Projeto Belo Horizonte Surpreendente
Depoimento de Roberto Andrés
Entrevistado por Lucas Torigoe
BH, xx de setembro de 2019
PCSH_HV829 _ rev.
Transcrito por Fernanda Regina
Revisado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Roberto, qual é o seu nome inteiro, onde você nasceu e em que data?
R – Roberto Rolim Andrés, eu nasci em Belo Horizonte, no dia 12 de dezembro de 1980.
P/1 – Você nasceu em hospital, contaram para você? Foi em casa? Como foi isso?
R – Não, eu nasci na Maternidade São Lucas. Hospital São Lucas.
P/1 - E seu pai ou sua mãe lhe contaram como foi esse dia, como foi isso?
R – Acho que foi um parto de cesariana, era o dia do aniversário da cidade, então tem essa anedota, o médico falou com a minha mãe - médico é genial - “Ah, ele podia se chamar Horizontino”, que é o nome da cidade. Eu acho que isso... Acho que meus primeiros meses de vida foram um pouco turbulentos para os meus pais, uma criança com algumas dificuldades no início, mas é o que eu sei desse dia.
P/1 – Eles tiveram dificuldades por quê? O que aconteceu?
R – Acho que dificuldades de que minha mãe não estava tendo leite suficiente, aí eu tinha alergia a outros leites, leite de vaca e tal. Então era desde, assim, eles conseguirem leite de égua a várias mães de leite e outras pessoas que tinham tido filho na época. Me levavam para amamentar nas mães diferentes, Entre Rios, que é a cidade em que eles moravam, ou aqui em Belo Horizonte. Meus pais moram nessa cidade do interior, que é 100 quilômetros daqui, embora eu e meus irmãos tenhamos nascido aqui em Belo Horizonte; a gente morava na fazenda, no interior.
P/1 – Entendi. Qual é o nome inteiro da sua mãe?
R – Yara Rolim de Oliveira.
P/1 – A família dela, como é a família dela?
R – A família da minha mãe vem do interior de Minas, das fazendas, da região de Ponte Nova. Minha avó e meu avô se conheceram nesse contexto bem do interior, mineiro, patriarcal, logo, início do século passado, metade do século passado. Depois, eles vão para a Acesita, uma região no Vale do Aço onde estava se instalando a usina, as fábricas... Uma região que ficou muito industrial e meu avô vai tentar a vida lá, vende a fazenda. No fim, a minha mãe passou uma infância simples, certa dificuldade na família. Os irmãos dela se formaram todos engenheiros, tem esse viés na família, de vencer na vida, principalmente entre os homens. Tem sete irmãos, são quatro homens e quatro mulheres. Aí eles vieram para Belo Horizonte estudar, acabaram formando a vida mais em Belo Horizonte, onde ela conheceu meu pai, na época da Universidade.
P/1 – O que ela cursou?
R – Psicologia.
P/1 – Como é o nome do seu avô e da sua vó? O pai da sua mãe e a mãe da sua mãe?
R – Meu avô chamava-se Geraldo Sampaio e minha avó Rosa de Lima Rolim.
P/1 – Entendi. E o seu pai, qual é o nome dele inteiro?
R – Euler Andrés Ribeiro.
P/1 – A família dele é do interior também?
R – Não, a família do meu pai é... A família do pai dele vem do interior, a família da mãe dele morava no Rio de Janeiro, depois morou em Belo Horizonte, são duas famílias mais tradicionais, de classe média brasileira, pais médicos, profissionais professores, acho que o avô do papai foi deputado, minha avó é artista. Então, é uma família um pouco diferente da família da minha mãe.
P/1 – Todos aqui da Capital, então?
R – Sim. A família do meu avô paterno tinha fazenda no interior, essa fazenda onde meus pais moram vem de lá. Mas vieram estudar aqui e acabaram atuando e tendo uma relação maior com Belo Horizonte.
P/1 – Seu pai então estava cursando alguma coisa quando conheceu sua mãe?
R – Estava cursando Veterinária, aí eles se casaram e foram morar na fazenda, no interior, no final dos anos 70. Eles se conhecem em Belo Horizonte, começam a namorar aqui e decidem ir morar... Tinha também, na época, fazendo parte de certo movimento, uma coisa do período assim, uma onda mais hippie, eles vão morar no interior e a gente é criado - eu e meus irmãos fomos criados na fazenda - onde moramos até, mais ou menos, uns quinze anos, quando a gente veio para Belo Horizonte estudar.
P/1 – Seu pai e sua mãe contaram melhor essa história de como eles se conheceram? Era o quê? Na UFMG ou em que Faculdade? Em que Universidade?
R – Os dois estudaram na UFMG. Acho que eles se conheceram mais nas turmas de amigos, assim. Minha mãe conta que, um dia, papai bateu à porta da casa dela, chamou-a para ir para a fazenda, tipo eles se conheceram (risos). Foi a cantada, foi o jeito que ele fez para se aproximar. Mas acho que eles se conheciam e até antes, na mesma turma, cada um tinha um outro namorado, um outro companheiro, depois os dois terminaram, aí eles ficaram juntos depois.
P/1 – Entendi. Você falou que é uma coisa meio hippie, como assim?
R – Acho que tinha um movimento, as fotos do período são bem legais, cabelo grande, meu pai, minha mãe também, cabelão grande, umas roupas mais indianas assim, umas batas, tecido natural, umas coisas meio bordadas. O casamento deles, as fotos de todo mundo também, muita gente nesse visual, assim. Tinha uma coisa ali daquela década de 70, eles estavam bem no final, assim, quando a gente nasceu; aí, acho, é a transição. Mas minha mãe foi sócia de um restaurante macrobiótico, eles estavam bem inseridos nesse contexto.
P/1 – Eles foram morar na fazenda do seu avô, então? É isso?
R – Na fazenda que era do meu avô, que era do meu bisavô, que foi sendo dividida nas heranças. Meu avô tinha morrido novo, ele tinha morrido com 55 anos e papai acho que tinha um vínculo muito grande com a fazenda, com meu avô também, porque quando meu pai era criança ele ia muito com meu avô na fazenda. Meu avô morreu antes da gente nascer, acho que para ele, assim, coisa de retomar à fazenda tem também a ver com esse contexto. Acho que ele tinha esse desejo, mas tinha esse vínculo com um sentimento da fazenda assim, ligado ao meu avô. Então tem a parte da herança, que era do meu avô, divide para os filhos e meu pai foi o único dos filhos que foi para a fazenda para morar mesmo e se ocupar ali do território. Os outros filhos ou venderam a parte, ou mantém como algo para ir no final de semana ou alguma coisa até sem uso mesmo.
P/1 – Quando os seus pais foram para essa fazenda, então? Eles já tinham filhos? Você tem irmãos? Ou você é filho único? Como foi essa decisão, assim?
R – Não, eles não tinham filhos. Mas aí, quando eles casam, eles já estão grávidos, esperando a minha irmã mais velha, a Teresa. Eu nasci um ano depois dela e dois anos e meio depois o meu irmão mais novo - somos três irmãos.
P/1 – Qual é o nome do seu irmão mais novo?
R – Manuel.
P/1 – Como é que foi, então, crescer nessa fazenda? Quais são suas primeiras lembranças?
R – Era ‘massa’, não é? A casa não tinha luz, até quando eu tinha uns seis anos, a casa não tinha luz. A gente ficava lá muito solto, bastante isolado. Às vezes, nas férias, vinham os primos, algum amigo de escola. Mas eu lembro da gente muito lá entre a gente mesmo - eu e meus irmãos, com meus pais. A gente ficava muito solto, saía de casa e ia brincar e tal. Tenho lembrança de um sonho, nessa casa em que a gente morava - porque a gente morava, primeiro, em uma casa que meu avô tinha construído, que era uma casa mais da família, depois meu pai construiu uma casa que é a casa em que eles moram até hoje. Eu tenho lembranças dessa época. Aí eu lembro dessa casa sendo construída, do canteiro de obras dela, aquelas marcações de fundação, com a terra cortada e linha atravessada, eu devia ter uns quatro anos, lembro de um sonho que está sempre caindo, um sonho de quando eu era criança. Talvez minha filha esteja com um sonho assim, hoje em dia; ela está acordando de noite e chorando. Sabe que ela tem quatro anos ainda? Lembro um sonho de estar sempre caindo, parecia que você estava caindo, caindo no abismo, e continuava caindo. Lembro da vida na fazenda, do gado, meu pai levando a gente para ajudar a tocar o gado de um lado para o outro, a gente indo na horta com a minha mãe colher cenoura e nadar, ficar ali estudando, fazendo ‘para casa’, aquela coisa de escola, começar a ir para a escola depois, eles levando e buscando a gente para a escola, a gente interagindo com a cidade, que é uma cidade pequena, Entre Rios, uma cidade de 15 mil habitantes.
P/1 – Vocês iam para a escola nessa cidade? Como é que vocês iam? A pé? De carro?
R – Ia de carro. Dava uns dez minutos de carro até a escola, ia cedinho, era uma região, na época, era fria. Antigamente, as coisas eram mais frias do que hoje, de manhã cedo muito frio, muita neblina. A cidade chama Entre Rios, ela tem, de fato, dois rios atravessando - um deles chama Brumado, é um rio de muitas brumas. Aí era aquela coisa de sair de manhã, com neblina, sem conseguir enxergar muito longe, indo para a escola, a aula começava às sete horas da manhã. Era ditadura ainda, não é? Cantava Hino Nacional na escola, tinha hora cívica. O que mais você tinha na escola? Cara, tinha as matérias de sempre: Português, Matemática, Ciências e Educação Física. Era uma escola com pátio grande, uma escola estadual. Eu lembro muito desse pátio, assim, tanto de recreio - a molecada correndo para ir para a fila da merenda e tal, para jogar bola - quanto esses movimentos cívicos, Dia do Índio. Engraçada essa época que a gente está revivendo os ares dela hoje, mas ali já era final da ditadura, já era um momento menos violento, mas esses símbolos estavam ali no dia a dia da escola. Lembro muito da entrada da escola, saída, aquela confusão de criança naquela cidade. Uma cidade também que era muito tranquila, a gente podia andar a pé, os meus amigos todos iam e voltavam sozinhos da escola para a casa deles, uma cidade pequena, não é? A gente tinha essa coisa de ter que ficar esperando os nossos pais buscar, porque a fazenda era a cinco quilômetros.
P/1 – E os seus pais viviam com aquilo que eles faziam na fazenda, é isso?
R – Meu pai é veterinário, então ele trabalhava como veterinário na região, prestador de serviço, não é? Para outras fazendas. Ele também produzia, então tinha vaca, cavalo, produzia horta. Mas, não, ele tinha um trabalho que era remunerado fora.
P/1 – Como é que eram essas duas casas? Você pode descrevê-las para mim? Tipo assim, você está entrando, como é que era isso? Você as via de longe? Como é que era?
