Projeto KomBiblioteca
Depoimento de Daniel Minchoni
Entrevistado por José Santos e Jonas Worcman
São Paulo, 09/04/2015
Realização Museu da Pessoa
KOM_HV001_Daniel Minchoni
Transcrito por Mariana Wolff
P/1 – Então Daniel, bom dia! Eu começo a entrevista perguntando seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Me chamo Daniel Minchoni. Eu nasci em São Paulo, falam que eu sou “natalêncio” de Ipiranga, mas eu nasci em São Paulo, morei um tempo em Natal, então eu tenho essa influência, em 9 de abril de 1980, hoje é 35 anos, né?
P/1 – Parabéns!
R – Obrigado.
P/1 – E você podia falar o nome dos seus pais e que atividade que eles fazem?
R – Os dois são vivos, inclusive, eles vieram para cá, eles moram em Natal hoje. Minha mãe chama Terezinha Ferreira de Godoy Minchoni e o meu pai chama Claudemir Minchoni. A minha mãe é dona de casa e o meu pai trabalhou um grande tempo em indústria, na Linhas Corrente, e agora ele é aposentado.
P/1 – E eles são de São Paulo?
R – São Paulo, do interior, meu pai é de São João de Ariranha e minha mãe é de Braganca Paulista.
P/1 – E os seus avós, são do interior de São Paulo, também?
R – Meu avô acho que é de Monte Alegre… Monte Alto, meu avô, ele brinca que ele foi registrado aqui, mas que ele já veio na travessia assim, mas ele é de Monte Alto e minha avó não sei de onde é, minha avó, eu acho que é de Novo Horizonte. Meu avô chama Nicola Minchoni e minha avó chama Iracema… eu não sei o sobrenome de família dela, acho que é… não sei, acho que é Iracema Minchoni.
P/1 – E qual é a origem do sobrenome Minchoni?
R – Então, o meu irmão inventou de pesquisar isso aí. Ele foi levantando dados da família, chegou e é engraçado, porque às vezes, isso aí derruba os classe média way of life aqui do Brasil, de querer ser sempre europeu, dessa coisa de “Sou descendente de italiano, nonna, espoleto, Palestra Itália”, essas coisas todas. E aí a gente descobriu que o Minchoni não tem assim, embora tinha um mito que era da Calábria, mas o sobrenome dessa forma não tem, ele foi muito modificado, então ele pode ser de Mancini, pode ser de Messina ou pode ser um Minchonni que virou um Minchoni na pronúncia ou Bigioni, porque italiano imigrante bruto, na hora de registrar mudou e teve coisa que… teve italiano que mudou por causa da Guerra, então tem muita coisa disso. Mas eu tenho primos que são Minchoni, tenho primos que são Bigioni, Minconi, muitas variações assim disso aí, inclusive as piadas sempre tem também, e as variações também, inclusive caíram nas piadas, tenho primos que o sobrenome são as piadas Mijoni e essas coisas todas. E Bichoni, essas coisas todas (risos). Mas eu descobri que tem uns Minchonis na Argentina e no Chile e aí, com isso, se especulou a possibilidade do sobrenome não ser exatamente italiano e ter entrado via Itália, de alguém que era da Espanha e tal, mas eu não pesquisei muito mais isso. O meu irmão que está levantando a árvore genealógica, assim, então supostamente é italiano da Calábria, mas por exemplo, no Museu do Imigrante não tem o sobrenome de entrada, mas aí tem os sobrenomes que não são registrados, tem outras questões também, mas eu supostamente sou isso assim, mas eu não acredito muito só nessa questão do sobrenome, é isso, as pessoas vão falar assim: “Logicamente, você é Minchoni, você tem aspecto de italiano, europeu, branco”, mas por exemplo, minha avó Iracema, ela é filha de uma bisavó que eu tenho uma lembrança de conhecer, que é a avó… esqueci o nome dela, durante alguns momento vão ter esse “esqueci o nome dela” na câmera, porque eu tenho alguns problemas com essas coisas de nome, memória, mas aí essa minha avó que é negra, casada com espanhol, então a minha avó é descendente de negro com espanhol, esse meu avô que é de italiano, aí o meu outro avô por parte de mãe é descendente de índio, mas com nome já bem adaptado assim, que é Philadelpho com dois ph inclusive, e minha outra avó que é espanhola. Então, eu não sei assim, pelo sobrenome primeiro e pela cor e aparência, a nossa primeira reação é falar: “É descendente de italiano e tal”, e é uma coisa que eu sacaneio com a coisa da classe média way of life, aqui em São Paulo todo mundo quer ser europeu e ninguém quer ter os negros e índios que a gente tem da nossa origem mesmo, da nossa mistura, de ser um povo bagunçado sexualmente assim, graças a Deus, misturado assim, então a gente tem um complexo de vira-lata de não se assumir que a gente busca só “É Minchoni, é branco então é italiano”, mas eu gosto dessas outras origens também.
P/1 – É bem brasileiro pelo o que aí você contou, né?
R – É. É isso mesmo e acho que é inevitável, assim, a não ser quem é filho direto assim, em São Paulo tem isso, pessoas que são filhos diretos mesmo, filhos de espanhol com espanhol que veio para o Brasil. Aí sim, seu avô é espanhol, mas no geral, quem já nasceu aqui miscigenado já, eu não acho muito interessante essa busca por ser europeu assim “Sou descendente de espanhol”, como se fosse só isso. E aí é legal porque a minha esposa, ela foi cantar aquela música outro dia do Chico Buarque, que é “Meu pai era paulista…”, quer dizer, eu nem sei se é do Chico Buarque mesmo…
P/1 – É, “Paratodos”, né?
R – É. “Meu avô pernambucano…”, e aí ela: “O meu pai era paraibano, meu avô paraibano, meu tataravô, paraibano"…”(risos), e aí foi engraçado assim, mas no final das contas, por mais que você fique nisso de todo mundo era paraibano, você vai chegar nos mouros, nos árabes de alguma forma que foi um povo bastante comum no Nordeste ou nos holandeses, então sei lá, acho difícil determinar essa origem assim.
P/1 – E Daniel, você só tem um irmão?
R – Eu tenho três… são três irmãos, na verdade, dois irmãos e uma irmã. Eu tenho um irmão mais velho, o Evandro, o Evandro Minchoni, tenho um irmão mais novo chamado Ayrton, Ayrton Minchoni e tenho uma irmã caçula, Tatiana Minchoni.
P/1 – E você nasceu então em São Paulo e foi criado em que bairro?
R – Nasci em São Paulo, no Ipiranga, único bairro que merece ser citado no Hino Nacional (risos) e fui criado no Ipiranga, mas mais especificamente no fundão do Ipiranga que é o Sacomã, Heliópolis ali, então bastante próximo da favela do Heliópolis, então a minha infância foi essa infância até os 18 anos nesse contexto periférico, assim e é bem interessante porque quando eu cheguei lá só tinha campos de futebol, então tinham dez campos de futebol e hospital lá onde é o Heliópolis hoje, né? Quando eu era moleque, eu lembro de ir brincar e fui vendo todo o crescimento demográfico, evidente que tem mais gente precisando de casa do que de jogar bola em São Paulo, né? Então hoje não tem mais nenhum campo lá, se eu não me engano, só tem o campo do Beira Rio… do Copa Rio, do Copa Rio, Beira Rio não, Beira Rio é mais longe, é lá em Porto Alegre, mas do Copa Rio e aí, é bem… tipo, dois pés… já tem o muro em volta, dois pés para cobrar lateral assim, porque a densidade demográfica fez com que o Heliópolis se tornasse uma das maiores favelas da América Latina, hoje já não é mais esse o contexto, já é uma comunidade mesmo, com casas e tal, mas no começo foi isso, foi começando como invasão e tal, e aí eu vi de perto isso, vivenciei isso, tive muitos amigos e fui criado dentro desse contexto que eu acho bastante rico, esse contexto de miscigenação e mistura de… que tem a ver com a chegada das pessoas de outros estados e…
P/1 – E você podia descrever mais então aí como é que era essa região na sua infância?
R – Posso. Eu não sou uma pessoa de muita memória infantil assim, eu me lembro dos amigos, das brincadeiras de rua, de briga, foi bastante criado ali perto da rua, embora minha mãe e o meu pai foram bem zelosos com a minha educação, então tem uma questão que é delicada que é assim, os pais que tinham que trabalhar, o pai e a mãe e tal e deixavam ali mesmo solto, eu tive vários amigos que morreram por causa de droga, porque virou ladrão. Dos meus amigos de infância, mesmo assim, que eu convivi, pelo menos uns seis morreram por causa de droga, de crime, então eu considero essa minha ida para o Nordeste também uma coisa bastante possibilista, para usar uma palavra que o Marcelo Bob de lá uma vez usou e ficou popular, mas bastante possibilista para a minha visão de mundo e tudo, né, porque é isso, convivi com amigos viciados em cocaína, que faziam pequenos delitos para compra de droga, mas antes disso, a parte que me interessa mais falar do que ficar falando dos desfechos, é que foi uma infância muito rica de ambiente de rua assim, de molecada, soltando pipa, jogando bola…
P/1 – Do que vocês brincavam?
R – Pipa, pião, bolinha de gude, essas coisas bastante, tinha época de pipa, porque aí os Racionais até falam “Época de pipa, o céu está cheio”, e era muito mesmo e tinham essas brincadeiras: polícia e ladrão, esconde-esconde. Então era um ambiente legal para isso porque onde eu morava era rua de paralelepípedo, cimento, tal e depois já tinha logo na sequência assim, a favela e aí tem uma estrada que eu acho bem bonita e bela, que chama Estrada das Lágrimas, embora seja um nome triste, mas eu acho um nome bonito assim, geralmente as estradas têm o nome de algum miserável que mais causou lágrimas, né? (risos) Geralmente é uma desgraça, mas foi bem interessante isso aí pra mim e essa estrada, eu me lembro de coisas por exemplo, quando estavam reformando ela para colocar câmara de gás e cavaram uns buracos, então a gente brincava dentro desses buracos, entrava em um buraco e saía um quilômetro lá embaixo. E essa molecagem de pular na casa do vizinho para roubar goiaba, por incrível que pareça, tem uma visão violenta das periferias, mas na época que eu vivi, anos 80, tem também uma visão meio bucólica assim, de interior, mesmo. Então, por ser à margem, era assim mais próximo dos interiores, de Campinas, o Grajaú, da Praia Grande, ali e tal. Então tinha um pouco desse contexto de casas que pareciam mais chácaras do que se tinha no centro, é que na vila também tinha, né? A vila também é um lugar que embora é no centro até um bom tempo atrás, ela era muito… tinham as casas de chácara ainda, né? Mas tinham essas brincadeiras meio de sítio, pular na casa do vizinho lá que dava tiro de espingardinha de sal, esses mitos todos de como criança querer desafiar isso, fugir do cachorrão dele, “Consegui lá pegar a goiaba”, fugir do cachorro, essas brincadeiras, mas de brincadeira prática assim, futebol muito na rua, chinelinho, depois veio o tempo do vôlei, porque o Brasil foi campeão mundial de vôlei, olimpíadas, então jogar vôlei na rua, então amarrava a rede no portão e outro, para jogar vôlei e acho que isso assim, uma das coisas que eu sempre gostei… nunca fui muito bem em nenhuma coisa, porque eu sempre gostei de todas assim, então eu nunca fui de me dedicar a ser o melhor jogador de vôlei, que isso costuma ser com quem tem mais, com quem se fecha assim, a não ser algumas exceções de meninos que tenham o espírito de ganhar muito forte, ele fica muito bom em várias coisas porque tudo ele tem uma determinação e tal, eu nunca tive muito isso, assim, eu tive mais a curiosidade de várias coisas assim… então, eu nunca fui muito de ser o melhor de futebol e tal e tal, mas eu sempre gostava muito de brincar de várias coisas, mas pião é uma coisa que eu gostava bastante, não que eu fosse bom também não, mas gostava de fazer uma roda, botava uma roda, você tinha que fazer o pião cair dentro dessa roda, quem não fizesse o pião cair e parar dentro dela, então tinha uma técnica de jogar o pião que se chama dormir, fazer o pião dormir, você joga ele, ele fica no mesmo lugar rodando e aí ele tinha que dormir ali e não cair fora da roda, então o que caísse fora da roda ficava lá na roda para o outro jogar e aí a intenção era destruir o pião do outro, jogar o pião em cima para quebrar, então tinham essas brincadeiras que eu me lembro que eu gostava, embora não fosse muito bom nisso, não.
P/1 – Tinha já alguma brincadeira com a palavra assim, em contação de histórias, essas coisas?
R – Acho que não, cara. Brincadeira não. O primeiro contato que eu tenho com isso, inclusive, eu trouxe uma foto disso, que eu me lembro foi uma pessoa que eu acho que foi bastante importante pra mim, isso foi na escola. Eu sempre gostei de mentir, mente que nem sente, né? Isso aí sim! Tinha essa coisa muito imaginária, fui um moleque assim, beirando o autismo no sentido assim de gostar muito de ficar brincando sozinho com carrinho, imaginando as coisas, inventando milhões de histórias, mas não de materializar isso para os outros. Então eu tinha essa característica de ficar inventando ali que o carrinho está indo para um outro lugar muito… mas nunca tive muito isso de materializar. Primeira situação que eu me lembro dentro desse contexto foi na segunda série do primeiro grau, que eu tive uma professora que chamava Cenira Borges Ramalho e que ela levava pessoas pra gente entrevistar e tal. E aí eu tenho um vídeo disso no YouTube lá, um vídeo e ela já tinha essa visão também de filmar coisa, então ela levava… nessa ocasião, ela levou um jornalista pra gente entrevistar e por consequência disso, a gente teve que fazer um jornal. Então, ela tinha algumas coisas de dinâmica bem interessante. E aí, ela deu como trabalho a gente ir em campo fazer matérias, as matérias são terríveis, porque sempre falam de estupro, de mortes, de acidentes porque você é criança e num contexto sei lá… eu estudei em escola pública, eu estudei no EEPG Professor Ataliba de Oliveira, uma escola que fica em São João Clímaco, no bairro de São João Clímaco e hoje vendo de fora assim, com o descolamento, eu vejo: “Nossa, as matérias são terríveis! Os comerciais que tinham no meio são terríveis”. E eu era o apresentador de jornal, o âncora. Eu e mais uma menina. Então tinha… depois eu mostro o vídeo no YouTube, mas era isso, eu era o apresentador e foi a primeira situação; e tinha uma coisa legal assim, que ela fazia a gente fazer livros, eu acho que talvez eu até queria encontrar de novo com ela, depois que eu voltei, que eu tenho uns amigos que dizem que encontram com ela, ainda não consegui fazer esse encontro, mas eu quero fazer esse encontro e também acho que é uma pessoa… dando uma dica aqui, acho que é uma pessoa interessante para vocês entrevistarem e ela fez essa coisa de cada aluno tinha que fazer um livretinho e aí xerocar na quantidade de alunos e todos trocavam entre si e ela teve essa coisa de filmar, então tem o vídeo, a minha mãe resgatou esses dias, então tem o vídeo vendo eu apresentar o jornal, a gente fazendo os comerciais…
P/1 – Você tinha quantos anos?
R – Não sei, segunda série é o quê?
P/1 – Oito.
R – Oito. Agora é oito, né? Ah não, era oito, era oito. Agora é nove, né? Não, agora é sete, sei lá…
P/1 – Não, agora é menos.
R – Sete, é! Mas era isso, oito anos e já é o mesmo jeito assim, é engraçado que a gente… não sei assim, é muito louco, a gente já traz as coisas impressas assim, e vão se manifestando, né? Mas é o mesmo jeito, sem muito rigor assim, eu tomo umas cotoveladas da outra menina, que a outra menina era toda séria, certinha assim, e eu tipo, tem hora que eu me entedio e baixo a cabeça e fico limpando o nariz, sem muito a formalidade na hora que o evento esta sendo filmado e… mas é bem legal isso, foi daí que eu tirei a orelha do meu livro. Quando eu estava… a orelha, não, a dedicatória. Quando eu estava para lançar o meu livro, trabalhando em 2006, foi quando a minha mãe…
P/1 – Qual livro? Qual o nome?
R – O “Escolha o Título”, que é o meu primeiro livro. Eu estava lendo uns processos de finalização naquele… o livro tinha se alastrado por muito tempo e aí a minha mãe achou essa fita da escola, fita de vídeo, ela converteu para um DVD, foi lá, procurou, cara, tem umas partes com mofo, mas ela passou para o DVD e me mostrou, falou: “Olha o que eu achei aqui”, e aí começa a mostrar o livro de todo mundo assim, né? E é legal porque a dedicatória do meu livro veio daí, porque aí está todo mundo lá: “Dedico esse livro para a minha mãe, para meu pai e Deus” ou: “Dedico esse livro para Deus acima de tudo, para minha mãe, para o meu cachorro Tobi”, “Dedico esse livro para não sei quem, não sei quem e não sei quem…”, “Para minha mãe e Deus”, “Para Deus e não sei o quê”, e aí vem o meu, eu todo orgulhoso assim, exibidão assim, para caramba, não cabendo dentro de si, porque não lia todos, a professora escolhia alguns e o meu estava entre os escolhidos para ler, eu todo orgulhoso e outra pessoa lia para você, você lia para outras pessoas e outra pessoa… aí a pessoa fala assim, tem a dedicatória do meu livro que é já logo assim: “Dedico esse livro as três américas: América do Sul, América do Norte e América Central”(risos), aí a dedicatória do meu primeiro livro é: “Não sou infantil, dedico esse livro as três américas”, quer dizer, não sei porque razão eu tinha aquela ideia de dedicar para uma coisa tão abstrata assim, não tão abstrata quanto Deus, mas dessa forma, né? E aí depois pensando nisso, com 26 anos, isso me veio bem a calhar assim, como um sonho de unificação das Américas, ou uma coisa que eu nunca consegui entender muito bem, porque lógico, talvez não tenha pensado nisso nessa época, mas que vem assim, e você fala: “Caramba, como algumas coisas dão uma volta na vida e te batem na frente de novo, assim, né?”, essa dedicatória cair na minha mão dali a alguns anos, eu nunca entendi muito bem porque a Europa é tão unida e as américas não e todo o desconforto social que isso causa, intelectual também, principalmente no Brasil que é um quase auto excluído, porque nunca tentou se aliar e se envolver com os outros países da américa.
P/1 – Deixa eu voltar um pouquinho no tempo, já que você falou do livro e tudo. Qual foi seu primeiro contato assim, com o livro e com a leitura? Seus pais liam, contavam histórias para você? Ou isso veio depois?
R – O contar história com o livro na mão, eu não me lembro, mas eu me lembro da minha mãe contando histórias para mim, eu não me lembro se isso é uma falta na minha lembrança ou não, mas eu me lembro da minha mãe contando histórias, mas não me lembro da relação com o livro. Pra mim, a relação com o livro veio através do Círculo do Livro…
P/1 – Ah! O Círculo do Livro!
R – Minha mãe era assinante do Círculo do Livro e por consequência…
P/2 – O que é o Círculo do Livro?
