu lembrava, criança, assim. O forro, tudo. E aí trago pra casa, feliz, falei: “Bom, talvez eu nunca use esse casaco, mas ele está aqui”. Ele fica ali no meu guarda-roupa, na minha ‘arara’ e conta essa história toda, a minha história e conta uma trajetória que o casaco fez sozinho, vida própria. (risos) O Casaco de Marx. Ele foi ‘simbora’ e voltou. E aí eu mandei pras minhas irmãs, elas riam, tal, meu pai: “Era meu? Eu não lembrava desse casaco”. Porque é isso: a importância que ele tem pra mim é diferente pras minhas irmãs e pro meu pai. Ele que usou o casaco já perdeu, não tinha mais esse vínculo, esse apego, talvez ele nem lembrasse. E eu ‘louco’, fui ver a etiqueta, pesquisar a loja que estava lá, essa loja já não existe, mas que foi muito famosa em São Paulo, então já imaginei, fui fazer uma especulação, meio que um exercício de cultura material, entender de onde vem os objetos. Ele deve ter vindo à São Paulo no inverno, precisou comprar um casaco, foi nessa loja, que era meio que uma multimarcas, uma loja de departamento pequena, não sei nem se era só masculina, comprou esse casaco na década de setenta e por isso que eu vi esse casaco, brinquei e está aí ele, comigo. Se brincar até ele cabe em mim, mas a gente pode fazer esse teste. (risos)
(01:36:59) P1 – Oba! Mas então esse reencontro com o casaco, aqui em São Paulo, antes de você ter de volta, você voltou a lembrar dele, você lembrou da existência e voltou a pensar nele?
R – Não é que eu voltei a lembrar, ele vinha na minha mente em alguns momentos esporádicos e em intervalos absolutamente enormes. Eu podia lembrar e só lembrar dele daqui um ano, por exemplo, eu nem sei [se vou] precisar agora, mas ele estava aqui, no meu inconsciente, esse casaco, não sei por quê. Bom, essa amiga tenho contato, a gente se encontra de tempos em tempos, tem essa coisa da casa, da memória da infância, então eu acho que está tudo conectado, interligado. Sempre que eu via essa amiga, ele voltava pra minha cabeça e é porque eu não encontrava essa amiga figurinista. A encontrei várias vezes, já, depois e nunca contei a ela essa história. Então, provavelmente ela deve ter vendido esse casaco, ter deixado lá, junto com seu acervo de figurino, porque isso acontece muito com quem é figurinista: você vai criando acervo, vai crescendo, tomando uma proporção enorme e às vezes tem que se desfazer. Você doa, empresta, aluga, ou vende. Eu tenho várias amigas e amigos figurinistas que fazem isso, porque não encontram, às vezes não têm onde guardar, um espaço físico que abrigue de forma suficiente esse acervo que vai crescendo, sem você sentir também e talvez tenha sido isso: ela deixou lá em consignação, ou vendeu direto pra o brechó. De fato, é que é ‘louco’ ter tido esse encontro. E contei essa história quando eu fui comprar. A vendedora do brechó ficou ‘louca’, contou ao dono do brechó, ele ficou impressionado com isso, nunca tinha havido uma história dessa. Parece história de ‘maluco’, ficção, mas foi real.
(01:39:16) P1 – Os encontros, reencontros e desencontros da vida.