R – Elas estão lá até hoje. A casa de baixo que a gente chamava - essa casa construída pelo meu avô - ela é mais baixo mesmo, quase no fundo do vale. O centro dela é muito uma sala grande, com uma cozinha assim, aí tem quartos de um lado, quartos do outro, um modelo bem assim, uma salona no meio, quartos dos lados. Ela tinha um sótão, com uma escadinha de madeira bem inclinada, assim. Um de nós caiu dessa escada, uma vez. E lá em cima era um sótão, com piso de madeira, que já está na região do telhado, mais baixo, a gente gostava de ir lá brincar, embora ficasse muita poeira também, acho que tinha uns ratos. Essa era a casa de baixo, a casa em que eu morei na primeira infância. A outra casa, a casa para onde eu mudei com cinco ou seis anos, que a gente mudou quando eu tinha uns cinco ou seis anos, é maior um pouco, mais dividida também, tem esse espaço da cozinha, que é meio uma copa, cozinha com fogão a lenha também, que é um espaço em que a gente ficava boa parte do tempo. Aí tem uma outra sala e outra sala. Eu sou arquiteto, então eu acho que esse projeto de arquitetura (risos)... Eles não eram muito... Ele é muito fragmentado e tem uma sala que funciona como sala de... Poderia ser uma sala de jantar meio formal, mas aí ninguém usa porque é muito mais legal jantar na casa. Tem a sala de estar com uma lareira, que também nunca se usou, ela enfumaçou a casa uma vez, aí fez muito mais sentido usar o fogão de lenha mesmo, que era uma coisa rotineira. Aí tinha o escritório do meu pai, o escritório da minha mãe, quarto de empregada, banheiro, embora, raramente eu lembro de algum empregado dormindo lá, não tinha esse elemento. E no segundo andar, quatro quartos, que aí tinha o quarto deles, tinha um que no início era meu e dos meus irmãos, depois a gente foi se dividindo para os quartos. É isso.
P/1 – E como é que era você e seus irmãos? Vocês se davam bem ou brigavam muito? Se protegiam?
R – Ah, isso tudo de irmão, brigava muito, se protegia. A gente brigava entre a gente, se protegia dos de fora. Como eram três, formavam os grupos, dois se juntavam contra um. Às vezes, vinham os primos também. Aí, a dinâmica aumentava. Mas era também de muito companheirismo. Primeiro, eu, minha irmã e meu irmão. Depois, ela descola da gente porque ela é um ano mais velha do que eu, ela faz onze anos, ela vira tipo uma mini adulta e já uma adolescente precoce, já com outra turma. E eu e meu irmão continuamos aqueles meninões, jogando bola por mais um tempo, assim. Depois, a gente também se descola disso, mas, nesse período, eu e meu irmão éramos bem companheiros.
P/1 – E vocês ouviam rádio em casa, ouviam CD? Como é que era isso?
R – Quando eu era criança, tinha TV e tinha vinil. A gente escutava Beatles, brigava para ver quem punha o som. A gente escutava Beatles, minha irmã escutava umas músicas de novela lá, acho que era da Xuxa, não sei. A gente ficava brigando por esse direito a escolher a trilha. Tinha uns discos lá MPB, Chico Buarque, Maria Bethânia, Caetano. A gente escutava muito pouco rádio, não tinha rádio não. Depois vem o CD, mas aí já era adolescência, não é? Nos anos 90 que a gente começou a escutar CD, nos anos 80 era vinil.
P/1 – Assistiam muita TV, não é? Como você falou.
R – Assistia TV.
P/1 – O que vocês assistiam? Você lembra?
R – Show da Xuxa, demais. Que tempos, não é? A gente via... Porque aí passavam os desenhos no Show da Xuxa: He-man; aqueles Smurfs, enfim, a gente ficava vendo. E quando tinha aula de tarde, a gente ficava vendo desenho de manhã, isso já era depois que a gente estava com sete, oito anos. Porque, na primeira casa, nem energia elétrica tinha. Mas depois dessa fase, a gente assistia TV, ficava vendo desenho de manhã e ia para a escola à tarde. Se fosse para a escola de manhã, ficava vendo Sessão da Tarde - tenho até angústia de pensar na Sessão da Tarde.
P/1 – Por quê?
R – Não sei. Me veio um sentimento de um marasmo, um tédio, novela, depois mais adolescente vendo novela, eu acho isso, no Brasil... Não sei, hoje eu não vejo televisão nenhuma, a lembrança que eu tenho dessas épocas de televisão é de uma coisa meio... Com uma vibração meio deprimente.
P/1 – Como se fosse um tédio, que não tinha o que fazer e ficava lá assistindo TV?
R – É. E também o vício, não é? Porque, na verdade, você tinha um monte de coisa para fazer, mas aí você transformava sua situação em um tédio e um certo hábito de ficar ali. Aquelas tardes mórbidas.
P/1 – Mas vocês também brincavam na rua? Tinha muita coisa para fazer na fazenda?
R – Sim, jogava muita bola, andava muito de bicicleta na fazenda, nessa fase já. Andava para todo lado de bicicleta, ia nadar, jogava bola, porque a gente começou a jogar bola - eu e meu irmão - a gente jogava muita bola mesmo, criança tem esse negócio com o futebol, que é um negócio que não para, não é? Até ficar escuro... A gente voltava da escola, chegava da escola, acho que umas quatro e meia, até ficar escuro... A gente ficava jogando bola. Tinha um funcionário da fazenda que morava em uma outra casa da fazenda, tipo ele, a mulher dele e os filhos. Aí, o Luís Carlos, que era o filho dele - hoje em dia é policial, policial progressista, super engraçado ele - Mas ele jogava bola com a gente, a gente chegava da escola e ia jogar bola. Muita bicicleta também, caía da bicicleta, ralava o joelho todo na terra; nossa época era bola e bicicleta.
P/1 – Você torce para algum time? Na sua casa era frequente...
R – A gente torce. Eu e o meu irmão torcemos para o Atlético, meus pais não ligavam muito. Mas meu pai levava a gente ao jogo do Atlético, de vez em quando. Ele não era um torcedor assíduo, não. Mas eu lembro pelo menos de duas vezes que ele levou a gente ao estádio.
P/1 – Mas você era um torcedor assíduo?
R – Não, eu já fui. Já fui bem mais que meu pai foi na vida dele, tem uns cinco anos que eu não assisto. Mas eu gostava de futebol, tinha uma época em que eu gostava muito.
P/1 – Por que você parou?
R – Eu parei porque eu achei que está muito chato, elitizou muito no estádio, está com uma cara de shopping, assim. Você chega lá, aquelas luzes, é muito mais caro o ingresso, então o público que vai, mudou muito. Era meio uma festa popular, assim, misturada, tinha uma mistura de classes. Hoje eu acho que ficou um recorte em uma classe, eu perdi o gosto. Ver pela televisão acho que me dá esse clima, que eu não gosto também, o domingo à tarde, com a televisão, vendo jogo, é um negócio que não me faz bem. Eu fui no último jogo do Atlético no Mineirão, antes da reforma do Mineirão, em 2009, depois fui na final da Libertadores, quando o Atlético ganhou, em 2013. Aí, depois, parei.
P/1 – Você ficou até os 15 anos estudando nessa mesma cidade? Foi isso?
R – Entre Rios de Minas.
P/1 – E como é que era essa relação entre ir para a cidade, estar na fazenda? Como é que era isso? Você ia sempre para lá ver seus amigos? Ou eles iam para...?
R – Era uma relação de dependência, não é? Do carro dos meus pais. Porque tinha o lado bom de estar na fazenda, eu acho que a gente, de fato, foi criado com muita liberdade. Em um ambiente muito legal, não é? E tinha esse lado de uma dependência, meus amigos tinham muito mais autonomia. Eles saiam da escola, iam para a casa a pé, depois saía para a praça. Às vezes, a gente ia para a pracinha brincar, estava no meio da brincadeira passavam meus pais e falavam: “Vamos embora”. A gente tinha que ir, então tinha esse lado. Principalmente a partir desse momento, a partir dos oito anos, aí adolescência toda, infância e essa primeira parte da adolescência, que a gente queria estar mais socialmente ali na cidade. Tem até um momento em que meus pais alugam uma casa na cidade para a gente poder... Às vezes, minha mãe ficava achando que meu pai estava viajando muito a trabalho, para a gente poder ter algum ponto. Às vezes, uma ou duas noites da semana dormir lá, a gente poder ter essa autonomia. Eu acho que quando a gente tinha uns 12, 13, 14 anos, quando eu estava em alguma dessas idades aí, teve essa casa.
P/1 – Isso mudou alguma coisa? Vocês ficarem mais perto do centro da cidade?
R – É. A gente poder ficar ali, interagir um pouco mais, não foi revolucionário não, mas assim... Eu lembro que isso foi uma tentativa de solucionar. Mas depois cansou-se disso e a gente voltou para a casa. Mas teve até esse experimento. Depois, chegou a época em que a gente foi morar em Belo Horizonte; aí, essa casa foi devolvida.
P/1 – E na cidade, vocês frequentavam alguma festa lá, uma festa religiosa ou não, Carnaval? Como é que era isso? Tinha isso também?
R – Carnaval era meio fraco, não lembro muito. Eu lembro, assim, de algum Carnaval, algum desfile. Lembrei agora do Carnaval. Tinha uns desfiles, mas mais aquela lógica, muita gente na rua vendo e o desfile passando, era bem dessa lógica, desfile mesmo. Meus pais não eram muito religiosos, mas a cidade, naquela época, era muito católica. A igreja fica no Centro, no alto, no ponto mais alto da cidade. Então, às vezes, a gente ia na procissão religiosa da Semana Santa, que era muito grande, muita gente atravessando a cidade, bonita. Enterros, eu lembro muito dos enterros. A gente estava brincando na pracinha, assim, aí vinha o enterro. A igreja soava o sino, bleng, bleng, aí o padre começava a falar lá a voz de quem morreu: “Anunciamos a morte de tal pessoa”. Aí se começava uma conversa: “Ah, fulano morreu. Fulano não sei o quê”. Raramente a gente sabia quem era, que a gente era criança, tinha morrido, geralmente, uma pessoa mais velha. Aí, sempre se falava: “Fulano, que é avô de beltrano, ciclano, pai de fulano”. Aí vinha o enterro. E o enterro era uma procissão pedestre, não é? As pessoas saiam da casa de quem tinha morrido, em enterro, carregando o caixão até o cemitério; independente de onde fosse a casa, você conseguia chegar ao cemitério a pé. Aí, quando o enterro passava, as pessoas fechavam as janelas, outros baixavam as portas da casa. A gente, que era criança, tinha que parar de brincar, a gente ficava sentadinho, assim, como eu estou aqui, vendo, só esperando o enterro passar para a gente voltar a brincar (risos). Então, era um ritual muito forte, assim, que eu me lembro muito da presença dele na cidade, porque ele acontecia a qualquer momento, sempre tinha alguém morrendo. E tinha esses rituais cívicos mais patrióticos, assim, de Dia da Bandeira; aquele negócio de marchar em 07 de setembro; tinha o Corpus Christi, que a gente fazia tapetes, isso acontecia na escola, a gente se mobilizava, ia para lá quatro horas da manhã para fazer aqueles tapetes no chão, com serragem, para quando chegasse de manhã cedo já estar os tapetes montados. Eu lembro bem dessa mobilização. E tinha a Festa da Colheita, que é a festa da cidade, em julho, uma festa de celebração da colheita. Uma cidade com uma economia muito rural, então tinha os desfiles da festa da colheita. Eu lembro bem disso, da gente preparando a caminhonete do meu pai, muitos iam com carro de boi. Eu lembro da gente preparando a caminhonete, fazendo a decoração dela com bambu, colocando espiga de milho, era um pouco ideia de cada fazenda, cada propriedade rural. E desfilar com os produtos que produzia naquele lugar, não é? Dessa também a gente participava bastante. Tinha uma pega grande da cidade, era em julho. Tem uma atmosfera que eu sinto ainda, assim. É uma época fria, mas que no meio do dia o céu fica muito azul, acaba batendo muito sol, dá uma esquentadinha, de noite faz muito frio, muito poeira, uma época seca, aqui em Minas a gente, de maio a setembro... A gente fica assim, chuvas, maio, agosto, uma época com muita seca, muita poeira. Eu lembro muito desses desfiles também, eles ocupavam muito o Centro da cidade.
