Depoimento de Miguel Perez Filho
Entrevistado por Valéria Barbosa e Ana Paula Soares
Residência do entrevistado
São Paulo, 09 de novembro de 1994
Transcrita por Rosália Maria Nunes Henriques
P - Senhor Miguel, eu queria que o senhor nos dissesse o seu nome completo, o local e a data de seu nascimento.
R - O meu nome completo é Miguel Perez Filho, nascido em Campinas no dia 17 de fevereiro de 1916, numa fazenda cujo proprietário era Presidente da República, Campos Salles, certo?
P - Qual era o nome dos pais do senhor e onde que eles nasceram?
R - Eles nasceram na Espanha, na província de Almería e...
P - Como se chamava a mãe do senhor?
R - A minha mãe era Antônia Perez Caparroz e o meu pai Miguel Perez Gonzalez.
P - Qual era a atividade do pai do senhor, o que ele fazia?
R - Lá na fazenda ou aqui?
P - Não. Lá na Espanha.
R- Na Espanha ela trabalhava com hortaliça, hortaliça lá é legumes. Quer que eu te conto o que fazia a família?
P - Sim.
R - A família plantava. Então, o meu avô ficava numa cidade maior e ele recebia todos dias legume pra vender nesta cidade maior, eles embarcavam num trem que demorava 2 horas. Meu pai, com 15 anos, ele levava na estação essa mercadoria em lombo de burro. Ele contava.
P - E quando é que ele veio pro Brasil e por que ele veio pro Brasil?
R - Ele veio pro Brasil porque naquele tempo a Espanha tinha muitas concessões e quem ia pra Marrocos não voltava mais e meu avô tinha quatro filhos que estava na hora de servir o Serviço Militar. Então ele, por causa disso ele liquidou tudo e veio embora pro Brasil.
P - O seu avô veio também?
R - Meu avô, meus tios e meu pai. O meu pai já veio casado. Trouxe... trazia uma irmã minha, a mais velha, a Maria.
P - Em que ano que foi que eles vieram?
R - Em 1913.
P - Eles vieram pra... pro Brasil e foram pra onde? Foram direto pra Campinas?
R - Diretamente pra fazenda, foram como imigrantes, vieram como imigrantes.
P - O senhor lembra da fazenda,...
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Entrevistado por Valéria Barbosa e Ana Paula Soares
Residência do entrevistado
São Paulo, 09 de novembro de 1994
Transcrita por Rosália Maria Nunes Henriques
P - Senhor Miguel, eu queria que o senhor nos dissesse o seu nome completo, o local e a data de seu nascimento.
R - O meu nome completo é Miguel Perez Filho, nascido em Campinas no dia 17 de fevereiro de 1916, numa fazenda cujo proprietário era Presidente da República, Campos Salles, certo?
P - Qual era o nome dos pais do senhor e onde que eles nasceram?
R - Eles nasceram na Espanha, na província de Almería e...
P - Como se chamava a mãe do senhor?
R - A minha mãe era Antônia Perez Caparroz e o meu pai Miguel Perez Gonzalez.
P - Qual era a atividade do pai do senhor, o que ele fazia?
R - Lá na fazenda ou aqui?
P - Não. Lá na Espanha.
R- Na Espanha ela trabalhava com hortaliça, hortaliça lá é legumes. Quer que eu te conto o que fazia a família?
P - Sim.
R - A família plantava. Então, o meu avô ficava numa cidade maior e ele recebia todos dias legume pra vender nesta cidade maior, eles embarcavam num trem que demorava 2 horas. Meu pai, com 15 anos, ele levava na estação essa mercadoria em lombo de burro. Ele contava.
P - E quando é que ele veio pro Brasil e por que ele veio pro Brasil?
R - Ele veio pro Brasil porque naquele tempo a Espanha tinha muitas concessões e quem ia pra Marrocos não voltava mais e meu avô tinha quatro filhos que estava na hora de servir o Serviço Militar. Então ele, por causa disso ele liquidou tudo e veio embora pro Brasil.
P - O seu avô veio também?
R - Meu avô, meus tios e meu pai. O meu pai já veio casado. Trouxe... trazia uma irmã minha, a mais velha, a Maria.
P - Em que ano que foi que eles vieram?
R - Em 1913.
P - Eles vieram pra... pro Brasil e foram pra onde? Foram direto pra Campinas?
R - Diretamente pra fazenda, foram como imigrantes, vieram como imigrantes.
P - O senhor lembra da fazenda, seu Miguel?
R - Lembro da fazenda como se fosse hoje.
P - Conta um pouquinho pra gente. Como é que era...
R - A fazenda? Você outro dia me falou que conhece o Taquaral, não é? Então, Taquaral sai da estrada de ferro aquela avenida que é Campos Salles, passa por baixo e vai pro Bairro do Castelo e entra pro Taquaral e depois tem uma subida e uma descida e antes de chegar no Rio Jaguari à direita tem a entrada da fazenda: Santa Odília.
P - Santa Odília?
R - Santa Odília.
P - E a fazenda ficava ali?
R - É. Hoje essa propriedade é do José Bonifácio Coutinho... Coutinho Nogueira.
P - O senhor nasceu nessa fazenda?
R - Nessa fazenda.
P - De o que... era fazenda de quê?
R - De café.
P - O que o pai do senhor fazia lá? Qual que era o cotidiano dos imigrantes?