R – Pois é. E nunca é uma peça de roupa, só. Eu sempre falava isso. Bom, isso está na minha vontade de ser professor de moda, era isso: pensar moda como algo que está muito vinculado com história de vida, com aspectos da cultura também. Você pode ‘passear’, falar sobre arte, economia, pela moda também, ali. Sei lá, eu vejo hoje, você pega os perfis das pessoas, você vê algo acontecendo, é muito comum você vincular isso à aparência das pessoas. Você fala hoje sobre a Primeira-Dama, você vê o que ela veste, isso interessa às pessoas, as pessoas comentam sobre isso, perdem tempo escrevendo, detalhando a roupa da Primeira-Dama, querendo criar um vínculo ali com o momento, o sentido, o motivo de ter usado tal coisa e eu falo isso pensando nela, pensando na coroação do rei da Inglaterra. As pessoas, com toda crítica que se faz a esse momento, ao símbolo de uma monarquia, a realeza ali, mas todo mundo comentou, viu, abriu, se deparou com a imagem, passou no seu Instagram ali, as imagens, vendo o que vestiram pra aquela ocasião. E o que cada um vestiu também, de fato... nunca é gratuito o que você coloca no seu corpo, ali, seja cor, forma, o que você coloca de um adorno, o que simboliza aquilo e aí, pensando na minha história, que é muito (risos) banal, eu nunca pensei que essa história fosse também gerar interesse, porque eu acho uma história tão pessoal, tão banal, tão corriqueira, algo tão meu, mas um casaco nunca é só um casaco. Quando eu o pego de volta ele me leva pra minha infância, nesse meu contexto: criança, nessa casa, com essas pessoas, com tudo que a gente falou também, aqui. Com essa criação, com essa forma de afeto. Imagina, eu poderia ter tido um pai que não me deixasse brincar com as coisas dele. Fosse cauteloso, cuidadoso e apegado aos seus pertences ali, e não, eu tirava do guarda-roupa e brincava. Nem sei se era eu que tirava, ou pedia pra alguém, porque eu era tão pequeno. E é isso. De fato, eu acho que já que a gente está falando sobre isso, inclusive a entrevista tem um sentido de ser de roupas, de peças de roupas que trazem memória, essa é uma dessas. E sem falar da coisa do outro lado da moda: ela fala de uma época, de uma década, que não é minha, só. Ela fala de uma década específica no tempo, de um estilo que os homens se vestiam, que é interessante também você fazer um paralelo: o que os homens usavam nos anos setenta e usam hoje, por que deixaram de usar, porque a moda se transformou, por que o homem deixou de ser tão criativo, como ele era nos anos sessenta e setenta, pra hoje, por que eles foram criando um padrão ali, de vestimenta, de se exibir, quando já foi tão mais criativo mesmo, foi mais inovador, menos enquadrado em categorias de masculinidade, ou mais ou menos masculinidade. Enfim, essa coisa dos papéis, mesmo, das pessoas, que o tempo vai mostrando pra gente que eles vão modificando, mudando. É isso.
(01:43:17) P1 – Você consegue descrever pra gente como foi a sensação, o que você sentiu quando você foi buscá-lo? “Agora é meu, voltou a ser meu”.
R – Eu queria comprar na hora, mas a vontade de tê-lo era tão grande, tão forte, que eu não vou nem arriscar ter o tempo de ir até a loja e chegar lá e já estar vendido, então eu vou comprar on-line. Comprei, fiz a compra on-line, já estava reservado, estava lá, não tinha pressa pra ir buscar, mas eu acho que fui no segundo dia, talvez. E era isso, porque parecia que eu estava entrando na loja, a loja já é um brechó, uma ‘cápsula do tempo’ ali, peças de várias épocas, várias décadas, tem o seu charme um espaço como esse, então eu entrei nessa ‘cápsula do tempo’ já com o meu tempo também embutido e aí parecia que eu estava voltando lá, quando criança. O fato de ter pegado o casaco da ‘arara’... nem estava na ‘arara’... estava na ‘arara’, ou estava reservado, eu não lembro agora, talvez estivesse lá em cima, onde eles guardam, num depósito, mas o fato de pegar esse casaco na mão foi a sensação que eu tive quando eu era criança, também. Por que eu o escolhi e não outro, quando criança? Por que não foi um da minha mãe? Porque podia ser roupa da mãe, que me encantava também. A gente, quando é criança, não tem muito esse filtro do que pode ou não usar. Eu ‘botei’ roupa das minhas irmãs, talvez, ali, mas era esse casaco que marcou, então pegá-lo de volta anos depois, quarenta e tantos anos depois, era voltar essa sensação. E nem pude vesti-lo, na época, porque ele não cabia em mim mesmo. Eu acho que agora eu perdi mais peso, ele deve estar mais conformado assim, nesse corpo. Mas talvez eu tenha um corpo hoje que meu pai tinha nos anos setenta. Nas imagens eu fico vendo, revendo as fotos e talvez meu corpo se pareça um pouco com o corpo dele, tirando as devidas (risos) proporções, mas um pouco talvez pareça com o corpo que ele tinha. Então, por isso que eu acho que o casaco hoje cabe.
(01:45:36) P1 – Você só chegou a usá-lo na infância?
R – Na infância. E aí vesti recente, pra ver como ele ficava, mas usar foi isso. Mas ele é muito possível de usar hoje. Ele é um casaco de época, que você olha, ele poderia ser datado, mas como a gente usa, a moda não tem muito isso, você usa as coisas que remetem a uma época, ou que são, de fato, antigas, ele está aí pra ser usado mesmo. Estou ‘louco’ que comece o invernão. (risos)
(01:46:07) P1 – Mas você não pensa em se desvencilhar dele, em algum momento?