P/1 – Você falou que a cidade era Entre Rios, literalmente, mas como era essa cidade? Você chegava tinha uma praça, como é que era isso?
R – Entre Rios de Minas é uma cidade na cumeeira de um morro, ela era bem uma cidade bem linear, de cumeeira, a rua principal dela é aquela linha mais alta de uma montanha. Se você vai andando por essa rua principal, você olha para um lado, vê o vale de um lado; olha para o outro, vê o vale do outro. Tem esses dois rios que não estão exatamente colados na cidade, mas que estão passando ali na região e eles se encontram um pouco mais à frente. Nessa cumeeira de montes, você vinha andando, aí tinha uma série de praças, tinha a Praça da Prefeitura, que era uma onde a gente brincava muito, que era perto da escola. Em seguida tinha a igreja, no ponto mais alto dessa cumeeira, com a Praça da Igreja, depois seguia, tinha a Praça do Hospital, aí começava a descer para o outro lado. O núcleo mais histórico está em torno da Praça da Igreja e dessas praças... É, entre essas três praças. Depois a cidade cresceu para os outros lados, tem populações de mais baixa renda nas partes mais baixas, simbólico, mas é uma cidade que tem uns 300 e poucos anos.
P/1 – Agora, como era a sua casa? Como é que era a dinâmica de casa? Como é que eram o seu pai, a sua mãe, como é que era isso?
R – Meus pais eram muito carinhosos, são muito carinhosos. Meu pai... Eles assumiram esse lugar... Meu pai trabalhava mais fora, minha mãe cuidava mais da gente, embora em alguns momentos minha mãe tenha, na minha infância, tenha trabalhado também fora, como professora, atendendo como psicóloga, mas ela oscilava, ela dedicava mais tempo a esse trabalho de cuidar das crianças e da casa. Eu lembro de meu pai trabalhar nas fazendas e voltar todo sujo, ele era veterinário, voltava todo sujo, ia tomar banho. Às vezes eu ia com ele, às vezes ele levava a gente para ir com ele, a gente passava a tarde lá com ele, ele dando toque lá em égua e a gente anotando as coisas para ele. Eles sempre foram muito carinhosos, atenciosos, pessoas que gostam de estudar, de ler, acho que nos formaram bem, para esse aspecto, a gente tinha facilidade na escola, era uma vida tranquila. Eles brigavam entre eles, mas pouco. Não tem muita margem de violência, poucas vezes meus pais perderam a paciência, você tem uma violência mais contida, assim.
P/1 – Eles impulsionaram vocês a ler, então?
R – Acho que sim. Uma coisa de que eles gostam, sempre gostaram muito: ler, estudar e tal. A gente tinha... Tem um pouco essa característica.
P/1 – E você se lembra o que você lia mais, assim, na infância, na adolescência? Se era mais por causa da escola ou coisas que seus pais indicavam para você, davam para você ler? Como era isso?
R – A escola era muito chata, não é? Eu vejo a escola das minhas filhas hoje, que é super legal, tem um monte de coisa legal, é muito mais lúdica. A escola em que a gente estudou era muito mais chata, a escola, os livros eram chatos. A gente estava lá, era aquele negócio meio maçante, de aprendizado e tal. A gente conseguia lidar com aquilo, fazia os ‘para casa’, aprendia e se dava bem, mas eu não me lembro da escola me incentivar a leitura. A escola me incentivava aprendizado, dentro do que eu precisava aprender para passar. Claro que aquilo me servia para outras coisas, mas eu não me lembro de livros que li na escola e que foram importantes. É engraçado isso. Acho que a parte de Literatura devia ser muito ruim em escola pública, no interior. Aí, lia em casa, na revistinha, aquela Galileu, do Ziraldo, depois Asterix mesmo, revistinha da Mônica - da Turma da Mônica - depois mais alguns livros, uns livros mais assim, de criança. Volta ao mundo em uma casca de nozes, uns livros já de criança mais velha. Depois, até na adolescência, Harry Potter, já chegando nessa outra, Senhor dos Anéis e tal, mas aí já é mais tarde. Mas a leitura mesmo, as coisas de ler, de ler as coisas e gostar, tinha a ver mais com o universo de casa, de ler por prazer. E a escola, era mais obrigação.
P/1 – Então teve algum professor, alguma matéria na escola que te marcou ou não?
R - Para o bem ou para o mal?
P/1 – Para o bem ou para o mal.
R – Para tudo. Tinha uns professores muito bravos, o pessoal era bravo mesmo. Eu lembro dessa professora... De que será que era? Geografia, Ciências... Uma figura brava, que eu tinha medo, eu não queria ir, sabe? “Não, não quero ir”. Depois com uma outra, de Artes, em uma outra época, que era super... A gente tinha que ficar desenhando. Cara, a gente desenhava bandeiras, aquele negócio da volta da bandeira, quando a bandeira faz a volta, você tem que fazer no desenho, some a parte, assim, ela volta mais para frente. Essa coisa, assim, eu ficava colorindo, tinha que colorir muito forte, fazer sombra e textura. Eu lembro que minha mão doía de ficar fazendo isso. Detestava essa professora, cara, infernal. Também a parte de caligrafia, Nossa, tomei muito repeteco de caligrafia, de levar caderno para casa porque minha letra era um garrancho, isso era uma coisa muito forte da época, acho que hoje não se imagina muito isso, não é? Não sei. Mas essa coisa de você ter que ter uma letra apresentável, cursivo, e a minha era bem ruim. Então tem essas marcas, talvez tenha marcas positivas também, de aula de Ciências, Matemática, quando a gente tinha que solucionar problemas, se reunir em grupos, tinha uma parte mais de um desafio, de pensar, acho que dá para resgatar algumas coisas positivas, que não é só tragédia.
P/1 – Com que idade você acha que passou da infância para a adolescência? Na sua cabeça, assim, tem um marco, alguma coisa, ou não?
R – Acho que com uns 12 anos. Tinha um primo meu que era um pouco mais velho e também um pouco mais precoce, assim, tipo a minha irmã, que eu estava falando... Que com 13 ele já era tipo um...
P/1 – Homenzinho.
R – Já tinha um outro jeito. E eu era amigo dele, aí eu fui atrás dele. Primeiro beijo nessa época também, acho que uns 12 anos.
P/1 – Entendi. E primeira namorada e tal, essas coisas? Também essa época?
R – É. Esses namoros dessa época, não é? Pegava na mão e tal. Mas depois, mais com 15 anos, namoro mesmo.
P/1 – E vocês saíram de lá por quê? O que aconteceu?
R – Então... Aí a coisa de fazer o segundo grau em uma escola que preparasse melhor para ir para a Universidade e tal. Então, a gente veio para Belo Horizonte, uma tia do meu pai emprestou um apartamento que ela tinha e não usava. A gente veio estudar em colégio particular, em Belo Horizonte, para se preparar para entrar em uma Universidade.
P/1 – Vocês três vieram juntos? Você e seus irmãos?
R – Minha irmã veio um ano antes, no outro ano viemos eu e o meu irmão.
P/1 – E seus pais continuaram na fazenda? Morava com quem então?
R – (risos). Como que era? No primeiro ano, a minha irmã veio morar na casa da minha avó; no segundo ano, ela já tinha 16, eu tinha 15, meu irmão 13. A gente morava no apartamento, não estou lembrando se tinha... Acho que nesse primeiro ano minha mãe contratou uma pessoa, tipo uma empregada, que cuidava da casa. Acho que no ano seguinte, aí já era a gente, a gente morava na casa. Tipo, eu tinha 17, 18, 14 e a gente morava no apartamento. Eles vinham de vez em quando, a gente ia para a fazenda quase todo fim de semana, mas a gente morava nessa casa, república de estudante.
P/1 – Onde era essa casa? Era um apartamento, não é?
R – Apartamento, Belo Horizonte.
P/1 – Em que bairro ficava?
R – No bairro de Funcionários.
P/1 – Você se lembra do endereço exato?
R – Na rua dos Aimorés. É uma rua... Belo Horizonte tem essas ruas com nome de índio, nomes de tribos indígenas, era na rua dos Aimorés, assim, perto da Getúlio Vargas. A gente ia a pé para o colégio, em BH, adolescentes.
P/1 – E como é que era isso aí? Vocês ficavam meio sozinhos, por conta?
R – (risos). É. Estudar, não é? Vendo TV de tarde, novela de noite. Isso foi um choque, assim, porque no interior a gente tinha uma vida social muito orgânica, assim, muitos amigos, ia para a praça e encontrava as pessoas, uma vida de espaço público da cidade, com as dificuldades que a gente tinha de ter que se deslocar de carro da fazenda para a cidade, ainda assim a gente tinha uma vida muito social. Aí, a gente chega em Belo Horizonte, vai estudar em um colégio particular - em que a cultura de lazer era outra, a gente não a entendia – não se fez amigos que a gente encontrasse de tarde; de tarde, a gente não tinha nada para fazer, ia para casa estudar. Depois, às vezes, visitava algum primo e tal. Mas os primos que a gente tinha aqui em Belo Horizonte, eles já eram inseridos nas turmas deles, a gente também não acessou, de imediato, essas turmas. A gente ficou bem isolado, eu acho.
P/1 – Por quanto tempo? Um ano ou dois?
R – Uns dois ou três anos. Esse período do colégio todo é um período em que eu tinha amigos de colégio, mas que não criavam-se outras relações; a gente não tinha nenhuma relação com espaço público. Então tinha gente... Às vezes, encontrava um primo, alguma coisa, mas uma vida meio esquisita, assim.
P/1 – Nem a sua irmã, que era mais velha?
R – A minha irmã é muito sociável, ela fez mais amigos. Depois, no último ano, ela foi embora porque passou no vestibular - ela decidiu ir para Ouro Preto, estudar lá. Então ela foi para Ouro Preto e eu estava no terceiro ano, a gente continuou lá no apartamento, acho que veio morar um outro primo, alguém veio morar com a gente, minha irmã não estava mais, a gente já estava ambientado em Belo Horizonte, mas é uma vida muito... Essa coisa do espaço público, do uso da rua, de estar com os amigos, isso me marcava muito pela ausência ali naquele momento. A gente ia toda sexta feira, acabava a aula a gente almoçava, pegava o ônibus e ia para Entre Rios, para a fazenda. Aí chegava lá, ia para o clube jogar bola com os amigos, ia encontrar, ficava uma sociabilidade que a gente exerceu, assim, se bobear, quase todos os fins de semana, durante esses três anos de segundo grau.