R - Café, ele carpia café, carpia depois ele foi melhorando e aí puseram ele feitor e depois aí já a família uma parte veio pra São Paulo e começou a trabalhar no ramo, e aí ele veio pra cá, e ele viu que o negócio dava mais, aí ele pediu a conta. Quando ele pediu a conta arrebentou a Revolução de 24, esses que estavam aqui fugiram pra lá e nós que tínhamos umas reservas, né, para se não ir bem aqui, (riso) voltar pra trás, acabou tudo porque 10, 12 pessoas fugiram pra lá. E aí eu escutei, eu era menino ainda, meu avô falar com meu pai: "Olha, você por enquanto fica aqui e vê se fala aí com o administrador, vê se você fica um mês ou mais pra ver se aquilo lá normaliza, e aí você vai pra São Paulo." Mas o meu pai disse: "Eu já acertei a conta com o homem, o que que eu vou falar com ele." Aí o meu pai pegou, ele e mais um filho de um italiano, e foram pra Jundiaí. Em Jundiaí ele foi trabalhar numa fábrica, fundição da companhia mecânica, né, uma firma importante. E coitado, o serviço dele... isso aí tem muito... é muito comprido pra contar.
P - Pode contar.
R - Bom, ali precisava segurar uma peça de 15 quilos numa (tenalha?) e naquele tempo não tinha máscara no forno, na boca do forno, e vinha fagulha e não podia largar o negócio. E o meu pai era franzino, então, o feitor lá falou: "Olha", pro italiano, o italiano era fortão, falou: "Pro senhor eu tenho serviço, mas para esse senhor ele não agüenta o serviço." O meu pai escutou, né? Então, o italiano falou pro homem: "O senhor está enganado, o serviço que eu fizer ele faz." Aí ele deu o serviço e aí o italiano, depois de 15 dias, pediu a conta. Então, ele falou para o meu pai: "E o senhor também vai embora?" "Não, eu vou ficar ainda", ficou mais oito dias e aí ele pediu a conta e ele falou: "Eu fiquei mais oito dias porque o senhor falou que, quando nós viemos pedir emprego, que eu não agüentava o serviço." (risos)
P - Acabou ficando mais.
R - Mais oito dias, ele gozava o feitor, compreende. Aí depois ele foi lá, arrumou um serviço por mais um mês numa firma importante lá que era a Via Nelo, numa chácara só para fazer limpeza da chácara, uma chácara grande na Rua Bom Jesus de Pirapora. Depois viemos pra São Paulo, ficamos lá mais um mês.
P - Bom, antes de falar sobre a vinda pra São Paulo eu queria que o senhor falasse, que o senhor contasse as lembranças de infância na fazenda, as brincadeiras...
R - Olha, na fazenda... as brincadeiras, eu não... não tinha escola, né? Então, brincadeira lá era com a criação, né, cabrito. (risos) A gente brincava... eu com nove anos já montava a cavalo. (risos)
P - E o senhor tinha irmãos?
R - Tinha um irmão que nasceu nessa fazenda e morreu. Morreu, isso também é uma história comprida, morreu de sarampo.
P - Na fazenda?
R - É. Naquele tempo não havia quase recurso, né, e eu também peguei o sarampo e escapei porque... Quer que eu te diga por que eu escapei?
P - Por quê?
R - Porque (risos) eu comi uma lata de sardinha. O meu pai foi fazer compra em Campinas. E então, nós tinha um regime do médico lá que nós não podíamos comer, era só canja de franguinho novinho. E era uma fome desgraçada Eu vi meu pai abrir uma lata de sardinha por lá no quarto dele, de noite quando eles estavam dormindo eu comi a lata de sardinha. (riso) Aí ele foi correndo lá no vizinho italiano que era chamado Inês, que era o maquinista da máquina de café e tudo, ele entendia de muita coisa. Falou: "Ô Inês, olha, eu vou perder também o Miguelzinho", e contou. "Não, não vai perder." Aí me deram um óleo de rícino e soltei tudo aquilo, foi a minha salvação. (riso)
P - Senhor Miguel, e a casa, como é que era a casa que vocês moravam?
R - A casa tinha sido uma senzala, mas estava reformada, né?
P - A casa, era uma casa grande?
R - Muito grande.
P - E quais eram as brincadeiras que vocês faziam...?
R - Aquelas de criança sempre, né, pular... de vez em quando a gente.... tinha um lago muito grande em frente como daqui na estátua, a gente ia pescar.
P - Ia pescar?
R - É.
P - E quando que o senhor saiu da fazenda, seu Miguel?
R - Saí no 25.
P - E veio pra São Paulo?
R - São Paulo. Não, pra Jundiaí, depois pra São Paulo.
P - Certo. E em São Paulo, o pai do senhor foi morar onde?
R - Viemos morar aí na Rua Carlos Garcia, que é uma paralela ali da... da Avenida do Estado em frente ao mercadão, do lado de cá da Santa Rosa, encostada à Santa Rosa.
P - E, no caso, nessa época, o pai do senhor já tinha alguém aqui... quem que estava aqui em São Paulo?
R - Estava o meu avô com os filhos solteiros, e minha avó.
P - E qual era a atividade do avô do senhor aqui?
R - Ele começou nesse ramo.
P - Que ramo?
R - Sacaria vazia, né?
P - E como era o trabalho dele? O que ele fazia?
R - Ele comprava a sacaria assim avulsa, quem tinha ia pra lá vender pra ele, ele ia nos empório e comprava.
P - O senhor me contou de uma concorrência que teve com o pai do senhor.
R - Ah, sim.
P - Como é que foi?