R – Por enquanto não, acho que estou ‘curtindo’ essa coisa do prazer do reencontro, porque se ele apareceu, eu fico pensando, sem nenhum misticismo, mas esse casaco rodou tanto, ‘andou’ tanto e voltou pra minha mão, tem algo aí, de ser. Então, por enquanto ele está comigo. Pode ser que no futuro eu me desfaça, ou doe pra alguma instituição, pra alguma coisa, pra uma causa maior, ou até pra que ele tenha uma sobrevida também, porque é isso: as coisas são usadas e como você acondiciona, preserva, você se muda, onde você coloca, tudo vai desgastando, ao longo do tempo, então pode ser que ele tenha esse destino, vá pra alguém pra pesquisar, por exemplo. Eu tenho amigos que tem brechós, que fazem venda, mas tenho amigos também que têm lugares de memórias, acervos de roupas e que não é pra venda, mas pela preservação, mesmo. Então, eu tenho uma amiga que teve brechó durante muitos anos aqui em São Paulo e hoje ela tem um acervo riquíssimo, ela já alugou peças, mas hoje é um espaço de preservação de memória de várias épocas, vários formatos. Constantemente ela recicla, renova esse acervo. Então, se ele não pudesse estar comigo, eu pensaria num lugar como esse. Eu não o venderia mais, de fato e nem veria ninguém usando, mas eu deixaria num lugar que pudesse ser visto por pessoas que quisessem estudar, pesquisar sobre a época, sobre um tempo, porque é isso que a gente falou: moda, indumentária, roupa, construção do casaco, o que o homem usava, o que a loja vendia. Olha quantas coisas conectadas numa peça de roupa só! Num tempo de uma São Paulo que já não é mais a mesma.
(01:48:29) P1 – Quando você abre o armário [em] um dia qualquer na vida e se depara com esse casaco, como que é, qual a sensação?
R – No meu caso, eu nem abro o armário, porque o meu armário já é aberto. Como é uma ‘arara’, (risos) eu estou em contato com tudo que tenho, que visto, mas eu escolhi colocá-lo não entre as roupas, eu o coloquei de frente, então ele é meio que uma peça, quase como se eu estivesse colocando um quadro na parede, uma tela. Esse casaco está pendurado de um jeito que eu o vejo como isso: uma fotografia. Então, pra mim, ela é a foto desse tempo e aí me dá muito conforto, não sendo mais essa criança lá e não vivendo mais nessa cidade, nessa casa, que já nem existe fisicamente, esse casaco me mostra que é possível ter... é um instantâneo daquele momento, com tudo que ele tem de bom e de ruim eu digo, porque é saudade, é muita memória, muita lembrança, mas que a gente tem, que é inevitável você ter isso. Acho que é parte da gente enquanto ser humano. Se eu estou aqui com você e escuto uma música que me vem de surpresa, essa música pode me levar pra lugares absolutamente ‘adormecidos’ ali, ou que eu não queria acessar. Ou ao contrário: lugares que me fazem muito bem. Acho que tudo faz bem, mesmo que tenha esse lado da saudade vendo essas fotos, a minha história está toda aqui, nas fotos que eu escolhi pra mostrar pra vocês, mas eu acho que é importante, é parte de quem a gente é, de quem a gente foi sendo construído também, construindo e sendo construído: memória boa, ruim, saudade, emoção, choro, está tudo aqui. É um ‘monte de carta que vai embaralhando’, e essa peça faz parte disso. É isso que eu falo: “Me desfazer agora, não. Vou ‘curtir’ mais um pouquinho esse retrato, ali".
(01:50:38) P1 – Um símbolo que faz uma preservação da sua memória, da sua história.