P/1 – Dos quinze aos dezoito anos?
R – É.
P/1 – Você achava Belo Horizonte hostil para você? Você tinha medo? Ou não era isso? O que era?
R – A gente tinha um pouco de receio de onde ir, não conhecia muito a cidade, então, a gente ficava bem restrito a esse bairro, assim, e não tinha muito o que fazer, não entendia muito onde a gente poderia ir e como socializar e tal. Não era uma pauta, uma questão dos amigos de colégio, todo mundo ia embora para casa depois do colégio.
P/1 – Se eles se encontravam você não sabia?
R – Talvez. Eu acho que meu irmão até socializou um pouco mais, porque depois ele foi para o colégio Santo Antônio - eu estudava no Arnaldo. Acho que Santo Antônio é um colégio que, talvez, tenha promovido um pouco mais de sociabilidade, assim. Foi um período engraçado. Depois, quando eu entrei na Faculdade, aí eu encontrei a minha turma, aí comecei a viver a cidade de uma maneira mais...
P/1 – Orgânica?
R – É, fazia mais sentido para mim.
P/1 – E esses três anos, foi bom ou foi ruim esse período na escola? O que você achou do colégio?
R – Eu não gosto de escola, cara. Eu sou professor, mas não gosto de escola. Assim... Eu sobrevivi, passei bem e tal, mas tinha esse bullying, que você fica o tempo todo com pé atrás, com medo do próximo ser você, eu era uma pessoa que vinha do interior, tinha um pouco outros códigos, eu ficava meio na minha, me protegendo, assim. Depois eu consegui me integrar um pouco melhor com futebol, comecei a jogar futebol no time do colégio, a seleção, a gente disputava campeonato, treinava muito, aí era um período que... Mas também isso, no futebol essa coisa do bullying, da provocação, da sacanagem em si, ela é muito... Ela está o tempo todo, o tempo todo você tem que estar... Eu não gosto desse esquema de adolescente. Quando eu entrei na Faculdade foi um alívio para mim encontrar uma turma com quem eu pudesse me aproximar sem ser nessas referências.
P/1 – E no seu último ano, você tinha escolhido Arquitetura ou não? Como foi essa escolha? O que você achava que ia fazer? Por que você escolheu o que você escolheu?
R – Eu tive muita dificuldade para escolher. O que eu acho que é uma coisa que é comum. Colégio é uma abstração, a gente fica vendo Matemática, Ciências, um monte de coisa abstrata e a gente tem muito pouco contato com o mundo real das pessoas; naquela época ali da adolescência poderia ter muito mais, não é? O que as pessoas fazem, o que as profissões fazem. É tudo assim. Aí lia nas revistas: “O arquiteto faz isso e aquilo”. “O Físico...”. Pensei em fazer Física, Engenharia Florestal... Ficava olhando os nomes dos cursos e falava: “Ah, legal esse aqui, vou fazer”. Depois eu brincava que eu escolhi Arquitetura porque a escola era perto da minha casa, porque nesse bairro também era a Escola de Arquitetura. Mas acho que me vi um pouco... Eu gostava, suficientemente, de Exatas para poder cursar um curso que tem uma parte de aproximação com as Engenharias, mas não gostava tanto para fazer uma Engenharia, não tinha essa... E eu tinha um interesse por Humanas, sempre gostei de escrever, de ler, História, e tinha uma coisa de Artes na família, minha avó é artista, alguns tios e tal. Então, achava que esse era o lugar, mas isso era uma ideia abstrata do que era Arquitetura. Não tinha a menor ideia da realidade do curso e tal, mas eu olhava para esse caminho do meio, que tinha um pouco de Exatas, tinha um pouco de Humanas e Sociais, e Artes. Aí eu decidi fazer.
P/1 – O que a sua avó fez? Você falou que ela era artista?
R – Minha avó é pintora, ela agora está com 96 anos. Ela era boa de você entrevistar aqui, ia dar umas cinco horas de falação. Ela se formou na Escola Guignard. O Guignard, aquele artista, professor, veio para Belo Horizonte para fazer a escola, ela foi da primeira geração de alunos. Depois tem um trabalho... Assim... Participou de Bienais, a obra dela está em alguns Museus do Brasil, do exterior, teve um trabalho... Uns setenta anos de trabalho, desde os 20 anos. Uma pessoa incrível, uma pessoa... Ela não era muito presente, assim, porque depois que meu avô morreu, ela entrou em uma de viajar para a Índia, ela passava cada ano três meses na Índia, lá nos Ashrams, fazendo meditação, participando das atividades. Aí ela aparecia; de repente, chegava a minha avó. Ela chegava cheia de presentes, novidades, contando coisas e com ideias e tals, e depois ia de novo. Esse lugar muito do artista mesmo, mais aéreo, não é? Então ela não tinha uma presença regular constante, mas tinha uma presença muito forte quando ela estava. Ela era uma figura... Nessa época em que a gente era adolescente em Belo Horizonte, a maneira que ela encontrou para a gente ficar próximo dela era muito engraçada: ela nos contratava para ser datilógrafo dela, ela não usava o computador, nem digitava, ela escrevia os textos dela à mão. Então ela escrevia o texto à mão, ficava ditando e a gente ficava lá com ela, datilografando, e transformando aquilo em um arquivo de word, para ela mandar. Ela publicava uns artigos em jornais, essas coisas, livros, fazia uns livros. Depois, quando eu fiz dezoito anos e tirei carteira de motorista, ela me contratou como motorista dela. Então, eu passava uma tarde na semana levando-a para os lugares. Meu irmão fez isso também, meu primo... A gente tem essa história na família. Era muito legal, era um jeito de conviver com a minha avó, ainda ganhava um dinheirinho no final do dia. Ela ia contratar algum motorista e contratava a gente. Mas é uma figura muito querida, assim.
P/1 – Com dezoito anos você, então, passou no vestibular, foi estudar na UFMG?
R - Na UFMG, na Escola de Arquitetura.
P/1 - Ela fica onde? Na Pampulha ou no Centro?
R - Não, fica no Centro, fica no Funcionários. Dessa casa em que eu morava, eu ia a pé para a Escola também.
P/1 - Como foi o começo da Universidade?
R - Foi ótimo, cara. Foi a libertação em BH porque, realmente, eu tinha essa relação com a escola que era de não me encontrar naquele lugar. E na Escola de Arquitetura, eu encontro uma turma de pessoas que têm a ver, de quem você fica amigo, que vai para o bar, que tem programa, que chama para fazer isso, para fazer aquilo. Então, realmente, o primeiro momento em que eu encontrei uma turma em BH. Aí, o semestre teve muito valor por isso também, não é? Por isso, nem fui tão bem em tantas matérias, algumas eu meio larguei. Mas tinha muito esse momento de… Mudou meu patamar de relação com as pessoas, com a cidade e tal. E as matérias, teve algumas muito legais, que também foram um pouco essa abertura, matérias mais de plástica, de desenhos, que era bom a gente passar muito tempo fazendo trabalho manual. Matéria de Informática era muito legal nessa época, ela não era uma Informática chata, era muito criativa, a gente ficava fazendo coisa no Photoshop. Software de 3D da época em que usava multimídia, a gente fazia tipo umas coisas interativas, não é? Usava o Director, que era o software, era muito legal essa disciplina de Informática, ela foi super de abrir o horizonte para outras coisas que os arquitetos podiam fazer, mais dessa interface com Informática, Design e Arquitetura.
P/1 - Quem é essa turma que você fez no começo?
R - Cara, era uma turma super animada, super festeira. Eu tenho alguns poucos amigos dessa Faculdade até hoje, que encontro muito. Mas todos que encontro, quando encontro, existe um carinho, assim, uma alegria de encontrar, mas era uma turma que era bem festeira, era bem de festa, organizar baladinhas, mesmo dentro da própria turma, coisa de se conhecer, não é? E alguns continuaram, são colegas meus, professores hoje, outros foram para outras áreas, outros trabalham como arquitetos. Havia pessoas bem legais.
P/1 - Você iam aonde nessa época? Você falou que você estava descobrindo a cidade.
R - A gente ia nos botecos mais baratos, não é? Onde tinha promoção de cerveja. A gente ia nas casas, também foi um jeito de conhecer lugares: uma amiga que morava na Pampulha e fazia muita festa na casa dela; outro que morava em Belvedere; outro no Santa Inês. Foi um jeito de conhecer esses… Tinha muitas festas nas casas, acho que era mais barato para a gente, a gente também ficava mais à vontade, podia ficar até de madrugada e acabava dormindo lá mesmo. Circulava mais, às vezes ia ver exposição, ia ao Parque Municipal, enfim, tinha uma capacidade de… Aí também já adulto, eu já lidava com a cidade, de um jeito que se eu precisasse ir em tal lugar, olhava no mapa, pegava o ônibus, não tinha celular, não é? Pegava o ônibus e ia. A gente fazia muita festa na escola também, tinha essa tradição de festas na escola, calouradas, fazia pizza na escola. Tinha um forno de pizza a lenha, a gente ficava lá fazendo massa, fazendo pizza, tinha as ‘pizzadas’.
P/1 - Quantos alunos são por ano lá?
R - Quarenta e cinco por semestre.
P/1 - Vocês conheciam todo mundo, não é? Basicamente.
R - Conhecia. E tinha esse mapa, não é? Fulano é calouro de fulano. No início, tinha muito essa relação de calouro, de uma certa hierarquia que sempre se brincava com ela, mesmo depois que isso não fazia mais sentido. Mas a gente conhecia todo mundo, uma comunidade pequena. Noventa por ano, uns quinhentos alunos tinha naquela época.
P/1 - Como é que é o prédio de lá?
R - É um prédio bonito. O prédio da Escola de Arquitetura é um prédio moderníssimo, da década de 40, tem uma escada logo na entrada, assim, uma escada, a gente chama escada caracol. Ela faz a curva assim, super-bonita, em um hall que dá para uma praça. Depois, para trás, ele é mais ou menos... Como tudo no Brasil, ele tem seus puxadinhos, assim. Mas essa parte histórica dele é super bonita. Um prédio razoavelmente sociável, não é muito grande, tem um pátio interno - esse hall externo onde todo mundo acaba saindo, entrando e se encontra, é um lugar… Tem uma escala que permite encontros, não é uma escala muito intensa de um monte de gente passando, subindo e descendo, é uma escala de uma comunidade menor, assim.
P/1 - E nesse período em que você foi, vamos dizer assim, descobrindo Belo Horizonte, você foi gostando mais da cidade?
R - Sim.
P/1 - O que você achou da cidade que você encontrou? Como é que foi isso?