R - Foi aonde a gente começou a ganhar um pouco de dinheiro, né, pra subir um pouco na vida. Foi em Vitória. Eu tinha um tio, isso foi em 40... 42, né, que eu fui pra Vitória. Então, eu tinha um tio no Rio, que lá no ramo nosso lá no Rio quem mandava era a portuguesada, e eu tinha muitos amigos portugueses. Então, foi um tio meu lá, que era caçula, pra fazer compras pras três firmas nossa aqui da família. Mas um dia ele me telefonou e diz: "Olha, tem um negócio que eu quero dar pra você, você embarca hoje à noite, amanhã esteja aqui no Rio". Eu cheguei lá ele falou: "Olha, eu tenho um negócio pra você mas é em Vitória, você precisa ir pra lá hoje à noite porque a concorrência é depois de amanhã". No tempo da guerra não tinha... o trem era... era só trem, demorei 24 horas de trem do Rio a Vitória. Eu ganhei essa concorrência. Ganhei essa concorrência que naquela... naquele ano deu muito arroz no Triângulo Mineiro e o Banco Itaú que estava começando naquela época comprou arroz lá e tinha aberto agência na Rua Paula Souza. E então, ninguém tinha dessas sacarias, só essa sacaria tinha na praça, essa que eu tinha comprado. E quando eu cheguei de viagem eu carreguei um trem com 20, se não me engano 23 ou 24 vagões, um trem inteiro. Olha que você vai num lugar que você não conhece ninguém, com 25 anos. (risos) E eu digo: "Como é que eu vou carregar isso sozinho?" Aí eu me lembrei que havia uma agência de transporte Pestana, que ela tinha aqui em São Paulo, tinha no Rio, tinha em Lindóia. Falei com o gerente e digo: "Eu tenho essa carga para São Paulo e preciso requisitar vagão." "Pois não." Tratamos o preço pra ele fazer o carregamento e ele disse: "Amanhã." Ele telefonou na minha frente pro chefe da estação. E eu estava meio assim, eu vi do jeito que ele ficou... aí conseguiu, né? Então, ele falou: "Amanhã cedo vamos começar a carregar." E as tuas ordens... me dava umas ordens, eu não tinha deixado no hotel, mas sabe como é, sou direito. "Eu esqueci no hotel e amanhã cedo nós marcamos e eu vou direto pra estação e o senhor esteja lá e nós começamos a carregar." E aí começamos a carregar e justamente o banco estava comprando arroz e não tinha sacaria, ninguém tinha e o gerente soube porque o concorrente disse: "O único que tem é o Miguel Perez é que tem dessa mercadoria." E aí eu fui no banco por casualidade e me disse: "Você tem sacaria pra arroz em casca, assim, assim?" "Tenho, mas eu tenho que aprontar demora." "Não tem problema." "Quanto você tem?" Eu não falei que eu tinha tanta quantia, eu falei menos pra não...: "Mais ou menos 200 mil." "Que preço?" Eu pedi oito cruzeiro. "Oito cruzeiro, muito bem eu vou falar com a diretoria." Aí ele falou com a diretoria eu falei: "Bom, eu vou para o armazém Josias, qualquer coisa dá um pulo lá." "Tá bem, Miguel, você me espere lá, mas pode ter certeza que nós precisamos mesmo." Não demorou 15 minutos ele chegou: "Olha, o negócio, eu falei o preço e está fechado." Eu falei: "O prazo que, pra carregar eu preciso repassar isso aí, vai rápido, mas eu preciso repassar, não posso te falar, eu não sei como está direito aquilo e eu tenho que responder pelo que eu estou devendo." "Está certo Miguel, é assim mesmo, não tem dúvida." Aí eu entreguei a sacaria pra ele: "Eu preciso mais, a firma precisa mais outro tanto, não sei. Quanto é que você tem?" Eu digo: "Eu tenho mais uns 200 mil", era o que eu tinha, mas passava um pouco, esse pouco eu deixei pra trás. Então, ele falou: "E o preço?" Aí eu falei: "Agora, seu...." em negócio ninguém diz a verdade pra ninguém, não é verdade? Então, eu falei: "Olha, tem uma firma que eu estou de negócio pra dar exclusiva, você quer consulta? É a mesma coisa que aquela que foi, vê se eles estão satisfeitos, é a mesma coisa." "Positivo." Ele me ligou: "Tá fechado." Entreguei e ficou pra trás 15 mil, sabe por quê? Meu pai era um homem de bom coração e eu, quando eu cheguei eu falei: "Se o senhor me vender um saco desse pra um concorrente aqui, eu vou embora de casa e daqui, não fico não." "Não, filho, não vou vender não." E um velho que era... que eu comprei até a propriedade da família desse velho, ele... quando ele vinha descarregar a sacaria, ele tinha uma filha casada com um filho de um homem muito rico em Cafelândia, que era um espanhol muito rico e trabalhava em café. Ele precisava de 20 mil sacos, então, ele falou com meu pai e meu pai falou com ele: "Fala com o meu filho, esse negócio é com ele, ele é que fez o negócio, esse problema não é meu, eu não me meto." "Então o senhor não manda mais na tua casa, quem manda é teu filho?" "Eu já disse que esse negócio é com ele." Muito bem Aí eu pedi pra ele o preço que eu tinha vendido a primeira remessa que era pra ele ganhar, ele pega e diz: "Você está louco" E foi falar pro meu pai que precisava me internar no Juqueri, que eu estava louco. (riso) Eu não tinha falado pra ele que eu tinha vendido. Aí meu pai falando pra ele: "Senhor Julian, ele fez pro senhor que nem ele vendeu pro banco, ele tá dando chance pro senhor ganhar, ganhar três, quatro cruzeiros em saco." Aí quando o velho foi... foi saber direito, ele falou: "É, você tinha razão, não sei o que, você tem sorte no negócio", falou pra mim. Digo: "Sorte não, senhor Julian, é visão." Porque ninguém tinha mercadoria, então, ninguém tem, eu vou jogar fora? Vou segurar pra explorar o preço. E nós ganhamos dinheiro aquele ano que nós vamos fazer a... o balanço e meu pai me diz: "Será que alguém tem dinheiro a receber de nós e esqueceu de receber?" (risos) Você vê o que é a inocência, às vezes, das coisas, né? Eu digo: "Não pai, o senhor pode fazer a conta, a mercadoria não chegou a custar um cruzeiro e nós vendemos a mais barata a oito cruzeiro, teve despesa de tanto, então, em média nós ganhamos uns sete cruzeiros por saco e daí pra cima." Aí ele falou: "É, tanto saco a tanto. É, você tem razão." Aí foi quando a gente começou a comprar as propriedades que temos no Paraná, compramos terras, subiu. Mas depois, eu fiquei uns tempos com o meu pai e aí tive que sair da firma, né, porque entraram uns intrusos na família, oito irmãos, né? (riso) Eu tive que sair porque não dava não.
