Projeto Memória dos Brasileiros
Depoimento de Maria de Lourdes Pereira dos Santos (Dona Ducha)
Entrevistada por Thiago Majolo e Antônia Domingues
Joaíma, 29/07/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número MB_HV_025
Transcrito por Luísa Fioravanti
Revisado por Viviane Aguiar
Publicado em...Continuar leitura
Projeto Memória dos Brasileiros
Depoimento de Maria de Lourdes Pereira dos Santos (Dona Ducha)
Entrevistada por Thiago Majolo e Antônia Domingues
Joaíma, 29/07/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número MB_HV_025
Transcrito por Luísa Fioravanti
Revisado por Viviane Aguiar
Publicado em 18/03/2008
P1 – Para a gente começar, eu queria que a senhora dissesse seu nome completo.
R – Meu nome completo?
P1 – Sim.
R – Maria de Lourdes Pereira dos Santos.
P1 – E o apelido?
R – Ducha.
P1 – Nasceu onde?
R – Nasci na comunidade do Barreirinho.
P1 – Em que ano?
R – Ah, o ano eu não tenho certeza, mas eu sei que sou do dia 15 de julho, de junho.
P1 – E por que esse apelido Dona Ducha?
R – Porque a minha mãe tinha uma amiga, e ela gostava muito da amiga. Quando ela me ganhou, ela disse assim: “Vou colocar esse apelido na minha filha!” Então, ela colocou o meu nome de Maria de Lourdes e voltou e colocou o apelido de Ducha. Todo mundo me conhece por Ducha!
P1 – Se falar Maria de Lourdes, ninguém sabe quem é?
R – É, ninguém entende. Só conhece mesmo quando eu vou tirar algum negócio, algum documento que tinha de tirar. Se não, ninguém não sabe, não. Mas aqui mesmo em Joaíma todo mundo me conhece por Dona Ducha.
P1 – E qual o nome dos seus pais?
R – Meu pai, José Pereira de Souza, minha mãe é Maria Ferreira dos Santos.
P1 – E avós? A senhora se lembra?
R – Lembro, a minha avó é Maceunira, que é o nome de minha avó. Meu avô era Luiz.
P1 – Isso por parte de mãe ou por parte de pai?
R – Luiz, por parte de mãe. A minha avó por parte do meu pai chamava Maria, Maria Pereira de Souza, e o pai do meu pai chamava Tredomiro. Só que a assinatura do Tredomiro eu não sei, do pai do meu pai. Porque o meu pai falava que ele nasceu lá na Bahia, não sei onde. A minha mãe nasceu na mesma comunidade em que eu sou nascida.
P1 –O que os seus pais faziam?
R – Trabalhavam de enxada, faziam trabalho de enxada. Cortavam de machado, foice, faziam cerca, uma cerca de pau deitado. Não tinha arame nessa época, era essa cerca que a gente usava.
P1 – E fazia para a comunidade ou vendia para fora?
R – Não, a gente fazia para a gente mesmo. Não tinha oportunidade para fazer para fora, não. Fazia as rocinhas para a gente mesmo, a gente fazia as roças para a gente mesmo.
P2 – E o que vocês plantavam na roça?
R – O que nós plantamos? Nós plantamos maniva, plantamos feijão, verdura, abóbora, cenoura, beterraba, chuchu, banana, taioba, inhame chinês. Tem tanta plantação que nós plantamos. Milho. Tudo nós plantamos. Nós plantamos muita plantação.
P2 – Bastante coisa, né?
R – Mas nós mesmos vamos para a terra. Cova e planta. Eu planto horta também, planta tudo. Laranja, essas coisas, tudo nós plantamos.
P1 – E tem um nome essa comunidade?
R – Tem!
P1 – Qual é o nome?
R – Barreirinho. Nós fazíamos panela, a minha avó fazia panelinha, aquelas panelas, botijinhas, tudo a minha avó fazia, a minha mãe também, e até eu também sei fazer.
P1 – Conta um pouco como era a infância nessa...
R – De lá? Ih, meu filho, se eu for contar a infância de lá... A infância foi muito dura, a gente passou muita necessidade, e sempre passa, porque a minha avó, coitadinha, vivia das panelinhas, e nós também passávamos muito, muito. Se eu for sentar para contar a história dessa comunidade, um dia não dá para nós conversarmos. É muita coisa que nós temos para contar.
P1 – Da história da comunidade?
R – É!
P1 – Eu queria ouvir um pouquinho, pelo menos! A gente está aqui para isso mesmo.
R – Mas você queria ver um pouquinho sobre “se fosse” roda, folia, festa, ou viver?
P1 – Primeiro, um pouco da história. A senhora conhece a história?
R – Como começou a comunidade?
P1 – Isso!
R – Oh, meu filho, olha, a minha mãe, a minha avó, as minhas tias contavam assim: quando um velho veio corrido da escravidão, que ele chegou, eles fizeram uma barraca na mata, na descida que desce para entrar nessa comunidade. Eles ficaram escondidos um bocado de tempo, ele tinha um bocado de filho, 12 filhos, três filhas mulheres e nove filhos homens, já tudo criado. Ela disse que eles pegavam, saíam para os matos caçando o que comer, porque eles não tinham o que comer. Tinha uma tal raiz no mato, que eu nem conheço essa raiz, mas a minha avó contava que eles iam, caçavam essa raiz que chama mucunã e eles pegavam esse trem, tiravam aquela gominha e disse que, daquela gominha, eles faziam aquela farinha. Torravam aquela gominha naquelas panelinhas, faziam aqueles trenzinhos e comiam. Cozinhavam aquela goma, o chuchu, eles cozinhavam, faziam picadinho de chuchu, faziam um engrossado com a goma dessa mandioca que chamava mucunã e comiam. E, aí, eles iam caçar outro. E entrou essa mata, derrubando pau, andava de um lado derrubando, andava do outro derrubando. Aí, não foi nada, não. Quando a sede montava, lá não tinha rio nenhum, tinha um riacho. Eles vinham e punham a água do Rio Jequitinhonha, viajavam três dias com o jeguinho, tocando na frente, para levar a água para lá. Quando foi um tempo, eles abriram essas termas nesse lugar para ver se juntava uma aguinha naquelas termas. Aí, foi juntando aguinha, foi juntando aguinha, foi correndo bicho dessa mata, acabou, o trem que correu dessa mata, de tanto bicho que tinha, tinha onça. Então, abriu essa comunidade lá. Nós lá, como diz, comia um trem que chamava juá, fazia de comer, era um troço bravo que tinha no mato. A gente comia ele sem sal. Encosta na boca, corta a boca, a gente fica tudo com a boca, até fere assim, era de comer que esse povo usava na época. Primeiro, os povos usavam uns ossos, limpavam os ossos, chamavam de lelê. “Cadê o Lelezinho, você tem aí?” “Ó, tenho!” “Pega uns três quilos, quatro!” Apanhava aquele bando de osso e chegava lá, cozinhava. Agora, jogava a brava dentro desse osso, fazia aquela panelada, comia, enchia a barriga e ia trabalhar. E com isso foi vivendo. Até que chegou nesse fim, que vai melhorando aos pouquinhos, mas nós vamos levando Mas vai melhorando aos pouquinhos, não é?
P1 – Isso aí começou da época da escravidão?
R – É, eles vão começar a correr da escravidão.
P1 – Fugindo?
R – É. Eu sou bisneta de Rimoaldo, minha mãe é neta, foi ele que abriu essa porta mais os filhos dele, e nós fomos passando de família, passando e passando, os da época dele não têm mais ninguém. Terceira por produção dele, por meio de filho não tem mais ninguém. Ainda tem dele uns netos e bisnetos, tataranetos, aí que tem. Agora, filho não tem mais, não.
P1 – Então, a senhora contou um pouco da história. Agora, a parte da cantoria?
R – Na parte da cantoria, tem um bocado de cantoria. Você queria ouvir uma roda?
P1 – Eu quero.
R – Por exemplo, você queria que cantasse uma roda? Ou você quer que conte mais coisas da comunidade?
P1 – O que a senhora quiser!