R - Acho que encontrei os limites da cidade, mas, ao menos, eu encontrei alguma cidade, porque, realmente, quando eu estava no segundo grau, eu vivia em uma ilha fechada, sem contatos mesmo, sem conexão com a cidade. Fui entendendo a cidade, não é uma cidade que te promove, por exemplo, em matéria de espaço público, grandes possibilidades. Os nossos espaços eram muito privados - em que a gente ia. Ou era casa, bares, clubes. A gente não tinha, naquele momento, essa relação com espaço público, que até as gerações… Eu participei um pouco dessa transição depois, mas a gente não via muito a cidade pelos espaços dela. Se a gente ia em um parque, assim, era para alguma coisa específica, sabe? Vai ter um show, uma exposição, não sei, alguma coisa, mas não de: “Pô, vamos ficar, vamos hoje à tarde no Parque tal, hoje à noite na praça tal, tomar uma cerveja, fazer um piquenique, bater um papo”. Não fazia parte da nossa... Acho que, também, naquele momento em que a gente ainda vivia, no Brasil, antes dessa retomada dos espaços públicos... Mas era uma cidade em que eu me encontrei, pelo círculo de amigos, uma cidade em que eu passei a ficar à vontade, passou a fazer sentido para mim. Que eu podia telefonar para alguém, encontrar, fazer uma coisa ou outra.
P/1 - Você entrou, desculpa... Você entrou em que ano na Faculdade?
R - 1999.
P/1 - E você saiu de lá o quê? Em 2004, em 2003?
R - 2005. Eu fiquei um ano na França, fiquei um ano morando em Paris, entre 2004 e 2005. Não, ano de 2004. Aí eu voltei, fiz o último semestre de lá e terminei em julho de 2005.
P/1 - Foi intercâmbio?
R - Tipo um intercâmbio, era um estágio, não é? Não era com outra Universidade, era com um escritório de Arquitetura, então eu consegui esse estágio, ficava trabalhando no escritório e vivendo na França, Paris.
P/1 - Como é que foi? Você já tinha saído do Brasil antes ou não? Como é que foi isso?
R - Foi ótimo. Eu tinha saído uma vez, com 15 anos, em um intercâmbio de um mês para estudar Inglês. Naquela época em que o dólar era baixo, meus pais conseguiram viabilizar isso. Na verdade, é engraçado, a relação do câmbio, o dólar era baixo, surgiu uma professora de Inglês lá em Entre Rios, eu ainda morava lá, e ela falou: “Pô, vamos fazer uma excursão para a Inglaterra, fica todo mundo lá um mês”. Naquela época, os preços, para a gente não eram viáveis, isso eu deveria ter uns 14 anos. Mas depois, quando eu fui para Paris, acho que foi a segunda vez que eu saí do Brasil. Eu lembro de ligar para o meu pai, do orelhão, ele falar: “Você não está passando fome, nem frio não, não é?”. Porque era neve, uma novidade, assim. Em 2004 eu não usava celular, na casa em que eu estava não tinha telefone, não tinha internet, eu usava a internet do escritório. E estar lá naquela cidade, onde eu não conhecia ninguém, não falava a língua direito e tal, chegando no inverno... Mas foi muito legal, foi uma experiência incrível para mim, vivenciar outro lugar, outra cultura, aprender outra língua, o mundo cresce muito, você tem outras possibilidades de mundo quando você tem vivência em outros lugares.
P/1 - Você foi trabalhar em que escritório?
R - O escritório chamava-se Guerrant Pedrosa, era um escritório que tinha umas 20 pessoas, ficava em Paris, na região central, assim, em um bairro muito característico pelos judeus, que é Nono …….. (?). O Guerrant era um francês, Pedrosa era um venezuelano ou colombiano, não sei, ele é um dos dois. Eles tinham essa sociedade, faziam projetos de Arquitetura, eles descobriram aqui, essa parte tinha a ver com a aula de Informática, aqui na UFMG, o laboratório de Informática era muito avançado no período e a gente era bom de software 3D, aquilo que eu te falei que era uma coisa de que eu gostei, assim. Aí, o pessoal descobriu isso lá, não sei como, e começou a abrir um canal, assim, para receber estagiário. Você mandava seu portfólio, várias pessoas mandavam portfólio e eles selecionavam alguns, um ou dois por semestre, para estarem lá. Pagavam um salário que dava para viver em Paris; não é barato, não é? Eu lembro de que, na época, o euro era quatro reais, eu ganhava tipo quase cinco mil reais, para mim era um dinheiro gigantesco, mas para Paris era o justo para viver, dar uma viajada uma vez por mês - pude também viajar pela Europa, ir aos lugares, foi super legal.
P/1 - E Paris, você achou o quê da cidade?
R - É uma cidade acelerada também, é uma cidade que está até desacelerando, eu acho, mas é uma cidade movimentada, assim. Mas era muito bom, cara, eu andava de bicicleta... Essa coisa de espaço público, para mim, cai a ficha ali, pô. No verão, todo mundo indo para as pontes, para os parques, para as praças, fazer piquenique, ficar batendo papo, ver as coisas, a cidade mesmo, a cidade lhe oferece, você não precisa de um programa específico, você pode até ir para os bares, mas… Fora toda a programação de museu, de cinema, uma cidade incrível. Andava de bicicleta o tempo todo, atravessava a cidade, no final já tinha aquele mapinha de Paris, um caderninho que você ia passando a página por bairro, mas no final, eu nem precisava muito dele mais, eu já andava pela cidade toda, que é muito diferente você se locomover de bicicleta, em relação ao Metrô, por exemplo, porque o Metrô... Você pega o Metrô aqui e sai; na hora em que você sai, tem uma coisa meio assim: onde é que eu saí, não é? Bicicleta, eu tentava andar ou de bicicleta ou de ônibus para entender aquela cidade. Mas aí foi outra experiência. Aí, para mim, acho que a hora em que caiu a ficha, em que eu volto para o Brasil e, de alguma maneira, acho que até esse momento eu nunca tinha pensado em ser urbanista. O nosso curso é Arquitetura e Urbanismo, até esse momento eu ia ser arquiteto, desenhar ou alguma coisa próxima de Arquitetura, enfim. Talvez pudesse ter essas outras áreas mais de Informática, Design, mas a experiência de morar em uma cidade como Paris, de conhecer outras cidades, que eu falo: “Putz, cara, nossas cidades são muito problemáticas, em muitos aspectos”. Elas são muito duras, pesadas, sem espaço de vida, sem espaço de encontro, cinzas, do concreto, poluídas; isso bateu muito forte, assim. Acho que essa coisa de ser urbanista nasce dessa experiência, talvez nasça muito antes, a minha experiência na cidade pequena, no interior, e tal. Mas ali, quando eu falo: “Putz, tem algo muito errado com os jeitos que as nossas cidades no Brasil são”.
P/1 – Aí, você volta para cá e tem seu último ano para fazer? É isso? Ou um semestre?
R - É um semestre. Eu tinha que fazer um trabalho de conclusão de curso. Aí eu propus à minha família e à minha avó, a gente criar um Instituto para a minha avó - Instituto Maria Helena Andrés - e eu faço, como trabalho de conclusão de curso, um projeto do Instituto e da sede do Instituto, que a gente tinha que fazer ali na escola, um desenho de Arquitetura mesmo, como projeto. E esse é o meu trabalho.
P/1 - E você estava morando no mesmo lugar ainda, nessa época?
R - Eu voltei, a minha tia tinha vendido o apartamento em que a gente morava – eu, meu irmão e meu primo. O meu irmão e o meu primo, que era com quem eu morava, tinham alugado um outro apartamento. Aí, eu fiquei lá com eles um tempo.
P/1 - No Funcionários também?
R - Também.
P/1 - Então você entregou esse projeto desse jeito? Era o Instituto da sua avó?
R - Instituto Maria Helena Andrés, em Entre Rios, esse projeto foi supermobilizante assim, para a família. Eu também tinha chegado de fora, com uma energia, com uma vontade de fazer. Aí mobilizou muita gente para criar esse Instituto, mas, sei lá, eu lembro das Assembleias com umas vinte, trinta pessoas, ajudando a escrever Estatuto, pensar em um Instituto, pensar em projetos. Aí eu apresentei o projeto e já tinha o Instituto, já estava criado, então foi uma certa mobilização. Aí, foi um período - esse período de 2005 a 2010 - o Instituto foi muito ativo e eu fui bastante ativo nesse contexto do Instituto de Entre Rios. A gente fazia… A minha tia coordenava um Festival de Inverno lá em Entre Rios, tinha uma série de ações, a gente começou a fazer um projeto de música na escola, tinha uma série de ações em torno desse Instituto cultural, assim, naquela cidade.
P/1 - E a sede foi construída?
R - A sede não foi construída.
P/1 - Mas era uma casa?
R - Depois ele ficou em uma casa e agora ele está… Deu uma recolhida e está como Instituto mais ligado ao acervo dela e menos ligado a fazer ações socioculturais. Ele chegou a ser ponto de cultura, naquele momento tinha essa energia no Brasil, de você levar cultura para o interior. Então, a gente criou o Instituto lá, não foi construído porque, enfim, seria caro, mas também, no fim, a Prefeitura tinha doado um terreno, aí o Prefeito brigou com o Instituto por motivos de políticas do interior, que a gente era contra… Eu participava do Conselho de Patrimônio e a gente se posicionava contra a demolição das casas, estava tendo esse movimento. Se, por um lado, tinha um movimento da cultura e tal, tinha também esse movimento de crescimento econômico, que era muito destrutivo, não tinha cultura ligada, era muito de destruir as casas antigas, construir uns predinhos. Foi um momento em que teve o Plano Diretor da cidade... A gente tentou se envolver na concepção do Plano Diretor, limitar a altura de construção para preservar o centro histórico, aí perdemos. O Prefeito, os Secretários, o poder econômico local, de quem tem lote ali e quer se beneficiar, acaba conseguindo se mobilizar muito mais do que quem está ali pelo bem comum, mas a gente se envolveu com isso. Aí rompeu com a Prefeitura. A Prefeitura tirou o terreno, o Instituto funcionou em uma casa, como ponto de cultura, tinha projeto de músicas na escola, depois a gente conseguiu uns projetos de Informática e música na escola, ensinava, fazia vídeo, compramos iMacs, foi um período de muita mobilização ali.
P/1 - Até 2010, mais ou menos?
R - É, acho que talvez tenha durado até um pouco mais, 2012. Aí vai minguando o projeto do ponto de cultura; no próprio Ministério é descontinuado, apesar da continuidade do governo. Quando muda do governo Lula para Dilma, sai o Juca Ferreira, a Dilma coloca Ana de Holanda como ministra e eles interrompem os projetos de ponto de cultura. E eu vi lá um ponto de cultura que tinha aplicado dinheiro público para comprar equipamento, para fazer um monte de coisa e que, de repente… Eu vi vários outros, porque a gente participava das redes de ponto de cultura, não tinha recurso para continuar no ano seguinte, não sabia o que fazer e tal. A gente ainda fez, aprovamos recurso de outros lugares e tal, depois faltou quem segurasse essa peteca, então tem um momento em que vira um esforço. Aí você já não tem aquela energia de um tanto de gente querendo fazer, da família, tal, vai ficando só nas mãos de uns, aí tem um momento em que decide interromper.
P/1 – Mas enquanto isso, você estava em Belo Horizonte também?
R – Eu morava em Belo Horizonte, voltei para o Brasil, tinha uma namorada e a gente decidiu morar junto. Eu saí desse apartamento, deu um alívio quando eu saí desse apartamento.
P/1 – Por quê?
