P/1 – Vou começar a nossa entrevista perguntando para a senhora onde foi que a senhora nasceu?
R – Bem, dizia minha mãe que eu nasci num lugar por nome Santa Catarina. No entanto, meu pai andava muito, não durava, passava dois anos, três num canto, saía de novo. Então, depois fui morar num lugar por nome Natal. Depois de Natal eu fui morar num lugar por nome Rio de Poeira, Situação, em Laje. De Laje... eu saí de Laje... eu tinha sete para oito anos quando eu saí de Laje.
P/1 – Certo. A senhora lembra de Laje?
R – Me lembro. Laje, nós moramos numa fazenda de uma senhora... uma viúva rica, que nós chamávamos Maria da Penha. Tinha dois filhos por nome um Isalto o outro José. E tinha umas meninas tudo, que ela criava, adotivas. Foi no tempo que existia vintém e tostão, né?
P/1 – Que época é essa, a senhora sabe o ano que a senhora nasceu?
R – Eu sei.
P/1 – Qual foi?
R – Eu nasci em 1920.
P/1 – A senhora sabe o dia e o mês?
R – Dizia a minha mãe que foi dia de sexta-feira, no dia oito de setembro, assim dizia meu povo, né? Eu digo, porque eles diziam para mim. Não sei. Eu sei que eu completo ano no dia oito de setembro.
P/1 – Tá. E aí a senhora lembra de Laje?
R – Laje, Rio de Poeira que é lá onde morava a viúva, a dona Penha. Tudinho eu me lembro. Que a Lagoa da Ilha morava meu povo, a mãe Veronica, tudo isso morava em Lagoa da Ilha, que era uma cidade para Rio de Laje. Tudinho eu me lembro.
P/1 – Como é que era Laje, a senhora pode contar para mim?
R – Eu me lembro assim, porque eu digo, assim, porque sei que Laje é uma cidadezinha, né? Uma cidadezinha assim que nem... maior do que aqui Mutum-Paraná, tá? Eu creio já assim, uma coisa assim. A senhora sabe, nos interior do sertão como é que é as cidadezinhas, né? Pois é, Isso eu me lembro.
P/1 – E a sua mãe e seu pai faziam o quê naquela época, a senhora lembra?
R – Meu pai tomava conta do gado da dona Penha, sabe? E minha mãe trabalhava doméstica em casa mesmo, no trabalho de cozinha. Quando não era em casa era trabalhando na roça, apanhando algodão. Essas coisas aí tudinho que nós fazíamos. Eu, pelo menos, fazia também. Eu tinha sete anos para oito anos ela ia pra roça, eu ia também. Eu não ficava em casa.
P/1 – A senhora ajudava na roça?
R – Eu ia para a roça lá, para apanhar algodão tudinho, eu fazia. Ainda (vi?) tudo isso aí.
P/1 – Isso de Laje ainda era lá em Santa Catarina, a senhora sabe?
R – Não, Santa Catarina foi tempo que meu pai saiu de lá. Não passou nem três anos. Foi para um lugar por nome Natal, que disse que só tinha uma saída só, que hoje em dia já tem saída... nesse tempo que dizem, só tinha uma saída, né? Mas acho que agora já tem pista para todo canto, né? Então de lá... porque ele foi pra lá e de lá que ele foi. Agora, quando foi com oito anos, ele arribou de novo e nós viemos aqui para Natal. Viemos morar num lugar no Interior de Macaíba. Eu me lembro bem de tudo.
P/1 – E aí, vocês chegaram em Natal o que é que o seu pai fazia?
R – Quando nós chegamos em Natal, meu pai trabalhava assim, né? Aqui e acolá, onde achava um trabalho ele trabalhava. A senhora sabe que a pessoa pobre onde chega e acha um trabalho, trabalha, né? Porque tudo que ele tinha lá, vendeu tudo, acabou tudo. Chegamos aqui... que quando foi em... meu pai morreu. Minha mãe morreu em 39, primeiro morreu meu pai. Meu pai morreu em 36, minha mãe morreu em 39. Eu fiquei com 17 anos. Aí para acabar de criar meus irmãos.