P - Seu Miguel, nessa época o...
R - Aí eu fui trabalhar, eu com um cunhado meu.
P - Não, no caso, com o pai do senhor era o único estabelecimento no ramo de sacaria aqui?
R - Não, tinha vários mas é que... conforme o capital o cara dominava. Era mercadoria que se vendia uma ou duas vezes por ano só. Então, o resto do tempo era aprontar, empilhar e esperar preço. E quem era sabido, especulava, é que ganhava, né?
P - E quando que era vendido assim o...
R - No tempo de safra, por exemplo, agora de janeiro, fevereiro pra frente. Depois eu comecei a explorar, eu fui o primeiro a explorar, vender nas indústria pra farelo, pra isso, pra aquilo, compreende? O Moinho Santista moía o caroço de algodão e sobrava aquele farelo de algodão, já comprava sacaria pra farelo. E aí a gente já começou a vender pra indústria. Aí o ramo começou a se alastrar mais.
P - Eu queria que o senhor falasse... bom, antes de falar da loja, do trabalho com o seu pai, voltar um pouquinho, e que o senhor me falasse quando o senhor chegou aqui em São Paulo, da época de escola, do bairro que o senhor morou, da casa...
R - O bairro, nessa Rua Carlos Garcia, Bairro do Brás.
P - Certo.
R - Eu fui pro Grupo Escolar, hoje é Romão Puigari, era Grupo Escolar do Brás, cujo esse ministro, Ricúpero, estudou lá também.
P - O Ricúpero?
R - É, Ricúpero. (riso) É.
P - E o senhor guarda lembranças da escola, assim dos professores...
R - Lembro. Eu me lembro de uma professora, até eu conto pra dona Lourdes e ela dá risada. (riso) Tinha, naquele tempo tinha aula de canto, né, de piano, e era uma professora baixinha. Então... então, ela mandava cantar: "Vamos cantar." Era aquela: "Já raiou a liberdade, já raiou a liberdade no horizonte do Brasil." Então, uma hora nós dizíamos certo, outra hora nós dizíamos: "Já raiou a liberdade no horizonte é do Brasil" "Não é do Brasil, toca outra vez" e ficamos um ano nessa. (risos) É, a gente guarda essas coisas.
P - E as brincadeiras na escola?
R - É, na escola eu... sabe, a gente quando tem um pouco de sangue, eu... não comi enrolado lá na molecada não. (riso) Esse meu tio que estava no Rio, coitado, ele era bonachão, ele... os outros queria bater nele, ele me chamava pra eu defender ele. (risos)
P - O senhor era forte?
R - É, eu... bom, eu vou dizer pra você, com 18 anos eu carreguei saco de 60 quilos na cabeça também.
P - Ah, é?
R - Trabalhei com caminhão.
P - E o senhor começou a trabalhar com o pai do senhor com quantos anos?
R - Desde que comecei, não estou te falando, costurando saco à mão Saía do grupo escolar, tinha que fazer 50 sacos senão não ia bater bola. (riso) O que que você quer? (riso)
P - E onde que o senhor batia bola?
R - Não estou te falando? É onde é o mercadão hoje. Aliás, te falei, né?
P - O senhor já falou, só que a gente não tinha gravado. Seu Miguel, e... o senhor começou ajudando na restauração, costurando os sacos, naquela época qual era o material que era feito esse saco?
R - Juta, juta, vinha da Índia por isso que os novos eram caros. Depois que começaram a plantar aqui no Amazonas. Colônia japonesa que veio só pra isso no Amazonas. No Amazonas ainda tem fábrica, em Manaus.
P - A matéria-prima vinha da India e eram industrializados...
R - Aqui.
P - Aqui em São Paulo existiam fábricas?
R - Aqui, pela Companhia Paulista de Alinhagem, que era a tal dos Penteado, aqui na... na entrada da Avenida do Estado, não tem agora uma igreja, não sei, Universal. Não tem aquela igrejona? Ali era a fábrica, Companhia Paulista de Alinhagem. E tinha campos de futebol e tudo, né?
P - Senhor Miguel, o senhor nunca pensou em fabricar os sacos?
R - Não.
P - E por que não?
R - Porque o material vinha de fora, da India, precisava muito capital para a importação.
P - E não compensava o lucro?
R - Vou te dizer que todas as fábrica... tinha o Banco Comércio e Indústria, todas as fábrica estava amarrada no Banco Comércio e Indústria que tinha que financiar pra importação de juta. Então, qualquer um não podia fazer esse negócio, precisava ter muito, muito lastro.