R – República de estudante, não é? Cozinha toda suja, nenhum cuidado com o espaço. Acho que eu tinha voltado da França com um cuidado maior com espaço, assim, como as coisas são, com a casa e tal.
P/1 – Você morava sozinho em Paris?
R – Não, eu sempre dividia. Dividi, primeiro, com um amigo; depois dividi com outros dois. Mas tinha o mínimo, não é? De relação mais adulta com o espaço. Aí eu voltei para aquela casa. Nossa, o povo vendo televisão de noite, isso tudo me dava... Aí eu fui morar com essa namorada minha, a Ana, a gente alugou uma casinha no bairro da Sé, que era pequena, mas tinha um quintal e moramos lá uns cinco anos - quatro ou cinco anos.
P/1 – Você tinha 24?
R – Eu tinha 25 anos. Vinte e quatro anos. Vinte e quatro.
P/1 – Nessa casa… Você voltou para cá, estava trabalhando, depois o TCC, o que você foi fazer?
R – Eu estava trabalhando, abri um escritório com um colega que também tinha se formado, também tinha voltado da Europa, chamava Superfície. A gente fazia um pouco de Arquitetura, um pouco de imagem 3D - esse trabalho que a gente fazia na França - fazia Design para web. Eu trabalhava lá metade do dia, outra metade eu era bolsista em um projeto de pesquisa, no Centro, negócio que não existe mais, o governo acabou com isso - Centro de Tecnologia do Estado de Minas Gerais. No ano seguinte, entrei no mestrado, fiz o mestrado de 2006 a 2008, sempre em paralelo com o escritório. Então, nesse período, era um pouco metade do tempo no escritório, a gente recém-formado, arquiteto, não é fácil, a gente tinha medo de, no final do mês, não conseguir ter pago os mesmos, para poder pagar os custos básicos da vida. Então, a gente teve essa política meio assim, de meio horário no escritório, meio horário com alguma outra coisa. Na época do mestrado, eu interrompi mais o escritório no momento em que eu consegui uma bolsa; depois voltei e tinha esse engajamento. Nesse momento, meu engajamento era muito em Entre Rios, nessa questão do Instituto da minha avó, nesses anos de 2005 e 2008, ainda não tinha um engajamento com Belo Horizonte, talvez, tentando pensar, mas acho que não, acho que era mais nesse de Entre Rios, do Instituto; foi um período muito efervescente lá, dentro dessa iniciativa nossa.
P/1 – E o seu mestrado era sobre Entre Rios também, ou não?
R – Não, eu fiz o mestrado sobre ‘Arte e Tecnologia no Ensino de Arquitetura’. Eu fazia um pouco essas pontes com as coisas com que eu atuava, um pouco com a Arte, que era um campo que me interessava. Tinha a ver com essa disciplina de Informática, que tinha me tocado muito quando eu entrei no curso, que era uma disciplina que usava muito da Arte, mais ligada à Informática, tal. Foi nessa área.
P/1 – E quando é que você muda, assim? Você terminou o seu mestrado, aí acho que a iniciativa em Entre Rios você foi largando, é isso?
R – Ela seguiu ainda, mas naquele ano eu já queria fazer dentro do Instituto uma exposição da minha avó, porque achava que o Instituto também tinha que fazer uma exposição dela em Belo Horizonte, tal. Então acho que eu estava trabalhando esse projeto há alguns anos. Quem empreende na cultura... Hoje em dia, acho que está pior, mas era muito chato: você aprovava projeto, aí tinha que ir atrás das empresas, o cara da empresa não entendia nada daquilo, mas falava não ou falava sim, mas com as condições superesquisitas. Em 2009 eu consegui realizar essa exposição dela - foi aqui no Palácio das Artes, na Grande Galeria, galeria principal da cidade. Foi uma exposição que ficou muito bonita, a gente fez recuperando muitas obras dela que estavam em gavetas e restaurou. Obras dos anos 50, 60, trouxemos, de coleções, apresentamos a fase nova, naquele período dela, foi uma exposição muito legal. A ação em que eu me envolvi mais e que gerou um resultado mais relevante para o Instituto foi essa, isso em 2009. Foi um ano também... 2009 foi um ano em que acontece muita coisa, que, para mim, muda. Foi um ano em que a gente criou um primeiro bloco de Carnaval de rua em BH. A minha lembrança de Carnaval - nesses outros anos eu tinha ido para o Rio - era de ir para o Rio ver aquele Carnaval de rua, que estava renascendo, mas em BH ficavam as ruas desertas, não é? Em 2009, a gente decide, um grupo de amigos: “Ah, vamos fazer um bloco, como o pessoal no Rio faz”. Descobrimos que tinha um outro grupo de amigos fazendo, e é um ano em que a gente: “Pô, então vamos sair com esse bloco, será que vai dar certo?”. Chega lá, tinha 30 pessoas e saímos. E foi superhistórico para quem estava lá, foi um dia lindo, assim, de vivenciar a rua da cidade, com o Carnaval, a gente andando, as pessoas olhando, achando estranho, algumas, vindo para o bloco. Então, foi o ano em que eu fiz essa exposição da minha avó, que fez um pouco um fechamento de ciclo ali, do Instituto, foi o ano em que eu passei no concurso para a UFMG, comecei a dar aula na UFMG. E também eu terminei esse namoro que eu estava e comecei a namorar com a Fernanda, que é a minha companheira até hoje. Então tudo nesse ano de 2009, foi um ano supercurioso, assim... Tudo que eu vivi nesses dez anos, de lá para cá, teve um pouco de inflexão ali, naquele ano. Acho que também essa coisa do Carnaval, porque é, também, o início de engajamento com a cidade de Belo Horizonte. Talvez um fechamento, nessa fase de engajamento com Entre Rios e tal, e início de engajamento com a cidade de Belo Horizonte. Eu comecei a fazer uma coluna no jornal aqui, debatendo espaço público, mobilidade, trânsito, é um momento em que eu também me início, assumindo mais um lugar de urbanista mesmo, embora eu tivesse pouca formação - meu mestrado não tenha sido dessa área - mas meu interesse estava nessa área, não é?
P/1 – Qual era o nome do bloco?
R – Tico Tico Serra Copo. É um bloco que tem dez anos aqui em BH, a moçada deve conhecê-lo. E outro bloco dos amigos, que a gente conheceu, foi o Bloco do Peixoto. Foram os dois blocos que saíram naquele ano de 2009.
P/1 - E porque vocês saíram em 2009, não antes ou depois?
R – Eu acho que, obviamente, uma coincidência, não é? Mas tinha um crescendo desse interesse pela rua, pela festa na rua, pelo espaço público, essa coisa de ter ido ao Rio em 2006, 2007, outros amigos também tinham ido em 2005. E todo mundo: "Pô, olha lá, a galera do Rio fazendo bloquinho de rua”. Que não é o Carnaval do sambódromo, não é? É o Carnaval de rua, bloquinho, horizontal, tocando, andando pelas ruas. Aí: “Pô, acho que dá para fazer, mas em BH será que vai dar certo?”. Aí coincidiu, a gente estava em uma festa, em janeiro ou em fevereiro: “Ah, quem vai ficar em BH?”. “Eu também vou, não vou viajar, estou sem grana, vou ter que ficar aqui por um motivo, por outro”. “Ah, vamos fazer um bloco?”. “Vamos”. Uma coisa muito assim de quatro, oito pessoas. E com muita dúvida se ia sair, mas acho que tem um crescente, assim, e uma coincidência, não é? Acontece ali uma fagulha, como quando faz fogo, tem um contexto todo para fazer o fogo, a coisa tem que estar mais seca e etc. Mas tem uma coincidência do contexto. Mais engraçado ainda ter surgido o do Peixoto, que a gente não se conhecia exatamente, não eram turmas que eram a mesma. O Tico Tico era uma turma que tinha mais a ver com arquitetos, urbanistas e um pouco um povo do cinema. E o Peixoto, uma galera que vinha mais da Comunicação, assim. A gente ficou superamigos; continuam amigas algumas pessoas, não é? A gente se conheceu ali no Carnaval, somos amigos de décadas, assim. Nessa coincidência de ter inventado, no mesmo ano, de fazer um bloco de Carnaval, em uma cidade que não tinha. No Centro tinha uma tradição de Carnaval que tinha sido meio apagada, meio desprezada pelo poder público ou que tinha desaparecido por muitos motivos, assim. Era um Carnaval que estava muito apagado. Se tinha coisas, elas não reverberavam, não apareciam no circuito mais amplo do que onde elas, eventualmente, existissem. Mas eu nem sei se tinha ou não bloquinho de bairro; até onde eu entendo, não tinha.
P/1 – E qual era o trajeto do bloco?
R – (risos). O trajeto era nas casas, muita gente morava na Serra... Nessa época eu tinha essa casa em que morava com essa minha namorada da época, a Ana, então saía de uma outra casa, que era de umas outras pessoas, que eram do bloco, passava pela nossa, passava perto de uma outra e ia terminar em um bar. Era um trajeto, assim, modesto, bem bobo mesmo, sabe? Era tão amador que ninguém foi lá ver no bar se o cara ia ficar aberto, ou a pessoa foi falar e o cara não levou a sério, falou: “Ah, isso”. Aí, não estava aberto o bar, o bloco continuou. Falou: “Pô, e agora? O que nós fazemos?”. Por sorte, alguém chamou uma pessoa que era vendedor ambulante de cerveja, ela foi acompanhando o bloco. Essa mulher faturou, vendeu tudo. E o bloco foi continuando, aí choveu, entrava em lote vago, entrava em agência bancária, aí virou um bloco experimental, assim. Tinha um trajeto superbobo de início, depois que deu errado o trajeto, ele virou um bloco meio experimental, meio flamante, assim, pela cidade. Aí foi muito empolgante para todo mundo. Entrava em sorveteria, ficava tocando, era pequenininho, não é? Ficava um povo. Todo mundo se surpreendia com aquele bloco atravessando a cidade, a cidade não tinha ninguém. Um bloco foi no domingo, outro foi na terça - o Tico Tico e o Peixoto. Eu lembro que, na segunda, a gente, naquela coisa de curtir uma ressaca, de uma festa boa, assim, a gente se encontrando, indo almoçar em algum lugar, algumas dessas pessoas. A cidade completamente vazia, todas as ruas vazias, não tinha ninguém em Belo Horizonte há dez anos, no Carnaval.
P/1 – Teve o negócio da Praia da Estação depois, não é?
R – A Praia da Estação nasce no final desse ano de 2009, quando aquele Prefeito decide fazer uma trapalhada dele. Ele criou a própria oposição ali, um decreto meio estabanado de proibir. Nasceu no final daquele ano, o pessoal fez uma convocatória - tinha os grupos anarquistas - uns convocaram para ir todo de branco, uns convocaram para ir para a praia e virou a Praia, eu não estava nesse grupo. Eu fui na primeira Praia, depois eu atendi à convocação e fui. Mas eu não era do grupo que estava puxando, assim.
P/1 – Como foi entrar na UFMG, você era muito novo na época?