R – O Círculo do Livro é… eu também não me lembro muito bem a dinâmica deles, mas era como se fosse uma Avon, ou uma Natura de livros, então você pagava… não me lembro se você pagava uma mensalidade e tinha direito a uns livros ou se você recebia um catálogo e comprava os livros por um preço mais barato, mas era alguma coisa em torno disso. E aí, eu me lembro… o primeiro livro que eu me lembro de ter lido assim, de fato, chama “A Vingança do Timão”, não tem a ver com o Corinthians, embora eu provavelmente tenha escolhido ler ele por causa do Corinthians, mas não tem a ver com isso, é um livro infanto-juvenil assim, meio assim, sobre um time que perde… é meio sessão da tarde, foi o livro que eu tenho a primeira lembrança de ler, assim, fora o “Dia dos Escoteiros Mirins”, lá que é uma enciclopédia com um monte de livros que era…
P/1 – Da Disney? “Manual do escoteiro Mirim”?
R – Exato! “Manual do escoteiro Mirim”, que todo mundo que tinha o Círculo do Livro acabava escolhendo esse livro aí, atlas e coisas assim. E eu gostava muito por causa dos truques de mágica e tal, leitura de quadrinhos também foi bastante assim, esses quadrinhos…
P/1 – Que quadrinhos?
R – Mônica, Tio Patinhas… na real, eu lia indiscriminadamente, porque eu não tinha assinatura, mas eu tinha um tio que tinha assinatura do Tio Patinhas, não me lembro mais, mas era dessa linha do Tio… é Disney, né? Disney. Tinha um primo que tinha do Maurício de Souza e tinha um outro primo que tinha de comics e tal, então eu ia e lia de acordo com ir na casa deles e ler. Eu não tinha assinatura de nenhum. E aí o primeiro livro… depois da “A Vingança do Timão", eu me lembro que o primeiro livro que eu li assim, que eu me lembro que eu li de fato foi o “Capitães de Areia”, o Jorge Amado. Aí foi um livro que eu: “Porra, agora eu descobri a pólvora”, eu fiquei fascinado, coincide com um pouco da época da Tieta na TV, “Seara Vermelha” na TV e aí eu comecei a buscar essas coisas, ler “Tieta”, “Tieta do Agreste”, isso eu acho que com menos de 12 anos, por aí. Então, me interessei muito por “Capitães de Areia”, com acho que menos de 12 anos e aí por consequência, fui buscar ler quase tudo do Jorge Amado nessa época, assim. Quase tudo, não, ler o que estava ao meu alcance no Círculo do Livro ali, né? E aí acho que a lembrança mais remota que eu tenho de leitura é isso. De leitura, livro, mas de leitura mundo por exemplo, uma coisa que sempre foi fundamental de formação para mim como… e aí eu acho que tem a ver com a poesia e com tudo é o Rap mesmo, assim! Eu ouvi muito Rap pelo contexto que eu estava, pelo interesse e essa vontade de fazer Rap me levou a escrever também. A gente teve um grupo de Rap e querer escrever umas letras medonhas (risos), mas esse ambiente também me educou de alguma forma com esse olhar. Então talvez, até a busca por um “Capitães de Areia”, uma identificação com “Capitães de Areia” e não com Um Sidney Sheldon ou Agatha Christie que tinha bastante no Círculo do Livro também lá para vender pelo contexto assim, de uma literatura um pouco mais social e… mas li também Agatha Christie, essas coisas.
P/2 – Eu queria perguntar qual foi o seu primeiro contato com a poesia, mas foi o Rap então?
R – É. Eu não sei se intuitivamente eu diria isso, porque é isso, quem ouve Rap não necessariamente tem consciência de que é um contato com a poesia, na real, até o próprio rap se apresenta mais como música do que como poesia, então… embora a base, os caras mais antigos assim, o Gil Scott-Heron, o Last Poets, sei lá, são os primeiros poetas que deram origem ao hip-hop, ao rap eram poetas do beatnik, os negros do beatnik, mas eu não sei se eu racionalizava dessa forma, assim. Eu ouvia também Chico Buarque, ouvia Caetano e também não entendendo eles como poesia, entendendo como músico. Então, essa compreensão de que isso é poesia veio pra mim depois, já como poeta: “Ah não, pô”, eu já tinha lido… já tinha ouvido muita poesia, já tinha ouvido o Belchior falar: “Ora te direis, ouvir estrelas…”, sem saber quem era, e já tinha ouvido o Fagner que gravou um poema, acho que… esqueci agora, não sei se é do Olavo Bilac, mas o Fagner que gravou e…
P/1 – Cecilia Meirelles.
R – Cecilia Meirelles, mas acho que ele também gravou um do Olavo Bilac. O Fagner teve alguns flertes com isso, de gravar poemas e tal, Belchior teve, eu já tinha ouvido, mas sem ter consciência do que era, algumas modinhas de viola que são recolhidas da poesia popular que é uma coisa que eu amo de paixão, depois eu morei um ano em Recife, antes de eu morar em Natal, eu morei um ano em Recife, já estou acelerando lá para frente, mas com 18 anos, com 17, eu morei em Recife, foi bem no ano que o Chico Science morreu e tal. Então estava toda aquela cena efervescente, eu consegui ver um show do Chico Science dois dias ou três antes da morte dele, foi um show ruim, inclusive, na época não gostei, mas que eu tenho essa memória de um show, os caras muito bêbados de mais e um show fraco, mas é uma impressão muito forte assim e aí também sem ter consciência do que era poesia, eu ainda acho que eu considero os meus primeiros contatos com a poesia de fato, porque acho muito fácil também falar assim: “Meu primeiro contato com a poesia foi quando eu escrevi um poema aos sete anos de idade”, mas você não estava nem pensando que você estava escrevendo poesia. Então eu prefiro falar que o meu contato com a poesia, o meu primeiro contato assim, de modo efetivo foi em Natal, a começar a pensar mesmo: “Não, é sobre poesia, por mais que ela esteja se manifestando através do rap”, porque nem todo rap é poesia, ‘por mais que…’, sabe, então é poesia porque está se manifestando na composição popular por mais que… então, eu acho que já foi em idade adulta assim, foi de fato, li Cecilia Meirelles, li coisas que na escola são obrigadas, então já tive esse contato com a poesia, mas isso que eu estou falando, eu gostei, provavelmente eu gostei assim, mas não é uma coisa que me marcou, tem poemas que me marcaram depois de novo, lembrando: “Pô, esse poema é fogo”, assim, eu já ouvi, né?
P/1 – Queria voltar a uma coisa, você falou que você fez quando adolescente, você fez um grupo de rap, foi isso?
R – É, eu tive um grupo de rap com o Neto, que era um amigo e que a gente pichava junto.
P/1 – Eram só vocês dois?
R – Éramos nós dois … era engraçado que não tinha o DJ, tinha dançarino e tinham dois amigos que dançavam, que era o Bira e o Newton e aí a gente ia para São Bento, os caras que dançavam na São Bento e tal. Eu lembro de algumas músicas… eu lembro da gente ter escrito algumas músicas, mas nessa época, a gente inclusive pichava muro, eu e o Neto pichávamos. Depois, o Neto foi um desses caras que viraram para o crime, e é bem triste porque é uma história bem comum no rap nacional de você ouve a história do relato do cara que só por falta de oportunidade, virou um criminoso, mas se fosse um cara que tivesse condições de ter trabalhado mesmo, era um cara que teria condições de ocupar um cargo bom, ser um grande empresário, uma coisa assim, que era isso, era um cara… ele tinha essa característica muito de liderança e aí, ele que… a gente meio que pichava junto, ele me seduziu para essa coisa do rap, aí começamos a escrever. Eu lembro de um refrão que não é adequado para o momento, deixa no molho… (risos)
P/1 – Não, pode falar.
R – É meio… é ruim até na real, mas era meio essa questão na época dos justiceiros muito forte, era até uma agressão gratuita a polícia, então deixa quieto…
P/1 – E qual era o nome do grupo?
R – Era FBI.
P/1 – FBI?
R – FBI, que era a mesma coisa que a gente pichava, depois eu não lembro como ficou. E ai, o Neto escrevia e escrevia bem até, com os erros de português e tudo, mas escrevia bem. A ideia era muito boa e clara, mas terminou que ele foi preso, depois… nessa época, ele foi mandado embora, ele trabalhava, ele foi mandado embora do emprego e…
P/2 – Mas isso era na sua adolescência…
R – É.
P/1 – Em Natal?
R – Não, em São Paulo.
P/1 – Não, a adolescência, ele passa aqui.
R – Em São Paulo. É.
P/2 – A infância que você passou em Natal?
P/1 – Não. Ele vai com 18 anos.
R – Fui com 18 anos para Natal. Então assim, o Neto tinha essa coisa assim, de articulador, sabe, ele tinha mesmo. E aí ele foi mandado embora do emprego, trabalhava de alguma coisa que ganhava relativamente bem para o nosso contexto. Eu lembro que eu trabalhava de office-boy, mas ele ganhava bem mais, ele já era auxiliar, tanto que as pick-ups, a gente fez uma vaquinha para comprar, ele deu mais dinheiro, então ele era meio… mas aí foi mandado embora do trabalho, ficou uns seis meses, um ano sem conseguir emprego, começou a roubar carro. Ele que era um cara totalmente avesso às drogas, até peguei um pouco essa influência dele, assim, sempre foi muito avesso, aí começou… virou ladrão e tal, aí um ano ou dois, ele já estava preso. É um contrato que até o meu tio ainda ficou morando na minha casa, de repente, ele me procurou de volta na minha casa quando saiu da cadeia e tal, mas é meio louca essa história, porque aí o cara vai preso, um amigo seu que vai preso e que quando ele volta, você sabe que é uma outra pessoa, você tem todo um medo daquela outra… do que é aquela outra pessoa, mas ele é teu amigo, você não consegue ver ele de outro jeito, então, tipo fica ali, ele estava ali, minha mãe ficava brava porque: “Pô, o moleque saiu da cadeia e tal”, mas aí tipo, sei lá, a gente estava ali na rua e via um carro de polícia, ele: “Deixa eu entrar, senão os caras vão embaçar”, entrava na minha casa para fingir que ia tomar um café. Então, tem um lance de acobertar, ao mesmo tempo porque é teu amigo, você não vê ele dessa outra forma assim, então isso é uma relação de alguma forma, é uma relação esquisita e louca para mim, no momento pensar sobre isso assim, sabe? Mas era isso, a gente tinha esse grupo que não vingou. Aí, eu por coincidência, eu fiz um outro grupo com um outro cara que depois, eu pichava junto com ele também, “A Máfia”, a gente ficava na casa dele ensaiando e tal, ele também envolvido com tráfico, foi preso também. Então, teve algumas relações interrompidas por essa relação amigo, cadeia, sabe? E alguns amigos que até por influência disso, irmão de um amigo que eu já conhecia na cadeia, então o cara que eu só conversei com ele a vida inteira via carta e de repente, fui conhecer na cadeia, assim. É meio louco!
P/1 – Mas você escrevia carta?
R – Escrevia umas cartas para esse amigo na cadeia, que era um amigo que eu não conhecia, irmão de um amigo. Aí o amigo foi, falou sobre mim, aí o cara me escreveu uma carta falando: “Meu irmão gosta de você…”, e tal, bom, o cara fica caçando assunto, o cara fica procurando para quem ele escreve, né? Na época, não tinha celular ainda tão livre assim na cadeia, fica procurando para quem escreve. Aí eu respondi: “Oh, cara…”, tal, aquela admiração também de moleque de periferia, de admirar os ladrões, os caras que estão presos, engraçado isso, essa mística do recluso. E aí escrevemos, trocamos umas seis cartas, cinco cartas e foi o meu primeiro contato com o presídio quando eu fui visitar ele. Eu visitei ele e foi uma experiência bem traumática assim!
P/1 – Por quê?
R – Porque primeiro que eu… embora, eu vivesse nesse lugar assim, não sou exatamente do contexto, eu não tenho essa admiração pelo crime e tudo mais, não estou fazendo uma apologia, estou relatando uma relação que de alguma forma faz com que eu seja mais flexível com outras coisas, mas eu não tenho esse interesse, esse glamour, nunca quis ser bandido e tudo mais, talvez em algum momento, você ache isso bonito, adolescente, o fascínio pela arma, qualquer coisa assim, mas não tenho, nunca tive essa intenção e nem essa coragem e tal. Mas é uma coisa maluca, porque de alguma forma, você convive num contexto que te relaciona com isso e aí vai lá e relaciona, vai fazer uma visita, sei lá, é meio louco assim. Eu acho até que eu perdi… você tinha feito uma pergunta ou…?
P/1 – É, eu perguntei o porquê.
R – Por que o quê?
P/1 – Porque tinha sido traumático.
R – Então, a visita é traumática, não é um ambiente… para quem não está habituado… pô, você vai lá, agacha para o cara ver se tem alguma coisa enfiada no seu ânus, sabe? O cara… a relação é de humilhação: “Por que você está querendo vir aqui?”, na real, é essa, tipo, pô, esses caras aqui era pra tudo morrer, tinha tudo que morrer. “Você está vindo aqui? Você não é nem parente do cara!” Tem um julgamento de algumas pessoas, inclusive meus pais, eu fui meio escondido para eles não saberem, sabe? Então tem isso, mas sei lá, é uma experiência antropológica, né?
P/1 – Sem dúvida!
R – Só que é meio louco, né?
P/2 – Você disse que não queria ser ladrão quando crescesse, não tinha esse fascínio, queria saber o que você queria ser, assim, quais eram os seus sonhos nessa época?
R – Quase ladrão, né? (risos) Não, não vou nessa sacanagem, mas é cantor de rap assim, eu tive essa vontade, eu tive essa vontade de ser atleta, cara, eu embora hoje não pareça, mas eu fui bastante atleta, com… atleta de atletismo inclusive, joguei vôlei, cheguei a jogar no juvenil da seleção brasileira juvenil…
P/1 – É mesmo?
R – É, mas… eu joguei no Corinthians, daí antes disso, eu joguei muito futebol, joguei futebol em times do São Caetano, ali e depois, me interessei pelo atletismo, então tinha muito isso assim, esse sonho de atleta muito envolvido pelos amigos também. Eu tinha um amigo, o Carlinhos, que depois infelizmente também morreu por motivo de drogas e tudo, foi assassinado, mas o Carlinhos me levou muito para essas coisas assim, o Carlinhos jogava muito vôlei, jogava muito e aí me fascinou pelo vôlei, era um amigo super amigo, assim! Talvez, o Carlinhos seja a minha primeira relação com a poesia, sem pensar assim, a gente ficava horas e horas, eu, o Carlinhos e o Alexzinho, um outro amigo, horas e horas inventando piadas com carros, com palavras, tipos anedotas, assim, sei lá: “Qual é o carro que quando você risca, ele vem? Fusca”, e as coisas que a gente ria pra caramba assim, entre nós, assim, uma coisa… um falava pro outro, falava: “Olha o que eu pensei aqui: qual a diferença entre a banana e o navio?” “Laranja não tem caroço”, aí tipo, ria, ria, ria: “Estou rindo pra caramba”, a professora: “Vocês estão rindo? Então vem contar aqui”, aí ir lá e contar, eu todo exibido, achando que era o maior negócio legal contar e todo mundo ficar assim… e ninguém entrar na nossa vibe ali, sabe? E também a relação de começar a entender que tinha uma outra conexão das coisas. Mas eu acho que com o Carlinhos foi um pouco esse primeiro… essa poesia de humor muito inventiva minha vem desse contexto, o Carlinhos, Tiago que é um amigo que tem uma banda de rock e tal. O Tiago foi bastante importante na minha formação como musical depois, de ver coisas, porque os pais do Tiago eram hippies, o pai e a mãe eram hippies e depois, um virou promotor de justiça do estado e o outro virou… sei lá, tipo… eram dois cargos assim, altos, ganhavam muito dinheiro e aí por consequência, eles compravam muito disco e muita coisa, então a casa do Tiago era sempre… e eles trabalhavam o tempo todo, então gente saía muito da escola e ia para a casa do Tiago, ficava lá ouvindo disco e tal… inclusive, o irmão do Tiago, por exemplo, era… foi a primeira vez que eu vi essa relação de uma casa onde o filho era usuário convicto, o irmão do Tiago usava maconha abertamente na casa assim, e tudo bem, não tinha muito essa questão entre eles, assim. Pra mim, era uma forma nova de pensar isso, porque até então, a minha relação com a droga era proibida, é proibido e aí o Tiago já é um outro cara que tem uma relação totalmente adversa com a droga por causa disso, pelo irmão assim, de ver: “Meu irmão é chapado demais”, tem até uma história dele levar maconha para o avô dele como se fosse orégano, pensando que era orégano para a pizza e essas coisas assim: “Não, isso aí é do seu irmão e tal…”, tem essas coisas. Mas aí a gente vivia nesse ambiente que tinha tudo assim, tinha Led Zeppelin, todos do Led Zeppelin, todo Raul, todo Caetano, todo Gil, todo… porque os caras eram promotores atualmente, estavam trabalhando e ganhando muito dinheiro, mas…
P/2 – Como uns hippies viraram promotor de justiça?
R – Ah cara, muitos viraram, é louco, mas é isso. A vida dá umas obrigadas em você e de repente, você vai trabalhar com uma coisa e ganha uma grana e vê que: “Pô, é bom ganhar grana”, e aí você quer ganhar mais e é isso, né? Os caras… tem vários hippies que se você der uma certa brechinha para ele no sistema capitalista, o cara vira, porque é um conforto… a não ser que o cara seja muito ligado, mas tem muita gente que não está tão preocupado com a doutrina e está mais preocupado com o conforto e tal. Então, algumas pessoas eram hippies por falta de esperança, não por excesso de crença no movimento natural e tal…
P/1 – Daniel, você está falando de trabalho, você começou a trabalhar cedo?
R – Comecei a trabalhar cedo, na verdade, eu teimei por trabalhar cedo, né?
P/1 – Com quantos anos?
R – Meu pai trabalhou cedo, eu teimei muito por trabalhar cedo, de office-boy, minha carteira de trabalho é com 12 anos, 13 anos, assim, com cara de criança (risos), assim, né? Hoje eu vejo a assinatura, ainda é hoje assim, aquela assinatura de letra cursiva, mal… e eu me lembro dos primeiros empregos assim, de office-boy, de entregar jornal, coisa de 13 anos, 12 anos, 14 anos, não sei precisar, mas nessa época, o meu pai relutando e trabalho de meio expediente assim, sabe? Aí o primeiro trabalho que eu me lembro mais certinho foi quando eu concluí o primeiro grau, que eu entrei no segundo grau em Publicidade, eu entrei para fazer Processamento de Dados por influência do Carlinhos e depois lá, namorei uma menina que me influenciou para Publicidade: “Você desenha muito e tal, é criativo”, e fui para Publicidade, deixei o Processamento de Dados para lá e comecei a trabalhar na Meio & Mensagem como telemarketing, mas tudo muito bico assim, trabalhar de verdade mesmo foi… trabalhar com mais consciência que eu estou falando assim, porque eu me considero poeta a partir do momento em que eu comecei a ter mais consciência disso e não tipo: “Vou escrever meu nome ao contrário”, então eu já era poeta, já fazia parlenda, sabe? Tem uma galera que é assim: “Eu descobri que queria ser jornalista com cinco anos, quando a professora me pediu para escrever uma coisa e eu escrevi: ‘Hoje mataram um homem na frente da…’”, sabe, não acho isso, eu acho que você escolheu ser jornalista a partir do momento em que você tem consciência do que é ser jornalista e tal. E eu acredito muito nas escolhas, tanto que por caráter da escrita, eu talvez nem fosse poeta, eu talvez fosse mais cronista do que poeta, mas porque eu escolhi ser poeta faz toda a diferença e aí o que eu faço é poesia, porque eu escolhi que o meu trabalho se enquadra dentro de poesia e durante anos e anos e anos, eu ouvia isso: “O que você faz não é poesia, tipo você falar: ‘Sandy e Junior é ótimo…’não é poesia, é teatro, é crônica, é qualquer coisa, menos poesia”, mas…
P/2 – E como que foi recebido a primeira vez assim, quando você apresentou…?