P - Bom, e depois, agora, por exemplo, hoje em dia são vários materiais, né, que são usados pra saco...
R - Hoje tem o plástico, né?
P - E quando que foi introduzido? Que época mais ou menos?
R - O plástico deve ter uns... mais ou menos uns 20 anos.
P - Seu Miguel, eu queria que o senhor falasse um pouco da região. O senhor falou comigo: "Ah, eu conheço toda região ali da zona cerealista e tal." Eu queria que o senhor me falasse de... do momento que o senhor foi pra lá, que o senhor começou a trabalhar com o pai do senhor, do que o senhor lembra, do que mudou naquela região da Paula Souza, da Santa Rosa, como é que era quando o senhor foi pra lá trabalhar com o pai do senhor?
R - Ah, era... era assim, o pessoal recebia mercadoria do interior e... então, os que tinham empório iam lá e comprava deles. Eles recebiam de vagão 200, 300 sacos de feijão, de milho. Os que tinham empório ia lá comprava dez sacos de feijão, 15 ou 20. Eles eram atacadista mesmo. E mandavam pra zona aqui da Central do Brasil: Jacareí, São José dos Campos, ia pro Rio de Janeiro, com batata e tudo aquilo. Já a batata estava no... na mão da espanholada.
P - Espanhol?
R - Espanhol, pro Rio. Então, tinha um moinho de fubá que foi o meu fiador pra eu casar com a dona Lourdes. (risos)
P - Como é que é essa história?
R - Porque meu sogro foi tirar informação quem eu era, então, ele tinha um negócio com ele, e foi tirar informação de quem eu era. Disse: "É um bom rapaz", (pergunta isso pro Silvestre.?)
P - Como é que o senhor conheceu a dona Lourdes?
R - No cinema Brás Corintiano.
P - Cinema? Que filme o senhor tinha ido assistir, o senhor lembra?
R - O filme eu não lembro, só lembro que ela estava vestida com uma roupa de marinheiro, eu chamei ela de marinheiro de água doce. (risos) É.
P - E o senhor tinha costume de ir ao cinema...
R - Todas as matinê. Aos domingos, né?
P - E como é que foi? Conta um pouquinho mais do... aí o senhor conheceu a dona Lourdes, e aí?
R - E aí a gente namorou, casou.
P - Quanto tempo de namoro?
R - Três anos.
P - E quando que o senhor casou?
R - No dia 1º de junho de 1940.
P - Do que o senhor lembra da... do dia do casamento? O que mais marcou...
R - É que tinha muita gente, muitos convidados, né? (riso) A gente era muito conhecido.
P - Seu Miguel, qual foi a reação...
R - Igreja Santo Antônio do Pari lotou aquele dia. Não sei se ela lembra, não lotou? (riso)
P - Eu queria fazer uma pergunta.
R - Pode falar.
P - Então, o senhor já acabou mesmo?
R - Bom, você ainda quer perguntar, ainda tem... vê o que você quer saber, quem sabe?
P - Eu quero saber qual foi a reação da dona Lourdes quando o senhor falou pra ela que ela era marinheiro de água doce?
R - Ela não falou nada. (riso)
P - Como que o senhor ficou conhecendo ela?
R - Aí, nós passeava à noite, tinha... nós chamávamos marmelada, né? Era um passeio que tinha à noite na avenida, num trecho, e os moços ficavam lá conversando e as moças também e aí...
P - Qual avenida?
R - Avenida Rangel Pestana. (riso) (pausa) Há 54 anos atrás, 57, é, os três de namoro. (riso)
P - Bom, voltando um pouquinho ainda em relação ao comércio, ao estabelecimento do senhor. O senhor estava nos dizendo que num determinado momento... a loja do pai do senhor, o senhor teve que sair da loja. Me explica um pouquinho o que aconteceu, como é que...
R - Aconteceu porque o meu pai queria proteger os genros também e, coitado, ele era de boa fé, não é? E justamente eu tinha um cunhado que falava coisa contra mim pro meu pai. E eu... chegou uma hora que eu tive que sair.
P - E o senhor foi fazer o quê?
R - Foi que nós recebemos uma fiscalização e justamente o fiscal era conterrâneo meu, por nome Diogo, fiscal da Receita. Aí foi falar pro meu pai uma mentira, que eu tinha puxado o revólver pro fiscal. E aí o meu pai... eu falei: "Isso é mentira, quem que falou isso pro senhor? Manda falar com o Diogo, aí o senhor vai ver se eu puxei o revólver mesmo." Tinha sido arrumado tudo por esse cunhado. Como ele... eu deixei ele entrar na firma sem capital quase nenhum, pra ajudar, o pai pedia, né? E ele, como se diz na gíria, fez a minha caveira. (riso) Mas eu saí bem. E foi a minha sorte, pra mim foi melhor, eles quebraram e eu ganhei dinheiro mais.
P - Sim, mas o senhor saiu e abriu uma nova firma?
R - Abri.
P - E onde que era essa nova...
R - Na Paula Souza mesmo.
P - E como chamava?
R - Eu fiquei sócio com um cunhado meu, eu não me lembro o tempo. Quanto tempo eu fiquei com o Antônio, trabalhando? Era Perez e Rodrigues. Uns quatro anos, depois é que eu fundei essa Perez só, Perez, Comercial e Sacaria Perez.
P - E quando o senhor fundou a Comercial e Sacaria Perez, o filho do senhor já trabalhava?
R - Já, já era mocinho já.