R – Muito. Da história, dessas histórias todas conectadas, que eu nem falei isso, mas por onde ele ‘passeou’, ele ‘passeou’ por lugares que também foram meus: ele morou comigo na minha casa do Rio de Janeiro. Eu vivia com meu companheiro, era outra conformação. Essa amiga que ficou com ele era minha enteada nesse período. Olha isso, assim! Então, ele foi meu, foi dela, foi da amiga que usou, trabalhou com ele, deve ter usado em alguma produção, teve uma vida própria. O casaco saiu sozinho, (risos) com suas próprias ‘pernas’, ali. Então, ele é da infância ali, mas ele também tem essa história: por onde ele ‘andou’, ele ‘andou’ por histórias também que são minhas, por mais que não estivesse comigo, mas ‘passeou’ por lugares ali que fazem parte da minha história, da minha vida, então. E voltou pras minhas mãos nesse momento, eu estando em São Paulo, um outro momento de vida também. Eu, quando conto essa história, as pessoas ‘piram’, meus amigos: “Como assim? Só contigo isso podia acontecer” (risos) e nem sei porquê, mas veio.
(01:51:57) P1 – É genial, porque vocês foram se reencontrar numa terra que não era de nenhum dos dois, a princípio.
R – Terra estrangeira, total. Mas eu imagino que tenha sido a terra de onde ele saiu, (risos) porque a loja está lá, na etiqueta do casaco, se ele comprou aqui, eu quero crer que ele tenha comprado aqui, até porque isso fica mais interessante também [de] pensar. (risos) E ele nunca vai lembrar onde. Ele veio aqui em casa, ele estava sentado nesse sofá agora, há poucos dias, semanas e eu mostrei o casaco a ele, ele: “Era meu? Não sei o quê". Aí muitos anos, a memória fica meio embotada, mas pensando nisso, ele estava no lugar de onde ele saiu. Ou pelo menos, de alguma forma, ele saiu daqui. Mesmo que não tenha comprado, mas ele saiu daqui, porque a loja, a marca era daqui de São Paulo, então...
(01:53:00) P1 – Você quer mostrar pra gente?
R – Quero. Muito.
(01:53:25) P1 – Caminhando pro fim, o que você faz hoje? Quais são seus projetos atuais?
R – Hoje eu falei que eu era professor e pesquisador, por quê? Eu sou professor ocasionalmente, quando eu sou convidado a dar aula nessa pós-graduação, nos cursos de pós, porque são módulos, então eles acontecem, concluem, é uma cosia esporádica, não é fixo, eu não estou vinculado a nenhuma instituição dessa forma de ensino. Então, é o que eu venho fazendo: dando essas aulas. Aí eu montei algumas aulas em cursos livres, então algumas plataformas que têm cursos livres on-line, geralmente, eu montei uns cursos voltados pra essa área, tanto cultura, quanto artes visuais, mas hoje estou como doutorando em artes visuais. Então, como tem ainda um longo percurso pela frente, eu estou em pleno... ali, quase chegando no meio do curso. Quer dizer, iniciei o segundo ano do doutorado, que são quatro anos, então eu estou nessa função agora de pesquisador, tendo que dar conta da pesquisa. Aí eu faço também um estágio num museu, aqui em São Paulo, no Museu de Arte Contemporânea da USP, então está conectado com meu doutorado, meu objeto de estudo, mas também com a prática que eu quero atuar, ter profissionalmente também, que é essa área de curadoria. Então, estou nesse trânsito aí: eu sou professor, mas também sou pesquisador e sou aluno. Essas são as minhas ocupações hoje, principais.
(01:55:12) P1 – E lazer, o que você gosta de fazer?