R – Mas se eu for querer, vai tomar o nosso tempo tudo!
P1 – É para isso que a gente está aqui, pode contar!
R – Não é? Então, eu vou contar só uns pouquinhos assim de cada, porque você sabe que eu tenho meu pai para fazer comida para ele. Então, vai ser pouco, mas, uma hora, vocês querendo passear na minha casa, eu espero que vocês vão. Uma decisão para lá, uma data para lá, dá um recado e vai para lá, e a gente tem um tempo para ficar o dia inteirinho, para contar muitas histórias para vocês verem, as histórias dos remédios que a gente usa, que chamam quina, tem a raiz tacha-peixe, que é boa para picada de cobra, tem a vela branca nesse lugar nosso, tem tanto remédio que a gente usa também. Tem que falar deles também. Então, a gente tem muita história para contar de lá, as mesmas que as avós guardavam, as mães guardavam, eu sempre guardei muitas, tenho a minha cabeça boa, graças a Deus, então tem muita coisa guardada para contar, tem as rodas, tem os “batucos”. Os “batucos” faziam lá na minha casa, lá na minha casa que os “batucos” eram feitos. E, lá, já fiz umas duas vezes o “batuco” lá para o povo. Eu faço essa festa dos “batucos”, festa para os santos e essas batucadas. Aí, o povo batuca, o negócio dos batuques e de cantar folia também. Eu gosto de cantar folia, gosto também de cantar roda, jogar verso, a gente gosta disso, de umas rodas que fala: “Eh, mulher rendeira, eh, mulher rendá, me ensina a fazer roda que eu te ensino a namorar. A mulher do lampião tinha dois lampiãozinhos, um é grande e o outro pequeno, todos os dois engraçadinhos!” A gente gosta de cantar roda, gosta de jogar verso, na minha casa, juntava as meninas, cantava roda, jogava verso. A entrevista ia sair muito melhor.
P1 – Ah, mas está ótimo. E folião, como que é?
R – Ah, o folião é cantado de oito homens, junta viola, sanfona e canta. Agora, tem os reis que cantam, se eu alembrar aqui dos ramos dos reis, porque eu estou desapercebida dos ramos deles. Não, os reis eu não vou cantar, não, não estou com a lembrança certa. Aí, os reis eu deixo para quando vocês forem.
P1 – E os versos? Tem algum verso?
R – Jogar um verso? Você gostaria de jogar um verso? Qual o verso... Eu sei tanto verso, meu filho, para jogar, precisa ver qual verso eu vou jogar. Eu tenho que jogar um lá para o lado da minha comunidade, lá para o lado do meu povo.
P1 – Tem alguma cantoria de trabalho, para lavrar a terra?
R – Para lavrar a terra tem, mas hoje eu não estou com esse trem. Então, tinha que estar preparada, pensar, cantar. De ontem para hoje, eu fazia isso tudo, porque você sabe, para a gente fazer uma coisa assim, a gente tem que pensar, cantar, como diz o povo: “Ensaiar primeiro!” Para amanhã estar pronto, estar com o negócio tudo prontinho. Aí, a gente já fala e joga os versos.
P1 – Então, vamos fazer assim, Dona Ducha: conta uma história que a sua avó contava, sua mãe, e, enquanto isso, se a senhora lembrar alguma coisa, conta alguma coisa para a gente.
R – Uma história... A minha avó contava um causo, esse causo é mais interessante que eu vou contar para vocês. Ela disse que ela tinha o irmão dela e o marido dela, aí, quando foi um dia, disse que ele falou, num dia santo, Dia de São Joaquim. Ela falou: “Oh, Luiz, não vai para o mato!” Aí, disse que ele falou: “Não, hoje eu vou fazer uma caçada! Eu com o padre Joaquim vamos para o mato caçar!” Aí, foi para o alto lá caçar. Quando chegou lá, disse que tinham duas guariba e outra guariba com um guaribinho. Disse que o homem atirou nessa guariba, disse que ela colocou o filho na frente e disse assim: “Senhor cidadão, não me faça isso!” Disse que o outro falou assim: “Oh, Joaquim, não atira, não, que ela conversa que nem nós!” Ele: “Qual é? Eu vou atirar!” Tornou a puxar o cano da espingarda. Disse que o alvo da espingarda bateu e pitun-pitun. Disse que ela falou assim: “Oh, comadre, toma a Chiquita aqui e vê se o cabra é macho!” E, oh, correu, chegou na casa e chegou sem falar, só da guaribinha falar isso, né? Mas, para você ver que ignorância desse homem, o bichinho pedindo que não, e ele querendo que sim. Só que ela correu ele: “Vou te quebrar no pau agora!” E o bichinho correu. A minha avó contava essas coisas. Mas têm muitas histórias.
P2 – Dona Ducha, só voltando um pouquinho, por que a comunidade chama Barreirinho?
R – Ela chama Barreirinho porque lá foi um lugar – foi, não – é um lugar de barro. Os antigos lá viviam de panelinha, vendiam, entregavam para cá, entregavam para os outros. Não usavam essas outras vasilhas. A gente vivia dos pratinhos de barro, aquelas botijazinhas de barro, a gente pegava, cozinhava, fazia café nesses bichinhos. Então, a gente fazia tudo, tudo era de barro. Lá, tem três olarias de barro porque eu sei, o barro, eu sei onde é. Hoje, está ocupado.
P2 – Está ocupado? Como assim?
R – Está ocupado com os fazendeiros, porque os fazendeiros hoje não deixam mais a gente tirar o barro do lugar.
P1 – Antes, a terra era coletiva?
R – Aí que eu não sei, né?
P1 – Mas a comunidade podia retirar o barro?
R – Quando eu nasci, que eu fui me alembrando, que eles tiraram, estava nos barreiros o barro. Hoje que não tira mais. Mas tirava. Eu ia mais a minha avó, mais a minha mãe tudo nesses barreirões arrancar barro.
P/1 – Ela tem quanto tempo de Joaíma, a comunidade?
R – A comunidade? Meu filho, acho que ela é até mais velha que Joaíma essa comunidade. Joaíma está com poucos anos, e essa comunidade tem muitos anos.
P1 – Mas demora quanto tempo para chegar lá?
R – Ah, que demora? Isso é mais ou menos uns 40 minutos, uns 30 de carro pequeno. Daqui lá, são 29 quilômetros, eu tenho os quilômetros tirados.
P2 – Quando a senhora nasceu, quantas pessoas tinham mais ou menos na comunidade?
R – Ah, minha filha, já vinha de um tantão! Era muita gente que tinha, já tinha acabado um bocado. Quando eu nasci, já tinha acabado um bocado do povo do Rimoaldo. É muita gente esse povo, muita gente mesmo. Ainda tem muitos para fora, tem muita gente para fora do Rimoaldo ainda, porque mudou. Mudou lá do lugar. Então, é um mundo de gente, era uma nação muito grande essa nação. Aí, hoje, já está “mais pouco”, porque hoje tem só bisneto, tataraneto, e os netos de Rimoaldo que têm, acho que uns três ou quatro. Que eu estou lembrando, lá na comunidade, são só esses. Porque eu lembro da minha mãe, da minha tia e além do outro que mora ali que chama Alexandre.
P2 – E a senhora poderia contar para a gente como que era a vida nessa comunidade? Cada um tem a sua casa, como que é?
R – Todo mundo tem a sua casinha, cada qual tem a sua casa. São 53 casas que tem hoje lá, está todo mundo em suas casinhas, todo mundo faz uma coisinha, todo mundo trabalha, tem suas rocinhas, né?
P2 – Mas tem algum trabalho que é coletivo?
R – Assim, a senhora fala...
P2 – Que todo mundo faz junto?
R – Junto, tem o culto. Todo mundo vem junto no domingo dirigir o culto, ali todo mundo está junto.
P1 – O que é esse culto, explica para a gente?
R – Culto é rezar, a gente tem os folhetos que vão da igreja, da casa paroquial. Aí, nós rezamos, as meninas leem aqueles cantos dos folhetos, e nós rezamos.