P/1 – Quantos irmãos a senhora tinha?
R – Quatro comigo. Eu fui a primeira filha.
P/1 – Ah, a senhora foi a primeira filha?
R – Sim senhora.
P/1 – Como é o nome dos seus irmãos?
R – Rael Simão de Oliveira e Manoel Simão de Oliveira.
P/1 – E dos seus pais?
R – Meu pai: Zacarias Simão de Oliveira e da minha mãe Agda Maria da Conceição.
P/1 – E como é que eles eram, a senhora lembra? Eles eram bravos, eles eram, como é que era?
R – Não, como é, assim, que a senhora quer dizer?
P/1 – Assim, ela era muito brava? Quem é que mandava mais na casa era o seu pai?
R – Não. Tanto ela mandava como meu pai mandava também. Quando meu pai saía de casa, naquela época, né? No tempo em que eu nasci, meu pai dizia assim: “Olha, Agda, aqui da sala até lá na cozinha quem manda é você. Agora, depois que eu chegar em casa, você manda da sala para a cozinha.” Era assim que meu pai dizia para a minha mãe. Eu me lembro de tudo.
P/1 – É? E ela que fazia a comida?
R – Era, fazia tudo ela.
P/1 – E o que é que a senhora comia, a senhora lembra? A comida era diferente?
R – Lembro, para lá para o sertão a gente comia carne. Carne de miúcho. Miúcho a senhora sabe o que é?
P/1 – Não, o que é?
R – É ovelha, é cabra. É isso aí. Carne de gado era assim. O feijão, arroz.
P/1 – Plantava também?
R – Plantava, sim senhora.
P/1 – O que é que plantava?
R – Plantava arroz, plantava feijão, plantava semente de algodão. Tudinho. Eu sei de tudo.
P/1 – A senhora, então, ajudava a sua mãe para cuidar dos seus irmãos?
R – Eu ajudava sim, porque ela tinha outra filha, que não... mas ficava em casa, e eu gostava de trabalhar com ela. Eu não gostava de ficar em casa não. A outra minha irmã, que era filha do primeiro marido da minha mãe, era quem ficava em casa cuidando dos filhos.
P/1 – A senhora gostava de ir para a roça?
R – Ah, eu gostava. Hoje em dia, eu não trabalho porque quebrei a perna, não posso mais trabalhar.
P/1 – A senhora ia para a igreja com eles?
R – Lá, até ia pra Igreja Católica.
P/1 – Era católica?
R – Era católica. Agora não, hoje em dia eu sou da Igreja dos crentes. Eu sou da Igreja... como é o nome da Igreja nossa?
R – Pois é. Ele é batizado também
P/1 – A senhora trocou de igreja, então?
R – Foi. Naquele tempo, meus pais... a senhora sabe como é. Minha mãe era católica. Tudinho.
P/1 – A senhora chegou a fazer Primeira Comunhão?
R – Nunca fiz Comunhão de nada. Porque eu nunca aprendi ler nada, minha filha.
P/1 – A senhora não foi pra escola?
R – Não, nunca fui à escola.
P/1 – Por quê?
R – Porque, nesse tempo, não tinha as facilidades que hoje tem, minha filha. Era diferente. Antigamente era diferente. Não tinha essa praticidade que hoje tem. Porque, hoje em dia, se o camarada não quiser aprender é porque não quer, porque facilidade tem muita. Mas no meu tempo não tinha, não senhora.
P/1 – Não tinha escola onde a senhora morava, então?
R – Tinha não, senhora.
P/1 – Nem escolinha pra ensinar ler?
R – Nem escolinha nesse tempo não tinha.
P/1 – E sua mãe sabia ler e escrever?
R – Só tinha a escola quando eu desisti e fomos morar em Natal. Em Natal tinha escola, mas nunca cheguei a ir para a escola não. Nunca gostei não.
P/1 – E sua mãe sabia ler?
R – Não, porque eu era muito encrenqueira, minha mãe não deixava eu ir (risos). Ir para a escola. Deram uma queixa. Fui uma vez, depois dessa aí não fui mais.