R – No geral, até hoje, ainda tem uns caras que vêm me falar isso, mas hoje já é assim: “Bicho, não me importa o que você pensa”, e eu acho que isso também é determinante, sabe? Porque quando você faz uma música que é poesia e você está escolhendo por isso, você está escolhendo enquadrar ela em poesia e não em música. Então, você também… eu também acho que o agente, ele é determinante nisso, se eu falo: “Eu sou poeta”, mesmo que eu não escreva, eu inclusive acredito nisso, acredito nas pessoas que podem se afirmar poetas sem escrever, porque tem gente que tem o espirito da provocação do poeta, não acredito na poesia apenas como palavra, eu acredito como linguagem mesmo, como modus operandi, então tem gente que pode, inclusive, falar sobre poesia sem escrever assim, até porque a escrita é uma invenção nova, a galera fala: “Sou mais tradicional, eu só faço poesia escrita”, mas a poesia escrita é uma invenção nova, poesia oral e falada ou personificada é desde de que o mundo é mundo, a invenção da poesia, ela começa na oralidade, a escrita que é nova, a escrita que tem 300 anos, tem 200 anos, o cara falar: “Não, mas eu sou poeta tradicional, eu escrevo…”, não pelo contrário, você é moderninho, você só escreve… o tradicional sou eu que veio da oralidade e tal…
P/1 – E Daniel, você falou que tem… você vive em São Paulo até os 18 anos, é isso, e aí você se muda para o Nordeste?
R – É, eu fui para o Nordeste porque começou a ter aquela expulsão do trabalho, as fábricas daqui começaram todas a migrar por isenção de imposto e tudo mais e aí o meu pai ficou entre a cruz e a espada do tipo: ou você vai para o Nordeste para ocupar um cargo melhor até lá, né, para ser diretor e tal – aqui ele era gerente de fábrica – ou você vai para a rua. E aí o meu pai também devolveu isso assim para nós, ele colocou… isso é uma coisa que eu tenho uma criação bem… eu acho importante falar que eu tenho uma criação bem livre, eu acho, os meus pais são bem cabeça aberta, no sentido de sempre dialogaram, sempre envolveram, então eu acho que o interesse pela leitura também já vem disso, sabe, se você tem uns pais mais truculentos, assim, você trava com um monte de coisas, e meu pai é bem temperamental, mas ele ao mesmo tempo, ele tem as convicções dele, mas ele em princípio, parece que ele impõe, porque ele é nervoso, então aparenta uma truculência assim, mas ele nunca foi muito relutante, então é interessante isso. Então, ele trouxe para a gente essa conversa: “Eu vou para lá, mas eu só quero ir se todo mundo for e então, eu quero o pensamento de vocês”, ninguém tinha muito a perder, ele falou: “Ninguém vai ficar, nós vamos como uma família, vamos juntos ou se um não quiser ir, não vamos”, meu irmão, na época, se opôs porque ele tinha entrado no Mackenzie, meu irmão tinha 18 mesmo, eu tinha 17 e o meu irmão se opôs. Quis ficar e tudo, mas negociou e foi. E aí a gente foi nisso assim…
P/1 – Então, só ele fica, o resto todo foi?
R – Não, não, ele quis ficar, mas ele abriu mão e foi e ele até se frustrou um pouco, porque aí ele foi para a Universidade de Direito de Olinda, que ele não gostou…
P/1 – Ah, vocês foram para o Recife?
R – Nós fomos primeiro para o Recife, um ano, a gente morou em Jaboatão dos Guararapes e aí foi bastante motivo de redescoberta porque a princípio, quando você ouve… isso foi uma coisa bastante chocante para mim, essa coisa do preconceito paulistano que eu tinha, embora eu sempre convivi no ambiente com nordestinos, muito, porque era… mas o preconceito do paulistano. Então quando se falou que se ia para Jaboatão dos Guararapes, você fala assim: “O quê que eu vou fazer da minha vida agora?”, e aí você chega em Jaboatão dos Guararapes e fala: “Nossa, tem prédio!”, lógico que tem prédio, imbecil…
P/1 – É colado no Recife!
R – Toda capital é igual, na real, por mais que você fale Recife, é bem parecido com São Paulo, reduzido no corel, diminuiu a força, mas é uma cidade igual São Paulo, com os mesmos problemas de mobilidade, igual. Tem tamanho, tem produção artística talvez até mais… e aí em Recife, eu deslumbrei, porque isso, eu tinha um certo preconceito, o centro de tradições nordestinas aqui, o que tocava era Chiclete com Banana, forró, fui meio… e aí cheguei lá na efervescência do Manguebeat e falei: “Caraca, o mundo é muito maior do que o original rap nacional, de bombeta no canto, o sistema lá e nós aqui”, essas coisas todas que eu via com uma certa dureza, a arte tem que ser tradicional, ainda em Recife, ainda fiquei nessa coisa muito de que lado eu vou escolher, os lados tradicionais, que resgatam a cultura ou o lado dos vanguardas que estão e aí foi muito rico estar em Recife nesse momento, porque lá, os vanguardas também olhavam para a tradição e aí era essa questão de tipo, nada tem que ser estanque, a cultura viva e respeitar a tradição não quer dizer obrigar ela ser tradicional, quer dizer deixar ela se movimentar como um ser vivo, se ela quiser mudar, ela muda, mas durante um tempo foi difícil de eu entender isso, ficava nessa coisa de essência, eu tendia ser um conservador em arte, coisa que hoje, Deus me livre, ainda devo carregar características disso, mas eu pensava que a arte tinha que preservar uma essência, hoje pelo contrário, lógico, a essência tem que existir, mas a arte é justamente romper com as essências e misturar as essências e combinar as essências e fazer as coisas andarem, eu tenho outra visão assim, mas na época, era essa visão do tradicional, tal. Então eu cheguei lá no momento em que o Ariano Suassuna era uma figura importante e fui aprendendo a lidar com isso, assim, de entender que o Ariano Suassuna é massa, é legal, mas aí tem hora que ele fala: “Chico, eu amo tudo o que você tem Chico e odeio tudo que você tem de Science”, é uma bela frase, mas é uma frase bem estúpida, né? E aí, pensar nisso, o Ariano Suassuna precisa existir e ele é um gancho da minha rede e a Valesca Popozuda, nem a Valesca Popozuda, pode ir até para qualquer coisa mais louca ainda, mas sei lá, na época, eu pensava que era o Michael Jackson o limite de onde eu podia ir, hoje eu já penso que iam deitar na rede, eu pendurar uma rede nos dois ganchos, eu deitar na rede e escolher de que lado fica a minha cabeça, inclusive, ou se eu quero sentar e ficar no meio, ou se eu quero ficar mais ou menos assim na rede, ou se eu quero ficar: “Agora minha cabeça está ali no funk”, sabe? Essa coisa foi o que eu aprendi muito com o Manguebeat, que eu poderia ter aprendido com a Tropicália, dependendo do momento em que eu nasci, do contexto que eu estou, mas eu aprendi com o Manguebeat e que eu acho que foi um grande movimento, ainda por ser dado a devida proporção a ele, lógico, ele já tem um respeito, um respaldo, mas acho que ele tem uma coisa a nível Tropicália, assim, e já um passo à frente também, porque lógico, a Tropicália fez a coisa dele e ele já mostrar outras coisas também que pode ter tudo assim. E aí Recife foi legal para mim, conviver com isso, um ano de Recife foi um grande intensivo, nessa época, eu era capoeirista ao extremo, jogava capoeira todo dia, de segunda a segunda, ia para a praia treinar salto, saía da escola, era viciado. Então, eu estava de olho nas culturas populares e tradicionais, maracatus e coisas e frevos, estava nessa descoberta do corpo como cérebro, né, estava nesse momento do conhecimento do corpo e fui para lá e pirei, porque lá a capoeira é muito louca, é capoeira de rua, tem muita malandragem mesmo e a capoeira… eu esqueci de falar, mas a capoeira foi uma coisa importante assim também no alocamento da minha cabeça, assim, sabe? Se você for ver, eu só estou falando de música brasileira, por exemplo. Eu não ouço muito música estrangeira, na real, eu não sou um cara radical de falar assim: “Não, ouço só a música brasileira”, mas eu acho que eu não dou conta nem da música brasileira, quando eu começo a pensar na cultura brasileira eu não dou conta, então não quero muito saber da cultura americana ou de outras culturas, porque eu não dou conta nem do que tem aqui, sabe? Então o meu recorte acabou ficando nisso, não por ignorância ou por limitação e tal, as coisas que me chegam, eu recebo, mas eu não fico muito curioso em descobrir uma banda nova do Alasca, tem algumas pessoas que quase já não ouvem… eu acho que se eu começar a pegar, só estudar o samba, se eu fizer esse recorte ainda mais o samba, eu já não daria conta da vida de segurar tudo assim, porque é tanta gente que você vai descobrindo, então eu acabei fazendo esse recorte no Brasil bastante por causa da capoeira, a capoeira falou: “Não pô, a cultura brasileira é louca”, se a gente tem uma arte marcial rica como a capoeira, que é brasileira, que é a mistura de… que pode ser música, que pode ser dança, que pode ser luta, que pode ser tudo isso e aí isso também na minha cabeça ficou: pode crer, a ginga que é um passo a frente e um passo a trás, pode ser mas pode não ser e aí, todo esse conhecimento filosófico ficou na minha vida assim, de olhar para o Brasil, olhar para as culturas afro-brasileiras, afro-indígenas-brasileiras e tudo o que vem nesse bojo assim, e não só afro-indígenas-brasileiras, afro-europeias-brasileiras, ou europeias ou euro-brasileiras e aí, eu fiquei bastante nisso, lá tinha o Armorial para…
P/1 – O movimento Armorial…
R – Para quebrar. Em Recife, esse cenário ficou muito amplo na minha cabeça, pra mim, que até então os principais coisas que eu tinha visto e entendido era o rap e o punk. Então a cultura do punk é uma coisa que ficou muito forte em mim no sentido… e no rap também do “faça”, sabe? Faça você mesmo, vai lá e faz, seja ativo, mas aí o caldeirão misturou de um jeito em Recife que eu falei: “Nossa, o mundo é grande pra caramba!”, aí eu pensando: “Não é o mundo que é grande, eu estou pensando só ainda no Brasil’, sabe, depois de um tempo, falei: “Caramba, o mundo é muito maior”, mas não vou ficar querendo dar conta do mundo, não quero dar conta da galáxia, então sou até um pouco cósmico por causa disso, porque eu sou um macro mesmo… um microcosmo porque se a gente for olhar para o macro é muito…então eu prefiro ser pequenininho mesmo e mundaninho.
P/1 – Antes do intervalo, você estava falando desse impacto todo do Recife na sua cabeça e na sua visão do mundo e vamos continuar, então.
R – Tem uma ladainha lá, que eu acho bem bonito, na real, durante um tempo eu queria fazer isso, eu queria responder a tradição ali, ficar pesquisando cantos de capoeira, inventando cantos de capoeira, pesquisando isso, já me bastaria, inclusive. Tem uma canção lá que meio que estalou na minha cabeça no sentido de… também não recorta tanto, que é: [cantando] “Vim do Recife, um rapaz me perguntou se na ciranda que eu vou tem morena. Eu disse: Claro, tem morena, tem mulata, dessas que a morte mata, mas depois fica com pena”. Então, olha que tem mais coisa, tem morena, tem mulata, se você matar, você vai ficar com pena. Então aí, eu falei: “O recorte é lindo, mas eu acho que também, eu não estou aqui pra isso, só”, aí a minha natureza urbana me puxando de volta para cidade, porque aí eu fiquei pensando nessa coisa de ir para a roça, de estudar os maracatus rurais, de olhar essas coisas, de… adoro, adoro! Por exemplo, quer ver me perder hoje, vai ter um coco, eu entro no coco e o coco… coco aberto, no Sarau do Binho, muitas vezes acontece isso, pessoal do Candearte aberto, senta no coco, o cara te chama para rimar também, eu adoro essa coisa de criar ao vivo, ali, errou, vai tomar uma pesada, então adoro mesmo e o meu processo de criação estourou aí, só que ainda não tinha nascido. Eu ainda… por exemplo, na roda de capoeira, nessa época, eu cantava, a galera me zoava pelo jeito que eu cantava, porque eu cantava tipo: [cantando] “O mundo de Deus é grande”, eu achava que tinha que cantar, na real, porque eu ouvia os mestres cantando assim, na verdade, eu não associava que a voz do cara que era assim, eu achava que era o jeito. Aí eu cantava: [cantando alto] “Eu estava lá em casa”, aí os caras olhavam e falavam: “Que diabo é isso? O cara fala… a voz dele… ‘Eu estava lá em casa’, de repente o cara tá cantando: [cantando alto] “Eu estava lá em casa, não sei que, não sei que lá”, aí você fala: “Cara, esse cara é louco? Está igual a voz do Pato Donald”, mas estava nisso, de entender o que era tradição, o que era renovação e aí eu fui para Natal também. Natal abriu uma outra porta para mim, que foi a porta da universidade.
P/1 – Mas você foi sozinho ou foi a família toda?
R – Não, fui com a minha família, fiquei um ano, exatamente em Recife, um ano, exatamente. Eu cheguei acho que dia 28 de janeiro e saí no dia 28 de janeiro do outro ano. Depois, eu voltei e morei mais oito meses de Recife já sentindo saudades da cidade, do urbano, porque Natal é uma cidade menor, uma cidade pequena, fui morar numa cidade… numa capital, mas uma capital pequena, o que é muito bom e muito rico, mas para quem está interessado em produção cultural, às vezes, é muito complicado. Então, em 98 eu fui para Natal, cheguei em Recife em 97, fui em 98 para Natal. Em 98, eu entrei na universidade, aí já abriu outras questões, aí no começo da universidade, eu estava… aí eu virei o tradicionalista, o primeiro ano de universidade, tudo: “Ah, é vendido! É vendido. O bom é a essência, não sei o que da pureza, a pureza, depois você descobre que a vida é um banquete de vários sabores: “Não quero preto, não quero branco, quero todas as cores”, né, esse é o poema do DJ Dolores e aí mas eu estava nessa fase combativa: “Eu vi toda a pureza tradicional de Pernambuco, é lindo lá, a noite dos tambores silenciosos”, estava nessa coisa assim, e os caras: “Não, mas tem banda de rock em Recife também” “Ah, que banda de rock, os caras estavam…”, estava nessa fase aí de combater a pureza.
P/1 – Você estava fazendo que curso?
R – Eu fiz Comunicação. Eu não sabia muito bem o que fazer na universidade, eu fiz curso técnico de Comunicação, de Publicidade, por causa do desenho, mas eu entrei para fazer Processamento de dados, uma namorada me levou para Publicidade porque eu desenhava bem e não tinha descoberto ainda que a minha vocação era ser artista, ou não tive culhão para encarar isso, até que um mexicano me falou uma vez: “Tiene cujones de viver sua arte”, e aí é bem isso. E aí eu não tive essa coisa anda e eu vinha dessa herança de uma família de operários, valor do trabalho e tal, e aí fui pensar em como o meu trabalho poderia me dar dinheiro, me dar sustento e fui para Publicidade, que é o jeito mais fácil de ganhar dinheiro desenhando, escrevendo, né? É onde você mais vai ganhar dinheiro escrevendo, por exemplo, ou desenhando, mas que dinheiro, né? O dinheiro é igual ao dinheiro do roubo, porque o cara fala: “Vem fácil e vai fácil”, porque é um dinheiro também que sei lá, você acaba tendo que gastar de volta também. Mas enfim, aí estava nisso. Aí eu fui estudar Comunicação e na universidade eu tive contato com o curso de Jornalismo e ficava meio em cima do muro do Jornalismo, porque eu gostava muito, até mais de jornalismo do que de Publicidade, mas eu sou artista e tal, Jornalismo não é tanto artístico e tal, eu ficava nisso, mas ao mesmo tempo, eu gostava mais da ideia de Jornalismo que depois eu vi que era uma bobagem também, que não é, porque o jornalista hoje é quase que um publicitário também, que acha que não é publicitário, mas eu ficava nessa questão e aí eu conheci varias pessoas do jornalismo, começamos a fazer zine, fizemos um zine chamado Blasfêmia, os caras, por alguma razão acharam que eu era poeta, falaram: “Não, você faz a parte de entrevista”, fazia umas entrevistas e aí sim, foi onde eu falei: “Pô, poesia, coisa”, aí eu fui estudar os poetas lá no Rio Grande do Norte tem uma tradição muito forte de poesia, tem um poeta em cada esquina, tem esse mito, mas isso foi no Censo de 2008, no último Censo aí já deve ter uns 40 por esquina, porque é um lugar muito da performance, tem núcleos da pesquisa de performance, interessante e aí começaram a me chamar dessa coisa de poeta performático, o que eu odiava. Falava: “Pô, mas que poeta performático? Eu sou poeta!”, e até hoje eu reluto, mas é isso, porque eu acreditava que não era performático, não era uma performance, é um modus operandi de poeta, é a mesma coisa que tem gente que falava: “Eu ali vinha de constante personagem”, de fato, personagem ali, personagem poético, mas é um modus operandi de poeta, chega uma hora que é uma farsa, mas é uma farsa poética mesmo, assumida, então é tipo uma postura, só porque essa postura não é a linear regrada da vida normal, normalista, você diz que é um personagem? Mas eu estava descobrindo esse pensamento, e eu comecei a fazer sarau lá, comecei frequentar um lugar que chamava “Sociedade dos Poetas Vivos e Afins do Rio Grande do Norte”, só antes uma observação importante é que a universidade pra mim, abriu o mundo porque aqui eu tinha muita dificuldade, porque na escola era aquela escola muito fechada, eu aprendia muito fácil, acho que tinha uma certa inteligência pra aquilo, então eu ficava desenhando a aula toda, não prestava atenção, bagunçava, tinha esses amigos que gostava de rir, ficava zoando, era tudo muito fácil, eu não podia debater com o professor. Então não me interessava, me interessava por um ou outro professor de história crítica que deixava conversar, quando eu cheguei na universidade, o mundo abriu: eu posso debater com o professor, então eu virei o aluno chato, que depois eu dei aula e vi como é o aluno chato, mas eu virei o aluno chato, de chegar duas horas antes na biblioteca, eu trabalhava e ia direto para a biblioteca, estudava um pouco já vendo o que ia ter na aula pra ficar questionando e debatendo e depois disso, ainda fazia capoeira depois da aula, ia dormir uma hora da manhã. E foi uma fase que eu acabei tirando o esporte da minha vida por causa disso, por falta de tempo.
