O beijo do beija-flor
Morávamos numa corrutela, cidadezinha minúscula, na verdade era
um distrito de outra cidade, sem eletricidade, com pouquíssimos recursos e
onde somente meia dúzia de pessoas tinham carros e, por isso, as ruas eram
um grande parque de diversões. Jogávamos bola, pulávamos amarelinha,
brincávamos de pique -pega, peteca e mais uma infinidade de brincadeiras.
O único carro que costumava passar na nossa rua diariamente era o ônibus,
sempre às cinco da tarde. Vinha carregado de gente e bichos... As galinhas
amarradas pelos pés, ficavam nas janelas como se observassem os moradores
e no bagageiro ouvíamos o barulho dos porcos...
Éramos vizinhas há uns três anos e amigas inseparáveis. Tínhamos a
mesma idade, cinco anos.
Todos os dias pela manhã era o mesmo ritual, depois de comer alguma
quitanda preparada por mamãe ou por vovó, já ia me juntar à minha amiga
para brincarmos.
Ela se chamava Eliamar, mas carinhosamente a chamava de \"Lia\". Éramos
muito parecidas fisicamente, tínhamos a pele bem alva, os cabelos louros e
lindos olhos azuis. Nossa rotina matinal se manteve igual por cerca de três
anos, mas naquele dia ela fora quebrada.
Na cidade vizinha acontecia uma Exposição Agropecuária e vários
camelôs expunham seus produtos. Em uma das bancas, bolas coloridas
enormes. A madrinha de Lia , ao passar pela banca não resistiu, comprou
uma bola para ela. Fez questão de viajar até o distrito aquela noite para
entregar lhe o presente. Lia não conseguia dormir, mal podia esperar o dia
amanhecer para ir até minha casa mostrar o brinquedo novo.
Pela manhã, antes de qualquer coisa, pediu sua mãe para levá-la até mim.
Chegando em casa, veio correndo em minha direção mostrando-me a bola
gigante e dizendo que era o presente mais lindo que já ganhara em sua vida.
Mal comeu o pão de queijo que mamãe preparara e convidou-me para
jogarmos na rua. Nossas mães permitiram e...
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O beijo do beija-flor
Morávamos numa corrutela, cidadezinha minúscula, na verdade era
um distrito de outra cidade, sem eletricidade, com pouquíssimos recursos e
onde somente meia dúzia de pessoas tinham carros e, por isso, as ruas eram
um grande parque de diversões. Jogávamos bola, pulávamos amarelinha,
brincávamos de pique -pega, peteca e mais uma infinidade de brincadeiras.
O único carro que costumava passar na nossa rua diariamente era o ônibus,
sempre às cinco da tarde. Vinha carregado de gente e bichos... As galinhas
amarradas pelos pés, ficavam nas janelas como se observassem os moradores
e no bagageiro ouvíamos o barulho dos porcos...
Éramos vizinhas há uns três anos e amigas inseparáveis. Tínhamos a
mesma idade, cinco anos.
Todos os dias pela manhã era o mesmo ritual, depois de comer alguma
quitanda preparada por mamãe ou por vovó, já ia me juntar à minha amiga
para brincarmos.
Ela se chamava Eliamar, mas carinhosamente a chamava de \"Lia\". Éramos
muito parecidas fisicamente, tínhamos a pele bem alva, os cabelos louros e
lindos olhos azuis. Nossa rotina matinal se manteve igual por cerca de três
anos, mas naquele dia ela fora quebrada.
Na cidade vizinha acontecia uma Exposição Agropecuária e vários
camelôs expunham seus produtos. Em uma das bancas, bolas coloridas
enormes. A madrinha de Lia , ao passar pela banca não resistiu, comprou
uma bola para ela. Fez questão de viajar até o distrito aquela noite para
entregar lhe o presente. Lia não conseguia dormir, mal podia esperar o dia
amanhecer para ir até minha casa mostrar o brinquedo novo.
Pela manhã, antes de qualquer coisa, pediu sua mãe para levá-la até mim.
Chegando em casa, veio correndo em minha direção mostrando-me a bola
gigante e dizendo que era o presente mais lindo que já ganhara em sua vida.