R – Bom, eu tenho muitos amigos aqui em São Paulo, apesar de não ser daqui, então eu tenho um grupo de amigos muito... não é um grupo enorme, eu não conheço muita gente de São Paulo, mas os amigos mais próximos são uma turminha ali que, sei lá, umas dez pessoas e outros que se agregam. Então, acho que o lazer principal é estar em contato com esses amigos sempre, de alguma forma, então a gente procura sempre estar junto, seja num evento, seja numa festa, num festival, seja em casa, todo mundo se junta, almoça junto, um faz um almoço, ou vamos jantar, ou vamos tomar sol, tem essa prática assim. Tenho família também, aqui. Tenho sobrinhos que moram aqui, três, que moram em São Paulo. Então, também me divido entre os amigos e a família, ou junta os dois, o que é muito comum também, porque os amigos fazem parte desse grupo. Eu saio com os meus sobrinhos, viajei agora pro Rio de Janeiro com uma sobrinha minha. Então o lazer está muito conectado a isso, nesse encontro com os amigos e o que a cidade também proporciona. Uma coisa que eu adoro fazer e faço sempre é ver as exposições que estão em cartaz, então, desde visitar uma exposição nos museus das cidades, nos equipamentos culturais: Masp, MAC, USP, MAM, Sescs. As galerias de arte também, ou os eventos voltados pras artes e pro design, então, às vezes aquela coisa do ateliê aberto: um dia todos os ateliês do bairro se abrem pra visitação. Então, isso é muito comum, a própria SP-Arte faz isso também. Acho que essa é uma das principais formas de lazer que eu tenho, vivendo em São Paulo, tirando proveito do que a cidade oferece. Sempre quis isso. Quando não estava em São Paulo, pensava: “Nossa, se eu morasse em São Paulo, eu ia visitar isso, ver essa exposição” e aqui até a gente tem que escolher, não dá pra você ver tudo. A cidade oferece muita coisa também. Acabei de saber que aqui perto de onde eu moro tem o Museu das Culturas Indígenas, que eu ainda não visitei, vou ter que ir lá. Tem o Museu da Diversidade Sexual, que eu ainda não fui. Tem a ampliação da Pinacoteca, Pina Contemporânea, também não consegui ir. Enfim, olha quanta coisa tem! Então, eu acho que é isso: estar com os amigos, fazer essas visitas às exposições, que eu acho que é o que São Paulo oferece de melhor, quando também não oferece espaços ao ar livre, que a cidade tem. Não são tantos, mas os poucos espaços que tem acho que a gente tem que privilegiar e ocupar as praças, os parques e fazer viagens um pouco mais curtas, talvez, por mais que eu não faça isso sempre, mas acho que é uma forma de lazer que acontece, ou litoral, ou serra, enfim, quando tem essa oportunidade desse encontro, mas sempre conectado aos amigos, então por isso que eu acho que eu coloco tudo no mesmo lugar, mas eu adoro acho que ocupar a cidade no que ela tem de melhor. E tem as saídas à noite, você encontra os amigos, proporciona um encontro coletivo entre amigos e colegas e conhecidos, num lugar público, à noite, então São Paulo tem hoje um perfil de noite diferente do que tinha há dez anos, menos lugares fechados e mais lugares abertos, então, encontro de ruas ali, cruzamentos e bares onde as pessoas ficam e usam a cidade a pé, o que é muito bom também. Eu tenho feito isso e visto muito isso acontecer, você poder ocupar os espaços caminhando, também. Alguns bairros em São Paulo acho que são bem emblemáticos disso. O próprio Centro, uma bairro como Barra Funda também tem se tornado um bairro dessa forma, com essa característica, essa configuração. Acho que falei um bocado de lazer. (risos)
(01:59:46) P1 – Quais são as coisas mais importantes pra você, hoje?
R – Em que sentido, assim?
(01:59:55) P1 – Qualquer: pessoas, o que te alimenta...
R – Então, acho que tem dois caminhos da sua pergunta: um que eu acho que é bem minha vida pessoal, que o mais importante pra mim hoje é dar conta do que eu me propus a fazer, que é essa formação, esse doutorado e eu vejo que ele está conectado com a minha vida profissional e com o motivo de eu ter vindo pra São Paulo, por mais que ele tenha acontecido. Eu não vim pra fazer isso, essa foi uma decisão que eu tomei estando já aqui, na época da pandemia, e foi um exercício que eu fiz estando confinado na pandemia, então tendo aulas on-line, como aluno especial do programa que eu fazia. Ainda vim [pra cá] não matriculado, não selecionado pro programa, então, como uma primeira experiência. Então, como tem essa trajetória, essa decisão, o mais importante pra mim é dar conta disso, que é bem complexo você ter uma formação como essa, longa, numa área que você também está tendo seu encontro muito próprio com ela. E o segundo acho que é ter um pouco de outro caminho, mas que também está diretamente ligado a isso, é você também não perder de vista o que faz com que você viva melhor e bem, numa cidade como São Paulo. Então, você ter essa vida em conjunto, em comunidade, pensando na coletividade, é fundamental, crucial. Então, eu estou nesse cruzamento. O que é importante pra mim, hoje, é pensar em como lidar com essas duas coisas, pra que eu não fique tomado só pelo meu projeto pessoal e esqueça o entorno, ali, que é estar em diálogo com as pessoas, na convivência e algo também que eu tenho sentido cada vez mais vontade de fazer é usar a cidade de uma forma que não seja só pelo lazer, mas que seja pelo próprio sentido de comunidade mesmo, de participar ativamente da cidade, de forma comunitária, de alguma forma dando alguma ajuda, algum apoio, ou com a minha presença, ou com a atuação de fato direta, porque a gente tem isso: São Paulo acho que precisa disso também, das pessoas ajudando como sociedade, ali, e eu tenho visto muito isso nos últimos anos, a cidade com muita gente na rua, sem lugar, ou fazendo da rua seus lugares, ocupando de várias formas, ali, e vendo que tem uma demanda muito forte da gente como cidadão daqui, desse lugar, de contribuir de alguma forma, fazendo um trabalho voluntário, se vinculando a uma dessas ocupações, contribuindo. Eu tenho sido voluntário, cada vez mais, de estar presente na cidade dessa forma. E tem vários jeitos, formatos de você poder atuar. Então, acho que isso são coisas que eu tenho traçado como meta pro futuro próximo.