P/2 – Capoeira é esporte, né?
R – Então, mas foi a fase que eu tirei a capoeira, porque não vai dar pra ficar treinando todo dia até uma hora da manhã, entendeu? Capoeira todo dia até uma hora da manhã para acordar às seis para ir trabalhar… e aí eu fazia isso, eu chegava na biblioteca e ficava devorando para questionar o professor, então abriu o mundo para debater, para falar: “Eu sei desse assunto também”, para ficar debatendo, e não deixava a aula evoluir, às vezes, o professor ia falar daquilo dali duas horas, eu ficava querendo mostrar que era sabido. Depois, eu fiquei dando aula na universidade, né? Foi um período que eu dei aula na universidade, nesse período, eu fiz universidade de yoga, virei instrutor de Yoga, então eu sempre tive muita hiperatividade, muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo e todas essas coisas foram me dando ferramentas e foram me moldando e me liberando de algumas coisas, então continuar fazendo elas ou deixar de fazer elas foram fazendo o que eu sou. Então, dar aula na universidade foi uma delas, porque aí também foi um agente social de transformação, foi o olhar como educador, mesmo estando no mercado trabalhando como profissional o dia inteiro, para esse novo modo e aí, foi nesse momento quando eu conheci o Rui e o…
P/1 – Rui o quê?
R – Rui Rocha, poeta mineiro, de Montes Claros e o Rui… eu sempre tive para mim que a educação de São Paulo é bem limitada, a educação estadual e tal e aí o Rui era monstrão, ele é mineiro e gosto muito de Minas, acho Minas ainda é lugar que eu pretendo para morrer, para chegar em Minas e ficar lá, banho de cachoeira, aquela coisa, eu acho mineiro… a conversa do mineiro bom assim, eu acho Minas um lugar educacional, galera com uma base forte e aí o Rui que é mineiro, conversava muito com ele disso e via todos os meus desleixos da base, tudo, via muito forte no Rui, ele tinha conhecimento e tal de poetas, ele conhecia…
P/1 – O Rui é o cara do Sarau?
R – É, aí com o Rui eu fiz o Poesia Esporte Clube.
P/1 – Mas olha só, nessa época já tinha o sarau como a gente entende hoje aqui em São Paulo, era chamado de sarau? Como é que era isso?
R – Então, em 2001, a gente frequentava a “Sociedade dos Poetas Vivos e Afins…”, não a partir de 98 eu comecei a frequentar lá, em 99, fim de 98, 99, foi onde eu inventei o poema do Gago, Sandy e Junior, esses poemas aí que eu já tinha abandonado, de repente, quando eu voltei para São Paulo, viraram sucessos de novo, mas…
P/1 – Pois é, fala do Sandy e Junior, ele não teve muita poesia aqui…(risos)
R –Sandy e Junior, vou fazer uma versão bossa nova deles, que é um banquinho e um violão, porque Sandy e Júnior precisa de energia. Na real, foi um dia que eu estava vendo na TV um poema, eu estava vendo uma música, na época, Sandy e Junior estava em tudo quanto é lugar, você abria o vaso do banheiro, saía Sandy e Junior, Sandy e Junior é uma pessoa só. E aí estava nisso e aí eu me lembro que eles lançaram aquela música: [cantando] “O que é imortal não morre no final”, e eu fiquei: ‘meu Deus, eu tenho que falar alguma coisa, tal…’, e aí surgiu o poema que é assim: “Não! Porra Sandy e Junior, é óbvio, é óbvio, é óbvio, é óbvio, não Sandy e Junior! Não! É óbvio Sandy e Junior, é óbvio, é óbvio, é óbvio. Porra Sandy e Júnior, é óbvio, é óbvio, é óbvio, é óbvio, é óbvio, é óbvio, é óbvio que o que é imortal não morre no final”. Só que esse poema depende muito do modus operandi, foi a primeira vez que eu ouvi muita gente falar: “Mas isso não é poesia”, ou: “Não, isso é uma crônica no máximo, ou uma loucura tua, uma moganga”, começaram a chamar disso, porque eu faço bem: “Ããã”, porque esse poema só existe na indignação, inclusive quando eu vejo outras pessoas fazendo, eu falo que não acontece, porque o cara não se indigna, se não tiver indignação ou então, ele deu uma outra leitura, uma leitura de amor mas que ele mostre isso, porque é uma frase repetida ao esgotamento e o que faz é o modus… é o modo poético, mesmo. Então, foi um…
P/2 – E o do Gago?
R – O do Gago foi… o do Gago também foi inventado nessa “Sociedade dos Poetas Vivos e Afins”, porque tinha uma menina lá que tinha um problema mental e até físico e ela foi falar um poema e gaguejava muito e a dificuldade nela nisso tinha toda essa beleza de… era uma pessoa que tinha muita dificuldade em produzir um poema e que queria mostrar, inclusive, e que queria se expor ao mundo, se colocar no mundo e aí eu vi: “Pô, isso é um modo poético que eu estou falando, sabe?” a pessoa não… você via muita inocência na articulação da ideia, muita dificuldade na exposição, mas ela precisava falar uma coisa… e ela falava da exposição dela mesma, da deficiência mental, como as pessoas tratavam isso e ela falando, então esse “preciso falar” que eu fiquei: cara, isso é um modus operandi, essa é a coisa e ela gaguejou de um nível que não… ficou incompreensível, ficou quase um poema dadaísta e aí na sequência, eu levantei… eu gosto muito disso, meu processo criativo envolve isso, eu tinha ideias de coisas que eu queria fazer…
P/1 – Então volta, o seu processo criativo…
R – Então, o meu processo criativo é parte disso, de eu ter… não estou falando que é o único, porque aí eu sou bem ferramentado nisso, mas o meu processo criativo parte de eu ir com uma ideia para um evento de poesia e falar ao vivo, criar o poema ao vivo, do jeito que ele sair, porque os repentistas no Nordeste me fascinavam muito. Só que aí ele não fica como o repentista do Nordeste que ele obedece a cadeia, ele fica do jeito que ele fica e eu, como comunicador, me interessava pela recepção, estava estudando isso, a base das recepções e tudo, então me interessava muito pela recepção, então para mim, não adiantava eu criar um poema no canto, lá no quarto, e não entender o que… não contemplar a recepção. Então eu comecei criar ao vivo, e aí eu ia, errava e passava vergonha, é uma coisa que até hoje tem, no Sarau do Burro, eu esqueço e não importa, até isso faz parte do jogo, é você pensar assim: “Poxa, se o apresentador erra, por que eu não posso?”, entendeu? Já virou uma postura política: então qualquer um pode ir, se o apresentador é burro desse jeito, esquece as coisas, não sei que, se ele que é tipo, todo mundo considera ele, por que eu não vou me expor? Sabe, essa coisa de se expor que aí foi uma técnica que eu descobri do poeta palhaço. Mas voltando a produção, eu ia e me expunha ao ridículo, de poder errar, mas também de poder acertar e aquela coisa acertada na hora funcionou, a primeira vez que eu fiz Sandy e Júnior, eu tinha uma vaga ideia do que eu queria fazer, aí eu me joguei e no dia, talvez, por estresse, eu: “Ããã, ããã”, é isso, amalgamou ali, ficou tipo impresso no meu corpo de que é isso e aí toda vez, de alguma forma, por mais que eu tente por exemplo fazer uma versão MPB volta o estado de espírito do corpo, eu acredito muito nessa sabedoria do corpo, e isso foi a capoeira que me deu, mas essa coisa de… por mais que eu: “vou fazer a versão Sandy e Júnior MPB”, o corpo faz isso o tempo todo: “Ããã, ããã”, quero ficar de pé, mas tenho que ficar sentado porque tem a câmera, é isso. E aí fica nessa energia. E eu acredito muito nisso de criar ao vivo. Então, vários poemas… do gago foi criado assim, na lata. Mas eu ainda não entendia isso como uma técnica, eu entendia que eu quero falar isso agora e quero falar e vou e pronto e não importa se as pessoas vão julgar que é um poema ou não. E aí eu levantei, tinha acabado de ver o que ela fez, eu levantei e fiz: “Vo, vo, você já, já, re, re, re, reparou como é ri, ri, ri, ri, ri, rítmica e po, po, po, po, pop up, po, po, po, poética, a, a, a, a fala do, do, de, de, ca, ca, cafônica de um gago”, e aí foi na hora, levantou e pum, eu tenho que fazer alguma coisa com isso, se movimentar sobre isso.
P/1 – E o público?
R – Então, aí era na SPVA, a galera, na hora teve uns que nem entenderam, que diabo é isso? Porque é isso, na SPVA, que é a Sociedade dos Poetas Vivos é muito parecido com o que é o sarau no geral aqui, que é muito diverso e tal. Então teve gente que o cara que lê Fernando pessoa e tal, que sempre recita um Fernando Pessoa, que inclusive usam a palavra “recitar”, porque eu acho que a gente fala poema e tal, o modus operandi o que importa é falar e não recitar, o cara vem e fala: “Nossa meu, o que é isso? O que é isso que esse cara fez? Não tem nada a ver”, né? Mas é isso. Lá conviviam várias escolas, convivia desde o cordelista, só que ao mesmo tempo eu vi: pô, mas o senhorzinho… o Pedro Grilo que é um senhor de 70 anos que é trovador, veio comigo e falou: “Está aí, poeta!”, aí eu disse: “Pô, é isso, se eu consigo conversar com o…” se o Pedro Grilo que é um trovador que faz glosa com toda estrutura, se eu peguei ele, eu posso pegar qualquer um, então eu posso pegar. é isso, aí eu comecei a ficar inquieto com a SPVA, porque a SPVA tinha essa coisa de todo mundo ser aplaudido no final, que eu acho válido, tem um caráter social, mas que na pesquisa, a gente já não queria mais aquilo: eu, o Rui e o João Xavier que foi um poeta que eu conheci lá SPVA que foi uma grande influência para mim também, porque é um poeta que usa muito repetições, então tem uns poemas fogo: “Viver ainda vai me matar, viver a travessia e regular que se desvia para fora de ser e de estar. Não é causa e nem efeito para travessia não há jeito, atravessar é fatal. Só há um leito de lama e lodo no final, cai nessa travessia se quer me perguntaram se eu queria e de repente, me veem em poesia querendo correr uma maratona por dia. Tico e Teco, tic e tac, tic e tac, o tempo vai passando e eu aqui sentado no banquinho conversando. Viver, viver a travessia, moleque se desvia para fora de si, de lugar não há causa nem efeito, para travessia não há jeito, atravessar é fatal, só um leito de lama e lodo no final, cai nessa travessia, se quem me perguntaram se eu queria e de repente me veem em poesia querendo correr uma maratona por dia. Não sei o que me quer a poesia, essa mulher que me fantasia e me consome, só sei que ela está a me levar para o seu lugar onde ela se esconde e assim sinto rocar, quando eu vou olhar, ela já me some, esqueço até o meu nome, é a minha menina levada, danada. Estou sempre a perguntar sua morada e ela me diz muito mal educada: ‘Não te direi, pois devo te lembrar que és apenas um rapaz, um aprendiz, de mim não sabes nada’, eita poesia danada!”. E aí, com o João Xavier, eu comecei a pensar nisso assim: caramba bicho, olha o truque dele de costurar os poemas dele, então são dois poemas juntos, ou ele vai e volta em um ou ele faz umas repetições que fixam na cabeça. Tem um outro: “Na cidade do nascimento, já muito tenho morrido, é um vale do esquecimento dos mortos e oprimidos. Na cidade do sol, não me nasce na janela, dessa solidão, muito sinto as sequelas, na cidade do casarão de sua existência morreram todos, enlouqueceram de inconsciência e não conseguem nascer de novo”, e aí ele faz de novo, como padre: “Na cidade do nascimento, já muito tenho morrido…”, então eu comecei a ver isso e falei: “Nossa, que louco isso!”.
P/1 – Então, foi uma experiência nova desse convívio e aí que vocês criaram a Poesia Esporte Clube, foi isso?
R – É, eu já tinha essa busca pela repetição, mas eu comecei a ter mais consciência disso e mais confiança de conteúdo, porque por exemplo, o Rui, ele já tem… o Rui é aquela cara: “Carlos Drummond de Andrade”, lê, sabe, trouxe para mim Nicolas Behr, trouxe para mim… e aí vale falar… você falou da influência lá, nessa época, eu não sabia do movimento de sarau de São Paulo, mas chegou para mim um CD do CEP 20.000 da Trip…
P/1 – Do Chacal.
R – Do Chacal e do Zarvos, e com um monte de gênero, esse CD é #procure saber, tem que procurar, se você tiver me vendo agora, em 2088 ou em alguma… procure saber desse disco porque é fundamental, para o nosso século. Mas tem um monte de gente boa lá, Viviane Mosé, o próprio Cazé Pecini que virou VJ, o Pedro Rocha, Guilherme Zarvos, o Levy, Guilherme Levy, o Fausto Fawcet, Michel Melamed, então um monte de monstrão que se reunia no Cep… sem contar as músicas, de vários… então o disco é muito bem resolvido, para mim que gosta das mordidas nas canelas. E aí me influenciou: “Nossa, poesia falando sobre ficar de pau duro, pô!”, aí eu falei: “Nossa, agora abriu a regra para mim, agora sim, agora eu sei do que eu estou falando”, comecei a olhar isso: “Pô, quando fico de pau duro, sinto-me Deus, não Deus como Zeus no olimpo, Deus como Jesus, como homem no garimpo. Ao achar a maior pepita, sinto-me Deus, sinto-me novo com toda grandeza de ser de um povo, sinto-me um ovo fecundado como um viado a dar o rabo, sinto-me alado, sinto-me luz cuspida de meus lábios, sinto a explosão dos teus quando me coloco Deus no meio de tuas pernas”, aí: “Pô, olha que legal isso, o cara vai construir com as pedras que a gente encontra no caminho, né, aí Michel Melamed: “É impossível lápis cocacolico, como alguém diria, como é o nome daquela refrigerante, mesmo? Aquele preto, parecido com a Pepsi, nunca, seria imperdoável, você pode esquecer a idade do seu pai, a luz acesa… o que era mesmo, hein? Mas o lápis cocacolico está em extinção”, aí eu falei: “Nossa velho”, do Chacal: “Ao, ao, a objetividade da fotografia é uma falácia…”, e tem a do Fausto Fawcett que é genial, que é a Fêmea de Camafeu, Viviane Mosé é lindo: “Acho que a vida está passando a mão em mim, acho que a vida em mim, por falar em sexo quem anda me comendo é o tempo, mas já faz tempo e ele me pegava a força e por trás, até que um dia resolvi encará-lo de frente e disse: ‘Tempo, se você tem que me comer, que seja com o meu consentimento e olhando nos olhos, eu acho que eu ganhei o tempo, de lá para cá, ele tem sido bom comigo”, comigo não (risos), mas a Viviane, ou do Fausto Fawcett que é genial, que tem a Fêmea de camafeu, que é: “Pra você, a fêmea de camafeu”, e aí tem a coisa da persona poética, o Fausto Fawcett e o Zarvos têm a coisa da persona poética, tipo, o Zarvos nem tem tanta produção poética, mas é aquele cara tipo Oswald, sabe? Oswald tem lá seus poemas, nem acho tão iluminado assim, mas é o Oswald, é o cara que é o agitador, é o cara que criou os conceitos: “Olha aqui, puxa aqui, fala com esse, pá, pá”, e você vai ficar julgando: “O cara escreveu dez livros ou 30 livros, mas o outro escreveu 100, então ele é mais poeta”. Eu acho que tem essa coisa do poeta, do químico, de: “Nossa, misturei o Jonas com sei lá, com Berimba e deu um que…”, sabe, essa coisa meio de inventor. E aí o Fausto Fawcett tem essa coisa muito louca assim, os dois poemas do Fausto Fawcett, do Guilherme pra mim foi: “Nossa veio!
P/1 – Isso você comprou como um encarte da revista “Trip”?
R – Um encarte da revista “Trip”, aí eu fiquei pensando: nossa, os caras abriram as regras do jogo pra mim, agora. Agora, vale tudo, velho, vale tudo, camisa suada, vale tudo, vale joelhada na cara, vale carrinho na jugular, porque o do Fausto Fawcett é assim: “A fêmea de camafeu…”, perdão aí, não vamos chegar nunca na persona do Fawcett, mas: “Para você entender, você tem que pegar dois nomes de mulheres muito lindas, muito loiras de televisão, de cinema e os nomes têm que ser meio parecidos para fazer uma espécie de semi-anagrama pop ou quase isso e aí você vai com as 100 crianças orientais com seus bambus, com seus crucifixos de bambus, com 100 Pokemons crucificados e os caras vão repetindo, repitam comigo, vai, Nicole, Nicole Kidman, Caroline, Caroline Dieckmann, Caroline, Caroline Dieckmann, Nicole, Nicole, Nicole Kidman, Nicole Dieckmann, Caroline Dieckmann, Caroline Kidman, Nicole, Nicole… e aí você passa pelo pântano dos danados, um lugar horroroso, onde estava todo mundo se matando e tal e ninguém te ver e nenhum dos Holyfields angustiados consegue te ver e aí, você vai, vai, Nicole, Nicole Kidman, Nicole, Caroline Dieckmann, Caroline Kidman, Nicole, Nicole. Aí você consegue passar pelo pântano dos danados e encontrar a fêmea de camafeu”. Aí eu fiquei: caramba velho, eu não sei nem do que ele está falando, não sei nem que história é essa, não sei nem porquê que a Carolina Dieckmann e a Nicole Kidman entraram aí, fora o som, mas é sensacional, é gostoso de ver, é intrigante. O do Guilherme Zarvos que é: “Cachorrinho…”, como é? Da Bianca Ramoneda: “Cachorrinho gatinho, me dá a patinha. Não, não, não, não quero transar não, só dizer que eu gosto de você, amor grátis, a transformação, a torta de nata está virando cocô, igual o meu salário, eu sou só o canal, ele passa, eu sou só o canal, além Paraíba, longe é um lugar que existe dentro de você. Eu estou sempre me procurando e sempre que eu me encontro eu descubro que eu mudei de endereço”, aí o bagulho começa muito louco, muito torto, de repente, vem um pá, sabe, é tipo um funk, começa tudo torto, é só um funk, né? Aí vem uma frase que salva tudo, que é tipo: “Também acho bonito o relógio e corrente, mas o mais importante é o que está na sua mente, planta no chão, planta no chão, pega a sua mente e planta no chão”, podia ser só isso, mas aí tem toda uma série de confusões para te mostrar isso.
P/2 – Tem uma coisa pesada nesse funk, né?