Mal comeu o pão de queijo que mamãe preparara e convidou-me para
jogarmos na rua. Nossas mães permitiram e sentaram-se à beira da rua para
nos observar. Era uma brincadeira maravilhosa, parecia que abraçávamos
a lua cheia de tão grande que era a bola. Mamãe nos alertava sobre o arame
farpado da cerca para que não a furasse.
De repente, Lia pediu que eu segurasse a bola e, sem nenhuma explicação,
correu até nossas mães e abraçou-as fortemente e em seguida beijou suas
faces e gritou:
_Vocês são maravilhosas! Eu amo vocês! E voltou para nossa
brincadeira.
Nossas mães aproveitavam para conversar um pouco.
Na rua, a bola ia de um lado para o outro através de nossas pequenas
mãozinhas e o colorido dela lembrava as cores do arco- íris. Quanta alegria
havia em nós naquele momento!
Por um instante, mamãe acompanhada da mãe de Lia entraram em
casa para tomar água e olhar a panela de feijão que estava no fogão de lenha
e foi aí que tudo aconteceu... Como num passe de mágica, apareceu um carro
em altíssima velocidade e antes que Lia pudesse desviar, foi colhida por
aquele carro. Gritei muito alto e corri para onde estava Lia, fiquei chorando,
vendo seu corpinho estirado no chão e então lhe dizia:
_ Compraremos outra bola! Levante-se, vamos brincar de outra
coisa... mas Lia estava imóvel e minhas lágrimas banhavam seu rosto.
Quando mamãe ouviu meu grito e o barulho do carro veio em
disparada em direção ao corpo acreditando ser o meu, foi então que ao me
ver sobre o corpo de Lia percebeu o engano, mas não diminuiu sua dor.
A mãe de Lia não teve forças e como se já soubesse o que havia
ocorrido desmaiou e nem conseguiu chegar até ela. Foi amparada por minha
avó. Em poucos minutos toda a cidade estava lá, seja por solidariedade ou
curiosidade.
Já reanimada, a mãe de Lia estava inconsolável. Sentada no chão com
a cabeça da filha sobre o colo, culpava-se por não estar ali quando tudo
aconteceu... E insistia em dizer que se a filha não tivesse ganhado a bola ou
se ela tivesse alí nada disso aconteceria...
Eu não entendia muito bem o que estava acontecendo, nunca havia
visto nenhum cadáver e então eu perguntava a mamãe se minha amiga
estava dormindo e quando ela iria acordar e isso fazia com que mamãe
chorasse mais...
A polícia foi chamada e o motorista por pouco não foi linchado. Por
fim, era hora de levar o corpo para o IML e nesse momento percebeu-se que
uma das orelhas fora arrancada com o impacto da batida... O corpo seguiu
para a outra cidade e ali uma força tarefa foi feita afim de que pudessem
encontrá-la. Horas depois a orelha foi encontrada e enviada para que pudesse
se juntar ao corpo.
Foi um dia angustiante... À noite um carro funerário chegava ali
trazendo aquele pequeno caixão que fora colocado no meio da sala onde
havia uma enorme janela de madeira. Lia costumava ficar ali à tardinha
vendo as pessoas regressarem do trabalho. Logo chegaram as rezadeiras e
durante toda a noite se ouvia preces e choro...
No dia seguinte, pouco antes do sepultamento, mamãe levou- me lá
para que eu pudesse me despedir da minha primeira amiga. Eu estava lá, ao
lado do caixão, vendo minha companheira de brincadeiras vestida com seu
vestido azul e nas orelhas remendadas um brinco no formato de uma flor.
Ela estava linda e parecia adormecida.
Subitamente, da janela surge um pequeno beija-flor azul brilhante e
este, como se fosse um gesto de despedida vai até a testa dos pais dela e na
minha também , roça levemente o seu bico e parti em seguida.
Ainda hoje, dezenas de anos depois , fecho os olhos e me recordo
daquela cena e sempre que vejo um beija-flor tenho a sensação de que serei beijada por ele novamente.
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