P/1 – Mas a sua mãe sabia ler?
R – Sabia não. Meu pai sabia, mas minha mãe não sabia não.
P/1 – E eles, então, não achavam que era muito importante ir para a escola mesmo não?
R – Não.
P/1 – Seus irmãos foram?
R – Agora, meus irmãos sabem. O Rael, o Manoel Pequeno, que é o caçula dos homens, e a Adelaide, essa que mora aqui, ela sabe, são sabidos. Porque no tempo... eu botei... eles estudaram. Sofri muito em Natal, onde eu morei, no tempo que eles morreram, que eu fiquei tomando conta dos meus irmãos. Eu carregava até água, no meio da rua, no chafariz, com galão... duas latas. Saía carregando lata desde Natal. Tantos anos. Foi o tempo que os meus irmãos se casaram, minha irmã se casou e eu fiquei número um. Nunca quis me casar não, fiquei sozinha.
P/1 – A senhora nunca casou?
R – Não senhora, nunca me casei, graças a Deus.
P/1 – Nem namorou?
R – Namorei. Namorei muito, mas não casava. Não queria. Eu não queria ser machucada como muitas que eu vejo hoje em dia. Eu queria viver sozinha, porque eu sozinha, eu ia para onde eu queria. Era assim que eu fazia.
P/1 – Mas aí a senhora ficou com os seus quatro irmãos para criar?
R – Criei tudinho.
P/1 – Como é que foi que a senhora fez para criar?
R – Carregando água do chafariz dentro de Natal e lavando roupa do pessoal que eu criei meus irmãos tudinho.
P/1 – E a senhora carregava água para quê?
R – Para ganhar um dinheiro.
P/1 – A senhora...
R – É. Num chafariz dentro de Natal. Não tinha o chafariz que puxava? Aí, tinha um rapaz lá, chamado seu Antonio, dizia assim: “Dona Maria, dê cá, que a fila está muito grande eu vou encher logo suas latas”. Ele enchia as minhas e as dele. Sofri, sofri demais. Mas foi...
P/1 – Mas aí a senhora levava essa água pra onde?
R – Ahn?
P/1 – Pra onde que a senhora levava a água?
R – Botava lá. Puxei... e até nas casas das mulheres solteiras eu entrava com galão d’água para vender, tá? Tudo isso eu passei.
P/1 – Ah, para vender a água?
R – Tudo isso eu passei, era vendido.
P/1 – Quanto custava uma lata d’água, dona Maria?
R – Era um tostão. Duas latas que era 200 réis. Era no tempo do tostão. No tempo de 500 réis, 300 réis, dois mil réis. Tudinho.
P/1 – O que é que a senhora fazia com um tostão?
R – Dava para tudo, sabe? Porque, antigamente, as coisas não eram que nem é hoje, era tudo barata as coisas. E outra, eu trabalhava, lavava roupa, tudo eu fazia. Tudo que mandasse eu fazer, que eu pudesse fazer, eu fazia. Só teve um serviço que eu não pude fazer porque pelejei, passei dois meses com a mão (espocada?), foi quebrar concreto, filha, na pedreira. Esse eu não agüentei não, deixei porque não dava. Mas o resto de tudo isso eu fiz. E depois que eu cheguei aqui, foi meu sofrimento para eu acabar de criar meu filho aqui dentro de Mutum-Paraná.
P/1 – Espera aí, a senhora ficou em Natal e quanto tempo a senhora ficou lá?
R – Eu fiquei lá, fui pro Campo de Parnamirim, passei um bocado de tempo no Campo de Parnamirim.
P/1 – Para onde?
R – Campo de Parnamirim. Lavei muita roupa dos americanos. Tudinho.
P/1 – Isso ainda lá em Natal?
R – Em Natal, hoje em dia, diz que está tudo uma rua só. Macaíba e Natal diz que tá tudo uma rua só. Assim um senhor que veio de lá que contou isso aí para mim: “Sabe, dona Maria, se a senhora for agora lá em Natal ou então em Parnamirim e Macaíba você não conhece mais. Está tudo...” Disse que emendou tudo. Diz assim, não sei.