R – O quê? É, também. Isso aí é um truque, isso aí já é um truque. Aí já é o Guilherme Zarvos. O Guilherme Zarvos… então, esse CD da Trip me fez ver: é isso que eu quero fazer. Aí, a gente inventou o PEC, que é o contrário do CEP, né? CEP é uma homenagem, PEC – Poesia Esporte Clube, e aí tinha o slogan que era: “Fazer da poesia o esporte nacional”, o slogan modesto, né? A intenção é essa: fazer da poesia um esporte nacional e aí, de lá para cá, eu tenho trabalhado com isso. Mas o PEC acreditava que o CEP era assim, eu achava que o CEP era o que é tipo o Sarau do Burro, um espaço aberto onde os loucões chegam e se manifestam. Depois eu fui descobrir, às vezes, a ignorância é uma virtude, depois eu fui descobrir que não, que o CEP era para convidados, seguia uma lógica até menos anárquica do que eu achava que era, mas quando eu ouvi aquilo, eu falei: “Não, isso só pode ser anarquia, não tem outro nome”.
P/1 – Mas vem cá, do CEP para o PEC, o que era o PEC então?
R – O PEC é o Poesia Esporte Clube, era eu, o Rui e o Xavier e era uma reunião de poetas, onde você podia… não tinha tema, não tinha inscrição, não tinha microfone, é um embrião do que é o Sarau do Burro. Também não tinha poeta, porque em São Paulo, você faz uma reunião dos anões albinos, já tem 50, é bem isso assim, se você fizer isso, tem 50 anões albinos (risos). Em Natal, por mais que tinham poetas, os poetas não queriam entrar nesse contexto, tipo, o Dia da Poesia, eu nunca vi um lugar ser tão comemorado o Dia da Poesia como em Natal, porque sai poeta de tudo quanto é lugar, você vai no Mcdonalds, abre uma tampa, sai um poeta: “Bigmac, Mac…”, entendeu? (risos) No Dia da Poesia é muito, mas o Xavier falou uma vez: “O dia que eu menos vejo poesia é no Dia da Poesia, porque é um monte de louco também querendo aparecer e tal”, mas Natal tem uma característica forte disso, mas não ia, o PEC era muito assim, tinha sete pessoas, dez pessoas, a gente fez isso 2001, 2002, 2003, 2004, 2005, uns quatro, cinco anos, né?
P/1 – Toda semana?
R – Não, não, uma por mês, na Casa Ribeira que é um espaço foda lá. Eu sempre tive essas relações com casa. Aqui, por exemplo, eu gosto muito da Casa de Francisca, Casa da Ribeira. Outro dia, o cara falou: “Fundação Casa”(risos), Casa de Detenção, não, mas eu gosto desses lugares que tem a ver com casa, porque é isso, eu não acredito muito nessa arte do pedestal e aí o PEC tinha isso, todo mundo é igual, não tem microfone, não tem tema, não tem homenageado, não tem… nada é muito grandioso, é isso, nossa vida já é grandiosa demais, a intenção era isso, falar: “Nossa vida já é grandiosa demais”, sabe? O modus poeta é um modus operandi para o dia a dia, como você vai lidar com as coisas, como você vai… claro que a gente se molda, recebe algumas outras cacetadas e tal, mas o PEC já era isso, tipo: poesia do dia a dia… que aí foi o que o CEP me fez ver, o cara falando: “Porra, já bebi dez cervejas, mas não consigo parar de pensar na porra do cachorro que eu matei de manhã, merda do cachorro. Mas o vira-lata era pequenininho, passou na minha frente e deu para ver que eu quebrei os ossos dele, não sei que… maldito, mas eu devia ter feito o quê? Morrido igual o Zen que morreu batendo de frente na porra de uma vaca na estrada? Maldita vaca solta na estrada, tonta, mas o cachorrinho era pequeno e chorou como bebê e deu para ver que ele estava sofrendo, meu Deus! E você, conversa de zona de dizer que coitadinho, não sei que… deu para ver que você deu para muitos, a sua buceta ficou larga, larga, que você fez alongamento! Sei não, que papo de zona, sou otário? Eu vou mudar dessa porra dessa casa! A cor dos seus lábios hoje estão meio pálidos”, aí tipo, do Guilherme, do Zarvos, eu falei: “Caralho meu, o que é isso? Aí mudou bastante a regra do jogo para mim, aí eu comecei ser um loucão, porque aí eu queria ser o Guilherme Zarvos, que chance que eu tinha, né? Depois que eu conheci o Guilherme Zarvos de verdade, eu falei: “Nossa, não tinha chance nenhuma!”, mas eu fiquei assim: “Nossa, eu quero ser esses caras”, foi meio Rock Band, o disco branco dos Beatles: “Caralho, o disco vermelho e preto da poesia”, e aí eu fiquei bem impressionado com isso e começamos a correr atrás disso, de fazer o que eu achava que era o certo. Depois, eu vi que o certo era outra coisa, tinha palco, tinha… mas até então ali, como ele chegou, eu pensei: “Puta, é uma anarquia, o bagulho é isso”. Aqui em Natal, o Sarau escolhe o homenageado, aí o homenageado é Cecilia Meirelles, aí você chega e vai falar um poema da Cecília Meirelles sobre amor num tempo atrás e de repente, você vê que naquele dia foi uma merda, você está com ódio, você não quer falar de amor, você quer falar de ódio, mas você tem que falar daquele poema… então, eu comecei a pensar: ‘não, vamos deixar a coisa mais natural, para que no dia do sarau o cara falar o que ele quiser falar’, se naquele dia foi uma merda, a vida dele foi uma merda, ele falar merda; se aquele dia, a vida dele foi boa, ele pode falar coisa boa e essa troca das energias vai fazer os jogos se darem e esse jogo que é o mais rico, , o cara que… aí foi quando eu vim para São Paulo, por motivo de trabalho, eu voltei para São Paulo, também estava sentindo essa necessidade de voltar para São Paulo e aí, em 2006, 2007 eu casei, 2006 eu vim para São Paulo…
P/1 – Espera aí, 2006 você casou?
R – Dois mil e sete.
P/1 – Dois mil e sete. Então, parenta isso daí, como é que você conheceu a Sinhá, foi lá em Natal?
R – Conheci a Sinhá, eu era do DCE, eu era do movimento estudantil na universidade, eu sou dois anos mais velho que ela, e eu estava dois anos na frente na universidade, e aí ela entrou na universidade, eu entrei na sala para falar e ficou ali, ficou ali um clima, a sala dela tinha muita mulher, mas muita mulher bonita, ela era de um grupo que tinham seis mulheres bonitas, sete mulheres bonitas e andava tudo junto e era aquela coisa que você falava: “Caralho, as Spice Girls!”, só mulher bonita e andando, tal e eu: “Nossa senhora!”, e na real, estava todo mundo entrando na universidade, elas também, então estava todo mundo disponível, as meninas em festa, dando sopa e tal, e ela é muito mais quieta, nunca foi muito… ela é quieta, tem uma postura mais quieta, herdada do pai dela, a mãe dela é muito expansiva e ela é poeta no modus operandi. A mãe dela é, o pai também é, só que o pai é um poeta de poucas palavras, a mãe dela é poeta no sentido de inventar, falar frases populares geniais, sabe: “Segura no pincel que eu vou puxar a escada”, e outras expressões, coisas que ela fala, isso aí sei lá… ela fala um monte de expressão que é muito legal, agora eu não estou lembrando.
P/3 – Essa é boa.
R – É, ela fala… como é? Tem uma que ela fala que é genial também. “Só quer ser…”, uma coisa assim, sabe, “Saí dai que você não sabe ser” (risos), é uma coisa assim, é pior ainda, você quer ser, mas você nem sabe ser e tantas outras expressões, ela é de Umbuzeiro na Paraíba, são tantas expressões geniais, a avó dela depois que teve Alzheimer também com umas expressões geniais, falar que… por exemplo, um dia ela acordar gritando: “Minhas pernas, cadê as minhas pernas?”, a mãe dela falar: “Ah mulher, as tuas pernas estão lá fora, deixei elas ali para descansar um pouco”, ela: “Não diga uma coisa dessa, pelo amor de Deus”, então é ou ela viu o diabo, ela chamava o diabo: “Seu carne assada”, porra, o diabo ser o carne assada é genial, diabo vive no fogão lá o dia inteiro, então a carne é… mas aí voltando, para o casamento com a Sinhá…
P/1 – Você viu ela na universidade e aí…
R – A gente se viu na universidade, na turma e beleza, ficou ali uns flertes entre amigos e tal, mas a gente se paquerava ali, mas isso, ela era muito quieta, até que um dia, no fanzine que eu fazia, caiu uma palavra “entretenimento” no editorial, aí eu olhei e falei: “Meu Deus, entretenimento, bicho? Como é que a pessoa escreve entretenimento? Gabi, Gabi Freire, como é que escreve entretenimento?”, escreveu por erro e falou… veio puxar assunto, falou: “Porra, entretenimento, estou zoando” “Estou ligado”, aí começamos a conversar a partir disso, ela me mostrou uns poemas dela, ela pintava. Os poemas até bem ruins, na verdade, ela vai ficar com raiva disso quando ver, mas… pode cortar, mas não, uns poemas meio roubados do Vinicius de Moraes, mas dava para saber que sabia escrever e tudo e também, mesma coisa eu, também estava roubando Guilherme Zarvos, ou Fausto Fawcett. Que a Sinhá depois, virou a poeta da casa, de fato. Espero que nossas filhas derrubem esse posto dela e depois, as netas derrubem também, porque aí eu vou me sentir realizado como o judeu, que ele só se sente tranquilo depois que… o judeu ortodoxo só se sente tranquilo depois que o neto frequentador da mesquita e tal. Eu também, se as minhas netas forem poetas, eu sinto que eu cumpri a minha missão. Mas a questão aí, a gente começou a namorar, agora faz 15 anos já, começou em 2000, né?
P/1 – Ela tinha 20?
R – Eu tinha 20 e ela tinha 18. Foi quando ela entrou na universidade, aí depois, eu dei aula para ela. A gente trabalhou junto, mas aí tudo já namorando. Aí com sete anos de namoro, eu vim para São Paulo, aí a gente casou, casou na Igreja, formal mesmo. Uma das fotos que eu poderia ter trazido era do álbum de casamento, mas o álbum de casamento era tão pesado, que eu desisti. Aí talvez, eu possa até mandar…
P/1 – Manda, manda que é legal.
R – Eu acabei trazendo mais fotos de trabalho, mas aí a gente casou. A mãe dela, ela gosta muito de coisa de festa, de decoração, então ela fez um casamento ferrado, assim! Ferrado, tem um álbum de Holy Bible, coisas que no meu modus operandi nem caberiam, mas que foi super bom, super legal de vida. Aí, ela veio para São Paulo comigo quando…
P/1 – E qual era o plano que vocês… vocês tinham algum plano: vamos para São Paulo porque nós vamos fazer…
R – Não, eu vim empregado, na real, eu vim para trabalhar na África, eu trabalhava na agência África e eu voltei para trabalhar. Foi até uma dificuldade de eu sair de Natal, porque foi eu me desvencilhar do PEC, uma dor no meu coração que eu tenho hoje é que o PEC acabou sucumbindo, eu gostaria que o PEC existisse, mas também é muito difícil de eu exigir do meu compadre lá que ele fique segurando essa peteca porque aí, o João Xavier foi para a Paraíba, e o Rui fixou lá e tal, mas sempre que eu vou, eu tento resgatar, o PEC que é a sigla do meu coração, hoje o Burro já tomou uma proporção afetiva grande, mas o PEC é isso, eu mantenho esse slogan de que eu vou transformar a poesia no esporte nacional, antes eu brincava que eu ia ser o Neymar, mas agora já não dá mais para brincar com isso, eu estou mais sei lá, para o Wladimir, ou o Roger Milla, mas… ou o Zidane, né, o Zidane pode ser, o Zidanilo também, mas aí eu voltei para trabalhar, mas eu estava sentindo falta, eu estava angustiado para sair de Natal, eu já tinha ido para Recife para sair de Natal e eu estava procurando, não foi que foram me procurar, eu fiz umas peças de… eu trabalhava com Propaganda, eu fiz um portfólio bacana para ir Recife e aí um cara daqui de Natal chamado Guaraí me chamou para vir, eu vim e foi bem difícil cortar esse elo com a Poesia Esporte Clube, abrir mão disso, que hoje é uma coisa que toda vez que eu vou pensar em sair de São Paulo, tipo, eu já penso em morar fora e tal, fico: puta, meu e o Sarau do Burro, será que morre? Fico… sabe? Fica nisso, putz, será? Virou uma cria, né? Uma cria que a gente se prende ali, mas aí eu vim para isso, para trabalhar. Aí como foi depressa, ela queria casar na igreja pela mãe dela, aí ela ficou lá organizando o casamento durante um ano, eu vim, passei um ano aqui sozinho trabalhando. Quando a gente casou, eu vim para cá, a África me mandou embora! Cheguei aqui, casado e demitido. Aí, eu fui procurar outras coisas, e eu perdi um tempo para retomar a poesia, eu fiquei de 2006 a 2000… não, 2006, é, 2006, 2007 e 2008 como frequentador e aí eu não me sentia também muito parte, por exemplo, na Cooperifa, evoluiu muito e eu acho isso muito válido, mas eu me sentia meio fora porque os poemas eram muito gozolândia, os caras até falavam isso: “Pô, o cara vem aqui falar de Sandy e Junior? Nós estamos aqui para falar do sistema”, hoje com o movimento… os saraus periféricos evoluíram absurd… em questão de abstração, produção de pensamento… porque era muito ainda cria do rap muito social, hoje não, hoje já é de uma amplitude isso e eu acho historicamente, válido. Naquele momento… eu não estou falando isso como uma censura, naquele momento eu achava válido, eu só não tinha uma sensação de pertencimento, então fiquei meio flutuando, sem saber onde ir, ia nos lugares, mas não me identificava muito, achava meio monotema ou meio… sabe, ficava meio assim. Aí foi quando eu conheci o Binho, foi quando eu conheci o Maloqueiristas, primeiro, né? Conheci o Maloquieristas que tem uma visão mais aberta, também mais cria do CEP 20.000, e aí eu falei: “porra, legal, os caras são mais loucos, falam qualquer coisa e tal…”, fiquei assim, o Maloqueirista é uma influência legal e tal, comecei a andar com os caras e tal. Nessa época, por falar no disco branco, aí eu quase fui o quinto Beatles ficava nessa coisa, eles nunca me aceitaram como isso, mas era, oficialmente não era, mas eu andava tanto com os caras, todos os eventos deles eu estava, o Caco até chegou numa época e falou: “Ah, vou te botar nesse CAI-MAL, porque você está em todos os CAI-MAL, começa a cair mal, mas você vai lá e faz uma performance, quer dizer, eu não vou te botar no flyer, mas vai lá e faz, porque… então era muito isso. E aí, o Maloqueirista teve uma identificação mesmo por gostar dos caras como amigos, depois os filhas da puta ficam brigando, você… mas por gostar mesmo dos caras que vinham no bojo, das pessoas que vieram no bojo também do maloqueirista, essa possibilidade de agregar do Maloqueirista. Eu gostei… eu sempre gostei de todo mundo que eles foram agregando, sabe, então o Maloqueirista tem essa coisa assim, mas os caras ficam brigando, perde um pouco a relevância, porque começa a diluir, né? Fica assim, tal, mas o Berimba, um cara que eu admiro, o Caco é um cara que eu admiro e todas as pessoas que eles trouxeram, Jonas, o Vitor, a Juliana, a Carol, a Paloma Clisses, o…
P/2 – O Tostes
R – Não, o Tostes é do Maloqueiristas, só que é isso, Tostes já foi primeira briga, aí eu gostava quando eles fizeram a banda, o Experimento Prozotipo, eu gostava da ideia, da visão deles de poesia.
P/1 – Só montando a cronologia, olha só, nós estamos em 2015, você está falando de 2008, é isso?
R – Dois mil e… não, aí é antes de 2008, porque é quando eu estava só com o Maloqueiristas, 2005, 2006,… não, 2006, 2007 e 2008, por aí.
P/1 – Então, olha, 2007, oito anos atrás. Você conseguiria dizer como era a cena daquela época e como é hoje? Mudou, cresceu, diminuiu? Ampliou…
R – Eu… eu não tenho empoderamento suficiente para falar disso, porque eu não estava fazendo, de fato, a cena, eu estava participando como expectador, eu posso falar desse prisma…
P/1 – Sim.
R – Tudo isso só para não perder também a minha relação com isso aí, paralelo a isso, entrando e saindo de agências de propaganda, seja mandado embora ou me empregando nisso, então, isso me consumia um tempo, então nessa época, eu falava mais de fora, eu me encaixava de acordo com o que eu podia fazer, então o que acontecia? Eu trabalhava às vezes… na África, por exemplo, eu trabalhei de janeiro a julho sem folgar sábado e domingo, direto, seis meses e trabalhando até nove horas da noite. Então era muito puxado e no dia que eu tinha folga, eu pegava o Guia da Folha e ia em tudo que tinha, eu acordava às dez horas da manhã, vai ter uma caminhada no parque, ia, ficava louco assim, para poder consumir, parque caramba, eu estava aqui em São Paulo e eu vim por causa da cultura, se eu não me envolver com isso, o que eu estou ganhando? Estou aqui gerando dinheiro para o Nizan ficar milionário e tal… e aí, a cena estava rolando, mas ainda não tinha… foi o momento que começou a surgir a segunda geração, se assim a gente pode dizer, porque a primeira geração é ali a Cooperifa, o Sarau do Binho, pelo menos dos periféricos, que aí tem outros saraus que dizem que são mais antigos e tal, mas eu estou falando desse contexto porque tem… lógico, deve ter um sarau na USP que tem 50 anos, deve ter tantas outras coisas, mas estou falando desse contexto especifico, aí tinha a Cooperifa, o Binho, acho que era isso assim, né? E aí nesse momento, começou a surgir o Sarau da Brasa, o da Ademar, eu posso cometer algum delito aqui, mas o Elo da Corrente, e aí perdoa quem tiver assistindo, porque se eu não citei o seu nome, mas o Elo da Corrente, aí o Maloqueiristas, e aí foram surgindo os saraus novos, assim, Mesquiteiros…
P/2 – E o Burro?
R – O Burro, aí o Burro em 2008, então essa coisa… mas essa geração ainda é a segunda, tipo o Sarau da Brasa, o Elo da Corrente, o da Fundão, acho que alguns saraus aí mais… antes do Burro, um ano ou dois antes, o Poesia Maloqueirista, o Maloqueirista já estava aí na cena, mas sempre flutuando, então essas coisas… aí hoje, se for para caracterizar, o Burro já seria uma terceira geração, fim da segunda geração, já pegando a terceira. Hoje dá para dizer que é uma terceira, que aí já tem… hoje tem, muito sarau, né? é fácil de comparar porque naquela época não tinha, não tinha, inclusive nessa época, surgiu o Rui, o Rui Mascarenhas, poeta da Bahia, não sei se vocês conhecem, mas importante, colava no maloqueiristas, por que eu gostava do maloqueiristas? Lea, eu conheci o Galdino, o Mascarenhas. O Mascarenhas, parece que ele tinha uma formação de ópera, ele cantava: [cantando] “Bahia”, ou então: “A cabeça é o que lhe impede de rasgar… rasgar a cabeça”, era um bagulho assim, pô, legal, coisa rigorosa! E aí o Rui organizou uma espécie de Guia dos Saraus, naquela Casa das Rosas, nessa época tinha 60 saraus, sei lá, era coisa pra caramba, mas se fizer hoje, cara, tem dois por dia, tem três por dia, hoje tem… todo dia tem, então, hoje tem mais de 200 saraus, deve ter, né?