P1 – Descreve para a gente um pouco como que é a questão das casas, como são. Descreve um pouco da comunidade para a gente.
R – Assim, que as casas são boas ou ruins, né?
P1 – Como são? Parede de barro...
P2 – Quem faz as casas?
R – Somos nós mesmo que fazemos a casa.
P2 – Como que faz uma casa dessa?
R – Uma casa? A gente tira os esteios, são quatro, seis. Tem um assim, um assim, outro assim, outro lá, outro lá, tem uns três, aí são nove em uma casa. Daqui, são três, de cima, três, e, do meio, três. Agora, põe as travas, volta, põe essas travas, põe essas assim. Aí, a gente vai tirando pau, vai tirando pau e vai fazendo assim. Agora, a gente volta, bate o barro por dentro e por fora. Amarra as varas assim, vai amarrando as varas com cipó, fecha as paredes. Aí, a gente bate com os barros, amassa o barro, amassa, amassa, amassa, bate nas paredes, vai batendo, vai batendo até. Depois a gente pega o barro na beira do córrego, vai, pega, alisa as paredes e passa um barro branco que nós tivemos lá. Aí, fica a casa lisinha, lisinha.
P2 – Então, ainda tem um córrego de que dá para tirar barro?
R – Não, o barro que a gente alisa, o outro, é qualquer barro, não é da beira do córrego. Agora, o barro branco, a gente apanha lá de um lugar que chama Santa Rosa, uma comunidade, Santa Rosa. Que a Santa Rosa quando cresceu... Foi o Barreirinho que ajudou crescer essa outra comunidade lá, porque o pessoal de lá vinha todo mundo pegar as feiras cá nesse lugar nosso, que tinha as feiras que davam a cesta básica. Aí, recebia a cesta básica lá. Então, o pessoal da Santa Rosa vinha para lá, para poder pegar as feiras. Tinha esse barro branco lá, nós descobrimos esse barro branco e nós vamos lá apanhar também, apanhar na carga! Leva o jegue lá e traz na carga.
P1 – Tem alguém que cuida, administra, manda lá?
R – Tem o presidente lá, o primeiro presidente foi o meu marido. Ele trabalhou 12 anos na comunidade. Depois, agora, colocou Joaquim no lugar dele de presidente.
P1 – Quem escolheu o teu marido?
R – Todo mundo. O pessoal sempre escolhe o presidente, no dia em que vai passar para outro ficar cuidando das coisas, comandando ali a comunidade, faz uma eleição. Faz tudo, volta, ganha aquele e fica.
P2 – A senhora poderia dizer como faz para cuidar da comunidade? O que o seu marido fazia exatamente?
R – Meu marido?
P2 – É, fora o trabalho dele.
R – Meu marido ia atrás da cesta básica, desse negócio dessa terra que está num projeto da terra. A gente está correndo atrás para ver se chega nas mãos da gente, porque hoje a gente está muito embolado. Então, a gente queria mais decidir, para saber, porque quando o velho morreu, deixou uns documentos, mas a gente não tem hoje o principal. E era bom o documento se tivesse, para ver o que é que amonta. A gente fica muito embolado, vai dos outros. Então, eu achava, ele correu muito, foi para Belo Horizonte, ouviu as reuniões. Foram meu irmão, minha irmã, minha cunhada, tudo lá, ouvir umas reuniões. A minha menina também esteve lá. Então, eles estão correndo atrás para ver o que Deus ajuda que chega nas mãos da gente. Agora, decidir com “nós” lá, com a comunidade ficar, para ficar melhor, porque a gente, sabendo lutar pela terra da gente, sabendo comandar, a gente resolve, a gente faz o que a gente tem vontade. E assim que eles correm atrás de todos os benefícios que a gente está precisando, até que a gente espere que Deus vai sempre colocar na nossa mão.
P1 – Essas histórias que sua avó, sua mãe, os mais velhos contam, eles tinham uma hora para contar? Sentava todo mundo para ouvir ou contava assim durante a janta, como que era?
R – Não, elas contavam para nós, sentavam, por exemplo, como eu sento com os meus filhos, contando: “Meninos, isso é assim!” Eu conto para as minhas filhas, para elas. Eu tenho uma filha lá, que ela é mais atenciosa, que é a Imaculada. De vez em quando, eu falo: “Imaculada, a sua avó falava que aqui era assim, assim, assim!” Eu passo para ela o que a gente morrer, quando chegar, não é? Aí, eles ficam sabendo, que nem a minha avó quando contava para mim. Tinha dia em que nós íamos para lá, eu ia coçar a cabeça dela: “Oh, minha filha, olhe, está coçando aqui!” Eu ia coçar a cabeça da minha avó, ver se tinha algum piolho na cabeça dela, alguma lêndia, até ela ficava, contava esses causos para mim: “Oh, minha filha, mas aqui já foi assim, assim, assim.” Ela contava também que, quando elas abriam essas termas lá, aí é que começou a minar a água. Diz que a rede do córrego ficou por conta de chamar Anta Podre. Essa Anta Podre não é porque o córrego, o riacho chamava Anta Podre, é porque um bicho que veio da mata correu, caiu dentro dessas termas, morreu, apodreceu. Quando ele chegou lá, disse que essa anta estava morta dentro desse poço. Disse que, quando eles falaram, que quando esse riacho encher, que ele correr, a gente vai chamar de Anta Podre. Aí, ficou de Anta Podre, hoje ele passa por ali assim. Essa Anta Podre passa por aqui. Ficou. Ela falava com a gente: “Então, minha filha, porque a gente fez essa, abriu, o bicho veio, caiu lá dentro e não saiu mais mesmo.”
P1 – E qual a importância de você passar para os seus filhos essas histórias, essas histórias dos seus antepassados?
R – Já passei!
P1 – Qual é a importância disso? Por que é importante fazer isso?
R – É importante porque a terra que é quilombola. Então, eu acho assim: se meus filhos tirarem, mas num belo dia chegar na mão de um tataraneto, de um bisneto, porque essa sina não acaba, não é? Porque esse nome, Ferreira dos Santos, não acaba mesmo, ele vai ficando sempre, vai passando para frente, passando para frente. Então, eu acho que a gente tem que passar as histórias para os filhos da gente, para que a gente mais, eles falarem. Minha mãe contava isso, minha mãe contava aquilo, minha mãe fazia isso, minha mãe fazia aquilo.
P1 – E tudo que a senhora aprendeu foi com os mais velhos?
R – Foi, foi com os mais velhos.
P1 – Cozinhar, tudo?
R – Cozinhar, fazer café de cana. Minha avó mesmo usava... Tem um bichinho em que a gente molha a cana, ela pegava. Um dia o bichinho quebrou, de moer a cana. Aí, pegou esse bichinho, quebrou, ela falou: “Minha filha, vou moer essa cana no pilão!” Colocou a cana cortada aos pedacinhos no pilão, pisava, colocava no fogo, para cozinhar. Então, cozinhava, tirava aquela água da cana cozida, fazia o café, e nós tomávamos.
P1 – Café de cana?
R – Café de cana, né?
P1 – Que mais de comida tinha de diferente?
R – Comida? A comida nossa era feijão, o arroz era quando achava. De primeira, nós não usávamos arroz, não usávamos arroz porque, não, só plantado. Ali, sempre quando achava uma areazinha de brecha, plantava o arroz. A gente comia arroz, porque estava no pilão, pisava, eu mesma plantei, muito tempo plantava arroz, e comia arroz plantado na minha roça e, por mais que a gente comia, era um guisado com feijão. É que nem eu falo: colocava aqueles ossinhos dentro, cozinhava e ali era de fazer e comer. Apanhava umas folhas que chamam quebra-tigela, dava uns espinhozinhos assim, um pauzão no mato, isso chama ora-pró-nobis. Aí, então, a gente ia para lá, a gente ia quebrando aquelas frutinhas, ia quebrando aquelas frutinhas e enchia a vasilha. Chegava, cortava, fazia aquela panelada! A gente comia até encher a barriga. Tinha um trem que chamava cará, com esse cará a gente cozinhava aquelas paneladas, fazia sopa desse cará, fazia tudo e comia. [O que] Era de comer a gente comia. Cozinhava mandioca, batata, comia dentro do feijão, esse que era. Mas tudo sei fazer, um angu, nós fazíamos um angu. Pegava o feijão, colocava dentro do angu e comia. Fazia os molhos pardos, chamava molho pardo: matava a galinha, tirava o sangue na água do limão, pegava. Quando estava o caldo do feijão bem fervendo, a gente pega, mistura e fica da cor do caldo de feijão. Você pensa que é o caldo do feijão, mas não é, não. Era a galinha, o molho pardo.
