P/1 – Então vamos lá, Cadu, a primeira coisa é te agradecer pela participação de compartilhar sua história com a gente.
R – Prazer.
P/1 – E vou começar pelo começo mais fácil, que é o nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Meu nome completo é grande, é Carlos Eduardo Rahal Rebouças de Carvalho. Nasci no dia 19 de fevereiro de 97 em São Paulo, no Einstein, e sou daqui, morei aqui, vivi aqui. Quero morar fora um dia, mas por enquanto sou daqui.
P/1 – E os seus pais, fala o nome deles e conta um pouquinho quem eles são.
R – Meu pai é Luís Eduardo Morato Rebouças de Carvalho e minha mãe é Adriana Rahal Rebouças de Carvalho. Os dois também de São Paulo, o meu pai na verdade nasceu em Birigui, mas quando ele era muito pequeno ele veio pra cá, então, paulistano. Os dois da área de Saúde, o meu pai é médico, oftalmo, minha mãe é fono, eles se conheceram por amigos da faculdade e estão juntos há 25 anos de casamento, fizeram o ano passado. E são duas pessoas das mais importantes da minha vida, eles são paizões, sabe? São parceiros, eu devo muito a eles em termos de educação, do que eu sei, do que eu acho certo, o que eu não acho. E eu não sei, são pessoas incríveis.
P/1 – O estilo deles, conta um pouquinho.
R – O meu pai é uma pessoa muito responsável, muito comprometida com as coisas, trabalha pra caramba, super engraçado também. Ele é muito inteligente, ele tem um humor que eu admiro muito, eu gosto muito das coisas que ele fala, da forma como ele enxerga as coisas, ele tem um humor crítico muito legal. Minha mãe é uma pessoa mais leve, mais desligada, tem memória fraca. Ela é agitada, não para quieta um minuto, faz milhões de coisas, não tem muita paciência, é meio afobada, ri de tudo, mais otimista. Mas os dois são pessoas muito tranquilas, sempre me ensinaram a lidar muito bem com meu espaço, com minha liberdade, com minhas coisas. Mas sempre estiveram ali também.
P/1 – E irmãos, você tem irmãos?
R – Tenho um irmão mais novo, Gustavo, ele tem 15 anos. Eu acho que talvez ele não saiba disso, mas eu acho que ele é a pessoa que mais me conhece no mundo. Não porque eu conte tudo pra ele ou porque a gente converse tudo, mas eu sinto que muitas coisas ele sabe sem que eu precise falar. Então isso é uma coisa que ele não tem muita noção, mas ele é um cara muito sensível e percebe muito as coisas, mas é porque ele é mais casca grossa, ele é mais durão, às vezes ele acha que ele devia ser o irmão mais velho, engraçado, eu falo: “Só que eu nasci quatro anos mais velho do que você, então, você me deve respeito, você me deve tudo isso”. Mas ele é um grande amigo também. A gente é muito diferente, ele gosta de bola, essas coisas, eu não sou dos esportes; ele não tem paciência pras coisas que eu gosto; eu gosto de música, toco piano, ele fica meio cheio, mas a gente se dá super bem, a gente briga, mas se dá super bem.
P/1 – Que legal. Você nasceu em São Paulo. Agora conta pra mim da sua infância, onde você passou a sua infância aqui em São Paulo, como é que era viver em apartamento ou em casa, que tipo de brincadeira. Descreve um pouquinho esse período pra gente, por favor.
R – Eu morei em apartamento até os 13 anos, agora moro numa casa, vai fazer quatro anos que eu moro lá. Mas morei em um apartamento, tudo aqui em São Paulo, aqui na mesma região, Alto de Pinheiros. Então, primeiro esse bairro me traz muitas lembranças. Eu lembro que tinha uma pracinha lá do lado de casa que eu ia muito, foi onde eu conheci meu primeiro grande amigo, que hoje eu não falo tanto com ele mais, mas eu conheci ele quando eu tinha um ano brincando de bola na pracinha. Sabe aquela coisa de filme? Aquele lugar, aquela pracinha, aquele banco, então faz muito parte da minha história. O prédio também, a gente brincava lá na piscina, na quadra. Essa região me traz memórias muito gostosas. Em termos de brincadeira, eu sempre fui uma criança meio esquisita. Eu gostava de brincar de fantasia, gostava de me sujar, brincar de lama, brincar de tinta. Gostava de me pendurar nos trepa-trepa, gira-gira, nos parquinhos. Eu estudava aqui no Alfa, aqui perto, e gostava de brincar com a areia azul que tinha lá e os jabutis. Gostei sempre muito de bicho, meus avós têm uma fazenda que eu adorava ir pra ver os bichos. Eu não gostava muito de andar a cavalo, tinha um pouco de medo, não gostava de acordar cedo, mas eu gostava de ir lá no pomar, ver as galinhas, ver as coisas. O que mais? Esse amigo que eu conheci na pracinha, ele tem uma casa na praia, passei muitos réveillons lá, foi sempre muito gostoso. Então era a praia que eu mais ia, na Barra do Una, também tenho boas lembranças de lá, do mar, o mar sempre me fez muito bem, eu sempre gostei muito de água, fiz natação um tempão. E era meio que isso, eu nunca parei quieto.
P/1 – E nesse período da infância, você disse que gostava de bicho, gostava de ficar pendurado não sei onde. Esses seus gostos, esses seus hábitos, tem alguma história que você possa pinçar desse seu jeito de ser? Alguma encrenca que você se envolveu, a confusão ou algo diferente, fora do comum, desse período da infância? Ou na praia, ou na fazenda dos seus avós.
R – Teve uma fez na fazenda dos meus avós que a gente estava andando de carroça, de charrete, e a gente ia pescar. E aí o cara que estava com a gente, o que ficava responsável lá pelos cavalos, ele desceu pra fazer uma coisa, não sei o que ele ia fazer lá, ou deixar as coisas no chão, alguma coisa assim. E aí estava eu, estavam dois primos comigo e uma babá deles, enfim. E aí a gente falou: “Vamos descer da carroça”. Todo mundo desceu e na hora que era pra descer eu fiquei, de propósito, queria ficar sozinho na carroça. E a carroça disparou e eu estava sozinho nela. Disparou e aí todo mundo correu atrás de mim, a rédea caiu pra baixo, então eu não tinha como puxar. Eu devia ter uns sete anos, eu comecei a gritar desesperado e o cavalo disparando, e eu achei que eu ia morrer, que eu ia bater, sei lá o que ia acontecer. Mas aí eu me lembro que eu falei assim: “Não, respira fundo, quem manda no cavalo sou eu”, pensei nisso, não sei como eu pensei nisso. E aí eu consegui pegar um pouquinho a rédea de um jeito que não ia machucar minha mão que ela estava mais assim, puxei, o cavalo assustou, parou um pouquinho e aí nisso deu tempo do moço que estava com a gente chegar e aí ele me salvou. Então foi muito engraçado porque eu morri de medo, mas eu saí todo de herói, sabe?