P/1 – Naquela época tinha 60 e aí já começa o que vem primeiro das suas realizações é o Sarau do Burro?
R – Aqui em… ah, eu esqueci de falar de um período… de uma coisa importante lá no Rio Grande do Norte, porque lá a gente organizou um selo de poesia também… de literatura chamado Jovens Escribas, então eu sou um dos fundadores do Jovens Escribas e esse selo se tornou num dos principais selos do Rio Grande do Norte, até hoje, então tem mais de 50 livros publicados. Na época, foi uma reunião de quatro amigos: eu, o Fialho, Patrício e Tiago Goes e aí a gente conversando, Fialho tinha um conto dele chamado “Galado”, que é uma palavra de lá que representa galar, como galar o ovo, de galado, de esperma e aí meio que perdeu a autoria, já tinha virado do Luís Fernando Veríssimo, o Veríssimo nunca morou em Natal, mas tinha um conto, já começaram; sabe aquela coisa, Clarice Lispector, o conto dele já começou… um conto não, era uma crônica, e aí, para ter de novo o domínio, ele falou: “Vou organizar um livro”, aí procurou quem da idade dele estava produzindo, falaram: “Tem o Minchoni que é poeta, fica inventando uns bagulhos lá na praia”, nessa época eu ficava gritando na praia uns poemas, fazendo uns ataques, aí fazia muito isso na rua, os caras: “Então chama”, aí ele chamou pra gente conversar e aí era um de conto, um de crônica, um de poesia e um de… o Patrício lançou logo um catatau de 300 páginas, bem pretencioso, mas foi legal, um momento em que a gente começou a publicar livros. Aí da demanda de publicar os nossos livros, foi daí que surgiu o meu livro, eu escolhi o titulo. Da demanda de publicar o meu livro, a gente começou a publicar para outras pessoas, deu certo. Primeiro, foi um pensamento de publicitário: “Vamos nos reunir, porque aí a mídia dá mais propaganda”, né: “O Jovens Escriba lançou o quarto livro”, do que: “Daniel Minchoni lançou um livro hoje”, quem é Daniel Minchoni? Foi um objetivo acima que de repente, virou uma editora e tal. Eu tinha esquecido, porque eu falei em off na câmera, da coisa do meu primeiro livro que saiu em 2006. E aí, logo na sequência, depois, eu vim para cá. E…
P/1 – Agora, Sarau do Burro.
R – Então, mas só para falar um pouco do que eu falei em off do livro, é que o livro, ele tem… e agora, fizemos umas análises, o livro tem já um encaminhamento disso, porque é um livro meio aberto para você completar. Então, já tem essa minha crença de uma poesia não necessariamente fechada, onde o receptor importa, onde o receptor pode completar, onde o receptor pode participar e isso misturado com o PEC que tinha essa essência com o Burro, com o livro deu essa ideia do Burro, de um evento que possibilita o diálogo. Porque quando eu voltei para São Paulo, o que me incomodou mais desses saraus já tradicionais não chegava a ser igual de Natal que tinha tema, embora premiava bastante o tema social, o que eu acho super válido, eu acho louvável, mas no Burro não tinha essa característica, porque ele nasceu num lugar onde não necessariamente, era esse o intuito, ele nasceu lá no Vergueiro, numa casa de artistas. Então, o objetivo do Burro era aglutinar aos escritores de rua, grafiteiros, pichadores e tal e a relação deles com a poesia, porque sempre foi uma coisa muito presente na minha vida olhar a pichação, os caras pichar: “Pichar que nós apaga”, sempre foi muito interessante isso: “Loucos são os caretas que vivem caretas nos loucos”, essas frases que os pichadores colocam e as letras em si me interessava. Aí no Burro, o objetivo inicial era isso, só que quando eu cheguei aqui de volta e vi como é que estava a cena daqui, a maioria dos saraus era tudo muito grande, aí a piada do albino, dos anões albinos, tudo aqui é muito grande, tudo, né? E aí precisava de um microfone, uma inscrição, aí às vezes, a sensação que eu tenho no sarau do microfone, não como crítica, mas como reflexão, é que você… às vezes, eu quero falar alguma coisa que dialoga com o que você acabou de falar, mas a minha inscrição é daqui meia hora. Aí daqui meia hora, eu venho e falo: “Não, como disse aqui o nosso amigo…”, aí você fala: “Pô, agora?”, sabe? O que o outro falou mesmo? Por que ele fez esse comentário? Vira um diálogo individual. No Burro, aí o que eu vi que poderia ser um possibilitador, no Burro tem mais essa característica dessa reunião tribal que o PEC tinha e como tinha muito poeta aqui, daria para acontecer. Então tipo, se tem muito poeta, dá para eu fazer um PEC aqui ampliado aqui, que é o Burro. E aí, com muito mais gente, a coisa vai fluir em um nível e tinha a possibilidade do diálogo, que é o que eu acho o grande trunfo do Burro. Nem todo mundo percebe isso, até porque tem gente que chega e participa, tem a característica anárquica que eu acho rica também, não tem um mestre de cerimônia, não tem uma verdade. Eu, particularmente, fico ali cerceando, mas eu não sou um mestre de cerimônia, o Giovani, inclusive, falou isso uma vez para mim, falou: “Pô, mas tem que ter mestre de cerimônia”, foi lá e não entendeu muito bem o sarau: “Mas que sarau é esse?”, tipo, ninguém chama o outro para receber palma…
P/2 – Qual Giovani?
R – Baffô. Ele já falou isso para mim assim. E na real, eu falei: “O objeto é a poesia, cara, não é a gente ficar na coisa social, só por isso já vai ser social, saca, um monte de moleque louco fazendo poesia já é social, já é criação”. E aí, o Burro tem essa coisa do diálogo, o que eu acho bem interessante fora essa coisa do anárquico, que é você fala um poema de amor e eu estou puto com o amor hoje, eu debulho na hora, se você falar um poema racista, o cara pode devolver na tua cara, na hora. Então, o Burro… aí o nome veio disso, uma homenagem ao VCini que é o grafiteiro que pinta no sarau, que era o dono da casa onde ia ser realizado e o Burro… a palavra “burro” sempre me interessou, que eu via a pichação dele na cidade e pensava: “Pô, mas quem que picha burro?” Porque burro sempre é… pichação sempre é uma coisa que se coloca para cima pelo bem ou pelo mal, tipo: “Eu sou o mais podrão, o mais imundo”, você está falando mal de você, mas você está falando bem. Ou então, os mais queridos, ou os mais valiosos, não sei que. Então, era sempre assim e o burro tinha uma ironia que eu não entendia, será que o cara está se zoando ou está… eu sempre gostei disso, dessa ironia, dessa coisa do Tom Zé, ali. E aí quando eu descobri que ele pichava o “Burro”, falei: “Que nome é esse?”, e aí tinha o contexto de eu ter um sotaque de nordestino, de eu estar voltando do Nordeste, de ser um animal presente, do burro ser o trabalhador, essa coisa toda e aí o burro dá coice também, né? Então, o sarau dá uns coices também. Então tinha todas essas coisas, o sarau, às vezes, você entra lá, querendo… “Ah, não tem inscrição, então eu posso fazer o que eu quiser”, e aí você toma um coice porque não tem uma inscrição, mas é uma reunião tribal, entendeu? Não tem a fogueira aí no meio, mas tem uma dinâmica, calma! Sabe, aí é a coisa da sabedoria da capoeira, da roda, de entender, da malandragem, para cima, para baixo. E eu fiquei muito feliz porque ele foi se formatando, o Sarau do burro, ele é muito formatado, aí comecei a ouvir um monte de coisas, a pergunta mais comum: “Por que burro?”, a pergunta mais comum. E aí, vem no bojo, todo o… fora esse contexto que eu dei, um monte de coisas que começou vir, porque o burro, por exemplo, depois eu descobri que era o símbolo da Catalunha, e os catalães são os caras mais… se você pegar a história da arte, dez poetas, vão ter uns três catalães. Se você pegar os dez mais vanguardas, você fala sobre os dez pintores mais vanguardas, vão ter uns cinco catalães, é um povo muito vanguarda. Aí, eu falei: “Porra, isso tem tudo a ver com o Sarau do Burro, é um povo muito ligado a pintura, isso tem tudo a ver com o Sarau do Burro, que é um sarau ligado a pintura, porque sempre, cada mês tem uma exposição diferente”, aí pô, começou a vir um monte de coisas, de iluminações a marca, por coincidência, sem querer, eu pensei num burro, eu falei: vou pegar um burro, aí busquei um burro na internet para fazer a marquinha do burro lá, aí sem querer, eu peguei a marca do… eu descobri que a Catalunha, o símbolo da Catalunha é um burro, porque eu roubei a marca da Catalunha, então a marca do Burro é a marca da Catalunha (risos) roubada e distorcida para fazer a palavra burro, que é um burrinho no formato da letra escrevendo Burro. Então as coincidências divinas também da coisa, eu sou micro, mas eu entendo o macro operando. E aí eu deixo o macro operar, mas eu não quero muito discutir com ele, nem me desentender com ele, porque o maior é Deus, pequeno sou eu e as coisas que… ou Deus que seja, eu quero mais é entender o mundaninho aqui, porque eu sou bem mundaninho, essa coisa de cidade…
P/1 – E o Burro tem o quê? Oito anos?
R – O Burro tem de 2000 e… não, acho que não. Acho que é seis ou sete anos, porque ele… eu sou ruim com datas, porque vocês podem ver aí, eu já falei que fui em 98, depois foi em 97… eu acho que o Burro é de fim de 2008, começo de 2009, mas eu não sei. Mas no realease, a gente já botou 2009, então tem esses…
P/1 – E contínuo?
R – Contínuo, sempre foi mensal. Agora, a gente criou o Burro Ido, o Burro sempre teve uma relutância contra a música, porque a música no sarau, ela rouba a cena e o objeto do Burro era não ser a música, podia ser qualquer coisa, o cara levar um sapateado, podia ser a música, mas não podia ser a música no sentido de eu vou fazer um show. É: a música apareceu, eu sou um compositor e estou mostrando aqui na viola. E aí, a gente criou o Braço Armado do Burro, que é o Burro Ido, é um armado de guitarra, aí já é ao contrário, para fluir a música e tal, ainda nessa esperança de fazer da poesia um esporte popular, a música ainda é o melhor caminho, os slams. O slam também tem essa característica mais popular porque envolve sangue e as pessoas gostam, de ver os outros se lascarem, mas…
P/1 – Conta um pouquinho do slam.
R – A Sand slam… eu não sei precisar quando começou, mas eu acho que foi 2008, sei lá, uma coisa assim…
P/2 – Estou impressionado que em 2008 começou um monte de coisas.
R – Eu não sei se o ZAP é 2008, mas é por aí. E aí, o ZAP foi o primeiro slam no Brasil, Roberto trouxe essa cena e são slams de três minutos, então tinha uma questão muito forte da verborragia. E eu sempre gostei dos poeminimos, dos haicais, das coisas do Leminski. Ah, tem uma coisa que eu preciso falar mesmo, eu esqueci, mas eu preciso falar. O Itamar Assumpção para mim foi uma grande influência e muito mesmo, foi quando eu, como poeta consegui entender: “Pô, mas o cara na música…”, ele tocou Leminski, aí eu conheci o Leminski através dele, depois conheci a Zélia Duncan, mas o Itamar tem um episódio importante de voltar para 2000 ou para 98, que é que eu sou itamarista do sétimo disco, né? Então, nessa época aí que eu descobri o Itamar, em um show lá em Natal, um show que por coincidência, eu nem iria, eu tinha brigado com a namorada, eu não sabia nem quem era Itamar Assunção, mas uma música do Zeca Baleiro, que era outro cara que eu também nem conhecia e fui, porque a Gal Costa tinha gravado uma música do Zeca, aí o Zeca ia tocar lá, meu irmão falou: “Show do Zeca Baleiro”, eu tinha brigado com a namorada, falei: “Que diabo é Zeca Baleiro?” “É um cara que gravou uma música da Gal Costa, vamos comigo”, fui e pirei, o show dele começa num negócio assim, tocava todos os estilos de música, era muito louco! Depois, ele se especializou no Blues, eu acho até menos inventivo, mas ele foi muito importante para mim nesse período, o jeito que ele escrevia e tal e aí tinha uma música que ele falava: “Baudelaire, Macalé, Luiz Melodia…”, e aí eu fui ver na lista, pô, Baudelaire eu gosto, Macalé eu gosto, Luiz Melodia e aí tinha o Wally Salomão, que eu tinha conhecido através do rap, aí tinha um tal de Itamar Assumpção que eu não conhecia, pensava que era uma mulher: Tamara Assunção… aí “O resto é perfumaria”, o caralho meu, porra, o resto é perfumaria, o cara está no meio dessa lista… ele está e ainda termina com a frase que o resto é perfumaria, Van Gogh, Luiza Erundina, sei lá, um monte de nome, Vicentinho, Van Gogh, ele fazia essa sacanagem, e aí eu… pô! Aí, ia ter um show do Itamar Assumpção no dia que eu tinha brigado com a mesma namorada e aí, na Ribeira, eu fui e no show não tinha ninguém, tinham tipo, umas dez pessoas…
P/1 – Que é isso!
R – Pouco conhecido, ele já era pouco conhecido aqui em São Paulo, e tal, não tinha ninguém, mas um show vigoroso, ele desligou no violão, ele estava tocando o violão, baixo, violão, desligou e veio tocar na galera, todo mundo sentado na mesa, porque aí reuniu, ficou todo mundo sentado na mesa, tomando uma cerveja, ele sentou na mesa, ficou tocando aqui, a banda tocando lá e ele cantando aqui e tocando aqui. Aí, eu fiquei assim: meu Deus, veio, isso que é um show, porra? É como se eu tivesse na Casa de Francisca ha 20 anos trás, a Casa de Francisca que é um show que o cara faz para você. Mas aí foi um negócio que eu falei: caramba, quem é esse cara? Preciso saber mais dele! Aí, tinha… os discos dele eram difíceis de achar, eu consegui na Baratos e Afins, mandei um e-mail, tal e aí comprei tudo, comprei um primeiro para ver como era, foi o “Preto Brás”, aí eu ouvi, falei: “Nossa que é isso! Quero tudo”, aí fui, aí tinham uns outros muito melhor do que esse, o “Preto Brás”, não tinha facilidade da internet ainda, aí eu pirei, aí eu virei itamarista do sétimo disco, porque aí eu fazia o quê? Comprei 500 CDs nessa época, a família do Itamar me perdoe, comprei 500 CDs, copiei todos em mp3, discos, 500 CDs e distribui para todo mundo da universidade, chegava lá e falava: “Você conhece Itamar Assumpção? Ouve aí”, não sei quantas pessoas ouviram, ninguém nunca me falou desses discos, mas eu distribui 500 discos pensando: isso tem que ser conhecido. E até hoje eu ainda acho que tem que ser conhecido, acho Itamar importante, por isso que eu quis voltar, desculpas, eu até perdi qual que era o parênteses, né?
P/1 – Você estava analisando o Sarau do Burro…
R – Ah, falando do menor slam, porque aí o menor slam tem a ver com o Paulo Leminski, que eu conheci por influência do Itamar. É isso mesmo, e aí o menor slam é isso, era uma necessidade te ter também um formato de sarau… quando eu conheci o slam, eu achei legal o formato, inclusive…
P/1 – Mas era o de três minutos, né?
R – É, o de três minutos e eu pensei: pô, isso dá para TV, porque eu sempre tive essa busca: como botar a poesia na TV sem descaracterizar? E aí quando eu vi o slam eu pensei: isso dá para TV e fiquei nessa lombra, e tal. Aí o menor slam do mundo foi inclusive o haicai, eu tinha essa vontade: não dá para fazer um evento de poema curto, mas tem tanta gente que produz. No sarau, se você manda um poema… agora já tem o momento “Curtinhas”, mas não tinha esse espaço para curtinhas. Não tinha esse momento “curtinhas”, isso já é um negócio difundido, quase todo sarau tem, mas não tinha. Então, esse espaço da “Curtinhas” eu falava: “Pô, tem tanta gente que produz poemas curtos, mas também você vai no sarau e você espera a sua inscrição, três horas, até os caras que produziam poemas cursos, na hora que ele chegava lá e falava só”; sei lá: “Em casa de menino de rua, o último a dormir, apague a lua”, não fazia muito sentido você esperar duas horas, por mais que o que você quisesse dizer era isso, então você acabava aproveitando mais o tempo com outras coisas. O menor slam do mundo é ao contrário, é tipo um espaço para poesia curta e eu que gosto de falar para caramba, falei: “Vou fazer um evento de poesia curta que aí eu posso falar mais do que todo mundo”, falando o tempo todo, aí foi isso. O menor… só que era essa brincadeira, o menor formato que já existe, o mundo slam que tem em vários países, uma leitura brasileira disso, de poemas curtos. E aí eu pensei: bom, vamos fazer dez segundos é o menor tamanho de poesia, aí começou a aparecer gente com poemas de três segundos, então a gente falou: “Não, dez segundos é muito”, então vamos fazer o mini menor slam do mundo, para ser o menor slam do mundo vai ser o mini menor slam do mundo que são poemas de até três segundos. Mas aí aparecia cara com poemas de um segundo.
P/1 – De um segundo?
R – De um segundo. Aí a gente começou a brincar com… então vamos fazer o nano slam do mundo, que é o poema de um segundo. Então, tem o nano que é… aí, menor do que isso só o Pelé, porque o Pelé calado é um poeta. Menor que isso, só isso. E o Ferreira Gullar também está caminhando para isso, que o Ferreira Gullar também está falando muita besteira, então dá para ser o Ferreira Gullar poeta, o Ferreira Gullar impresso é um poeta, né? Porque quando ele fala, fala umas coisas conservadoras.
P/1 – Daniel, como você relatou aquela coisa, quem te vê assistindo essa entrevista em 2085…
P/2 – Oitenta e oito.
P/1 – Dois mil e oitenta e oito, conta pra gente, então hoje, em 2015, como é que está esse movimento da poesia do sarau em São Paulo.