(02:03:34) P1 – E quais são seus sonhos?
R – Bom, são sonhos bem... não são sonhos tão grandiosos assim, não, são sonhos bem... falei da história do casaco como uma história tão banal, tão pessoal, nem sabia que ia ter interesse, mas meu sonho mesmo eu acho que está muito vinculado ao que eu me propus a fazer aqui, tendo essa mudança de vida. Então, como eu cheguei recentemente a São Paulo, essa foi uma mudança... eu já não era tão mais jovem assim, pra dar esse ‘salto’, fazer essa mudança. Não acho que há tempo certo pra fazer isso, mas quanto mais o tempo passa, mais você vai ficando meio conformado e acomodado num jeito, num modo de vida, num estilo de vida, seja por 'N' razões ali: afetivas, emocionais, financeiras, enfim, mas aí, uma vez que fiz isso, eu acho que o meu sonho maior é conseguir dar... talvez, nem sei enumerar se é o segundo, terceiro, quarto grande salto de mudança na vida, que é esse de atuar, fazer algo vinculado a essa profissão que eu escolhi atuar também. Bom, sou pesquisador de artes visuais, um projeto que lida com curadoria, meu projeto de pesquisa lida diretamente com esse assunto, então é o que eu desejo atuar, poder pensar na curadoria como um lugar que você trabalha com as memórias, as visibilidades, com um pouco da preservação da história, com várias formas de patrimônio ali, envolvidas, com diálogos entre pessoas diversas, distintas, épocas distintas. Então, meu sonho maior é poder fazer isso. Eu acho que eu ainda posso contribuir - depois de ter passado por tantas histórias aí, tantas trajetórias e mudanças de rota - fazendo isso. E sem perder de vista ser professor, acho que isso aí eu não deixo de ser nunca. De alguma forma eu vou continuar sendo professor.
(02:06:04) P1 – Transmitir.
R – É. Trocar. Pra mim é isso, porque é igual eu falei: eu acho que a gente aprende muito também, tanto quem a gente está ali em contato, em diálogo, com alunos e alunas, mas essa troca. Acho que ser professor, a razão de ser é essa. Imagina! Senão... e aí tem muito de você ter afinidade com isso. Tem gente que ‘não preciso, estou bem, já sei muita coisa, não quero lidar com isso, não’, mas eu sinto cada vez mais necessidade e vontade e sei que uma coisa ‘puxa’ a outra, então conhecer pessoas através do ensino e me ‘forçar’, entre aspas, a aprender na prática do ensino aguça muito mais a minha curiosidade, então é como se um fio vai ‘puxando’ outro e acho que a curiosidade nunca acaba, nunca é suficiente. Então, acho que essa é a razão de ensinar. Acho que na hora que você perde isso perde o sentido de você também ser professor, porque eu acho que o ensino é meio como o próprio conceito de cultura: é dinâmico, nunca é estático, está sempre em mudança, em embate consigo mesmo, é a coisa se fazendo ao mesmo tempo que ela acontece. Então...
(02:07:36) P1 – Você gostaria de acrescentar alguma coisa que eu não tenha te perguntado, alguma passagem, momento, história livre?
R – Hummmmm, nem sei, a gente falou um bocado, conversamos um monte, falei pra caramba. Não sei o que escapou. Bom, a gente vai ter um momento de ver as imagens, as fotos e eu acho que vendo as fotos a gente vai... talvez eu volte a falar sobre essas coisas que até posso ter esquecido, ou não terem ficado tão evidentes. Das pessoas que marcaram a minha vida, que marcam minha vida, minha história, o porquê de ter escolhido as imagens, essas imagens também, então talvez acho que isso apareça.