P1 – E qual a comida que a senhora mais gosta de fazer?
R – Eu gosto de fazer qualquer uma, mas a comida que eu mais gosto é a galinha caipira e feijão.
P1 – Como que a senhora faz a galinha caipira?
R – Ah, eu faço uma galinha caipira que você fala: “Eita, faça mais!” Mas o pessoal que vem na minha casa gosta da minha comida, e eu adoro fazer comida. A galinha caipira é boa, cozinhada no suor. Se encher da água, ela não presta, não. O tipo que eu faço, eu cozinho ela quase no suco, aí ela fica com um gosto normal, gostoso mesmo. Mas um dia você vai lá em casa, e eu vou fazer para você também.
P1 – Você tampa a panela e faz...
R – É, só no suor, com pouquinha água, bem temperada, com um coentrinho verde, “ali ó”, bem temperado, e cebolinha. Com bastante tempero, eu gosto de comida temperada. E aí a gente faz: vai suando, vai suando, vai suando, vai fazendo ela assim com pouquinha água, vai deixando ela durinha. Mas ela fica ótima!
P1 – E, assim, com tanto trabalho, como que era para brincar na infância? Tinha tempo?
R – Brincar? Assim, batuco, não, né?
P1 – Não, quando a senhora era pequena, tinha tempo para brincar?
R – Ah, para brincar, para fazer “coziinha”, bonequinha de pano. Até hoje eu me lembro das bonecas de pano, eu fazia aquele tantão, juntava mais as minhas irmãs, tinha mais três irmãs. Quatro, nós somos cinco irmãs, só que morreu uma e tem só quatro. Então, eu fazia aquele tanto de boneca, brincava de boneca de pano, não usava essas bonecas que se usam hoje. Fazia aqueles lanchinhos, a gente cozinhava, pegava as panelinhas, nós fazíamos aquele tanto de panelinha de barro já para nós cozinharmos. A gente enchia de água, a gente brincava muito, era assim que era o brinquedo.
P1 – A senhora que fazia os brinquedos?
R – É, era eu mesma que fazia. A minha avó fazendo panela e eu, ao redor, fazendo aqueles trenzinhos.
P1 – E as coisas que os meninos aprendiam eram diferentes daquilo que as meninas aprendiam?
R – Os meninos brincavam, apanhavam aquele monte de pedrinha que estava lá na beira do córrego, faziam aquilo tudo de curralinho. Assim, no meios dos terreiros, descascavam, e gritavam. Ali, brincavam o dia inteirinho.
P1 – E as meninas, de boneca?
R – E as meninas, de boneca. Cozinhava, a gente cozinhava aquelas favas, um trem que chama fava. Planta muito, andu a gente planta muito. Aí, a gente plantava aqueles trenzinhos, cozinhava aqueles trenzinhos nas panelinhas.
P1 – E com que idade a senhora começou a trabalhar?
R – Eu, a trabalhar, meu filho, desde os sete anos onde eu trabalhava. Eu fazia tanta coisinha!
P1 – O que fazia?
R – Ah, lá eu ia nos campos para a minha mãe, eu já lavava vasilha, eu já apanhava água na lata de litro que eu não aguentava um trem grande. Tinha uma lata que se usava antigamente, uma lata assim. A minha mãe me dava a lata e: “Ducha, vai lá pegar água!” Eu ia para o rio, o rio era perto, carregava a água todinha, até encher aqueles botijões tudo.
P1 – E esses remédios que a senhora descreveu, a senhora começou a aprender a fazer com quem?
R – Esses remédios que a pessoa acha que... Picada de cobra, a vela branca é para picada de cobra, erva-cidreira é para quem está gripado, sentindo febre. Quem, por exemplo, comeu uma comida que fez mal, tomar erva-cidreira com bicarbonato é bom. A gente usa essas coisas. É muito remédio que a gente usa, hortelã...
P1 – Foram a tua mãe e teu pai que te ensinaram?
R – É, foram o meu pai e a minha mãe que plantavam. A gente planta no terreiro. Tem muito remédio que a gente planta na nossa comunidade que eles que plantaram. Aí, já plantam os remédios. Tem hora que adoece, né? E, rápido, não tem um carro para vir um médico. Até que traz essa pessoa, se não tiver o mesmo remédio, acabando a vez, não era para acabar naquela hora, quando termina e acaba naquela hora por causa disso.
P1 – E quando alguém fica doente, tem que buscar um médico em outro lugar?
R – Não, tem que nós irmos.
P1 – Eles não vão lá?
R – Não.
P1 – E tem muita festa lá?
R – Tem, não. Os antigos faziam muita festa. Agora, não, não houve um negócio, uma festa todinha, não. Eu que gosto da festa! Mas eu que gosto assim, festa de festejar com santo, né?
P1 – Gosta do quê?
R – Festejar com santo, né? Dia de São João, eu faço festa. Mês de janeiro, eu faço festa. Março de São Sebastião, menino Jesus, há um presépio, a casinha que a gente ama. É, 12 de outubro, dia de Nossa Senhora Aparecida também festejo. Aí eu gosto! Em janeiro, a gente canta as folias, dia 12 eu faço festa só para a Nossa Senhora Aparecida mais as crianças, eu gosto muito de criança. Lá em casa, eu levo, cheio de criança. Você chega lá, tem 10, 12 crianças, você fala assim: “Vixe, Dona Ducha tem neto!” Mentira, que não são meus os netos, são os meninos do vizinho, tudo gosta. Aqui, eu cheguei nessa casa e você vê como estão as meninas aí? Todos os meninos me gostam, eu gosto muito de criança, por isso que eu faço a festa dia 12, que é dia das crianças. Dia 12, lá em casa, meu Deus, não tem lugar para pôr menino. Dou bala, dou pipoca para as crianças, Dona Ducha gosta disso tudo! E, pum, quando o batuque começa com esses meninos! Eu canto, o outro batuca, eu falo assim... Mas hoje eu esqueci os batuques, esses batuques hoje estão dando em mim que eu nem mais estou lembrando desses batuques. Já está com três para eu cantar esse.... Agora, lembrei um! Eu queria cantar um batuque bem antigo, mas estou pelejando para cantar o diacho do batuque, não tem jeito que eu não estou lembrando do batuque hoje! Porque tem um que nós cantamos lá em casa, mas não é esse, eu queria um antigo, que a minha avó cantava! É, diacho, eu queria cantar ele, mas não estou lembrando as partes. Não, vou deixar ele para lá. Eu vou cantar outros que cantava, que é um negócio que eu cantava mais os meninos: “Ei, terra boa de pobre morar. Oi, terra boa de pobre viver. Eu não vou para o seu jardim, para o meu canto não ver descer. Falou morena: eu vou embora mais você!” Aí, eu falo: “Bate palma!” Para os meninos, os meninos batem palma e sapateiam. Isso, sabe como que é, mas eu gosto de fazer isso lá em casa, porque lá em casa eu já fico preparada mesmo, né?
P1 – Essas letras dessas músicas falam sobre o quê? Sobre o dia a dia? Falam sobre a vida de vocês?
R – Essas letras dessas músicas minhas são dos antigos de lá, que cantavam. Ajuntavam os mais velhos, cantavam esses tempos e outros, são tipo de um coco, chama isso, que eles falavam cantar. Cantavam esses trens e ajuntavam esse bando, aquela reunião, aquele grupo, dançavam e cantavam e tocavam na viola. Mas tinha um velho, esses tempos, que morava lá, ele cantava na viola, cantava mais ele esse trem. Ele cantava na viola, sapateava, e eu batia palma. Então, a gente fica, né? Na mente dessas coisas, e eu guardo muito as minhas coisas, mas esses dias que o meu pai está doente, a gente ficou assim, assustado, porque aí tem hora que a gente só está pensando naquele pai e volta, e volta. Eu estou bem preparada, mas em outras entrevistas vai lá que a gente vai entrevistar melhor!