P/1 – Você que participou da aventura, né?
R – Parei a carroça sozinho. Então, eu sempre fui dessas assim.
P/1 – E São Paulo? Você falou da sua região, da pracinha, etc. Mas como você, dando um pouco mais amplo a cidade, o que você vivia de São Paulo na sua infância, os seus pais, que tenha te marcado. Além da sua vizinhança.
R – Deixa eu ver. Muitos passeios de bicicleta por toda cidade, Parque Ibirapuera, aqui pela Pedroso. Eu não sei por que, eu sempre tive um pouco de trauma de bicicleta. É uma coisa que toda criança devia amar mas eu tinha um pouco de, não sei, meus pais falavam: “Vamos andar de bike” “Ah, eu não quero”, era sempre assim. Mas aí quando eu estava andando eu gostava. Então eu lembro muito de passeios pela cidade parando em museus, a gente veio ver uma exposição aqui no Tomie Ohtake uma vez de bicicleta que foi muito legal, eu não lembro exatamente o que era, uma coisa meio abstrata. Então, uma coisa que me marcou foi a bicicleta. Outra coisa também, eu faço teatro, sempre gostei, sempre adorei e eu lembro dos meus pais me levando pra ver teatro, pra ver musicais. Lembro do Fantasma da Ópera, a Bela e a Fera, O Rei Leão que foram os que mais me marcaram. E aquelas peças mais infantis, tipos Pedro e o Lobo, peças de fantoche. Essas coisas eu me lembro muito. No meu aniversário de cinco, seis anos eu fiz em buffet também, foi um buffet lá perto da região do Itaim, dos Jardins, que eu também gostava porque a gente ia lá nas lanchonetes lá e eu adorava e comia o mesmo hambúrguer sempre, aquela coisa. E eu lembro que numa dessas festas lá que a gente fez eu pedi pra ter teatro de fantoche, fizeram Chapeuzinho Vermelho e foi muito legal. Então a coisa que mais me chama atenção na memória de infância de São Paulo é essa coisa meio cultural pra criança, sabe? Sempre uma coisa que eu gostei muito de ver peça de teatro, museu interativo, planetário, essas coisas.
P/1 – E a escola? Você mencionou onde você estudou, que você gostava da areia azul, do jabuti, etc. Me fala um pouquinho da escola, se teve uma professora que te marcou, algo que você gostava mais, que te atraía mais na escola em termos de aulas, de aprendizados. Ou de um amigo, ou de vivência ali mesmo, dessa primeira fase escolar, digamos assim, da sua vida.
R – Teve uma vez, isso eu me lembro bem, a escola fazia muitos eventos de “festas”. Eu lembro agora da festa de Halloween, todo ano dia 31 de outubro já era pra gente ir fantasiado e tinha lá a festa de Halloween com tudo. Eu me lembrei disso agora não sei por que, mas é que eram momentos que eu tenho aqui pra mim que mais eu lembro da sala junta, sabe? Então algumas das pessoas que estudaram comigo vieram estudar mais tarde, depois, no colegial, no fundamental. Dessas pessoas e das outras todas o momento que eu mais lembro eram essas festas. Ou então apresentação pros pais. Teve uma vez que a gente fez uma lanterna que foi muito legal. Eu gostava mais da escola, eu me sentia aprendendo meio que por conta, sabe? Não que os professores não fossem bons, não é isso, mas mais do que professor marcante ou aula marcante eu gostava muito dessa coisa de ir lá e fazer, fazer a lanterna, ou tem que ir com uma fantasia porque tem uma festa e a gente tem que fazer uma brincadeira, uma coisa assim. Teve um projeto de mitologia que a gente teve que escrever que eu lembro que foi muito legal, foi quando eu comecei a me interessar por essas coisas – hoje em dia eu já não sei muito mais. Mas foi quando eu comecei a gostar de ler. Então eu não me lembro exatamente uma coisa que me marcou na escola, mas o Alfa foi um momento que despertou várias sementinhas que vêm até hoje. Então, sei lá, eu sou uma pessoa que gosta muito de festa, gosta muito de reunir as pessoas, de criar, então tudo isso eu comecei a fazer lá no Alfa.
P/1 – E essa fase da infância tem também o outro lado, né, porque às vezes tem essa coisa de idealizar muito o passado, a infância, mas tem aquela coisa maldosa da criança, das adversidades, do bullying. Teve alguma passagem que tenha sido marcante por esse lado negativo, digamos assim?
R – Sim. Na pré-escola teve também, mas me marca menos, dos, sei lá, cinco, seis anos, então não é uma fase que eu ligava muito. Teve uma vez que me trancaram numa sala falando que tinha um presente pra mim lá, me trancaram e aí eu fiquei morrendo de medo e batia na porta: “Me tira daqui!”. Mas depois fiz as pazes com as pessoas. A gente foi lá na diretora, a diretora deu bronca neles e ficou tudo certo. Então essas coisas dessa primeira infância existem mas não me marcam tanto. O que foi mais difícil assim, foi quando eu mudei de escola. Não foi tipo isso ou difícil, mas foram as coisas que aconteceram na escola nova depois dos meus oito anos. Eu mudei pro Vera Cruz, tenho muita gratidão pela escola, adoro a ideia da escola, a ideologia da escola, acho que durante o tempo que eu fiquei lá me fez super bem, então, não é de forma alguma uma coisa contra o que aconteceu lá. Mas eu lembro sim de recreios em que... eu sempre fui mais introvertido, então eu não tinha muitos amigos, eu não gostava de bola, de jogar futebol. E quando você é um menino, você tem oito, nove anos e você não gostava de jogar futebol e não tem muitos amigos, você é um alvo fácil. Então as pessoas vinham atrás: “Fraquinho”, ou “bicha”. Bicha não porque acho que criança de oito anos não falava isso mas, sei lá, coisas assim. “Não tem amigo”, tipo, “Fica sozinho no recreio. Você vai no banheiro chorar”. Então eu lembro de coisas assim, não lembro de pessoas específicas de quem eu guardo rancor, eu não sou desses, não gosto, acho que mágoa segura a gente e eu sou mais pra frente, então não lembro de pessoas, de eventos ou de dias que isso aconteceu, mas eu lembro que isso existia durante essa época da minha vida, dos oito, nove até os dez anos. Dez anos eu mudei de novo, fui pro Santa Cruz, e as coisas melhoraram bastante, a gente cresce também. Mas essa fase foi uma fase difícil pra isso porque era uma fase em que as pessoas se definiam muito por um grupinho, um grupinho muito óbvio, e eu não tinha esse grupinho porque eu nunca fui uma pessoa muito óbvia assim. Então as pessoas caíam em cima, sabe?