(02:08:28) P1 – Tá.
R – Porque o que escapou vai surgir aí.
(02:08:33) P1 – E o que você gostaria de deixar como legado pras próximas gerações, das suas experiências, vivências?
R – A gente sempre pensa... essa pergunta acho que a gente sempre se faz, todo mundo, em algum momento da vida a gente se faz, porque o que não é errado, mas a gente está muito acostumado e acho que a gente foi levado muito pelas grandes histórias, pelas grandes narrativas, então os grandes personagens, as grandes figuras e o que deixou, os grandes feitos. Isso é maravilhoso. Acho que as pessoas existiram e tem esse sentido também, de serem... tem aquelas pessoas ‘faróis’, naturalmente, pelo que fizeram, em todos os sentidos. Os que são gênios ali, da sua raça. Essas mulheres, homens que vieram aí e que acho que a gente leva conosco, mas, ao mesmo tempo, eu acho que todo mundo é importante, todo mundo deixa ali um legado e é isso que faz a gente também humano, é o que a gente faz de interação um com o outro, as ações menores, mais banais, mais corriqueiras, os pequenos atos, gestos e quando a gente não perde de vista o que faz a gente ser humano acho que isso que faz a gente deixar um legado. E é isso: o que eu quero deixar talvez seja um pensamento, acho que não é nem algo concreto, de uma atitude, um ato, um grande feito, mas eu acho que é um pensamento. Eu acho que o que a gente pode deixar de melhor pro futuro, pras gerações que virão é a gente não perder de vista a nossa humanidade e é ver o que cada um de nós tem de humano. E quando eu falo humano não é nem num sentido só romântico, ou poético simplesmente, mas do humano de alguém que possa estar no mundo de fato, concretamente: suas vontades, sua atitude, seu posicionamento político perante a vida, seu livre-arbítrio, sua liberdade de expressão, de ser quem você é, de andar, do seu corpo, de ser como ele quer que seja, conformar do jeito que você consegue, quer, então acho que esse é o maior legado que qualquer pessoa podia deixar, a gente conseguir primeiro ser isso. Eu acho que a gente lidou muitos anos, muito tempo com um mundo que, de fato, pode ser restritivo, hostil, mas, ao mesmo tempo, a gente tem essa possibilidade, senão a gente não estaria aqui hoje. Então, pô, eu não tenho filho, eu tenho seis sobrinhos que viraram filhos postiços e eu tenho essa grande alegria de ser [um] tio que é companheiro, parceiro de tudo e ainda ter o próprio cuidado, parecido com o que os pais têm, ali. Eu me preocupo muito. E sou esse tio que está na balada com eles, (risos) mas também está sendo um tio que pensa junto, que se preocupa, que troca ideia, que fala da sua própria vida, do futuro, fala do futuro deles, dou e peço apoio, isso eu acho que é muito bacana, mas eu falo isso porque quando eu falo do legado, eu falo das gerações futuras e da minha geração, depois de mim, e eu penso nessas pessoas, que alguns deles inclusive já têm filhos, já tenho sobrinhas que têm filhos. Então, eu vejo que as coisas também se repetem, ou permanecem também, então como a gente foi criado, educado a ser, a lidar com o próximo, em sociedade, o cuidado, o respeito mútuo e aquilo que eu falei no começo da nossa fala: da tônica, qual a tônica da sua existência, se você pudesse falar uma palavra e eu falo que é o amor, mesmo, que foi a tônica que me fez ser o que eu sou hoje, sem sombra de dúvida. Minhas escolhas foram todas pautadas por isso. Então, se eu desviei da rota em algum momento foi porque tinha isso aí ao meu lado. Eu acho que essa é a grande ‘chave’, porque quando falta, ou quando é pouco, você sobrevive, mas você tem mais trabalho. Então, eu fico pensando nessa minha... de quão sortudo eu sou, quão privilegiado de ter tido esse encontro, com essas pessoas que me fizeram: meus pais, minhas irmãs, quem veio depois. Por isso que depois eu vou mostrar essa imagem da família toda reunida, porque está ali. Não a trouxe aqui, agora, mas ela está guardada de alguma forma, que eu quero mostrar pra vocês, porque acho que transmite isso, desse aconchego. O mundo fica melhor, fica mais fácil.