R – Vou falar do lado bom, porque o lado ruim vocês já vão saber. Mas o lado bom…
P/2 – Eu tenho uma pergunta também, aproveita e pega nesse gancho. Para você contar do Lombinho, que acho que é bem inovador…
R – Tá. Vou falar primeiro do Lombinho, do Lombo e do Lombinho. Ainda dentro dessa vontade. No ano passado para voltar para a minha vida, eu abandonei de vez a publicidade como emprego formal. Há exatos um ano e nove dias e aí eu fiz um rito de passagem, esse rotulo de performático que eu sempre corri e tal, eu fiz um rito de passagem que era uma performance para eu marcar isso: estou saindo do emprego formal, até para eu evitar de voltar muito rápido, se eu passar esse perrengue, eu falar: não, mas eu fiz aquele rito para garantir. Não quer dizer que eu não vá voltar ainda, dizem que o segundo ano é pior, mas sei lá, eu fiz esse rito para falar: não, eu vou ter que pensar várias vezes antes de voltar, porque se eu fiz um rito de passagem, demarcando que eu estava… agora, eu virei artista, que era um desejo antigo e sempre foi de viver de arte, de trabalho… de pensar na arte mais tempo, eu fiz essa performance que é uma performance com tijolos, chamado “Passa passado, não interessa o Futuro”, não, “Passa passado”, “Não interessa o futuro” é um poema. Não, é isso mesmo, “Passa passado, não interessa o Futuro”, e aí eu vou colocando os pesos que a gente vai colocando na real, mas simbolicamente, é o trabalho, são os pesos do tijolo. E no Sarau do Burro, eu fiz isso no Sarau do Burro e aí as pessoas que falavam poemas podiam quebrar os tijolos para tirar o peso das minhas costas, então os caras iam falando e ia quebrando. Tem no YouTube, tal, busca lá por Passa passado e aí os caras iam quebrando. Partindo desse rito, eu comecei a pensar muito mais nessa coisa da performance também, que isso sempre foi uma coisa natural em mim e que eu não aceitava o termo na real, eu tinha uma coisa mal resolvida com o termo “performance” por achar que a performance fosse mais ou que fosse conceitual, ou que tivesse uma base teórica e de repente, eu ignorei a performance intuitiva e outras coisas que são formas autodidatas e tal que são ricas e que são isso também. E a partir daí, eu comecei também a olhar com mais delicadeza para isso, se eu fiz esse rito, é que de fato, eu… eu podia pintar uma tela, eu podia ter feito outra coisa, podia ter feito um sarau temático contra o trabalho. Mas não, eu quis fazer esse rito, dessa forma, então eu comecei a olhar com mais carinho esse meu lado performer que sempre foi uma coisa nata que eu relutei conceitualmente. E aí surgiu a vontade de fazer uns encontros dentro dessa postura ainda de fazer a poesia o esporte mais difundido, encontro de poesias, discussões que ao lombo do burro, que era uma amostra de tudo que foi produzido no Sarau do Burro, quadros, porque todo mês tem o Vini pintando lá, então, quadros, tem umas coisas e mostrar isso, e mostrar mostras de poetas, de mostrar isso. Aí foi feito esse evento no ano passado no Lombo que aí é um evento… aí eu fiz a performance de novo, eu derrubei a parede da galeria que era de tijolo, derrubei ela para entrar a exposição, então teve algumas coisas performáticas e teve essas coisas na busca do acontecimento, e também da performance. Aí dentro disso, eu comecei a pensar com mais delicadeza sobre isso, olhar mais isso, sabe, a coisa do CEP 20.000 que é um CD que não importa muito, ele tem muito forte a performance, porque são gravações de coisas ao vivo e aí comecei a entender que também é isso, também, essa captação dessa vida que me interessa. Aí No Lombo e No Lombinho são eventos meio híbridos de happening, meio inspirados no cabaré Voltaire, aí teve o Cabaré Revoltaire, que eu fiz também, que eu esqueci de falar, que era… eu fiz junto com a Isadora Ribeiro, mas Cabaré Revoltaire era um misto do que era o Cabaré Voltaire também idealizado na minha cabeça, performance, banda, show de strip-tease, teve de tudo no Cabaré Revoltaire em um ano teve de tudo, teve desde uma roda de escritores debatendo com uma garrafa de whisky que cada um dava uma golada e isso, até sei lá, uma travesti fazendo performance numa banheira ou uma velha sendo desenhada, porque sempre tinha modelo vivo para ser desenhado ou um transexual sendo desenhado. Então tinha de tudo e o objeto fundamental da noite era poesia e literatura e aí tinha banda sempre, mas sempre coisas ligadas a esse universo. Então, dentro dessa coisa do Cabaré Voltaire, das coisas… e aí as influências do Cabaré Revoltaire, eu comecei a pensar nesse evento multicoisas, que ele é bem contraposto ao que é Burro, o Burro, é tudo muito humildezinho, ali, não tem muita coisa, não é glamour, não é nada, é reunião na sala de casa, é meio isso: faça você mesmo. Até acho que tem bastante cria do Burro que foi fazer sarau porque o Burro e o Maloqueirista tinham essa ideia de: olha aquilo como é o jogo, leva para a sua casa agora e vai brincar, faz você mesmo. E a gente cai no que é a cena de hoje, a cena de hoje, ela tem muita coisa acontecendo, muita coisa, o que eu acho bem rico, o que eu acho que me deixa otimista com o meu sonho de transformar a poesia em esporte nacional, como eu falei, tem dois saraus ou sarais periféricos, sarais marginaus (risos), um amigo falou: “O termo correto é sarais marginaus”, mas tem dois, três saraus por noite de vários formatos diferentes, desde o sarau periférico de verdade, com cunho social ao sarau que eu considero… por exemplo, o Sarau do Burro, eu considero um sarau periférico pela natureza dele, mas hoje, ele é na Vila Madalena, ele começou na Vergueiro, fomos vitimas da especulação imobiliária, viemos parar na Vila Madalena, numa galeria de artista de rua do Grajau, mas é na Vila Madalena. Então, ele… mas o objeto é a poesia e o público que frequenta não é da Vila Madalena, inclusive teve o episódio lá, no último sarau, entrou a polícia lá com metralhadora para pegar dois suspeitos lá de algum crime que eles… primeiro, começou sendo um crime como picharam no Beco do Batman, pô, no Beco do Batman e depois, virou que era um roubo de carro, uma coisa, enfim, uma abordagem meio estranha, mas ao mesmo tempo, o Mauro… aí esses dois caras eu não conhecia, mas o Mauro que era o artista da exposição que estava expondo e que estava falando para o público foi retirado também para ser averiguado. E aí eu fiquei pensando nos tempos em que nós estamos, em tudo, com a alegação que era para nossa segurança. Então, inclusive depois: “Vocês podem ir embora, que é para a segurança de vocês que a gente faz isso e espero que vocês cheguem em casa com segurança”. Eu penso: ‘pô, o cara entra numa sala do tamanho dessa com 30 pessoas e uma submetralhadora para nossa segurança? Para a minha segurança, eu sinceramente, nunca queria ver uma submetralhadora, para a minha segurança, uma submetralhadora nem deveria existir. Mas enfim, para não focar no ruim, mas tem todos esses tipos de dinâmica, porque embora seja um espaço dentro de um espaço, né, o Sarau do Burro é um espaço dentro de um espaço institucional, uma galeria, ele é um espaço da rua, então ele é aberto para todo mundo, então ele é frequentado por periféricos, marginais padrão, suspeitos padrão considerados por quem aborda e tal. Então tem isso, e aí hoje a cena está bem assim, tem sarau que foi inventado para concorrer edital, porque aí tem edital, tem grupo de teatro que se traveste de sarau para ganhar edital, tem um monte de coisa porque a palavra “sarau” ganhou uma força, ganhou uma releitura, até, e aí é o mérito do Binho e do Wise, do Pezão, do Buzo, esqueci de falar também, o Buzo é mais antigo. Do Ferrez, é mérito desses caras ter feito a palavra “sarau” sair daquela coisa meio segurando uma maçã imaginária aqui: “To be or not to be”, o cara tocando violino para uma coisa: “Bicho, é um espaço para falar e fala”.
P/1 – Ressignificou, né?
R – É, ressignificou. Então é lógico, a gente vai falar: “Sarau não é novo”, mas do jeito que aconteceu e do jeito que tem, acontecido na cena é novo e nesse aspecto, eu acho que a contribuição do Burro é também inovar dentro desse contexto. Eu não acho que o Burro é um sarau que só reproduza o formato que já existia, porque aí se eu quisesse roubar a cena da Cooperifa para trazer para Vila Madalena, eu não faria, eu participaria do deles lá no contexto deles. Eu acho que eles que teriam que trazer. Então, quando eu vi: eu faço parte desse movimento, está bom, o que eu posso fazer pra somar para eles? O meu pensamento foi isso, né? Embora tem muita gente que fala que o Burro não é periférico ou não, mas também não estou aqui para ficar demarcando território, é o que eu falei, eu já não me preocupo com isso, com esses territorialismos, Recife abriu a minha cabeça para isso, mas eu acho importante entender que eu também trouxe uma inovação de pensamento, porque os caras já são fodas, já são importantes, já são fortes. Eu precisava trazer outras coisas que também fosse seduzir para o jogo deles e para mostrar: olha como vale a pena ir no Binho. O Binho, por exemplo, é um espaço que eu adoro, o Binho é um espaço muito de artista, é muito louco, lá tem todo tipo de pessoas, então eu acho isso muito rico e válido para a periferia ter esses espaços, de fato, de muita diversidade porque é isso também, para não ficar só na caixinha e aí o que eu estava falando da caixinha do rapper, do social que eu durante muito tempo, eu fiquei e que quando eu vi outras coisas, eu falei: “Caramba, não precisa de purismo, posso cantar uma ladainha de capoeira com rap”, lógico que o rap também mudou muito com o tempo, tudo mudou muito depois do Sabotagem, depois do Rappin Hood e até os clássicos mesmo, Racionais ou Doctor MC. É importante eu falar, por exemplo, no rap, citar uns nomes que eu acho importante que é Doctor MC ou Potencial 3 foram bandas que me incentivaram, o RPW me incentivaram a ter visão mais humorada da rua, porque a rua era sempre aquilo, né: “Nóis é a rua, mano. Nóis é rap de bombeta”, e aí vem um cara e faz uma música sei lá, “Melô era um cara metido a bonitão; usava um nike no cabelo e um tremendo pescoção”, aí você fala: “Pô, a rua não é tão mal humorada, não precisa dessa amarra o tempo todo. Aí vem o outro e faz, sei lá: “Carrapato, carrapato desgruda meu”, aí você fala: “O cara já não está mais nem preocupando com a música, nem com a voz grossa, nem com a amarra de cão, RPW meio hardcore, então comecei a ver que o mundo é grande, sabe? Eu descobri isso e acho que hoje para não perder muito foco, o movimento de sarau está ganhando essas possibilidades. Eu não poderia reclamar. Eu que vi sempre na diversidade, um crescimento. Na diversidade, também acaba acontecendo os deslizes, e aí começam a aparecer os interesseiros, mas acho que isso é da regra do jogo, quando uma coisa fica muito em foco, ela…
P/1 – Atrai de tudo!
R – Atrai de tudo. E acho que não estou aqui para julgar, uma coisa que eu sempre falo sobre a minha poesia… porque quando a galera falava: “Mas isso não é poesia”, eu ficava assim: “Bicho, quem vai julgar não sou nem eu e nem você. Eu falo que é poesia porque eu quero que o recorte seja esse, mas quem vai julgar não sou nem eu e nem você, é o tempo, é a história que vai julgar”. Então não importa muito, a história que vai dizer, os grandes caras que nas suas épocas, os caras que provocaram… não estou nem dizendo que eu seja isso, mas estou dizendo que os caras que provocaram mudanças e tal, não foram entendidos na sua época.
P/2 – Van Gogh não vendeu um quadro!
R – É, então. Sei lá, é isso, não veria sentido nisso se não fosse a possibilidade de chocar paradigmas e de criar novas possibilidades. Então eu não acho que alguém pode dizer: “Ah, você não é poeta porque você não domina o soneto”, por exemplo. Que é uma coisa que eu, particularmente, não gosto de expor, mas eu gosto de estudar as formas tradicionais, ficar mostrando, ficar criando em casa e tal… eu acho que tem coisas que são criadas para contextos diferentes. Então, eu tenho poemas românticos com outras estruturas em casa, eu escrevo outras coisas, mas que eu acho que não cabem para eu apresentar, por exemplo, num evento. Então, eu penso assim: ‘o quê que é oral, o que faz sentido eu apresentar num evento de poesia e o que não faz sentido’, porque também isso que foi escrito num contexto onde eu li um José Paulo Paes e quis escrever, isso pode ser lido em um livro publicado depois e tal. O Murilo Mendes, agora, lendo as coisas dele, eu falei: “Nossa, que coisa gostosa de ler” e fiquei influenciado, né? Não sei se cabe falar de influências …
P/1 – Olha, eu queria que você falasse da sua produção escrita, porque você só falou de um livro.
R – É, eu tenho um livro publicado, na real, eu tenho um livro publicado que é esse, que não é uma produção escrita, é meio delicado para eu falar da produção escrita, porque a produção escrita é o que eu estou falando agora. Eu crio escrevendo, só escrita, mas eu me interesso pela escrita partindo da oralidade, então nesse meu primeiro livro tem um monte de coisa que é isso, criado falado. Nem funciona tanto escrito, o poema Sandy e Júnior é óbvio é a maior bobagem que você pode ler escrito, né? Mas eu precisava documentar. Eu acho que o livro tem um parâmetro documental importante, que agora o vídeo tem e tal, mas eu ainda não sei a durabilidade do vídeo, a durabilidade do livro eu sei. E aí eu tenho menos esse processo de escrever só escrito, mas por exemplo, agora eu lancei um livro chamado “O Esporro”, que é o meu… na real, eu tenho cinco livros considerando que eu tenho três livros de nano poemas, que são poemas de até um segundo, né? Porque aí eu falei: “Bom, se eu estou acreditando nisso, eu vou ter que acreditar, nem se fracassar com isso, mas pelo menos…”
P/1 – Claro. Fala os nomes dos livros.
R – Chama “Ouvivendo”; “Iapois poisia”; e “Carnevais”. Então, são poemas de até duas palavras ou três, tipo Iapois poisia, que é um poema… que é uma expressão lá do nordeste iapois e fala poisia, então iapois, se você tirar o “ia” e pôr depois do pois, fica poisia, então Iapois poisia, é a mesma… então é meio que esse jogo da poesia muito mínima, sem entrar na poesia concreta que tem alguns estudos de poemas de uma palavra, poema mínimo e tal, mas onde a palavra era mais objeto, e aí no neoconcreto, principalmente, a palavra era mais objeto. Nesses três livros, eu tento me dedicar a palavras simples, sem tentar transformar ela no objeto. Nesse Lapois Poisia, a capa do livro tem esse desenho mostrando, mas na maioria dos poemas, eu tento não amarrar graficamente, não explicar graficamente, a não ser um ou outro, tipo Dezcompassos, dez de dez e o “s” dentro do “z”. Mas descompassos em decompasso, então a ideia é isso, com uma palavra ou com duas palavras, a quantidade de significados que você consegue trazer, né, Ouvivendos, o “s” é pequenininho, como se fosse aquele “s” da química ali. Então, fica “Ouvivendo”, não, é Ouvivendo mesmo, nem tem o “s”, é Ouvivendo (risos). Então é ouvir, vendo, ou vivendo, então esses truques…
P/2 – Ouvi vendo.
R – É. Ou vi vendo, exato! Todos esses truques que uma coisa muito mínima pode te trazer e aí é isso, são os livros se debruçando sobre isso e aí eu tive a experiência de fazer um livro por encomenda que eu nunca tinha tido e que achei bem interessante que é “O Esporro”, poemas sujos, que é um livro inspirado no poema sujo do Ferreira Gullar, para vocês saberem que naquela hora eu não estava falando mal do Ferreira Gullar, eu adoro o Ferreira Gullar, o poeta, mas tenho minhas ressalvas contra o jornalista e o crítico e principalmente, que ele está falando muita besteira com sabor de acerola, mas é inspirado no “Poema Sujo”, que é um livro arrebatador, quando eu li, é um poema muito forte, é lindo de se ouvir, a fita que o Vinícius gravou, então é uma coisa muito forte e “Dentro da Noite Veloz”, tudo que vem junto, tinha uma encadernação assim…
P/1 – Círculo do Livro.
R – Círculo do Livro, uma capa amarelinha com um círculo vermelho, exato. E é um livro muito influente para mim, para Sinhá também. E aí eu estava nesse processo de escrever um livro por encomenda de uma coleção que chama “Boca Santa”, que são de palavrões, cada pessoa escreveu sobre um palavrão e é sempre um escritor e um ilustrador. E aí eu fiquei um ano com um ilustrador que a gente ia fazer o “Jogo da Viga”, era um jogo, igual ao jogo da vida, só que era um jogo da porra, então era o Jogo da Viga, o meu tema era “porra” e aí ia brincar com essa cronologia da porra. Porque a porra tem uma cronologia no sentido, pra mim, homem, o livro acaba sendo um pouco falocêntrico porque é de um homem falando sobre a porra, evidente que num papel de… a mulher acaba não estando exatamente nesse papel de protagonismo, mas também, não é um livro machista. Então, é um livro falando sobre esse contexto de que a gente é porra, depois vira óvulo fecundado, nasce, descobre a porra, então é o porrinha… então foi esse ciclo da vida. Depois, a porra como… a descoberta da porra na adolescência e a masturbação e a coisa. Aí o trabalho e a vida sexual, então é a vida permeada pela porra. Um pouco da perda da libido e o fim da vida e tal. E a morte e a renovação enquanto porra fecundando uma planta ovo ou planta ovário ou qualquer outra coisa que seja, que a gente vira adubo. Então, é um livro meio… a ideia era essa, era ser um jogo, e é tipo jogo da vida mesmo, jogo da porra com vários haicaissinhos, só que aí fica um ano e não aconteceu, não aconteceu… aí o editor me falou: “Olha bicho, prazo já foi…”, e não acontecia porque o desenhista não queria pôr pinto no trampo dele e a ideia era que o jogo fosse no formato de um caralhão mesmo (risos) daqueles de banheiro, bem sujo assim, né? Aí, o cara não quis, tal, você também pode botar um [pi] para o cara não… porque o cara não quis, imagina botar no vídeo, mas ficamos nisso e não fluiu. Aí o cara me falou: “Olha bicho, vai sair sem o livro”, aí eu fiquei com uma pena porque eu falei: “Pô, eu escrevi tudo e tal e não quero dar mancada com você, com o Luli que era o editor, posso chamar outra pessoa e fazer?”, eu saí do trabalho, foi quando eu saí do trabalho: “Eu saí do trabalho e agora eu vou fazer uma outra forma de livro, vou fazer um livro escrito em fluxo contínuo, que era uma coisa que eu queria testar, escrever um livro em fluxo continuo em três horas, quatro horas, que é igual o processo da porra: ejaculação ali muito precoce… muito rápido, sem limpar, todas essas coisas, eu jogo ali, sujão mesmo e vai, sem muita limpeza e em fluxo contínuo”, aí entrei nisso, aí falei: “Se eu não conseguir, aí você não publica”, e aí eu fiz um livro que é “O Esporro”, poema sujo que é um livro que eu escrevi em três horas e aí eu chamei o Kiko Dinucci, que é um músico foda e que tem uns desenhos… ele sempre fez uns desenhos nesse contexto, sabe? Pessoas fudendo com cara de macaco, cara se masturbando, o pinto é um lagarto e eu gostava assim, aí eu falei: “E aí, Kiko, você topa entrar numa empreitada dessa de desenhar umas coisas?”, o Kiko já tinha umas parcerias com a Sinhá e tal, “Topo”, e aí ele topou desenhar, falei: “Se não conseguir, aí beleza, a gente desiste”, mas aí ele topou, fez vários desenhos, uns desenhos fodidos e eu fiz o livro em três horas e tentei preservar isso, não limpar depois, não fazer assepsia, deixar como um esporro, como um jorro. Tem uma ou outra coisa ali que depois, eu de eu ler, eu falei: “Não, isso de jeito nenhum, é sujeira demais”, mas aí ele ficou como poema sujo porque eu acho também que o poema sujo foi meio, sabe?