P/1 – E aí você mudou pro Santa, começou já a se aproximar do que viria a ser sua pré-adolescência, adolescência. O que transformava em você de visão de mundo, de hábito, relação com os pais? Conta um pouquinho dessa fase já no Santa Cruz, como é que foi chegar lá?
R – Eu acho que, parando pra pensar agora, foi um pouco mais tranquilo do que poderia ter sido. Porque quando você muda de escola, para uma escola grande assim, e você tem dez anos, pode ser que seja muito difícil. E pra mim não foi. Não porque eu sofria no Vera, porque qualquer coisa assim, ou porque eu tinha escolhido entrar no Santa porque não tinha idade pra isso, mas foi uma transição muito natural. Esse meu amigo que eu falei da pracinha, que a gente se conheceu quando eu tinha um ano, ele estava no Santa já, então quando eu cheguei lá ele era um conhecido, ele era um porto seguro, então foi me apresentando as coisas. Quando eu entrei pro Santa eu entrei pro teatro também. Eu tinha feito circo uma época da vida, mas assim, criança ainda, então nada muito uau. Mas quando eu entrei no Santa eu entrei no teatro e comecei a ter aquela coisa de um professor por matéria, eu já percebi as matérias que eu gostava de estudar. Sempre fui independente em escola, nunca gostei de estudar com meus pais. Então em relação a isso, a minha relação com eles sempre foi: “Eu faço minha lição de casa”, eu sempre fui bom aluno, nunca fui nerd de estudar o tempo inteiro, de ter crises por isso, mas eu sempre gostei de fazer as coisas com capricho e tal. E aí no Santa, quando eu fui entrando e crescendo e todo o contexto, o teatro e comecei a ter aula de piano também, então além disso tudo dar uma certa extravasada, poder ser uma válvula de escape que é importante, é um momento em que você vai encontrando os seus grupos. Então eu fiz amigos no teatro e aí na aula de Educação Física que eu não gostava, tinha gente que não gostava junto comigo, então coisas assim. Eu fazia natação também fora. Enfim, então foi uma pré-adolescência acho que muito boa. Eu não sei se é pretensão minha falar, mas pré-adolescente costuma ser muito chato, muito no pé, acha que é adulto, acha que sabe de tudo e eu não me lembro de ter sido assim, não tanto pelo menos. Eu inclusive não gostava de gente que era assim. Eu falava: “Meu, olha pra você, cresce. Ou perceba que você ainda não cresceu”, ou um dos dois. Então foi uma fase mais tranquila a minha pré-adolescência.
P/1 – E o teatro? Eu fiquei com vontade de saber um pouco mais da sua relação com o teatro, como é que era? Quais eram as peças, como é que eram as aulas, o que te marcou nesse período?
R – Eu fiz na Casa do Teatro que é da Lígia Cortez e tal, e fiz dos meus dez aos meus 16 anos, sete anos. E é um dos lugares que eu mais gosto no mundo porque, além de eu ter feito muitos amigos lá e muita gente parecida comigo, mais até do que na escola, embora hoje em dia eu mantenha mais contato com os amigos da escola do que do teatro, mas era uma relação, quando eu estava lá, sempre muito horizontal, muito de parceria. E aí era um momento que eu ia pra lá e me libertava. Eu acho que o teatro sempre foi o momento do desafogo, do respiro. Ou porque a semana estava agitada, ou porque eu estava com alguma coisa em casa, ou qualquer coisa assim, não necessariamente grande ou importante, eu resolvia no teatro. Então a gente tinha aulas de teatro e tinha aulas também que eles achavam importante desenvolver várias linguagens e tal, então tinha aula de circo, tinha aula de dança, aula de música, tinha aula de artes que era a que menos tinha, mas tinha, tinha aula de capoeira, então eu ia pra lá pra fazer milhões de coisas. O processo lá nunca foi um texto, a não ser pros alunos mais velhos, caso eles escolhessem, mas sempre foi criação coletiva, em grupo, então isso cria muito uma certa união entre a gente. Os ensaios eram sempre na base da brincadeira, uma coisa de você está aqui pra se divertir, você está aqui pra curtir, pra brincar, mesmo que seja uma cena triste, você pode se divertir fazendo uma cena triste. Então várias peças, a gente montou O Mágico de Oz, a gente montou Hamlet, então tem Shakespeare tradicional. No último ano a gente adaptou textos de um escritor que eu adoro que é o Caio Fernando Abreu, que é um escritor brasileiro. Então além de me trazer repertório, de me trazer companhia, professores incríveis e possibilidades de brincar, de experimentar um milhão de coisas, brincar de circo, brincar de trapézio, brincar de lira ou música, batucar umas coisas. Era sempre um momento muito de alívio, sabe? E aí quando chegava no fim do ano o que eu mais queria eram as peças, chamar as pessoas pra ver, e era sempre aquela coisa de frio na barriga, mas frio na barriga bom. Então eu acho que foi bom pra mim em todos os sentidos. Talvez, principalmente porque eu era um pouco ansioso, eu era uma criança ansiosa, afobada e no teatro você aprende a trazer um pouco pra dentro, você aprende a conter um pouco mais e a medida das coisas que saem, que você põe pra fora e, sei lá, eu acho que...
P/1 – E o quê que foi o momento ou um dos momentos gratificantes que você teve nessa sua história na escola de teatro, não sei, estou fazendo teatro no Santa, independente do...