R – Eu era novo, tinha 28 anos. Foi também uma mudança para mim, porque assim... Eu não precisava mais, agora tinha uma certa estabilidade, podia me colocar mais como pesquisador, não precisava mais ficar correndo atrás, escritório e tal. Embora eu tenha mantido o escritório por um tempo, durante alguns anos na UFMG eu não fui de dedicação exclusiva, não é? Eu tinha um regime de trabalho de 20 horas, então permitia ter outra atividade. Mas eu colocava um pé oficialmente no lugar de pesquisador, pessoa que escreve, que estuda, que faz livro, faz, enfim. Então foi muito isso, permitir criar esse lugar. Eu dava aula de noite, sempre dei aula de noite na UFMG, porque abriu o curso, foi no programa Reúne, abriu o curso noturno. E o curso noturno de Arquitetura é muito legal, no sentido de deselitizar um pouco. Arquitetura, quando eu fiz, por exemplo, a minha turma só tinha pessoas brancas, de classe média, alguns de classe alta. E o curso noturno, onde eu ensino, tem uma diversidade maior de lugares, de classes sociais, racial, então, eu acho isso ótimo. Eu acho uma evolução para essa disciplina da Arquitetura, ele tem uma pega mais urbana, mais social. Eu tenho um problema de dar aula de noite porque eu acordo cedo, sou muito ativo de manhã, penso muito, estou fazendo todas as coisas de manhã e, de noite, já estou mais cansado; então, é uma coisa mais de relógio biológico. Mas foi ótimo entrar na UFMG, foi superimportante para poder liberar esse lugar de pesquisador e sair essa pessoa que escreve. Aí, principalmente, nessa questão mais urbana.
P/1 – A sua companheira atual trabalha nisso também? A Fernanda.
R – A Fernanda é formada em Ciências Políticas, ela faz Piseagrama com a Gente, que é essa revista, ela não é professora da Universidade, ela trabalha também com tradução, revisão de texto e como editora da revista.
P/1 – Entendi. Vamos chegar lá ainda, mas antes...
R – Nossa, tem muita coisa dessa década.
P/1 – É, vou chegar lá ainda, mas você disse que começou a escrever para jornal também esse ano. Foi no Estado de Minas?
R – Era no Hoje em Dia, tinha alguma editora lá que chamou os arquitetos para revezarem em uma coluna de domingo. Aí, alguém me incluiu nisso, era assim uma vez a cada seis semanas era a minha coluna, eu fazia. Fiz isso por um ano, assim... Comecei a fazer o debate urbano. Nesse ano eu fiz um ensaio, estava muito incomodado com a cobertura do rio Arrudas, que é o principal rio da cidade. Porque a cidade de Belo Horizonte veio para esse território, inclusive, pela qualidade das águas do Arrudas e a Prefeitura estava, junto com o governo do estado, cobrindo o rio para aumentar a pista para trânsito. Quando a gente via, mundo afora, o movimento inverso. De recuperar os rios, de limpar os rios, as pessoas estarem começando a nadar e poder usar as águas dos rios da cidade, uma outra relação com o território. Então, naquele ano de 2009 eu fiz um ensaio, passei um tempão fazendo isso, umas imagens de Photoshop, em que a gente cobria... Teve um pessoal que trabalhou comigo nisso... A gente cobria os rios, em Paris, em Londres, com pista de asfalto e um Photoshop impecável, assim, de você olhar e parecer verdade, Photoshop meio hiperrealista. E publiquei na Piauí - na revista Piauí - com um texto meio irônico, falando que o que estava sendo feito em BH - em São Paulo também tem várias dessas obras - estava sendo replicado mundo afora. Foi também um lugar, um momento de... Nossa, me deu uma alergia aqui.
P/1 – Quer tomar uma água?
R – A gente pode repetir esse pedaço, não é? Só pegar uma coisa aqui. Então... Eu estava muito incomodado com essa questão da cobertura do Arrudas, que eles chamavam de Boulevard Arrudas, era uma obra muito cínica, eu tinha muita raiva desse jeito que eles vendiam a destruição da cidade, a destruição de um rio, em torno de uma ideia de progresso. Então, eu fiz essas imagens como se tivesse a mesma coisa sobre o rio Sena, sobre o rio Tâmisa, em Veneza também. Não lembro que outras cidades, eram uns photoshops muito bem-feitos, utilizando fotografias que não tinha sido eu que tinha tirado, eram fotografias colhidas na internet, que estava sob licença Creative Commons, no Flicker das pessoas. A gente cobria o rio com asfalto, em uma imagem muito impecável, assim. Fiz esse ensaio, chamava: “O progresso avança pelo asfalto” e era um texto muito irônico, provocativo, sobre aquele momento do Brasil. Eu acho que já tinha para mim, ali também, esse momento em que o Brasil... A economia estava bem, o Brasil tinha reduzido a pobreza, desigualdade, mas na questão urbana era um país que andava na contramão, não é? Em muitos aspectos, esse era um... Essa coisa meio desenvolvimentista, muito carro, IPI zero para carro, asfalto... As Prefeituras todas com essas políticas, construindo viadutos. Então, para mim, foi esse momento de conseguir pautar essa questão através de um ensaio mais artístico, mas que usava as coisas que eu tinha sido formado para fazer, que era trabalhar com imagem no computador e tal. Mas já com um viés crítico, de pensamento urbano, foi um trabalho que me permitiu também pensar: “Pô, tem várias maneiras de atuar nisso e eu posso atuar e ser também uma voz ou uma pessoa que coloca essas questões, em uma revista que eu achava ótima - eu assinava a Piauí, adorava ler e tal; fiquei supersurpreso quando eles aceitaram. Foi também em 2009. Então, foi um ano curioso, pessoalmente.
P/1 – E dali em diante você começou a pensar, então, como urbanista, o espaço de Belo Horizonte, é isso? Atuar mais dessa forma?
R – Sim. A gente... No encontro com a Fernanda, que é a minha mulher, e com um casal de amigos, a gente decide criar a Piseagrama, que é essa revista, a gente manda para o Edital - naquele ano também - o Edital do Ministério da Cultura, que chamava rede de revistas. Não sei, quinhentas revistas, do Brasil inteiro, ficamos entre as quatro selecionadas, nunca entendemos o porquê. Meio, não é? Claro que tinha um mérito, acho que a gente escreveu bem o projeto, mas era uma coisa... Talvez aquele debate urbano já estava, de fato, latente e quem estava no Edital, sentiu essa demanda também. E com a Piseagrama, aí sim, a gente... “Pô, então eu sei que é uma revista sobre diversas questões, mas muito a questão urbana também”. Aí, nesse momento, eu acho que a partir desses artigos desse ano, esse engajamento com Carnaval de BH, o surgimento da Piseagrama, entrar como professor da UFMG, eu começo a me ver e a atuar como uma pessoa, uma voz crítica na cidade, uma voz propositiva, alguém que está ajudando a pensar e a se movimentar pela questão da cidade.
P/1 – E o nome da revista é uma junção, não é?
R – Pise-a-grama, que a gente juntou, não é? Fica parecendo um anagrama; às vezes, tem umas pessoas que não entendem de imediato. Mas tinha muito essas plaquinhas, não é? Naquela época, tinha muito mais do que hoje. Porque a questão do espaço público mudou. Mas tinha muita plaquinha: “Proibido pisar a grama”. E também, isso remete muito a essa memória de ter morado em cidades onde as pessoas frequentavam... Faziam piqueniques, tinha uma coisa do uso do espaço público. E o que a gente via era que, ou o espaço público era abandonado - ele estava destruído - ou ele era monumentalizado, você não podia usar, era só para ficar passeando e vendo. Então, o pise-a-grama era essa reivindicação, assim, muito ativista, muito concreta, mas de uma coisa simples.
P/1 - E, me diz uma coisa: o que te revolta, então, em Belo Horizonte, deve ser uma lista meio grande, não é? Eu imagino. Mas o quê, especificamente, de Belo Horizonte, você acha que são problemas que a cidade passa, assim? Lugares ou, sei lá, dinâmicas que você consiga pensar.
R – Eu acho que essa praga dos carros, que é a praga das cidades grandes, uma grande parte delas, os espaços muito tomados por automóveis, barulho, poluição, os pedestres nos cantinhos, essa coisa, assim, a possibilidade de uso da cidade muito tolhida por esse viés automobilístico, mas não é privilégio de Belo Horizonte isso, muitas cidades têm. Mas eu acho que Belo Horizonte tem uma carência de espaços públicos mesmo, embora existam os parques, as praças, etc. Acho que a quantidade e a maneira como eles estão distribuídos e a maneira como eles estão conectados à cidade, é carente, assim... Para o uso mesmo. Acho que a gente tem uma demanda de espaços públicos mais qualificados, abertos, à noite: Parque Municipal fecha às seis horas da tarde; no Centro, no coração da cidade, ali, cheio de gente andando, passando, atravessando, aí ele vai e fecha as portas. Eu sinto isso muito forte em Belo Horizonte e remete a essa minha experiência como secundarista, completamente isolado da cidade, essa ausência de conseguir entender algum espaço público que eu pudesse ir, que aquilo fizesse algum sentido, assim.
P/1 – Em geral, o que você acha que vem travando a cidade, então?
R – Eu acho que essa questão da mobilidade dos espaços públicos é muito forte. Aí tem um monte de problemas, que são problemas de moradia, questões estruturais das cidades brasileiras e que têm poucas políticas adequadas. Essa questão da mobilidade, da praga dos carros, ela tem também outro lado, que é a carência de um sistema de transporte público mais eficiente. Diferente de São Paulo, que, com todos os problemas, as pessoas conseguem se deslocar muito mais, tem uma rede de Metrô razoável, assim. Claro que tem muitas áreas da cidade que não são bem servidas, mas você tem mais gente conseguindo se mover. Aqui em Belo Horizonte eu sinto isso muito forte também, uma cidade em que o transporte público é tão deficiente, ela acaba sendo uma cidade meio esvaziada. Então, outro dia, eu estava... Claro que isso tem a ver com cultura e tal... Mas os fins de semana na Savassi, que deveria ser o burburinho da cidade, as ruas são vazias, tem pouca gente na rua, uma cidade esvaziada de uso da rua, assim. Isso, às vezes, me deixa meio angustiado, também, com a cidade, porque ela me lembra essa angústia de que as pessoas estão em casa, vendo televisão, sabe? (risos).
P/1 – Você tem uma coisa com isso?
R – Eu tenho uma coisa com a televisão, uma ‘deprê’ com televisão, muito grande.
P/1 – Mas você falou uma coisa que eu pesquei umas duas vezes quando você falou. Você falou assim: “Não, mas veio mudando”. É isso mesmo? Você acha que ela vem mudando?
R – A cidade.
P/1 – É.