P1 – Então, Ducha, a gente estava falando dessas músicas. Os antigos cantavam para se divertir, qual era o motivo?
R – Para divertir, né? Tem hora que ficava... Eu lembro, hoje. Eu era pequena, eu via um homem que chamava Marciano, Marciano era genro de uma mulher que chamava Fortuosa. Só que eu não conheci a Fortuosa por causa que era dos filhos de Rimoaldo. Aí, eu e o Marciano tocávamos a viola, e tinha a minha tia que chamava Eleonora. A Eleonora já morreu. Eles cantavam coco, ele falava: “Eu moro de banda, de banda de lá. Passa a mão no cabelo, e Eleonora começa a chorar!” Aí, tocava na viola e começava a sapatear, e a Eleonora respondia de cá também. Isso só para você saber como que era. E hoje está acabando por causa dos antigos, que acabou tudo. Aí, só está esse povo novo, não estão mais as coisas que aconteceram, não querem mais. Quando a gente vai cantar uma coisa, eles falam: “Ah, essa não, essa é do tempo dos antigos!” E eu acho que, mas sempre, que as coisas antigas são muito mais do que hoje, as deferências, as toadas, as vontades, a saúde, tudo estava melhor do que hoje. Minha avó sempre falava: “Oh, minha filha, se você alcançar um belo tempo, vocês vão dizer que está morto para não ver!” E nós vamos dizer: “Tá vivo para ver!” Eu acho que está chegando por aí, está chegando, porque, pelo que eu estou vendo, está chegando isso tudo que ela estava falando...
P1 – Mas por quê? Os mais novos não se interessam, qual...
R – Porque meu filho, sempre a saúde, né? Não está normal que nem era, no tempo dela. A minha avó morreu com 112 anos. Então, hoje nós não ficamos mais nem isso. Eu acho que, hoje, por muito que chega 70 anos, 60 anos, já foi. Por isso que eu falo, no tempo da minha avó, eu conheci uma mulher aqui também, chama Isidora. Essa Isidora foi quem apanhou os meus meninos que eu ganhei lá na roça. Ela, hoje, deve estar com o quê? Acho que 112, 114 também. O neto dela que cuida dela, dessa Isidora.
P1 – E quais eram os instrumentos que usam nessa...
R – Na comunidade?
P1 – É!
R – Sanfona, violão, viola e caixa, chama caixa. Tem um nos batuques que chama caixa. Triângulo, tem um tal de xique-xique, a gente pega uns caroços põe na lata e faz tim-tim-tim. Esses que são os instrumentos. Tinha um trem que chamava rabeca, mas a rabeca está acabando, a gente não ouviu mais. Chamava rabeca esse trem, a gente não ouviu mais, não. Os instrumentos da roça são esses.
P1 – E as festas em que a senhora disse que os antigos tocavam muito, quais eram as que não fazem mais?
R – Era batuque, roda. As festas passavam tudo cantando roda, batuque. Você chegava lá e estava aquele: “Ó, pananã, ó!” Só batuque, não tinha negócio de dança, não tinha negócio de som. A gente nem sabia o que era som. Nesse tempo, não usavam essas coisas. No tempo de minha avó, não usava rádio, não, esse trem, não. Era difícil, muito difícil. Minha vó não andava de carro, ela tinha muito medo. Quando eu trouxe ela para aposentar, ela não quis entrar no carro, vinha de pé, caminhando de pé. Dá para você ver, 29 quilômetros mandado de pé para não entrar no carro. Não sabia o que era carro. Quando passou o primeiro avião, diz que ela quase que morreu de medo, quando andava.
P1 – Quando passou em cima?
R – É, em cima! Só que ela falou: “Corre, gente, que vai afundar tudo, para debaixo da cama!” Cama era de vara, não usava cama, não. Ninguém sabia o que era cama, não. Tirava umas varas e fazia uns trens assim, fazia umas camas. “Vamos, meus filhos, soca tudo debaixo! O mundo está acabando! Bem que eu falei que o mundo estava acabando!” Mentira, era o avião. Entrou tudo debaixo da cama para não ver o avião passando, para você ver a história como que é. No tempo de antigamente, não usava avião, né?
P1 – O que será que ela achou que fosse?
R – Achou que o mundo ia cair em cima dela, e que ela ia morrer mesmo.
P1 – A senhora falou sobre o rio, não o Jequitinhonha, mas de um outro córrego, não é isso, que passa ali?
P2 – Rimoaldo?
R – Não, Rimoaldo é o dono que abriu a poça, é o meu avô. E o rio é o Rio Anta Podre!
P1 – Anta Podre, isso.
R – Rio Anta Podre e Rio Barreirinho. É um riozinho que passa dentro de Barreirinho, em cima de Barreirinho.
P1 – Eles se encontram?
R – Encontram, eles fazem um encontro, Anta Podre com Barreirinho.
P1 – Queria que a senhora dissesse o que é morar ali, o que sente em morar naquele lugar?
R – Porque eu gosto, adoro o lugar. Eu nasci lá, criei, casei e moro lá. As minhas filhas também, elas são casadas e moram do lado, juntinho de mim. Eu só tenho a Rafaela, Rafaela é deficiente, estuda na Apae. E tem um grupo tudo juntinho, a gente adora mesmo lá, eu adoro!
P2 – E a senhora conheceu o seu marido lá?
R – Conheci, o meu marido mora lá mesmo.
P2 – Nasceu lá?
R – Nasceu lá! Eu, meu marido. Meu marido mais eu somos primos. Nessa comunidade, a gente casou quase tudo com os parentes, porque não tinha ninguém de fora. Lá, é difícil entrar um de fora. Agora, depois dessas crianças mais novas que estão mudando os ramos de assinatura porque não tinha, só tinha a independência de Rimoaldo, né? Antes, casou primo com primo, né? Para vocês verem como acontecia. Meu marido é Alcides Ferreira dos Santos, minha mãe, Maria Ferreira dos Santos, entrou Pereira por conta do meu pai, mas eu sou Ferreira dos Santos. Misturou tudo, porque não tinha de fora ninguém. Quando entrava de fora, era até diferente. A gente ficava até com medo quando entrava uma pessoa de fora lá na comunidade, porque a gente não conheceu, só conheceu a independência do Rimoaldo.
P2 – E tinha gente lá fora que queria entrar?
R – Não, fala assim, por exemplo... Chegava, porque sempre vem um de fora para passeio, quando vocês mesmo estão aqui comigo. Se chegasse uma pessoa assim, eles não atendiam, não, ninguém. O povo tinha medo. Se chegasse, por exemplo, que nem você chegou e falou comigo: “Ah, nós vamos ficar aqui com você!” Quem disse, minha filha, não ficava não! E falavam: “Já era, ela veio nos matar, vamos correr!” Uma época, passou um homem lá, das primeiras vacinas, porque surgiu uma vacina que ia aplicando na gente contra muitas coisas que aconteciam, as primeiras vacinas. Oh, meu Deus, meu pai caiu dentro de uma vala com medo, arrastando os meninos tudo, nós tudo, e jogou tudo na vala e falou: “Estão matando?” Pegou e ralou a perna tudo. Quando o homem foi embora, o povo falou: “Não é, não, José, estava picando uma vacina, é um remédio para o povo!” “Não é remédio, não, eles estão matando o povo!” Depois que passou, a gente ficou sem tomar a vacina. Eu mesma, a primeira vez que aplicavam aquelas vacinas, eu nem sabia, eu estava trabalhando na casa lá em cima, na casa de Dona Ilma e Fernando. Ela mandou aplicar a vacina em mim e aí, sim, eu senti. Eu estou passando pano na casa, quando eu estou passando pano na casa, o rapaz chegou na porta e só falou: “Maria, vamos ganhar agulhada no braço?” Eu: “Ah, desgraçado!” Aí, ele correu e foi embora. Eu me acostumei, dessa época para cá, eu me acostumei, mas tomei um choque, menino, mas foi um choque, para vocês verem!