R – É, eu fiz na escola também. Eu fiz na escola e fiz fora, eram coisas bem diferentes mas era muito legal que se complementavam. Então as peças eram diferentes, os professores eram diferentes, as turmas também. Teatro na escola foi muito bom porque além de serem amigos na escola eram amigos no teatro também, então me aproximei ainda mais desse pessoal. Mas um momento marcante, deixa eu ver. Foi, acho que, teve uma vez que a gente montou Hamlet que foi a peça divisor de águas, sabe? Foi o ano em que a turma diminuiu muito, então quem ficou eram as pessoas que queriam mesmo e a relação que se criou entre a gente foi muito diferente, muito de intimidade mesmo, muito de um estar ali pro outro. E eu estava até falando pra ela, foi o ano que eu descobri que eu era diabético, então eu descobri faltando 15 dias para a peça. Isso foi um baque no dia, na hora, mas eu fui conversar com a minha professora, conversar com meus amigos e o astral virou, sabe? Tinha sido já um ano incrível, era o meu primeiro colegial, então as coisas estavam mudando na escola, estavam começando a mudar porque o colegial é outra vida, é quando você começa de fato fazer seus amigos que vão durar pela vida toda. Então além de tudo estar começando, aquele turbilhão, eu descobri que eu tinha aquilo. E o ano no teatro já tinha sido incrível e aí eu meio que desmoronei, mas aí depois eu fui conversar com ela, que ela é uma pessoa incrível, eu tenho muita admiração por ela. E a gente conversou e num momento aquilo me virou, sabe? Então foi o contrário, eu acho que eu descobri num bom momento de vida porque eu soube canalizar tudo isso e a peça foi um sucesso e meus pais disseram que foi uma das vezes que eles me viram melhor em cena, enfim, aquela coisa de pai orgulhoso e tudo o mais. Mas eu lembro que pra mim foi muito gratificante, foi uma satisfação muito grande porque eu estava fazendo uma coisa que eu adorava, com pessoas que eu adorava, uma professora, uma diretora que me transformou, num momento de vida em que as coisas estavam começando a ferver e eu me senti realizado lá, me senti pleno, as coisas deram certo. Foi o momento que eu falei: “Não vou perder a positividade porque eu descobri que eu tenho uma doença, porque se amanhã eu descobrir que eu tenho outra, então, tenho que lidar com isso”. Então me ajudou muito a seguir em frente, a não ficar remoendo as coisas e deixar pra trás tudo o que a gente já tinha feito. Em relação à peça mesmo, faltavam 15 dias, eu não podia deixar que uma notícia, por pior que fosse, me abalasse totalmente e me fizesse perder a vontade de estar lá e fazer uma das coisas que eu mais gostava, que é estar no palco.
P/1 – Me conta agora essa história agora, você contou essa história pelo ponto de vista do teatro, às vésperar de estrear, etc. Agora eu queria que você contasse essa história do ponto de vista de como você ficou sabendo do diagnóstico, conta esse contexto um pouco pra gente, por favor.
R – Na verdade eu tenho hipotiroidismo desde os dez anos, inclusive o médico diz que uma coisa levou à outra porque são doenças autoimunes, de origem parecida, então meio que uma coisa levou à outra. Então na verdade eu descobri o diabetes por causa da tiroide. Eu ia no médico desde os dez anos de tempo em tempo, fazia exame de sangue, tal. Teve um certo exame que a gente fez em novembro de 2012, eu tinha 15 anos, que a glicemia deu um pouquinho alterada, glicemia de jejum, e ele pediu para fazer o exame de glicose mesmo na veia só pra ver, que de repente tinha alguma suspeita, era ainda pouco. E aí a gente fez o exame e deu positivo, a gente descobriu que eu era diabético tipo 1. Eu lembro que a notícia quem me deu foi meu pai, foi um domingo. Eu acordei, eu lembro que ele entrou no meu quarto e falou: “Filho, não toma café ainda, eu quero conversar com você”. Aí ele entrou, eu não estava entendendo muito, minha mãe não estava lá, eu não sabia o que ela estava fazendo. Ele sentou, mostrou o exame e estava falando com o médico no telefone, que o meu pai é médico também, eles são amigos, enfim, estavam se falando porque tinha acabado de saber. E aí ele me contou, eu lembro que na hora eu não reagi muito assim, não é que eu reagi mal, eu fiquei meio sem reação, então não chorei, não gritei, não dei um ataque, também não falei: “Tudo bem, isso acontece”, eu só fiquei quieto ouvindo ele me contar, eu não sabia muito bem o quê que era. Por mais que tivesse ouvido falar, sabe, ah, tem Fulano na escola que é, ouvi falar disso, aquilo, mas você nunca sabe exatamente. E aí eu não estava muito acreditando que aquilo estava acontecendo e ele ia me explicando: “É uma doença assim, o tratamento é assado e a gente vai no médico agora, a gente teve sorte de pegar muito no começo porque geralmente quando a doença se manifesta já está tudo descompensado e bagunçado”. Por causa da minha tiroide quando a gente fez o exame da glicose ele pegou bem no comecinho, então eu fiquei um ano inteiro tratando o diabetes como quase se não tivesse. Eu tomava uma dose de insulina por dia, dava umas medidas pra ver a glicemia e só. Então, isso não existe assim pra quem tem diabetes porque as pessoas descobrem quando a coisa já está preta. Claro que tem controle e tudo o mais, mas aí é aquela bagunça e tem que se adaptar tudo muito rápido. Então a minha sorte foi que deu tempo das coisas irem se adaptando, então com a minha mãe, com meu pai. Nesse dia que meu pai me contou depois eu vi minha mãe chorando, foi muito difícil, ela estava muito triste mesmo. Mas depois conforme o tempo foi passando e a gente foi vendo que não era tão horrível assim as coisas foram se acalmando e se acalmaram até que rápido, pra ser sincero. Então, não é que eu me acostumei a isso rápido, mas o processo de negação e de revolta, aquela coisa, de se revoltar contra Deus e falar: “Por que eu?”. Isso aconteceu, claro, mas eu acho que como a gente teve tempo pra digerir as coisas desde o momento em que meu pai deu a notícia e tudo estava acontecendo, fim do ano, ano seguinte, eu acho que as coisas tiveram um tempo saudável. Então não foi nada assim, susto, foi um susto a notícia porque ninguém espera uma notícia dessas, nunca, mas a gente teve tempo pra se adaptar e tudo o mais. Olhando agora pra trás eu acho que foi uma fase difícil que foi um difícil bom, sabe? Diferente, talvez, de bullying. Não digo que eu tenha sofrido bullying, porque eu acho que o bullying deixa marcas na pessoa, eu não tenho essas marcas, pelo menos conscientemente. Mas enfim, usei isso como exemplo pra falar de que talvez seja uma dor que não vale muito a pena, você sofre bullying e isso não te acrescenta muita coisa, você vai só sofrer por sofrer. E vai ser simplesmente difícil. Essa notícia do diabetes não. Foi difícil? Foi, mas ela me trouxe um outro olhar também, sabe? Foi um momento de crescer também, de meu pai chegar, a gente conversar e: “Agora você vai ter que se cuidar mais, filho”. E assim como eu sempre fiz questão de fazer lição de casa sozinho, eu sempre fiz questão de ser independente com isso, de saber me cuidar, não excluindo meus pais disso porque é saúde, mas já que eu tenho isso eu queria saber me cuidar, entendeu? Então eu sempre achei isso importante e eu acho que eu tive um tempo pra aprender.
P/1 – O que mudou na sua vida em termos práticos de hábitos, de dia a dia?