R – As pessoas mudaram muito na cidade, em muitos aspectos. Quando eu estudava na Escola de Arquitetura, meus colegas que eram gays não ficavam em público com seus companheiros, seus namorados e custavam... Um grande amigo meu - era meu melhor amigo - ele demorou seis meses para me contar que ele era gay. Isso mudou muito. Eu dou aula em uma escola hoje, em que os meninos andam de mãos dadas, as meninas se abraçam, se beijam, isso mudou no mundo, talvez, em muitos países, mas aqui mudou, eu vejo isso muito fortemente. As pessoas mudaram muito as suas relações com os espaços, com engajamento e com uma ideia de cidade, porque na minha geração, quando a gente se formou na escola, não estava muito preocupado com essas questões, com as quais eu me preocupo muito hoje, com as quais eu me envolvo. Não havia professores que nos mobilizassem para isso, nós, como alunos, não nos mobilizávamos para pensar mobilidade urbana, espaço público, moradia, meio ambiente urbano, árvores, águas, o rio da cidade; não passava pelos debates essas questões. E as pessoas mudaram muito, as pessoas se organizaram em diversos coletivos, fizeram e fazem uma série de ações, de intervenções no espaço público. O próprio Carnaval gerou essa retomada de um hábito da cidade, da convivência, etc. A cidade, estruturalmente, mudou menos do que as pessoas mudaram. O uso da cidade mudou demais, a cidade respondeu - em matéria de política pública - relativamente pouco a essa mudança tão grande que teve, de uso.
P/1 – Entendi. Curioso então, não é?
R – É, os governos são lentos, as políticas são lentas, uma oferta de espaço público mais generosa, a demanda por ela está evidente, cada vez mais gente fazendo coisas, inclusive lutando por isso. Mas, infelizmente, a gente não teve gestões da Prefeitura que respondessem adequadamente, entrassem nesse debate, assim... Pouquíssimas ciclovias foram feitas. Em matéria de áreas verdes, espaço público, acho que nada, quase nada evoluiu, mas faz parte. A próxima geração tende a ser já com mais mudanças no poder público, eu acho que faz parte do ciclo da luta social.
P/1 – Então, o que você vê mais é que as pessoas mudaram. Apesar do poder público, é uma coisa meio... Como se fosse um improviso ainda, em cima do que tem?
R – É. Acho que é isso. Um improviso em cima do que tem. Uma luta para que seja diferente, uns movimentos muito mais organizados, essas massas críticas de bicicleta, o próprio uso do Carnaval, a história da Praia da Estação, os movimentos todos, diversas lutas, tem os movimentos nos bairros pelas áreas verdes... Aqui no Jardim América tem um, tem outro na Mata do Planalto. Então, o engajamento das pessoas pela transformação da cidade cresceu enormemente nesses últimos... Nesses dez anos, por exemplo, os últimos vinte anos. A resposta do poder público ainda é muito tímida, eu acho.
P/1 – Mas tem algum lugar em Belo Horizonte pelo qual você tem mais afeto, mais carinho? Um bairro...
R – Eu tenho com o bairro de Santa Tereza, que é o bairro onde eu morei nessa década, que é um bairro que ainda tem uma vida mais calma, assim, um pouco mais de interior, ele fica meio protegido por essa linha do Metrô de BH, que é um Metrô de superfície, que isola um pouco as coisas, mas acaba que o bairro não virou uma travessia. Outros bairros similares a ele, com um perfil parecido, como o bairro da Floresta, passam umas linhas de ônibus e uns corredores de carro, no meio do carro, destrói muito a vida do bairro. Santa Tereza é um bairro gostoso de estar, de ter uma comunidade, tenho amigos, a praça, tem uma vivência, assim, mais interiorana. E gosto muito dos lugares de luta, com os quais eu contribuí, das periferias, são lugares muito carentes, assim. No Ribeiro de Abreu, onde tem uma luta muito bonita pela limpeza do Ribeirão do Onça, eu já colaborei com eles de diversas maneiras, desde organizar blocos de Carnaval lá até a gente fazer uma disciplina da Arquitetura, fazer juntos mutirão para melhorar aqueles espaços e tal, mobilizar a comunidade, assim. Tenho muito carinho por esses lugares também, assim, os lugares em que você sente as pessoas que vivem na cidade, fazendo a cidade, lutando para que a cidade seja diferente. A coisa sempre é muito precária, porque sempre falta recurso, mas tem um espírito de transformação nesses lugares.
P/1 – Você está sempre tentando fazer com que essa teoria faça sentido, então, parece.
R – É. Eu entendi que o meu lugar na cidade é um lugar de ajudar a transformar, não é? Com os meios que eu tenho. Que são os ativismos, esse lugar de pensamento, de texto, crítica, revista, disciplinas da escola, é como eu me vejo, como eu me coloco.
P/1 – E você é pai?
R – Sou.
P/1 – Quantas crianças?
R – Tenho duas filhas.
P/1 – Quem são?
R – A Rosa e a Antônia. A Rosa tem oito e a Antônia tem quatro. Mentira, a Antônia vai fazer quatro agora, dia 14 de outubro. Elas são umas fofas, é muito legal, assim. É uma possibilidade da gente voltar um pouco na infância, voltar um tempo mais lento, voltar ao lúdico, não é? Eu tendo a ser muito prático também, muito objetivo no meu dia a dia. Porque eu fico enxergando o tamanho das coisas todas para lidar e abro muitas frentes, tudo, acabo trabalhando muito, assim. E as crianças são um outro tempo, um outro jeito, as coisas que importam a elas sempre abrem umas janelas de simplicidade, de beleza, assim. É muito bom estar com elas.
P/1 – Mudou bastante sua vida, não é? Imagino.
R – Mudou. Foi mudando na transição, fui aprendendo a ser pai também. A gente não é formado para isso não. As mulheres são ensinadas a ser mãe, os homens são ensinados a outra coisa. Mas estar próximo, dar valor a esse tempo, saber que esse tempo é importante, que toma tempo e que toma carinho, toma atenção, você não pode terceirizar isso; até pode, muita gente terceiriza, mas eu não quero terceirizar isso. Então, ao longo do tempo, para mim, foi um aprendizado de mudança mesmo, em mim, assim. De entender o lugar do cuidado, aprendendo com as amigas feministas também, com a minha companheira. De entender o lugar do cuidado, como é um lugar importante também a ser compartilhado. Eu acho que os homens são muito treinados a desprezar esse lugar do cuidado e ir para o mundo, não é? Ganhar o mundo. Então, cada um com seu propósito no mundo, mas esse lugar, isso mudou muito para mim, eu gasto cada vez mais tempo, tomo cada vez mais tempo junto com elas, com as atividades da casa, organizando jantar, lavando louça, fazendo as coisas com elas, fazendo dever. Isso é uma... E não foi assim, quando elas nasceram, esse clique caiu para mim, não é? Foi aos poucos, acho que estou até meio atrasado, a Rosa está com oito, eu já podia ter... Mas eu estou no caminho, assim, de entender toda a dinâmica delas e participar disso inteiramente, assim, não é?
P/1 – Uma coisa que muita gente me fala: como é que você pensa o futuro para elas? O que você acha?
R – Nesse Brasil, eu ando de bicicleta com elas, não é? Dei de aniversário para Rosa agora uma bicicleta, nova, aro 24, tipo, quase de adulto. Porque ela está grande mesmo. E para Antônia eu vou dar aquela pequenininha, sem pedal, para ela começar a andar. A gente anda de bicicleta, passava em cima do rio Arrudas lá, quando eu estava em Santa Tereza, na passarela, assim, olhava o rio, ficava conversando sobre o rio, mas acho que isso, essas lutas das quais eu participo, eu penso muito nelas também... Que infância é essa, que cidade é essa que elas vão viver? E em mim também. Mas é nelas e em outras pessoas. Mas elas são um bom jeito de mirar para isso, de olhar para isso: em que cidade elas estarão? A gente vai conseguir ter um lugar de um pouco menos de violência - violência estrutural que estou falando – desigualdade - estrutural também - para além do dinheiro? Desigualdade de espaço, de oportunidades e de circular, de vivenciar lugares? Eu penso muito nisso, mas acho que ninguém tem uma perspectiva muito otimista hoje em dia, do Brasil. Mas elas ocupam esse lugar para mim, assim, também. De uma motivação ou... Acho que eu faria as mesmas coisas que estou fazendo, sem elas, mas elas dão uma concretude para essa motivação. Que mundo é esse que a gente vai entregar para elas, quando elas estiverem adultas? Que elas vão começar a atuar também e vão contribuir para mudar?
P/1 – O que você pensa para o seu futuro? O que você está projetando? Você tem alguma coisa?
R – Eu estou fazendo doutorado, então eu tenho que terminar esse doutorado, uma coisa bem prática, estou no meio dele, estou em um momento de ler muito, escrever, momento mais focado, assim. Quando eu terminar o doutorado, daqui a uns dois anos, eu penso em dar um passo de estruturar mais essa atuação que eu já tenho na cidade, assim, estruturar, talvez organizar em torno de um Instituto de transformação da cidade ou ir para algum que já atue, somar e tentar fazer com que essas mobilizações, esses engajamentos, esses debates, possam ter uma atuação a partir de fora do poder público, mas também uma sociedade organizada, ter mais força para conseguir vitórias concretas, do lado de políticas públicas. Talvez um pouco essa percepção que a gente estava falando antes, assim. Faltam... As respostas do poder público não foram dadas, ao mesmo tempo a gente tem muita energia social em torno desses desejos de uma cidade mais humana, de uma cidade com mais espaços públicos, de uma cidade menos poluída, de uma cidade com um transporte melhor. Então, a minha hipótese, minha vontade é uma atuação mais estruturada em torno disso, ir para o terceiro setor, além da Universidade, mas somando com a atuação da Universidade.
P/1 – Você gosta de Belo Horizonte?
R – É uma pergunta muito difícil essa. Eu gosto muito de muitos aspectos da cidade, mas a cidade como um todo é bastante hostil. Eu tenho amigos e familiares de coração nessa cidade, é aqui que a minha vida afetiva, de muitos anos, de mais de uma década, se estabeleceu, e tem muitos aspectos da cidade que são bonitos, assim... De uma cidade mais relaxada nos bares, tem esse lado, não é? Mas uma cidade que o que mais me mobiliza nela é o que a gente precisa fazer, o que a gente precisa mudar, ela é mais carente. Quando você está no Rio, São Paulo, você vai ter uma oferta de coisas, é mais fácil você ter uma vida, com todos os problemas que tem nessas cidades para um certo perfil social e econômico. É muito mais fácil você ter uma vida, você vai ver mais coisas, você vai acessar melhor os lugares, vai ter a praia em um lugar, você vai ter mais espaços públicos em outros, você tem um sistema de mobilidade que funciona em outras. Aqui, a gente tem muitas carências, assim. Mas também isso gera muita comunidade. Muitas coisas de que eu participei nesses anos, desde bloco de Carnaval a construir junto uma escolinha, a fazer para os nossos filhos, a fazer parte de movimento social, etc, é um pouco no engajamento em torno dessas carências. Aí, você gera comunidade, forma amigos, gera sentido.
P/1 – Como foi contar um pouquinho da sua história?
R – Foi estranho no início, essa parte mais descritiva, de ficar falando, descrevendo as coisas. A segunda parte eu estou mais habituado, que é um pouco mais reflexiva, contando sobre essa última década. A primeira parte eu confesso que fiquei assim... Enfim, não é algo a que esteja acostumado a fazer, descrever esses momentos, quase me pareceu uma ficção científica, tipo, sei lá, arquivando todas essas informações e sei lá para onde isso vai. Mas é sempre bom porque a gente acaba pensando, a gente reorganiza o pensamento sobre como a gente se vê e como a gente quer estar, não é? No mundo.
P/1 – Obrigado, viu, Roberto?
R – Obrigado a você.
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