P - Eu queria que o senhor falasse um pouco dos clientes do senhor, dos fregueses. Quem que comprava as sacarias?
R - Eu tinha clientes... você quer ver? Olha, eu tinha... não sei se vocês conhecem lá da Barra Funda, Frederico Platzek, hoje ele só... foi a primeira firma a abrir no interior com essas filiais grandes de secos e molhado, hoje ele se dedica, os filhos, à construção de edifícios e vender. Ele ainda mora aonde ele morava, no fim da Rua Avanhandava, que não tem saída, na casa assim em frente, um casarão, ainda mora lá. Esse comprava muito. E vendia, fazia fechamentos grandes com o Moinho Santista, com o... com o Minetti Gamba, com o... todos esses moinhos, vendia pro Rio Grande do Sul, não é?
P - O senhor chegava...
R - Pra Sadia, a Sadia chegava a comprar sacaria também pra trigo.
P - A Sadia?
R - A Sadia, pra trigo. E ela moía o trigo e fazia farinha, né? Então, por isso é que eu tinha negócio no Rio Grande, Santa Catarina, Goiás. Goiás eu tentei um negócio com um cunhado desse... que é governador de Goiás, o Resende, Íris Resende. Eu conheço muita gente aí.
P - E o senhor sempre trabalhou com o atacado, né, senhor Miguel?
R - Sempre, sempre.
P - E os fornecedores, no caso, o senhor falou do negócio lá de Vitória, que o senhor fechou. Bom, além de Vitória, quem eram os outros fornecedores?
R - Tinha muito juntador, por exemplo, que tinha uma caminhonete e comprava na rua e juntava na casa dele. Depois ele vinha me vender, dizia: "Tenho tanto mil sacos, interessa? Quero tanto", eu comprava, entregava. Outros eu fazia negócio direto, na... nas firmas que despejava muito, né?
P - Ah, o senhor já comprava... quando tinha... alguma firma tinha encomendado?
R - Tudo quanto tinha, onde tivesse negócio de saco a gente estava lá. (riso)
P - E o senhor falou que o senhor não era o único na... ali na...
R - Não, tinha... tinha... esse... como esse negócio que eu te contei do Moinho Santista, que eu era novo e fui lá fazer esse negócio que o argentino falou pro Evelias era o mais forte, o Sanches é que era o mais forte, esse morava num palacete tipo árabe na Avenida Paulista, depois largou o ramo que já não precisava mais e ficou o Evelias. Então, eles foram consultados pra esse fornecimento, eles não, dizem que não conseguiram, não podiam fornecer, não estavam adequados pra fornecer. E esse corretor me levou lá e eu fiquei esperando assim meio na porta ele falar com o homem, e eu escutei o argentino falar em castelhano: "Evelias Sanches no pueden hacer negocio, esse pibo va a hacer?" Sabe o que é pibo? Esse menino vai fazer o negócio? Eu era novo. (riso) Então, quando ele me chamou lá eu já entrei falando em castelhano com ele, digo: "Usted". Ele me apresentou, era Jacon Kusnam o nome dele, era filho de judeu, argentino filho de judeu. Eu, "Miguel Perez Filho", tal, mas eu falei em castelhano: "Miguel Perez Hijo, el hombre que te va fornecer a usted la borsa que usted precisa". "Ê, tu hablas castellano?" "Si, si, hablo castellano, soy brasileño e hablo castellano". E o homem já simpatizou comigo. E eu fornecia mercadoria, meu amigo que... e eu fiquei lá porque eu entreguei como ele quis, fiz o meu negócio. E aí os caras que não puderam entregar mercadoria, o que fizeram? Saíam comprando pra lá e pra cá pra eu não poder entregar e aí eu descobri mercado no Rio de Janeiro e eles ficaram assim e eu entreguei tudo, compreende? E todo ramo de negócio tem seus segredos que precisa o cara pensar, né?
P - No caso... do pagamento. Eu queria que o senhor falasse um pouco sobre as formas de pagamento desde a época do avô.
R - Pagamento era um ramo muito ingrato e é, você precisa comprar à vista e facilitar e ter outro estoque. Precisa ter três capitais pra girar, pra girar bem.
P - O senhor pagava os fornecedores sempre à vista?
R - Você comprava, tinha que pagar, pois era um ajuntador que vivia daquilo, e ele se não tivesse dinheiro ele não saía no dia seguinte na rua pra comprar, ele pra comprar tem que pagar. Então, você tinha que ter um dinheiro pra compra, outro estoque e outro que você precisava dar no mínimo 30 dias pro freguês. Às vezes... às vezes era onde a gente tirava vantagem. (risos)
P - Sempre foi assim, seu Miguel, desde a época do avô?
R - Sempre... sempre foi assim. Olha, eu fui no Rio, a primeira vez que eu fui no Rio comprar sacaria eu cheguei no homem mais forte do Rio de Janeiro e ele tinha três armazéns lotados de sacos e aqui eu precisava, eu não chegava nela pra ele não desconfiar. Eu só falava na outra. (riso)
P - Não mostrar interesse...