R – Em termos super práticos uma das coisas que muda é dieta. Isso, graças a Deus que eu fui no médico e o médico me explicou, fui na nutricionista. Porque eu gosto muito de comer, gosto muito de comer, gosto muito de doce, de comida boa e tal. Então quando você descobre que você tem uma doença que tem problema com açúcar você fala: “Meu Deus do céu! Será que eu não vou nunca mais poder comer um bolo de chocolate?”. E você descobre que não, você só vai ter que mudar ou o momento em que você vai comer, ou quanto você vai comer, ou junto com o quê. Então tive uma reeducação de dieta que hoje, confesso, até meio que já voltei a como era antes porque eu estou com três anos e meio de diabetes, então você vai pegando o jeito, vai pegando prática, você vai descobrindo mais ou menos quanto que o seu organismo precisa de remédio, de coisa, disso, daquilo. Então com o tempo mesmo, é sempre uma questão de tempo, acho, com o tempo você pode voltar a fazer as coisas mais ou menos como eram antes se você sabe se cuidar, se você sabe o quanto você precisa ou o que você não pode fazer, o que você pode fazer. Em termos práticos, no começo eu tive que parar de comer carboidrato à noite, então, a gente ia sair, ao invés de comer um macarrão de jantar, melhor pedir outra coisa, come macarrão no almoço. Ou então não vou comer macarrão junto com suco de laranja e com bolo e tudo junto porque isso vai me fazer ter um pico de glicemia. O que mais, de termos práticos? A coisa de medir a ponta de dedo, de fazer três a quatro vezes por dia pra medir a glicemia e ver se está tudo bem, então isso é uma coisa que requer um pouco de disciplina. Eu não tive muito problema com isso, eu sou assim, caprichoso e gosto de fazer as coisas direito, então tinha que medir, tinha que medir. Era assim, eu tinha um pouco de medo no começo, medo de olhar o resultado porque isso é um pouco da minha personalidade, às vezes eu acabo fechando os olhos para algumas coisas porque elas são difíceis. Mas é engraçado que ao mesmo tempo eu gosto de verdade, sinceridade. Então tem uma hora que você acaba se enganando então você fala: “Não, eu vou olhar”. Então eu media o dedo e não gostava de olhar o resultado porque falava: “Não, não quero ver porque vai dar ruim então eu não vou conseguir conviver com isso”. E como você precisa fazer isso três a quatro vezes por dia, todo dia, você acaba aprendendo. Então em termos práticos me trouxe disciplina também para eu me cuidar, para ver como estavam as coisas, pra comer. Um pouco de esporte também, mas esporte eu confesso que foi, das coisas a que eu menos olhei pra frente porque eu nunca gostei muito. Então, fazia quando era mais importante. “Ai, está numa fase meio ruim, as coisas estão mais descompensadas, tem que fazer um esporte”. Tudo bem, eu fazia, mas não é uma coisa que eu levei, eu levo até hoje com tanta frequência, essa é a questão. Mas é isso, a frequência, a regularidade de fazer as coisas, se cuidar, ir no médico e tudo o mais, isso eu acho que eu conquistei bastante.
P/1 – Ainda em relação ao monitoramento da glicose, é tranquilo pra você essa coisa de furar o dedo? Você já se viu em algumas situações de saia justa ou alguma situação desconfortável por causa de outra pessoa, ou de não ter sido prático, ou de você ter esquecido de fazer o monitoramento?
R – Já. Já. Eu sou uma pessoa reservada, então eu não saio contando pra todo mundo as coisas, principalmente quando estou em lugar cheio assim, sei lá, na faculdade. Contei para os meus amigos mais próximos, que são poucos. Eu não sou desses que vai pegar a aparelho no meio da sala de aula antes do almoço e medir na frente de todo mundo. Às vezes quando eu estava fazendo alguma coisa meio assim, com discrição e tudo o mais e vinha alguém eu levava um susto. Então isso aconteceu umas duas ou três vezes em algum lugar mas nada assim, que me causou constrangimento. Um momento tenso que eu lembro agora foi uma vez que, eu sou muito desligado também, muito esquecido, e eu perdi o meu aparelho em algum lugar. Eu não lembro o que era, eu não lembro se era um ensaio de teatro, se era a casa de alguém, mas eu lembro que eu cheguei em casa, fui medir e não estava lá. E isso foi muito estresse, eu não queria contar pros meus pais porque se eu contasse: "Mãe, pai, perdi meu aparelho”, que tem todos os meus registros e levar uma bronca daquelas... E não só por medo dos meus pais, isso na verdade era o de menos, mas eu já sabia o que aquilo significava e falei: “Meu, eu não posso ter perdido esse negócio!”. Foi um momento de estresse. E aí eu liguei pra saber: “Está com você, está aí?”, e nesse momento um pouco de constrangimento porque um dos lugares que eu liguei foi no teatro. Minha mãe, a gente estava junto, eu contei pra ela, tal, ela também ficou super nervosa. A gente ligou lá e aí tinha que perguntar se alguém viu e tinha gente lá que não sabia que eu tinha, então naquele momento você tem que contar, você fala: “Ah, então, eu tenho diabetes, estava com um aparelho e deixei em algum lugar”. É meio chato uma saia justa assim porque primeiro a pessoa não sabia que você estava levando aquilo pra lá e segundo ela nem sabe do que se trata. Então você liga, conta a notícia e ainda pede pra ela, pergunta se ela viu o negócio, é um negócio desse tamanho, em algum lugar. Enfim, no final das contas a gente achou, eu tinha pegado carona com alguém e tinha caído no banco do carro, uma coisa assim. Mas foi um estresse, foi uma hora que eu lembro que meus pais falaram: “Olha, filho, você tem que cuidar melhor das suas coisas, não só cuidar da sua saúde, cuidar das suas coisas, do seu aparelho e você tem também que, sabe, as pessoas têm que saber. Não todo mundo, não é pra você sair contando, pondo no jornal, mas é muito chato mesmo você ter que começar a contar pra pessoa e já chegar e falar eu perdi, não sei onde está”. Se as pessoas já sabem, já conhecem é mais fácil, seja porque eu perdi, seja porque eu estou tendo uma crise de hipoglicemia, baixou a glicemia. Se meus amigos não sabem é muito perigoso até, é muito complicado, então pra mim é difícil, foi difícil contar pros meus amigos, mesmo pra eles e tal. Eu sou meio dramático assim, então aquela coisa. Mas eu contei. Depois eu contei com alívio e foi ótimo porque isso evita esse tipo de situação chata, de constrangimento.
P/1 – E sobre essas crises de hipoglicemia, você já se envolveu em alguma situação digna de nota?