P2 – E por que você acha que o povo era tão fechado assim?
R – Porque criaram menina lá, para aqueles carrascos. Só vêm do mato, que tem bicho, não sabia de ninguém. Foram para lá e se jogaram no mato. As mulheres ganhavam os nenês assim mesmo, na manga. Minha tia mesmo ganhou um filho viajando aqui de Joaíma, de pé. Aí, ela com o barrigão, estava no mês de ganhar, o dia de ganhar. Como se fosse para ela ganhar hoje, o que ela fez? Veio para aqui, fez a feira, botou a carga na mala no animal, quando chegou perto da serra do, perto de um curral, ela deu ponto. Ali, mais ela, ia levando. Pegou esse menino, enrolou nessa coberta e foi, mais ela, embora para a casa dela, eram a minha tia e a minha sogra.
P2 – E a senhora, como que a senhora teve os filhos?
R – Meu pai chamou: “Manda aquela mulher atender lá!” Ela chama Luia. “Oh, vai lá ver o pai!”
P2 – Como que a senhora teve os seus filhos? Como que eles nasceram?
R – Minhas filhas? Minhas filhas, na roça. Não ganhei nenhum filho também, mas minhas filhas, graças a Deus. Não fui muito feliz no parto, eu ganhei [de parto] normal as minhas meninas.
P2 – Mas foi difícil?
R – Não foi nem muito difícil, nem muito fácil. Porque as dores são pesadas, aquelas dores não deixam saudade na gente. Só que eu fui com um parto, fiquei sem levantar da cama um tanto de dias. Eu fiquei mais ou menos... Teve um mês mesmo que eu fiquei 14 dias deitada, deitada na cama, e as suas costas já doendo, sem aguentar levantar. Mas Deus me ajudou, e eu só ganhei seis filhos, e desses seis têm dois mortos, dois meninos e três mulheres e um menino homem. O segundo filho meu me trouxe aqui nesse hospital, o Rafael, eu ganhei ele às cinco da manhã e fui despachar cinco horas da tarde, aqui dentro do hospital. Aí, eu não ganhei mais, não, quis mais, não.
P1 – Existe parteira lá?
R – Existia. Hoje, não existe mais, não. Era a minha avó. A minha avó era boa parteira.
P1 – E benzedeira?
R – Se ela falasse: “Pode ir para o médico.” Pode ir.
P1 – E a senhora não aprendeu nada com ela de parto, de “benzeção”?
R – Aprendi. Eu só não enfrento, mas se falar assim: “Oh dó, a mulher ganhou nenê ali. Cuida do moleque?” “Cuido!”
P2 – A senhora sabe fazer um parto?
R – Sei, eu já fiz na minha irmã. Só umas vezes que a minha irmã não teve tempo de chegar aqui, e pegar o carro para ir buscar ela. Estava na hora mesmo. Eu já fiz, acho, uns oito partos, graças a Deus. Mas tudo certinho, porque, quando não está tudo em lugar certo, a gente sabe também. Tem que esperar o carro e tem que mandar para o médico. E se for o primeiro parto também, ninguém enfrenta, não. Tem que dar um jeito de vir ficar aqui. Essas meninas novas que estão acontecendo, eu mesma tenho uma filha, ela está grávida, a primeira gravidez. Liliane. Eu falei: “Oh, menina, você pode ganhar seus filhos, mas o primeiro vai para o médico, não deixa, não!” Porque os primeiros são sempre mais difíceis, então, ela veio. Essa menina quase vai aqui no hospital, quase vai. Ela teve que fazer a cesárea. Principalmente na comunidade mesmo, tem uma menina que ganhou em Almenara. Então, hoje o marido vai lá buscar, fez cesárea também. Aconteceu num tempo para cá, num tempo em que não existia médico, para vocês verem. Eu conheço mulher que tem 24 filhos! Não tinha médico, tinha Deus. E hoje, não, hoje são essas coisas todas difíceis. Qualquer coisa, é para você estar cortando, e eu ganhei todos os meus filhos na roça, tudo sadio, graças a Deus. Hoje, meu Deus, eu trabalho de enxada, eu corto foice. Se eu depender de roça, eu sei fazer, só para vocês verem. Aí, é isso que a gente fala. E, graças a Deus, é difícil eu sentir uma dor de cabeça, bem difícil. É por isso que eu falo as coisas, antigamente, eram outra coisa. Hoje, está tão difícil, já não faz isso mais. Engravida, e a gente está longe daquela pessoa que está engravidando. Então, porque, por várias coisas dessas, ninguém esperava de... Hoje, eu mesma e a minha menina, eu não esperava que ela precisasse de cesárea. Precisou. Hoje, não se fala mais essas coisas de parteira.
P1 – A senhora é benzedeira também?
R – Benzo, eu benzo, graças a Deus!
P1 – Com arruda, com o quê?
R – Com raminho, tem “benzeção” que não é com ramo. A pessoa está tudo precisando, eu benzo dor de cólica, dor de cabeça, dor de dente, quebranto, olho grande. Tudo eu sei benzer!
P1 – Espinhela caída?
R – É, tudo!
P2 – E a reza para benzer?
R – Tanto faz a reza que você queira, porque o quebranto, a gente reza pela criança. Às vezes, a senhora está com dor no corpo, ruim ali, aquele corpo doendo, a gente reza tudo, põe o raminho e fala assim: “Vou te benzer, Fulano de Tal!” A gente chama tudo pelo nome: “Olha, Fulano, eu vou te benzer com os poderes de Deus, Virgem Maria, Padre Nosso, amém! Vai quebranto mau, olhado mau, as forças do mau, vai que tenha fé, a água da fonte, vai pra onde cachorro não late, boi não berra, menino não chora e galo não canta. Com os poderes de Deus, Virgem Maria, amém, Pai Nosso. Chagas abertas, coração ferido, sangue de Jesus Cristo derramou sobre seus filhos. Estou te benzendo, Fulano, com os poderes de Deus e Santíssima Trindade. Vem Maria Santíssima, curai da enfermidade, tirai esses quebrantos e levais pelas águas do mar. Vai todo esse quebranto mau, todos os olhares maus para as águas do mau, vai pra onde cachorro não late, boi não berra, menino não chora e galo não canta, água da fonte, pra onde cachorro não late, boi não berra, menino não chora e galo não canta. Com os poderes de Deus, Virgem Maria, amém, Pai Nosso.” Aí, reza um Padre Nosso.
P2 – A senhora chegou a ir para alguma escola? Na comunidade tinha escola?
R – Tinha, não. Quando eu nasci, na minha comunidade, não tinha escola. A escola lá foi de pouco tempo para cá, tem poucos anos que há escola.
P2 – E a senhora foi para essa escola?
R – Não fui, não. Eu não gosto de contar mentira, não fui. Diz que vai surgir escola lá para os velhos, a gente fala velho, mas não é velho, não. Usado, né? A gente diz que vai surgindo escola: “Ah, eu estou querendo agora entrar!”
P2 – A Fazinha tinha dito que tinha sido a primeira professora de lá.
R – A Fazinha foi professora das crianças de lá. Quando a Fazinha foi professora, eu já tinha uns 25 anos, quando ela foi a primeira professora. Eu não mais, nós fomos vizinhas. Eu limpava a casa dela também, arrumava a casa de Fazinha, Betinha, a mãe dela é minha comadre, mora tudo vizinho. Morava vizinho, agora que nós espalhamos, ela veio embora para cá, foi morar outra pessoa lá.
P1 – Quando uma pessoa falece, a comunidade enterra lá mesmo?