R - Moreira, eles falavam, Moreira & Irmãos, era a firma, e tal, "Tu não queres essa..." eles chamavam rede, a sacaria pra guardar batata. "Então, tu não queres essa rede, seu Miguel?" "Não, isso aí... essa de arroz limpo quanto vale?" "Essa tem pouca." Até que uma hora nós sentamos: "Bom, então, vamos combinar, vamos ver. Que preço o senhor faz naquela de arroz? Eu quero tanto de sacos." "Não dá pra fazer tanto, isso não dá." "Olha, fica com a batata e eu te faço tanto." Eu digo: "Mas, isso aí não dá, eu lhe pago tanto." Ele disse: "Tá fechado." Eu falei: "Quanto o senhor tem?" Ele disse: "Tenho 300 mil." (risos) Trezentos mil e ele começou a carregar e passou da conta, eu falei pra ele: "A cada cem mil que o senhor mandar eu lhe mando o dinheiro." "Está bem, ninguém está a falar nada", ele falava era muito bom o português. Então, no primeiro cem mil que ele mandou eu mandei o dinheiro, carregou mais cem, eu mandei, aí ele carregou além daquilo que eu tinha comprado e eu falei: "Seu Antônio, mas já talhou o negócio já meio estranho..." "Bota isso pra lá, alguém estar a lhe pedir dinheiro?" (risos) E eu tinha uma amizade com eles no Rio que vou te falar, viu? Então, às vezes quando chegava o mês de setembro, julho, setembro, agosto eu fazia compras, então, eles diziam: "Olha, o dinheiro eu preciso só pra começo de dezembro porque eu vou pra terra. (risos) Eu vou dar um passeio à terra." Era assim o negócio.
P - O senhor tinha um estoque grande sempre?
R - Sempre. Precisava ter, eu tinha clientela grande por todo lado, tinha viajante também.
P - O senhor tinha representante...?
R - Tinha viajante que viajava na... na linha Sorocabana e Paulista.
P - Ah, é?
R - Fazia todas as praça.
P - O senhor chegou a ter muitos funcionários assim...
R - Ah, 40 e tantas máquinas de cerzir. Era dez mil sacos por dia de produção.
P - Eu queria que o senhor falasse um pouquinho sobre esse trabalho, porque no início o senhor nos disse que quando era criança ajudava a costurar à mão e depois é que surgiram as máquinas. Quando é que foi?
R - A máquina... a primeira máquina meu pai comprou ela de um, de um homem que veio do Rio Grande, foi a primeira, depois compramos mais na Singer. Isso foi 1945... por aí, 44, a primeira máquina. Aí, depois compramos mais meia dúzia de uma vez, novas, na Singer, precisava esperar vir dos Estados Unidos pra fazer o pedido, esperar vir.
P - Seu Miguel, o que era... o que o senhor mais gostava de fazer quando estava trabalhando, o senhor costurava, o senhor vendia...
R - Eu estava em cima da turma pra eles andarem (risos). E as costureiras, você sabe o que eu fazia pra elas, uma tirar mais que a outra porque era contrato, me interessava contrato, era por peça, cada... cada fim de mês eu dava um prêmio. Então, uma queria tirar mais que a outra. (risos) Pra produzir, senão não produzia, minha filha
P - E o senhor gostava desta relação com os fregueses assim, era o senhor que vendia, que fazia os...
R - Sim, eu e o meu pai, mas mais era eu, depois eu tinha um primo também que tomava conta de todo o serviço que trabalhava no caminhão e tomava conta do serviço e um outro também.
P - O senhor falou que tinha... que teve caminhão?
R - Tive.
P - Quando é que foi? Conta um pouco essa história.
R - Isso aí compramos um carro, deixa ver se eu me lembro, compramos um carro de um vizinho lá, um Ford 34, chassi comprido, carregava 80 sacos de 60 quilo. Nós tínhamos um motorista, mas às vezes o motorista fazia um serviço à noite, embarcar cebola que o passageiro do Rio pegava o vagão em Guaiaúna. Então, eu batia de dia com o caminhão porque ele às vezes trabalhava à noite. Eu, de manhã eu trabalhava até a hora do almoço, da Barra Funda pra Santa Rosa.
P - Transportanto o quê?
R - Cereais.
P - Cereais?
R - Nós trabalhávamos também com cereais, no começo.
P - Ah, é? Além da sacaria?
R - No começo quando se abriu a zona lá da Sorocabana. Eu conheci Presidente Prudente não tinha 60 casas de madeira. (risos)
P - Que tipo de cereal que...
R - Lá dava naquela época muita batata e milho e feijão.
P - O senhor trabalhou com esses três produtos?
R - Também. É.
P - Depois é que foi pro ramo da sacaria?
R - Trabalhei com isso porque foi um tio meu que morava em Pindorama, lá perto de (Cataluma?), e foi pra aquela zona porque aqui era muito já explorado. Então, ele foi pra lá, nós mandávamos sacaria e ele mandava os cereais, meu tio Martin.
P - Depois é que ficou mais na sacaria?
R - Depois, quando nós compramos as terras lá no Paraná eu também abri uma firma de cereais também.
P - Que tipo de cereais?
R - Feijão e milho.
P - Conta um pouquinho do Paraná. É uma fazenda que o senhor adquiriu... Como é que é?
R - Não, era 110 alqueires de terra, plantamos 124 mil pés de café.
P - De café?
R - É. Então, o que eu te falei pra ela, pra você, pra mim e pra você. Que um dia eu estava com o meu pai e o administrador, já o café estava produzindo, eu falei: "Eu tenho que falar uma coisa pro senhor", meu pai falava: "Mas o que é?" Era um domingo de manhã e nós fomos almoçar e eu falei: "Agora eu vou falar aqui na frente do seu Garcia. O senhor lembra que eu falei que o senhor ia ser fazendeiro, que o senhor estava desesperado?" Aí o meu velho começou a chorar, coitado.
P - E ele ficava na fazenda?