R – Já. Teve uma vez. Engraçado que não parece só hipoglicemia, parece que baixou a pressão, um negócio assim, mas no final das contas foi. Foi acho que há uns dois anos que eu tive uma crise. E é sempre muito rápido, esse que é o perigo, a hipoglicemia não se anuncia, ela acontece. Então você tem a crise e é muito perigoso porque você pode perder consciência dependendo do quanto for, então nunca aconteceu comigo um negócio assim absurdamente grave, de ter que ir pro hospital, coisa assim, levar soro, nada disso. Mas teve uma vez que eu estava em casa, a gente ia jantar e aí eu só lembro que de repente ficou tudo escuro e quando eu acordei eu estava na minha cama. Meus pais do meu lado, meu irmão, todo mundo preocupado assim. Eles disseram que eu tinha caído no chão, que eu tinha desmaiado, perdido os sentidos, caído no chão. Eles ouviram um barulho. A gente mora em casa, eu estava no meu quarto lá em cima, eles estavam lá embaixo, ouviram um estrondo, subiram pra ver o que era e aí eu estava lá deitado. Eles levaram um baita de um susto, me colocaram na cama, dizem que eu fiquei um tempo meio inconsciente, depois acordei, estava meio tonto, aí eles me deram um banho e eu estava roxo, eu tinha caído e tinha ficado roxo por causa da queda. Aí eles me levaram no pronto socorro pra levar um pouco de soro pra ficar bem, aí eu fiquei bem, foi super rápido. Eu lembro que no caminho até o hospital eu já estava bem, então não tive que ficar internado, não tive nada, a gente chegou no hospital umas dez da noite e saiu, sei lá, meia-noite e meia, sei que foram algumas horas de estresse e olho roxo, mas foi uma crise pesada. E eu não tinha sentido, eu não vi ela chegando, então foi o momento que eu falei: “Cara, eu preciso ter muito cuidado”, porque e se eu não estou em casa? E se eu tenho uma dessas e não estou em casa? É de uma vez. Mas assim, grande desse tipo só essa vez. Porque às vezes acontece de eu vou medir a glicose está baixo, aí dá tempo de corrigir. Às vezes tem um sintoma ou outro mas é desse jeito.
P/1 – Qual você acha que é o maior desafio seu pra conviver com diabetes?
R – Eu acho que em termos práticos também, o desafio é equilibrar os valores de glicemia. E isso implica em uma série de coisas. Isso implica em disciplina pra você medir a glicose, isso implica em você seguir a dieta da nutri, em você fazer esportes, aquela vidinha de manual, que às vezes nem sempre dá tempo de você fazer exatamente como está falando. Então o mais difícil pra mim, quando as coisas começam a ficar descompensadas, altos e baixos e tudo começa a oscilar, às vezes é difícil você detectar um fator só ou alguma coisa pra você ir lá e melhorar e falar: “Não, agora eu vou tentar consertar tudo”, porque você arruma aqui mas o outro valor descompensa um pouco. Então pra mim o mais difícil, não sei se isso é uma resposta muito válida, mas o mais difícil é tentar harmonizar tudo, tentar saber qual é o meio termo das coisas, o quanto que você tem que medir. Porque depende um pouco de sorte também, um pouco de fases. O corpo humano não é um relógio, então tem épocas que o seu pâncreas funciona um pouquinho melhor, tem épocas que funciona um pouquinho pior, então às vezes você tem a sorte de ter o valor um pouco mais estabilizado. E o difícil pra mim é manter isso rotina, que é difícil e é o meu objetivo, as duas coisas. Então já foi medir a glicose o problema, então eu tinha medo de olhar, enfim. Hoje em dia não é mais, não tenho problema em tomar insulina, não tenho problema com agulha. Eu não seria médico, não tenho prazer como essas coisas, mas é que nem escovar os dentes, ou que nem usar lente de contato, você tem que fazer todo dia e você aprende a fazer. Então não tenho mais problema em tirar exame de sangue. Essas pequenas coisas não são grandes desafios pra mim mais, o problema maior é tentar ficar saudável sempre, sabe? Sem deixar de fazer coisas que me dão prazer como comer um bolo. É difícil pra mim às vezes ouvir que não vou poder comer pipoca à noite no cinema, muito, porque é uma coisa que eu gosto. Então conviver com essas limitaçõezinhas e tentar cortá-las pra que tudo fique meio equilibrado é a parte mais difícil, acho que pra todo mundo.
P/1 – Depois do diagnóstico, de lá pra cá, tirando a parte do diagnóstico, o que foi o momento mais difícil pra você ao conviver. E quando eu digo difícil não necessariamente precisa ser a crise de hipoglicemia, pode ser uma questão psicológica ou alguma questão na interação social com as pessoas. O que você destacaria como, não precisa ser o mais, mas um dos momentos difíceis que você enfrentou?
R – Eu vou falar do momento que eu contei pro primeiro amigo pra quem eu contei, minha amiga na verdade. Foi um momento difícil, mas foi um momento ao mesmo tempo de grande alívio depois que eu consegui contar. Mas eu escolhi esse pra falar agora justamente porque essa preparação pra contar, que você tem um diabetes, eu nunca gostei de falar essa palavra, pra começar. Então isso já era difícil. Foi um ano depois do diagnóstico, já tinha um tempo de doença, eu falei: “Alguém precisa saber. Está na hora de eu contar para alguém”. E esse “tá na hora” que foi muito difícil, foi uma luta interna, sabe? Foi uma batalha mesmo, devo, não devo. Eu sabia, sim, devo, mas aquela coisa de como é que eu vou falar na hora, como é que eu vou sair. E pensando agora, é tão simples, é só falar: “Eu tenho diabetes”, três palavras. Mas na hora aquilo tudo era o fim do mundo e mesmo ela sendo uma das minhas melhores amigas de todas, uma das pessoas que eu mais confio no planeta e a gente contou milhões de coisas uma para o outro, mas aquilo eu não conseguia contar. Eu contei pra ela no parque, a gente foi um dia passear e tals, aí eu sentei e a gente contou, ela contou uma coisa dela também pra fazer uma troca, não sei, que era uma coisa de namoro, uma coisa assim, na época pra ela era super uau de difícil. Mas foi muito difícil falar, sabe, por pra fora. Eu não sei se isso é um momento específico, mas era sempre muito complicado quando eu tinha que admitir pra alguém, chegar e falar: “Olha, eu sou diabético”, entende? E aí quando eu contei foi bom porque me aliviou, porque eu consegui. E foi bom porque ela reagiu bem também, ela ficou assustada no começo, tal, ela achou que era uma doença grave, coisas assim. Engraçado que diabetes não tem cura, mas é tratável; tem doenças que têm cura, mas são muito piores, sei lá, leucemia. Você tem o transplante de medula que pode curar você, mas é uma doença muito pior. Diabetes não tem cura, mas não mata, não é uma coisa assim, uau. E você trata, é um tratamento até que tranquilo quando você se acostuma. Então eu lembro que ela ficou meio assustada achando que era uma coisa pior e tal e aí depois ela falou: “Não, mas durante um ano eu convivi com você e eu não sabia que você tinha isso e nada mudou, então não vai mais mudar, se não mudou até aqui não vai mudar mais, porque eu não sabia que você tinha. Então eu não notei nada de diferente em você. Agora eu vou notar que você toma Coca zero em vez de Coca normal, coisas assim”. Mas em mim ela disse que não tinha abalado, então isso foi muito bom pra mim porque foi tudo de uma hora pra outra esse momento difícil que foi alívio que foi, puxa. Isso me deu forças pra contar pra outras pessoas, sabe, sabendo que não ia alterar grande coisa e que eu não precisava ficar tão encanado assim em chegar e falar, chegar e contar pra alguém.