P/2 – Mas foi mesmo.
R – Então, eu sei, então. Está me consumindo e aí tinha essa coisa de estar me consumindo também, porque eu tinha um certo medo de cair no machismo, um livro falando sobre a porra, tinha… tenho muito medo, inclusive, de como ele é lido, de como ele será lido pelas futuras gerações e tal, principalmente pelas minhas filhas, porque acaba sendo um livro falocêntrico, de alguma forma. Embora não é, o objeto não é esse, eu tentei ser mais… mas aí fazendo no impulso, tem hora que descreve, por exemplo, masturbar pensando em professora, que é uma coisa da adolescência, então tipo isso, esse desejo voraz e esse desejo com uns 30, e esse desejo indo caindo com o mercado e todas essas coisas, na faculdade, tudo é festa e putaria, e a porra é a hora de estrelar mesmo, porque aí é de verdade, não é masturbação, mas que depois, você entra num ciclo normal de trabalho e não sei o que, que isso já deixa de ser mais relevante, vai… então essa história da vida contada através da porra, de brochar mais no fim da vida, essas coisas. E aí eu entrei meio que nesse contexto e eu fiz o livro e tem o risco de ter caído em alguns momentos, de cometer deslizes porque ele não tem limpeza.
P/1 – De que ano que é esse livro?
R – Ele é do ano passado, foi publicado ano passado e escrito no ano passado. Foi escrito em três horas, mesmo e sem muita limpeza. Quando eu terminei de ler ele… foi lançado na Balada Literária, quando eu terminei ele, aí eu tive uma surpresa interessante, intuitivamente, quando eu comecei a escrever em fluxo contínuo, a maioria das frases ficaram independentes, que eu comecei a escrever com frases independentes, embora eu quis mostrar que a referência ao poema sujo, então eu ia dando uns espaços, mas eu escrevi indo para Campinas e voltando para fazer um evento, eu escrevi no celular mesmo e fui escrevendo aqui, uma hora e meia para ir, uma hora e meia para voltar e eu fui… um evento de poesia que eu fui falar lá e aí foi isso o livro. Só que daí depois quando eu fui ler, no pensamento de edição, que eu fui ler, eu vi que como as frases eram independentes, dá para ser lido de trás para frente e inclusive, de trás para frente, ele é melhor do que de frente para trás, eu acho. Só que aí eu falei: “Não vou inverter agora, porque aí eu vou estar racionalizando um processo que eu não queria racionalizar, que eu queria ser putaria”, aí o quê que eu fiz? Aí, eu botei lá atrás uma brincadeira que até é bem característica da minha poesia: Leia esse livro de trás para frente.
P/1 – Livro palindrômico.
R – Ele não chega a ser palindrômico porque ele não é as letras, são as frases, são as frases que elas mantem uma lógica de trás para frente. Aí ficou sensacional para o conceito porque aí você pode em alguma parte ficar indo e voltando, então ficar fazendo o processo de masturbação mesmo. E aí, eu fiz uma sacanagem, igual aquela coisa dos discos da Xuxa, se você girar ao contrário, você ouve um disco do “É o Tchan”, porque tem a coisa da putaria e foi a coisa mais demoníaca que a gente cruzou nas nossas gerações, sexualmente.
P/1 – Daniel, a gente pode conversar o dia inteiro que vai ter assunto…
R – É, eu sou tagarela.
P/1 – Mas a gente conseguiu, acho que dar um apanhado da sua trajetória. Eu queria saber se o Jonas tem alguma pergunta para finalizar.
P/2 – Tenho. Eu vou fazer duas perguntas numa só, pode ser? Eu queria saber qual o sarau mais emocionante que você já foi e qual foi um momento mais bonito que a poesia te trouxe.
R – Cara, eu vou responder essas duas perguntas mais ou menos em uma só, sabe? Porque o sarau mais emocionante que eu fui e é essa coisa de emocionar mesmo, foi bem interessante. Tem vários, muitos momentos geniais, o que acontece é que as pessoas falam assim: “Porra, mas sarau é chato”, tem gente que fala: “Não gosto de ir no sarau porque é chato ficar ali um tempão, tem uns caras falando muita besteira, invade o espaço do outro e não sei que…”, tudo o que você pode falar de mal do sarau, que eu nem sei muito bem o que falar de mal do sarau, porque eu sou sarolatra anônimo, de fato acontece, né? Tem lá suas coisas, mas em todo sarau, todo dia, em todo sarau que eu vou tem sempre, velho, um momento em que a magia acontece de um jeito, sabe, e às vezes, não é só um, mas que é tipo sei lá, parece que é “Dedo de Deus tocou em mim”, aquele momento que o cara fala um poema que bate com outro, que bate em você, você fala: “Caraca, eu não podia ter vivido sem ter visto isso!”, todo sarau tem isso, toda noite, por isso que eu faço Sarau do Burro, no Sarau do Burro, tem um momento que eu fico lá: “Meu Deus, que coisa chata, velho, o quê que eu estou fazendo aqui?”, tem isso, não vou negar, porque tem hora que ele fica frouxo e faz parte do movimento das coisas, agora que eu estou num processo de parto, o parto é isso também, expansão, até que ele abre, né? Então, tem isso também isso lá, tem o momento de retração que fica uma coisa meio boba ali, aí expande um pouco, aí de repente: “Porra, nasceu”, e aí todo sarau tem um momento desse. Mas a coisa mais emocionante que eu posso pontuar, que eu já fiz e que eu participei, que eu vi, a primeira vez que eu vi me tocou muito é o trabalho do grupo “Corpo Sinalizante”, que depois se tornaram parceiros meus e eu pude trabalhar com eles no slam do corpo. O “Corpo Sinalizante” são pessoas que estão estudando a poesia em libras, então as libras são recentes, se eu não me engano, 2002, 2001. É uma língua muito recente.
P/1 – A língua brasileira de sinais, é isso?
R – Isso. E são os surdos ouvintes que pesquisam isso. Isso pra mim, a primeira vez que eu vi foi no ZAP, uma emoção, cara, um negócio de você falar: “Não tem fronteira para a coisa”, saca? Então, como é que eu vou dizer… hoje, por exemplo, para mim, poesia não é palavra, por que como que eu vou dizer que é palavra, se o surdo faz no sinal? E eu, como inventor gráfico, eu acho que imagem também é palavra. Às vezes, um poema transforma em palavra uma imagem e às vezes, uma imagem transforma o poema… transforma um poema em imagem, uma solução gráfica transforma o poema em imagem. Então, eu acredito que a poesia pode ser feita com qualquer coisa, com escultura, com qualquer coisa. Então eu já não entro mais nessa coisa de: “O poeta é quem sabe escrever”, e tal, eu não busco isso. Quando eu vi a primeira vez o “Corpo Sinalizante” no ZAP cara, foi um negócio mágico, os caras fazendo um poema, pô, e, libras e mesmo sem entender… eu já vi no ZAP uma vez uma eslovena falando um poema e eu também sem entender nada e foi bem interessante, porque aí você fica ouvindo a língua e ouvindo a linguagem e o som, você entende que tem uma rima, ou que tem uma métrica, mas você não sabe nem o que se está falando, cara, é fluição estética no sentido de apenas entender o ritmo, a fonética, isso. E às vezes, a gente vê poema na rua e tal e nos rolês que a gente… que não tem fonética, nem estrutura, nem nada e que também é lindo, porque tem mensagem. Então é isso, eu gosto de tudo, ter a mensagem, ter a fonética, todas as possibilidades, eu quero tudo. Mas quando eu vi o surdo fazendo, cara, e depois que eu descobri que era um dos primeiros núcleos a pesquisar a poesia no Brasil, puta, isso foi de um encanto…
P/1 – Mas eles são surdos…?
R – Surdos. Tem alguns surdos que se tornaram surdos, alguns surdos que escrevem, alguns surdos que foram educados em português, alguns surdos que só… e tem a relação dos surdos com ouvintes, o Corpo Sinalizante não é só assim para surdos, são surdos e ouvintes e até essa criação coletiva, esse processo de transcriação, porque a tradução do português para libras é transcriação, é a mesma coisa que os Irmãos Campos fizeram dos poemas russos, sabe? Então, esse processo de transcriação, de redefinição daquele poema, de redescoberta é sensacional e aí eu posso falar depois disso, da coisa mais emocionante que eu pude, depois, trabalhar com essas pessoas. Então, eu faço parte do núcleo de pesquisa agora, do slam do corpo, que é um slam de poesia para surdos e ouvintes e aí ele parte… tanto que No Lombinho tinha até uma tradutora, uma interprete de libras. Eu adoro botar eles em enrascada, porque imagina como que uma pessoa traduz em libras o gago? Vo, vo, você já re, re… e nesse dia, no ZAP eu tinha pensado em fazer o Gago e é legal como isso te faz pensar assim, porque lá na hora eu pensei: ‘se eu fizer o gago aqui, como que a menina vai traduzir para eles? Eu vou ganhar o slam…’, porque eu estava pensando em ganhar o slam, ‘aí eu ganho o slam, mas e aí? E esses caras que eu posso ganhar?’, e aí eu fiz um poema que eu não estava nem treinado, mas que dava para ser traduzido, porque não fazia sentido também eu fazer Sandy & Junior, é Óbvio, como que a menina vai traduzir isso? Então, eu fiz… e um dos maiores orgulhos que eu tenho é que os surdos me deram o nome que é o Barbudo que Grita, se os surdos acham que eu grito (risos), imagina quem ouve? Mas aí eu pude pesquisar no slam do corpo e eu acho bonito o símbolo, é meio selvagenzão, eu gosto. Eu gosto muito! É um orgulho, que eu quero levar para o meu túmulo. E aí, eu pude pesquisar com eles no slam do corpo, que foi onde eu fui batizado e aí porque o soneto foi falado aqui em algum momento e tal, e como a gente não pode relutar contra algumas coisas, porque quando eu fui… eles me chamaram para eu falar sobre poesia lá e eram pequenos módulos, então, o módulo que eu tinha era de uma noite para falar sobre poesia com eles. E aí eu pensei: ‘cara, o que eu vou falar de… como eu vou falar de poesia com um surdo? Vou falar sobre o soneto, a poesia mais formal’, aí fui do soneto de Shakespeare, fui tudo aquilo para falar: “Vamos falar sobre o soneto?”, mas o meu objetivo final era: vamos falar sobre o soneto estrutural para vocês pensarem na compreensão de poesia, mas eu vou trazer uma provocação que era, dentro desse contexto do soneto, eu trazia o Avelino Araújo que é um poeta do Rio Grande do Norte, que ele faz o soneto visual e tem um outro poeta português, que agora eu não me lembro o nome, que ele fez também, ele inventou o soneto visual, que é um soneto que é uma fita métrica e aí ele tem cada linha com uma cor, cada linha é uma fita métrica de uma cor, então você vê a rima entre uma linha e outra, ele tem dez centímetros em cada um, então você vê que ele é decassílabo e você vê…
P/1 – As estrofes…
R – As estrofes certinhas ali, quatro fitas métricas, quatro fitas métricas, três, três, uma rima com a outra e aí eu trouxe isso de provocação para eles, eu falei: “Porra, olha o que esse cara conseguiu fazer, ele descobriu o soneto visual, ele relacionou esse problema”, já o Avelino Araújo, que é o poeta lá de Natal, que faz soneto visual, porque lá no Rio Grande do Norte tem uma cena muito forte de poema concreto, então desencadeia nos poemas visuais, é muito rico isso lá, de poema concreto não, desculpas, de poema conceito e de poema processo. Poema conceito, poema processo, então teve muito isso lá e desencadeou… e aí essa coisa do poema visual, o Avelino tem uns poemas visuais, sonetos visuais lindos, ele tem um livro de poema visual, aí tem um que é América Latina, aí são quatro arames farpados, quatro arames farpados, três arames farpados, três arames farpados e os lugares que estão os arames farpados rimam. Soneto da fome, aí quatro garfos, um garfo com quatro, um garfo com quatro, um garfo com três, um garfo com três…
P/1 – Legal!
R – É muito legal e aí eu queria mostrar tudo isso para chegar para eles e falar assim: “Tem o soneto do Shakespeare, tem o soneto Ronsard, tem toda essa coisa, Camões, Capim, né, o Drummond: Ronsard, Camões, Capim, então eu queria trazer essa coisa de ir lá atrás e olha o que esse cara descobriu, que é o soneto visual. Quando eu trouxe essa provocação para eles, porque aí eu queria falar: “Como a gente faria um soneto corporal?”, eu queria trazer essa provocação para eles, tipo: “Você viu como o cara traduziu no visual, então eu quero que vocês traduzam num soneto corporal”. E aí trazendo isso, eu consegui descobrir que por exemplo, eles não tinham uma noção de rima, por que como é que você pensa em rima…?
P/1 – É, é som, né?
R – É, som. E aí o que eles faziam? Eles rimavam em português. Isso é uma questão meio louca, porque aí se você vai fazer um soneto visual, eles começaram a pensar nisso, sei lá, eu não sei falar libras, eu não sei fazer a linguagem, mas sei lá, às vezes, eles rimavam uma coisa sei lá, paixão ou coração com escravidão, sei lá, uma coisa que vinha para outro lugar. Aí não rimava, visualmente eu olhava e falava: “Mas por que não rima isso?”, mas porque ele rimava o coração e a escravidão ele rimava em português. Então, a gente começou a discutir: Pô, mas será que não é mais coração e honra? Mas coração e honra não rima em português, mas foda-se porque rima aqui, rima no gestual, eles começaram a pensar em ritmo, coisa, porque a libras, ela tem um aspecto meio primitivo no sentido de que ela não conjuga o verbo, porque tem algumas dificuldades, ainda uma língua recente, tem algumas coisas sendo descobertas, tem puritanos para caramba que falam que você não pode inventar. Então, foi um desafio muito lindo poder participar disso com essas pessoas que estão criando poemas. É a coisa mais genuína é você ver os caras que estão inventando numa língua que tem pouca invenção e pouca liberdade para invenção. Isso é uma coisa que a gente, como poeta… então, fazer eles entenderem que solta a mão, sabe, você não precisa ter muito sentido, sabe, outras coisas… e aí eles puderam pensar em metáfora, que era uma coisa… e eu vi um pouco da potência do soneto, uma fórmula que você fica tentando relutar, sabe, de alguma forma, eu por exemplo, que sou mais solto, fico tentando relutar contra os formalismos, mas eu gosto disso também porque numas horas dessas, você descobre como é bom também o formalismo, como é interessante isso, como pode ser produtivo, pode ser rico e tal. Então, sei lá, foram duas experiências muito excitantes, muito revigorantes na minha poesia, ver a primeira vez os caras fazendo sem eu nem saber o que é isso e ficar: “Meu Deus, o que é isso, cara! Os caras fazem poesia em libras!”, não imaginava isso e depois, poder lidar com essas pessoas e aprender e tal e descobrir coisas com eles, e ver o slam do corpo, ver o resultado deles, sei lá, eu nunca imaginei que ia ser uma poesia sem palavras fosse me deixar sem palavras.
P/1 – Sem palavras! Bem, queria agradecer você pela entrevista. Muito legal fazer essa trajetória toda e ainda mais, é um dia bom, é o dia do aniversario para a gente fazer uma conversa biográfica.
R – É, meu aniversário, exatamente, provavelmente, eu acho que na forma mais intimista, meia vida, né? Mas eu acho que nem… eu ia até fazer uma performance hoje…
P/2 – Posso fazer uma ultima pergunta?
P/1 – Então encerra Jonas.
P/2 – Já que é a meia vida, o que você espera, otimisticamente da próxima meia vida?
R – Cara, eu estou em… uma coisa que eu acho que eu não falei, que eu acho importante falar, é que eu estou em processo de parto de gestação gemelar de duas filhas, então só isso já é uma esperança de mudança muito grande, de ter duas meninas como tutor e como me relacionar com respeito, como fazer elas entenderem algumas coisas. Eu já estou sofrendo o pré-machismo, isso é uma coisa muito louca, quando você… lógico que eu não estou nem querendo me comparar com uma mulher, com o que ela passa, mas é muito louco a partir do momento que você fala que vai ser pai de uma menina, já tem um pré-machismo ali, sabe, de: “Segura as suas que o meu é cabra”, de: “Agora você virou fornecedor”, de: “Quebra o cartão de crédito”, como se hoje, por exemplo, os homens não fossem também homossexuais, ou como se os homens não fossem metrossexuais e gastassem… alguns homens gastam mais do que mulher. Então, de alguma forma, eu queria ser… nessa metade da vida, eu descobrisse também como ser um possibilitador para essas pessoas que vêm e da forma mais prazerosa para nós três e nós quatro, minha esposa, que pudesse mudar esse mundo, sabe? Porque é uma tarefa que eu já fracassei, mas que sigo tentando. Então lógico, é uma tarefa já fadada ao fracasso, porque tem sempre essas forças fugindo do nosso controle e essa tendência a violência evolucionista que se acredita que tudo, a evolução é violenta e só se pensa na evolução violenta, as coisas muito invasivas, tudo muito impositivo para evolução ou para o melhor de você ou para cuidar de você. E aí, eu tenho esperança de entender melhor esses 35 anos com essas pessoas que me foram emprestadas por alguém, né? Tem um pensamento bem interessante do Saramago que eu acho bem rico, sobre ser pai que é: “Você vai receber uma pessoa…”, eu vou falar bem vulgarmente, o que eu aprendi dele: você vai receber uma pessoa para cuidar, mas na real, essa pessoa é emprestada. E aí essa pessoa, ela vai te ensinar um monte de coisas: paciência, vai te ensinar muito sobre a vida, paciência, amor, não sei que, ao nível de você começar a acreditar que o seu amor por aquela pessoa precisa proteger ela e ficar ali e tal, e aí você começa a ter medo de perder essa pessoa, porque você protegeu, criou, relacionou e tal, você foi… mas aí, você está esquecendo que essa pessoa foi emprestada para você e que você não tem direito sobre ela, é uma outra pessoa. Então eu gosto muito desse pensamento e eu espero conseguir me relacionar bem desse jeito, ver minhas filhas… eu espero disso, dos 35 anos, acho que inevitavelmente, eu vou estar fazendo poesia, infelizmente, cada um veste a calça que lhe serve, né? Vou ter que levar isso a cabo, até o fim. “Não sei o que me quer a poesia, nem ela o que quer de mim, só sei que seguiremos tentando, até que um de nós encontre o seu fim”. É meio isso.
P/1 – Muito legal. Então, muito obrigado Daniel.
R – Obrigado vocês aí pelo convite.
FINAL DA ENTREVISTA
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