R - Ficava. Às vezes ele ia com a minha mãe e ficava lá duas semanas, três semanas. No Paraná, terra eu nunca vi no mundo igual, onde eu viajei não vi terra igual pra produzir, norte do Paraná. Naquela época era terra virgem. Então, nós desmatamos pra plantar o café, um litro de feijão dava cinco, seis sacas de 60 quilos, plantado.
P - O senhor plantava café e feijão também?
R - Plantava feijão quando o café não estava produzindo, no vão, plantava-se feijão e milho, né?
P - E vendia aonde, aqui na Santa Rosa?
R - É. Nós já tínhamos, depois é que eu montei aquela firma lá, já vinha e embarcava em Assis que era mais perto e já vinha pra Barra Funda e na Barra Funda eu vendia na... na Santa Rosa, tinha na Bolsa, os corretores. Então, chegava um vagão de milho e tinha um corretor que era português, o Caldeira, ele dizia: "Manda uma viagem pra fulano, outra viagem pra fulano." Às vezes o Caldeira também comprava uma viagem de milho.
P - Seu Perez, o senhor trabalhou, assim efetivamente, lá na sacaria até quando?
R - Até agora 85, não foi, Lourdes, que eu fiquei assim?
[Fala da esposa] Em 85 ele ficou doente aí aos poucos já não andava direito.
R - Começou a me doer a barriga das pernas e aí... e aí eu estava vacinando o gado nessa ocasião. E eu fui tomar banho e tinha aquele negócio no dedinho que começou a coçar, a coçar que fez uma feridinha, e não cicatrizava, não cicatrizava e começou a alastrar. Aí que fui para o médico, o médico viu que não tinha circulação teve que amputar essa perna. Depois que me amputaram essa foram me pôr na cama e o calcanhar dessa aqui, me machucaram o calcanhar dessa aqui, aí teve que me amputar essa também.
P - Bom, seu Miguel, mas lá na loja tem um filho do senhor que... continua no trabalho, né? E além do filho, tem algum comerciante...
R - Tem o filho dele, o neto.
P - O neto continua dando...
R - É, trabalha com ele, né?
P - Dando continuidade ao trabalho.
R - É. Esse é um ramo que teve, é um ramo que precisa ter muito amor ao ramo, sabe? Precisa saber explorar, não é qualquer um que se mete que você pensa que entende do negócio. Precisa conhecer a mercadoria.
P - O senhor estava nos contando e eu queria que o senhor falasse de novo sobre isso. Era sobre a queda da venda de sacarias e por que isso aconteceu?
R - A queda aconteceu porque surgiu a mercadoria a granel que tem esses caminhões que é graneleiro, que carrega já a granel sem ser ensacado e vai direto pro porto. Por exemplo, a soja do Paraná era toda ensacada e ia pro porto, depois aquela sacaria era desensacada e era vendida e eu comprava, então dava pra vender, eu repassava então tornava a vender. Então, agora vai direto pro porto a granel, tem um sugador no navio que suga e vai pro porão, quando chega no destino, então é a mesma coisa, suga pra descarregar num veículo que carrega a granel também. Então, por isso o ramo fracassou. Uma fonte de muita sacaria que dá muito é o Instituto do Álcool e do Açúcar, eles chegam a... chegavam a vender, na ocasião, aqui em Santos em concorrência, um milhão e meio, um milhão de sacos em Maceió e Santos.
P - O senhor acha que... qual a perspectiva que o senhor vê nesse ramo aí do comércio?
R - Como?
P - Pro futuro, o que o senhor acha que pode acontecer no ramo, nesse ramo de sacaria?
R - Da sacaria, pro futuro, pra mim vai só existir para alguns cereais: olha, pro arroz e pro feijão agora as máquinas no interior que beneficiam o arroz já empacotam em pacotes de quilo e cinco quilos, já vêm nos caminhão baú, fechado e já entrega nos supermercados. Primeiro vinha em sacos de 60 quilos de vagão na estrada de ferro, isso acabou. Então, é por isso é a queda.
P - O senhor acha que vai ficar só pra algumas mercadorias?
R - Por exemplo, o café, né, para o café precisa e arroz em casca. Mas o arroz em casca ele vai seguir da lavoura pras máquinas, já pra vir pra São Paulo já não dá mais porque já vem empacotado, direto em pacotes. E antes vinha o saco de 60 quilo, punha lá na porta o sacão de 60 quilo, pegava com aquela concha e pesava um quilo com a balança. Isso acabou.
P - Bom, seu Perez, a gente está caminhando aí pra encerrar o depoimento do senhor..
R - Muito bem.
P - Eu queria que o senhor falasse sobre o que o senhor acha de... da gente estar aqui hoje gravando a história de vida do senhor, quer dizer, gravando o depoimento do senhor...
R - Eu acho isso uma coisa muito boa, não é?
P - ...do comércio também.
R - Quem assistir isso aqui amanhã vai dizer: "Olha, isto aqui era... nos tempos passados era assim e era assado." Muita gente... se eu vou dizer que no tempo que eu for ver no Paraná se vendia um saco de feijão de 60 quilo por 10 mil réis vão dizer esse velho é um mentiroso, hoje vale uma fortuna. É verdade ou não é? É um fato, então é bom que saiba que tal época era assim e assado. Havia vontade, vontade.
P - Você tem mais alguma questão? Só do sonho. O senhor tem ainda algum sonho a realizar?
R - Eu? Tenho. Deixar a minha família bem, antes de morrer. Todos esses netos formados. O que você acha? É bom sonho?
P - É, lógico.
R - Hein, dona Lourdes...
P - Está bom então, seu Miguel, muito obrigada.
R - De nada, às suas ordens sempre.
P - Nós é que agradecemos.
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