P/2 – Você já passou por alguma lembrança sua que você lembra de passar por discriminação, algum preconceito?
R – Nunca.
P/2 – Ou uma situação ruim, às vezes, de você estar fazendo uma medição e pessoas olhando, alguma coisa desse tipo?
R – Nunca. Nunca.
P/1 – E agora eu te pergunto o contrário, positivo do que eu te perguntei. Algum episódio de superação que você se sentiu vitorioso nessa relação com o diabetes, ou do tipo de aprendizado?
R – Alguns momentos isolados, eu lembro de algumas consultas no médico que eu chegava lá e a gente ia ver o aparelho e ele falava: “Parabéns, cara, está muito bom o seu controle”. E aí ele olhava pros meus pais: “Vocês ficam no pé dele?” “Não, ele fez tudo sozinho”. Então eu lembro de uma ou duas consultas em que isso foi muito gratificante, sabe, porque como eu falei, o maior desafio é você tentar equilibrar todos os fatores que ficam bagunçando pra conseguir um padrão estável. E teve uma das vezes que eu consegui, foi muito legal e a gente conversou lá no médico e tudo o mais. Outra vez também, agora no réveillon na praia que eu contei, tinha mais três amigos lá que não sabiam e aí a gente estava lá no ano novo e depois eu contei pra eles, todos eles me abraçaram e foi muito legal. Sabe o momento que, o contrário de discriminação, essa coisa de ‘tamo junto’. Isso sempre foi uma coisa que pra mim significou muito, saber que as pessoas estavam junto. Mas eu não sou de pedir, sabe? Eu não sou de ficar mendigando essas coisas. Então quando as pessoas vieram e falaram, era uma coisa tão complicada, enfim, aquilo foi muito incrível. E se não me engano era um momento também de superação em relação primeiro a, eu não sei que palavra usar, eu não sei se eu uso trauma, porque todas elas são muito fortes, trauma, vergonha, medo, não é nada disso, mas esse pé atrás em falar, entendeu? Essa coisa, que eu não sei que palavra usar pra isso. Mas isso gera uma dificuldade. Então, além de você estar lá com pessoas queridas pra você vencer isso, quando você chega, sei lá, no médico, que é o cara que está tratando disso com você, ele é o teu parceiro ali, porque é quem vai te ajudar e ele chega e fala: “Parabéns, você conseguiu um controle excelente sozinho”, nossa, isso é muito bom, foi um momento muito legal. E isso com um tempo de doença, uns dois anos e pouco. Porque no começo é tudo meio confuso mesmo.
P/1 – Cadu, e do Santa Cruz? Você está fazendo faculdade agora. Conta um pouquinho dessa mudança. Você está fazendo o quê, estuda onde?
R – Faço Direito, estudo na GV, estou no segundo ano, quarto semestre agora. Gosto bastante, tenho uma relação de amor e ódio, digamos assim, mas eu acho que no final das contas vai acabar sendo saudável. Acho que é uma faculdade muito boa, tem coisas incríveis pra me acrescentar. Espero levar coisas muito boas dela, assim como eu levo da escola, do Santa Cruz, que é um dos lugares que eu tenho mais carinho no mundo porque além de boas lembranças e boas memórias lá e professores legais, amigos pra vida inteira e momentos de união, aulas boas, viagem, todas essas coisas que têm na vida de escola eu acho que tem alguma coisa, é como se a escola tivesse uma certa vida meio por conta que está para além dessas viagens ou dessa aula ou daquele ou desse professor, uma coisa meio geral que fica, sabe? Então eu não sei muito bem explicar o que é, mas é aquela coisa de que não é que as coisas não mudem em relação à escola, mas quando você volta lá, seja para um festa junina, seja pra visitar alguém, pra buscar meu irmão na escola, como se nada tivesse mudado, como se as coisas estivessem e fossem ficar como sempre foram, especiais daquele jeito. E a faculdade eu acho que foi uma transição muito orgânica da escola pra faculdade porque eu não senti uma rachadura, sabe? Primeiro porque tem uma certa ideologia parecida em termos de ensino, de coisas que vê lá e o Santa é uma escola de Humanas, que as matérias de Humanas têm esse viés que a gente pega lá na GV, no Direito, então em termos acadêmicos foi uma linha meio coerente, mas em momento de vida também. Acho que da minha turma, com certeza, eu sou uma das pessoas que menos sentiu choque porque tem gente que vem de fora, tem gente que mudou de cidade, gente que veio de escola pública, enfim, várias histórias de vida que na escola você não vê porque na escola é todo mundo mais ou menos do mesmo nicho social. E na faculdade aquele choque tals e eu não senti isso. Então isso pra mim foi bom no sentido que facilita a entrada na faculdade, que é uma faculdade complicada de passar, é difícil e tudo o mais, e foi bom também ver que isso, apesar de não acontecer comigo, existia com as outras pessoas. Então eu fiquei próximo de muita gente com histórias de vida muito diferentes da minha. Na escola isso não acontece. Na verdade as pessoas mais próximas minhas na faculdade são ou do interior ou, enfim, mas não são do Santa Cruz. Então por mais que tenha sido uma transição bem orgânica que nem eu falei, pra mim o Santa Cruz e GV são dois mundos bem definidos. Eu não diria estanques, assim, água e vinho, mas são bem definidos. E diferentes também.
P/1 – E o que você sonha pra sua vida no momento?