(02:14:16) P1 – Pra finalizar, você comentou que você tem o costume de ir lá atrás. Você falou: “Vou lá atrás, pra pesquisar”, pensando no seu professor, no Rio: “Como eu vou criar uma coisa nova aqui, um trabalho? Eu vou lá atrás”. Pesquisador, seu trabalho é ir lá atrás e resgatar. Você fazendo esse movimento com sua avó, na cama: “Vou lá atrás, pra tentar entender, enfim, criar”. Como foi dividir com a gente e contar sua história indo lá atrás, até hoje?
R – (risos) Bem ‘louco’, porque essas memórias estão na gente, de alguma forma. A gente acessa por vários caminhos. Você pode sonhar, pode vir pra um momento esporádico, mas nunca do jeito que foi.
(02:15:12) P1 – Pela roupa.
R – É. O motivo foi uma roupa, uma peça de roupa, mas eu falei no começo que pega uma grande sessão de memória, porque pensando assim, eu pensava que as histórias não iam ter tanto interesse, por serem tão pessoais e ser mais uma história e, nossa, tem tanta gente que tem histórias bem, talvez, mais interessantes de vida e tal, mudaram de país, não falavam a língua, vieram pra um país estranho, começaram do zero de fato, mas falando, conversando com vocês, eu vi que nesse tempinho tem tanta coisa que aconteceu, tanta história e tanta possibilidade que possa ser identificação pra outras pessoas, outras pessoas possam também se identificar com essas histórias, terem memórias parecidas, de alguma forma, a foto do meu avô, que parece com o seu e você lembra. Enfim, alguém que teve uma irmã, ou irmãs, como eu tenho. Sei lá, eu acho que é isso: é bem uma construção do que a gente vai sendo... do que é ser humano, mesmo. A gente nunca é sozinho, o fato é esse. A gente é essa ‘colcha de retalhos’ que a gente vai coletando na vida. A gente fez isso hoje, ter ido lá atrás, como você falou, foi isso: estender essa ‘colcha de retalhos’ aqui pra vocês, mas esperando isso, que mesmo sendo memórias tão íntimas, tão pessoais, façam sentido no grande conjunto, que é esse projeto. Bom, não à toa o nome da instituição é esse: Museu da Pessoa, museu de pequenas histórias que fazem uma grande história, que é essa grande humanidade. Mas é lindo falar, ver essas imagens, me ver criança, me ver hoje, ainda desse jeito, de alguma forma. Por isso que falo: “Não, o casaco fica ali, porque ele é um retrato, uma fotografia que eu quero deixar um pouco mais ali, porque eu não quero perder”. Acho que a vida faz a gente, às vezes, se distanciar muito de quando você está nesse começo da vida e que acho que é crucial a infância, por isso que eu acho tão fundamental cuidar, preservar a infância, ter esse cuidado ali enquanto criança, porque molda sua vida inteira. A gente nem se dá conta disso, mas quão é importante a gente ter esse cuidado. E falar com vocês hoje é isso: pensar nessas memórias todas, vendo quão próximo eu estou, se eu distanciei o que eu faço pra resgatar, ou o que foi legal também ver crescer. Agora eu acho que eu estou em um momento também de ter um outro olhar pra vida. Eu fiz cinquenta anos. Imagina! Você já olha pra vida de outro jeito. Então, você já fica imaginando daqui a dez, vinte anos, então eu nunca vou [me] distanciar disso aqui, das memórias da infância, isso aqui vai estar sempre acompanhado. Eu lembro que meus avós falavam isso, minha avó, às vezes, lembrava de algo da infância dela e ela se emocionava. Então, isso vai acontecer comigo, mas agora, acho que você chega nessa idade, chamada talvez meia-idade, você vai pensando já um outro olhar pro mundo e que é super legal também, porque você também chega num lugar que: “Eu já cheguei até aqui também, então já vivi um pouquinho. Tenho um pouquinho só mais de vivência. Então, eu tenho um pouquinho mais de algo pra falar”. Só estou me dando conta disso agora, porque você foi perguntando e eu fui vendo quantas décadas tinha nessa história toda. (risos) Porque eu esqueço também, inclusive, a minha idade, mas é muito ‘chão’ já.
(02:19:31) P1 – Muito bom! Obrigada, obrigada, obrigada.
R – (risos) Obrigado vocês, obrigado demais.
(02:19:37) P1 – Foi um ‘presentaço’ mesmo.
R – Eu que digo. Várias emoções aqui, viu?
(02:19:44) P1 – É, né? Dá uma mexida.
R – Dá. Está tudo aqui, assim.Recolher