R – Oh, meu filho, agora é. Primeiro, enterrava lá na chapadona, que tem para lá, tem até um cemitério. Agora que começou... Agora, não, têm muitos anos esse cemitério lá. A minha mãe conta que a primeira pessoa que enterrou lá nesse lugar foi a madrinha dela. Chamava Santa essa mulher. Quando eu nasci, já tinha o cemitério do Barreirinho, mas só que eles não enterravam as pessoas. Não era lá, não. As pessoas, eles enterravam na chapada, que na época não usava caixão. Usava era um negócio assim: eles amarravam um cobertor de algodão, não usava lã também, amarrava aquele pau, colocava o defunto dentro da coberta, amarrava no pau e um botava assim no pescoço, que ficava o outro lado atrás, e eles cortavam aquela pessoa assim. Levava lá. Eu já lembro de tudo, quando cansava, descansava. Eu estava no chão, puxava a pá e enterrava.
P2 – Cantava junto enquanto levava?
R – Não, rezava.
P2 – E por que escolhe um lugar tão longe, na chapada?
R – Foi porque as primeiras pessoas de Rimoaldo foram disputadas nessa chapada. Então, segundo, como eu estou falando para vocês, foi muita gente do Rimoaldo. Aí, a primeira parte foi enterrada nessa chapada. A terceira parte também, que pegou pelos bisnetos e netos, foi que foi mais enterrado por aí, lá junto, dentro da comunidade. Mas o primeiro cemitério deles, das famílias, foi lá nessa chapada. É lá que é. Eu lembro deles passando com a pessoa.
P2 – A senhora quer contar para a gente a história do Rimoaldo?
R – Pois é, o homem que eu contei que saía no Rio Jequitinhonha. É isso aí. Saía caçando mandioca para fazer farinha. Eu já contei para vocês lá na frente, adiantou já, isso aí eu já falei. Ele fez um barraquinho na chegada lá da mata, esses já...
P2 – A memória dele é muito preservada lá na...
R – É!
P/1 – Queria que a senhora falasse um pouco o que sente em morar aqui no Vale Jequitinhonha?
R – O que eu sinto? Eu adoro morar lá no meu lugar.
P1 – E do Rio Jequitinhonha?
R – O clima lá é muito bom, eu adoro viver ali. A saúde também boa, eu gosto, porque, graças a Deus, sou muito sadia. É difícil eu sentir uma dor de cabeça. Agora, tem muitas pessoas doentes lá na comunidade, mas eu acho tudo, tudo, tudo pelas plantações, pelas coisas de viver, porque o clima é legal. Por isso que eu adoro. Eu adoro aqui por isso. Tudo que você protege, a plantação de roça, a plantação de tudo, é bom, né? Se você planta café, dá bem, se você planta banana, a mesma coisa. Tudo que a gente produz para plantar dá bem. Quando não dá, quando não chove... Mas, se não chover em canto nenhum, não dá, não tem jeito. A gente não tem poder de ter, às vezes, a água regrada para que dá, para molhar a planta, a gente não tem esse poder. E pronto, não dá, não dá. Mas, sendo assim, quando Deus ajuda e chove, oh, mas dá muita coisa. Por isso que eu adoro por aqui.
P2 – Só queria voltar um pouquinho. A senhora falou que a situação onde vocês têm terra está embolada. O que a senhora quis dizer com isso?
R – É porque ainda não decidiu o projeto da terra, ainda está lutando para ver se decide, para chegar onde tem que chegar, decidir a terra. Porque a terra, por exemplo, a terra lá é nossa. Nosso avô que é dono. Só que nós não temos o documento em nossa mão, que ele deixou o documento, mas não foi “com nós”. Aí, também não está decidido, cada qual manda o seu, né? É do que depende mais lá, é isso. Que cada qual não pode mandar. Por exemplo, vem um dali e faz uma casa. Eu não posso falar: “Oh, fulano, aí não, não dá certo!” Não pode, porque não tem dividido em documento nenhum. Às vezes, você quer fazer uma manga, você não pode. Às vezes, você quer fazer uma roça grande e não pode, porque o trem está embolado. Está só embolando e cada mais vai embolando, porque chega nos netos da gente, por exemplo, meus filhos já têm os seus filhos. Olha o tamanho desse neto aí, esse que passou, dessa camisinha preta, é o meu neto, esse é o meu neto mais velho. Olha para vocês virem. Então, daqui a pouco, esse neto quer casar e ter a mulher dele, vai fazer uma casa onde? Já não pode ir para o terreno dos outros, não pode ir para aquela terra, vai fazer a roça onde? A terra só está embolando, nós não sabemos o que vai fazer porque, né? É só Deus que sabe!
P2 – Mas o que vocês estão tentando fazer?
R – Os meninos estão mexendo para ver se dá certo, que, se a gente consegue esse documentinho na mão da gente, para decidir, para poder saber o que faz...
P2 – E isso é uma luta que vocês têm com o governo ou é com os fazendeiros?
R – Não, é com o governo. Não é com fazendeiro, não.
P2 – Com os fazendeiros não têm problema?
R – Ninguém tem problema, não.
P2 – E existe... Para o governo estar ajudando?
R – Está, está ajudando. Nós vamos ter logo, está esperando. Diz, umas duas reuniões, uns trens lá que eu nem sei contar como são esses trens. Acho que essas reuniões, é mexer lá para poder conseguir esse documento cá para nós.
P1 – Dona Ducha, tem alguma outra história que a sua mãe ou a sua avó contava que a senhora quer contar para a gente? Você contou uma, né? Uma que foi importante para a senhora, que a senhora gosta muito?
R – Tem. A minha avó explicava que o pai dela gostava tanto de trabalhar que, quando foi um dia, diz que ele pegou e saiu: “Oh, mãe, estou indo para a roça!” Ela falou: “Está certo. Você vai para a roça?” “Vou!” “Oh, meu filho, não vai para a roça hoje, não, hoje é um dia santo, como você pega e vai para a roça?” Aí, disse que ele falou: “Eu vou, se eu não for para a roça, eu vou para o vale!” Ela disse: “Oh, menino, não vai hoje. Hoje não é dia de mexer com vale!” Diz que, quando ele chegou lá, quando chegou no fundo do vale, uma cruz. Quando ele viu a cruz, ele falou: “Meu Deus do céu, eu vou embora!” Quando chegou lá: “Oh, mãe, eu fui cavocar lá e encontrei foi uma cruz!” Aí que ela falou: “O que eu falei com você? Se hoje não fosse, não teimasse que fosse, pois é. Você viu a cruz porque você foi trabalhar num dia de Deus, você não podia ter feito isso!” Passou, o menino já tomou, por mais que trabalhe, a gente fala: “Oh, menino, não vai trabalhar em dia santo, não vai, não!” Se a minha avó tivesse que fazer alguma coisa em dia santo, Sexta-Feira Maior, ela não fazia. Ela jejuava, ela fazia jejum toda a quarta-feira. A minha avó fazia. E nós jejuávamos toda a Sexta-Feira Maior. Mas tudo ela falava com a gente. Na Semana Santa, ela não deixava a gente comer carne de jeito nenhum, não deixava a gente comer carne: “Minha filha, não pode comer carne, não é que a gente come carne no dia de hoje!” Aí nós criamos tudo desse jeito, tudo que minha avó me ensinou eu aprendi. Agora, eu, o mal, não tenho maldade com ninguém, meu coração é bom demais da conta. Adoro todo mundo, eu não tenho maldade, eu não tenho agressão, não gosto de agressão, não gosto de maldade, gosto só de alegria. É disso que eu gosto.
P1 – E a senhora lembrou aquele batuque antigo?
R – O batuque ainda está faltando uns galhos.
P1 – Nenhum outro que a senhora goste muito?
R – Não... Ah, lembrei um, um facinho, que fala assim: “Banda de lá tem laranja, e banda de cá, laranjeira. Banda de lá, dançador, e banda de cá, dançadeira!” Você está vendo como alembro? Eu lembro, tem muito trem que eu alembro da comunidade, que eles dançavam: “Xô, pavão, bateu asa e avoou, sentou na laranjeira, laranjeira balançou. Oh, xô, pavão dourado!” Isso tudo eu sei cantar, queria que eu cantasse mais outra?
P2 – Se a senhora quiser, eu estou adorando escutar!
R – Pois é, mas nós ficamos tomando nosso tempo cantando batuque!