R – Ai meu Deus! Eu sonho em me formar (risos), muito, porque eu já tive umas crises com Direito, ai, será que é isso que eu quero, será que não é? Porque não quero ser advogado de escritório, ficar trabalhando coisa de honorário, não é muito a minha praia. Mas eu acho que tem espaço no Direito pra outras coisas além de super advogado só de causas bam bam bam. Mesmo na GV, por mais que tenha a fama e tudo o mais, tem espaço pra várias coisas e eu espero conseguir um espaço que me satisfaça, seja uma área mais de pesquisa ou... dei umas aulas voluntárias um tempo atrás, gosto de dar aula, então pode ser que tenha uma espacinho ali. Mas então em relação ao Direito é isso, espero me formar, espero conseguir pegar alguma coisa de útil e de positiva pra frente. Mas eu tenho um sonho, um grande sonho, que é trabalhar com Artes em geral, principalmente teatro que é uma coisa que eu sempre gostei, desde pequeno, fiz desde os meus dez anos mas gostei desde pequeno mesmo. Agora voltei, estou fazendo Célia Helena também, que é o curso técnico, não é faculdade, mas é uma pegada de faculdade, então por mais que esteja competindo com a GV e essa coisa de horário que me mata, me faz muito bem. E eu espero que eu consiga, além de encontrar espaço pro Direito, eu espero que eu consiga abrir mais espaço pra isso que agora atualmente não é 100% da minha rotina, que é só 30, mas que sempre me fez muito bem. Sei lá, eu tenho muitos sonhos.
P/1 – Você tem aula com o Pedro Granato lá no Célia Helena?
R – Sim, tive aula com ele.
P/1 – É meu amigão, eu estudei com ele.
R – Jura?
P/1 – É.
R – Tem um amigo meu, o meu melhor amigo, ele faz Cinema, fez na Faap, agora está em Nova York, ele transferiu pra lá e a gente já combinou que a gente vai fazer coisas juntos, ou que eu vou ajudar a dirigir o filme dele, ou que a gente vai escrever alguma coisa. Teve um trabalho que ele teve que fazer pra Faap que ele queria fazer trilha sonora original e ele toca piano como eu, ele me chamou e a gente fez uma música. Sabe coisas assim? Parcerias assim?
P/2 – Conta só um pouco, Cadu, sobre esse seu processo de escolha da faculdade, como foi? Você pensava em fazer outro curso ou você sempre pensou em fazer Direito?
R – Nunca pensei em fazer Artes Cênicas, por mais que... quer dizer, pensei assim: “Ai, será que eu faço?”, muita gente falava: “Nossa, você é muito bom, você gosta muito, você devia fazer”. Mas eu não sei. Então nunca foi uma coisa assim, não é que eu abri mão disso pra fazer uma faculdade tradicional. Eu acho que, sendo muito sincero, muito franco, teve uma grande parte da minha família aí, óbvio, porque Direito. Começa pelo nome do curso, eu acho muito engraçado, eu faço direito, sabe? E eu sempre brinquei que eu sou todo torto, então, eu estou fazendo Direito é muito louco, muito estranho. Então tem essa coisa da família, de que, sabe, eu sou meio indeciso com algumas coisas e não sei muito bem o que eu quero. Então aquela coisa, você escreve bem, você fala bem, você gosta de ler, você gosta de humanas, o que você vai fazer? Direito. Então é uma coisa que satisfaz um pouco isso e enfim. Não houve pressão, nem nada, nunca, nunca, meus pais nem ninguém me obrigou a fazer alguma coisa ou me impediu de fazer outra coisa e nunca me pressionou. O que rolava era aquela: “Ah, eu acho que você se daria bem”. E rola até hoje, eles sabem que eu não amo loucamente, mas eles têm um pontinho de esperança que, ah, sabe, uma coisa assim, aquela coisa de pai. Mas enfim, eu não julgo eles por isso. Então grande parte da minha família ajudou nisso. Além disso eu tenho uma tia advogada, um tio juiz, admiro muito os dois, eles têm um trabalho incrível. Já acompanhei um pouco o trabalho dos dois, então já fui ver uma audiência do meu tio. Converso bastante com a minha tia, que é professora e advogada de direito criminal que é uma área super interessante e tudo o mais. Então não é como se tivesse sido também uma imposição ou como se nada disso tivesse a ver comigo, eu acho que como eu disse, eu espero que tenha um espaço pra mim no Direito e até agora eu acho que talvez tenha, pode ser que tenha. Talvez não tão óbvio assim como as pessoas querem ser advogados do Pinheiro Neto, entendeu? Eu não quero isso, tudo bem, não preciso. Mas então eu escolhi meio que achando que ia ser um curso que, como as pessoas falam, abriria portas, é uma expressão muito usada isso e eu acho que se você souber usar ele de fato abre portas sim, pelo menos eu espero. E até agora nada provou o contrário, então eu tendo a acreditar que sim. Mas eu também prestei Psicologia, prestei na PUC. Eu não queria prestar Direito na PUC porque eu queria prestar Psicologia, aí eu passei também. O que mais? Pensei em fazer Letras ou História, mas eu não sei, eu só pensei, sabe? Só hipóteses. Eu ia enumerando: “Ah, gosto um pouco disso, gosto um pouco daquilo, o que será que eu posso fazer?”. Eu por mim, se eu tivesse tempo, se eu tivesse grana, se eu tivesse disposição, saúde, tudo isso ao mesmo tempo eu faria Direito, Psicologia, História, Filosofia, Letras, Cinema, Teatro, tudo isso junto, Sociologia, tudo ao mesmo tempo. Mas não dá. Então agora eu escolhi Direito e é o que eu to fazendo e por enquanto acho que está sendo bom.
P/1 – Que bom. O que você achou de compartilhar sua história aqui com a gente?
R – É um prazer. Acho que é isso, é um prazer, é uma oportunidade que eu acho fundamental, tanto pra mim, pra mim muito legal estar aqui e falar isso, quanto pra quem queira ouvir. Porque eu não sei se isso é muito vago de se dizer, mas eu acho que todo mundo tem coisas a dizer e todo mundo tem coisas a ouvir. Então eu acho que quando você tem um espaço pra falar e você tem gente pra ouvir, sejam vocês que estão me ouvindo agora, sejam as pessoas que vão acessar o acervo do Museu depois e ver, ou a galera da Abbott, ou gente que tem diabetes como eu e quer ver meio escondido no quarto assim, aquele momento que a pessoa quer ver. Eu acho que é importante você ter um espaço pra isso. E eu acho que ouvir é uma das coisas mais importantes do mundo e infelizmente, infelizmente mesmo, eu não conheço muita gente que tem essa capacidade hoje em dia, as pessoas são muito self-centered, muito egoístas, egocentradas. Enfim, não sei por que estou falando isso, mas basicamente eu queria dizer que é muito legal ter um espaço pra falar as coisas e saber que tem gente interessada em ouvir porque eu acho que é uma troca, uma troca mesmo, uma troca de energia, é um certo intercâmbio, você traz a sua experiência e você acaba ganhando um pouco de experiência quando você compartilha a sua própria também. Então é isso, é um prazer.
P/1 – Beleza, a gente agradece, foi muito legal ouvir.
R – Imagina.
P/1 – Obrigado por participar.
FINAL DA ENTREVISTA
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