P1 – Então, canta só mais uma, aí a gente fecha!
R – É, né? Mas se vocês quiserem escutar mais alguma coisa... Terra, né? Terra lá, terra boa, terra mansa, tudo que você planta dá. Não é toda a terra que dá. Aquela terra, abaixo de Deus, melhor que aquela, aquela mesma que Deus deu a nós?, que tudo você planta, folha. A terra adubada, a terra nasceu parece que adubada. Lá, é assim, se a gente colocar muito adubo no pé de uma planta, a planta não dá, da terra que não dá. Eu tinha uns pés de chuchu, esses pés de chuchu traziam dois, três sacos de Joaíma, para você ver. Pegou, foi lá, Joaquim deu a ele um adubo, ele chegou e falou: “Vou colocar mais adubo no pé do chuchu para dar mais!” O pé de chuchu parou, até hoje não deu mais nenhum. Aí, agora, eu estou fazendo outra plantação de chuchu para poder dar. Parou. A terra adubada, se adubar a terra, lá não dá nada.
P2 – Além das plantas que vocês mesmos plantam, tem árvores do lugar que vocês usem para alguma coisa, que vocês gostem?
R – Lá em casa, o que o meu marido gostou de plantar foi só angico. O angico é para muita coisa. Então, tem um arvoredo lá na minha porta, do angico, uma árvore muito bonita, as pessoas que foram lá tudo gostam dessa árvore, que é plantada no terreiro. Tem duas árvores plantadas lá no terreiro, a não ser a manga, essas coisas assim, plantação.
P2 – As que estão na natureza, que não precisa plantar, quais são?
R – Que não precisa plantar?
P2 – É, as árvores que a senhora conhece, que a senhora gosta?
R – Foram só essas! Que eu mais gosto assim.
P2 – As que estão fora da casa da senhora? Na roça, no mato?
R – Ah, mas esses outros trens eu gosto de plantar assim... Café, essas coisas. Laranja, tudo tem que plantar, gosto de plantar jambo, tudo tem que plantar, plantar tudo essas coisas. A gente planta tudo, tudo tem lá na minha roça. Aí algo que eu gostaria de plantar só, arvoredo. Morou dentro do mato demais, minha filha! Por que mais pau? A gente morou dentro da mata, né?
P2 – Como que vocês preparam a roça?
R – Preparam a roça?
P2 – É.
R – Para a roça, com a foice, vai roçando, vai roçando. Se tiver os paus grossos, quando é mato virgem, quando é na manga, não. Pode a enxada, capina com a enxada, ali junto, queima. Quando chove, a gente vai, cova e planta. É assim que planta a roça! Fecha, tira os paus, fecha ao redor de arame. É desse jeito que é a roça.
P2 – Quando o mato é virgem?
R – Quando o mato é virgem, roça de foice e faz a derruba de machado, mas só na área da roça, porque fora não pode fazer isso, porque não pode. Agora na areazinha da roça, não importa, não. De primeira, não tinha isso, não. Do tempo de meu avô, não tinha isso, não. Abria a mata, mata virgem, fazia a manga, essa comunidade mesmo, fica de machado, feito de machado. Então, voltou hoje. Hoje, não faz isso mais, porque não pode, a gente abriu uma roça na área florestal, que é ordem mesmo, é lei. É a lei que não pode fazer isso. Então, a gente não faz isso, não. Limpa de enxada, faz a roça, fecha, se roçar rocinha, só na área assim, mas só roça. Ali a gente corta machado. É assim que faz a roça.
P2 – E tem alguma terra coletiva para fazer a roça?
R – Você fala que a gente escolhe?
P2 – A roça é de uma família ou de várias famílias?
R – Não, cada família faz a sua roça, porque a gente não tem condição de fazer um roção bem grande. A gente vai e faz uma pequena. Ali, ajunta filha, ajunta pai para a roça, ou, quando os filhos já estão tudo grande, vão para a roça e fazem a roça. Lá é assim, cada qual tem sua rocinha, cada qual pessoa tem a sua rocinha, porque é muita gente, muitas famílias. Ali, tem pai, por exemplo, que tem cinco, seis filhos. Então, os filhos não vão para a roça é porque vão para a escola, por exemplo. Tem uma menina que já tem cinco filhos pequenos, tem três na escola e dois mais ela. O marido dela trabalha na enxada, então, ela fica. Uns vão cedo, outros vão meio-dia, o “mais pequeno”. É desse jeito que a gente faz para poder viver.
P2 – E as sementes?
R – As sementes? Aquelas sementes que a gente colhe primeiro, a gente guarda. Todo o ano, a gente fica guardando aquele saquinho de trem, que a gente... Torna a chegar o ano, a gente torna a plantar, a gente vai fazendo assim, vai trocando, vai trocando as sementes. Se planta o milho, nós vamos deixar o milho com a palha, na roça, um tempo. E, depois, a gente pega, colhe aquele milho quando chega aquele tempo de plantar. A gente colhe o milho e planta de novo. Aí, então, é o mesmo do feijão. A terra que chama o formigueiro. Tem uma tabatinga, a gente passa no feijão, e aquele feijão atura, fica ano. Quando chega aquele tempo de plantar ali, a gente já tem a planta. É desse jeito que a gente guarda a planta, a semente.
P2 – Tem algumas técnicas para preservar as sementes?
R – É, tem!
P2 – Além dessa da tabatinga, tem uma outra?
R – Tem, tem uma terra vermelha.
P2 – Vocês passam no feijão?
R – É, passa no feijão, e ali fica. Você pode guardar o quê de feijão.
P2 – E a comida mesmo, vocês fazem a farinha?
R – É, farinha. Eu tenho a roda, tem forno de fazer farinha. Os antigos não usavam tacha, porque hoje é tacha, mas não usava tacha.
P/1 – Queria que a senhora falasse sobre a feira da farinha. Como que ela é feita?
R – A minha avó... Até a minha avó eu conheci fazendo a farinha. Fazia a farinha, não usava roda. Nesse tempo deles, não usava esse negócio de motor, usava de mandioca na terra. Pegava a mandioca, rapava e pegava uma pedra e ralava essa mandioca, torcia no pano e fazia a farinha no forno de pedra como forno em casa. Aí, torrava as farinhas, minha filha, gastava de cedo até de tarde para torrar a farinha, porque o forno demora para torrar. Não é que nem hoje, que é rápido na tacha. Hoje, tem tacha, num instantinho eu faço a farinha, pois, nesse tempo, não. Ralava era na pedra, um trem que a gente ralava era naquela pedra. Hoje, não. Hoje, tem um ralo que a gente rala, é do jeito que a gente faz, rala a mandioca. Lá na minha comunidade, tem várias pessoas que fazem farinha desse jeito.
P1 – Farinha boa?
R – Farinha boa, fica boa, ótima farinha. Eu já fiz, fica fininha a farinha ralada na pedra, mas só que demora a ralar.
P1 – Tem mais alguma coisa que a senhora quer falar que a gente não perguntou?
R – Pois é, não. Agora só outro dia, né? Quando vocês forem lá em casa, para vocês verem os rodas, forro, a roça como que é. Vou falar: “Meninos, ó aí, para vocês virem!” Estou contado para vocês que aqui era melhor, porque aqui vocês estavam mais à vontade, nós estávamos na nossa casa. A gente não ficou à vontade porque eu estava cuidando de meu pai. Eu falei para vocês irem na minha casa, meu pai estava doente, a gente estava sem... A memória estava “mais pouca” quando a gente está pensando na pessoa que está doente, né? A gente, então, comemora quando a gente está naquela alegria, não é? Eu acho assim, cada qual que a gente tiver mais alegria e “mais melhor”. Essa entrevista vai ficar melhor quando a gente estiver em casa.
P1 – Mas a senhora gostou?
R – Gostei, eu falo para você que eu gosto das coisas! Para todo mundo, se vamos para ali, vamos. Vamos para aquele lado, vamos, amiga de todo mundo, graças a Deus. Eu gostei muito, fiquei muito satisfeita.
P1 – A gente também, obrigado pela atenção e pelas histórias.Recolher