P/1 – Aí, o que é que fez a senhora sair de Natal, dona Maria?
R – Bem, foi assim: eu vim de Natal, meu povo todo estava lá, eu fui trabalhar na fazenda de Egídio Valeriano para tomar conta de uns trabalhadores, na? Levei meu filho, ele já estava se arrastando lá.
P/1 – A senhora não pode... não. Conta aí, vai.
R – A senhora não está perguntando? Porque eu saí de Natal para ir pra fazenda, né? Trabalhar. Aí fui trabalhar. Aí, com o tempo, não deu certo. Eu saí. Então, a madrinha minha de fogueira... não foi de batismo, foi de fogueira. A senhora sabe o que é fogueira, não sabe?
P/1 – Não, conta para mim.
R – Fogueira é quando a pessoa faz a fogueira assim no mês de São João que passa a madrinha... Escute só. Aí a minha madrinha foi lá na casa desse Egídio Valeriano e disse assim: “Minha filha, vamos conhecer Porto Velho?”, eu digo: “Madrinha, eu acho que não vou não.”, ela disse: “Vamos”. Aí, uma pessoa me disse assim: “Olha, o menino você não vai levar não”. A madrinha do menino: “Você não leva o menino não, porque se ele morrer no oceano, eles jogam n’água.” Eu digo: “E agora, como é que eu faço?”. E eu fui com a minha madrinha. “Mas isso é mentira, não morre não, a gente leva”. Aí eu vim. Eu vim com ela para passear. Ela me trouxe pra eu conhecer Porto Velho, que eu cheguei aqui, fiquei. Agora, cheguei... que a senhora sabe mulher como é, né? Não é todas não. Eu me meti com um cabra sem-vergonha e por isso que hoje em dia estou aqui, sofrendo, tá?
P/1 – Por quê? O que é que aconteceu?
R – Porque, minha filha, com esse cara não deu certo. Fui trabalhar para... no tempo do trem, fui trabalhar cortando lenha para vender feixinho de lenha para um compadre meu por nome Flávio, que ele já morreu. Carregava aquele feixinho na minha cabeça pra vender, pra comprar as coisas pra não ver meu filho passar fome, tá? Lavava roupa do pessoal, quebrava milho de meia, limpava as roças com enxada. Eu com enxada nas costas, o entrançado e com o menino. O entrançado para estocar arroz e a enxada para tirar o mato do pé da lavoura. Tudo isso eu fiz dentro do 27. Esse pessoal que eu já trabalhei... o Mendóca, o compadre Flávio, todos já morreram, esse pessoal. O compadre Antonio Alves também já morreu, tem a família dele aí, ele já morreu. Tudo já trabalhei. Trabalhei até com o compadre Antonio Alves. Tudo eu fiz dentro do 27. Antes de eu vir... quando eu vim, eu não vim logo para o 27 direto. Fiquei no seringal Moacir Rodrigo. Acho que você já deve ter ouvido falar no seringal Moacir Rodrigo. Ele já morreu acho que hoje em dia. O Rui, os filhos... já morreu todo esse pessoal no seringal.
P/1 – A senhora ficou trabalhando no seringal?
R – Não, eu passei uns tempos no seringal.
P/1 – Fazendo o quê no seringal?
R – Bem, o meu companheiro ia raspar estrada e eu queria ir também, né? Ele não queria me levar, mas eu ia. Só pra ver andar na estrada. Quando era estradinha de centro eu não ia não, que era muito longe. Eu ia de porta que era pertinho, eu ia. Tudo eu ia.
P/1 – Mas esse companheiro da senhora, a senhora conheceu aqui em Porto Velho ou lá em Natal?
R – Deixei aqui mesmo, arranjei foi aqui, não foi em Natal, não. O de Natal ficou para lá.
P/1 – Então, me conta sobre esse lá de Natal, que é o pai do seu filho?
R – O pai do meu filho já morreu já.
P/1 – Conta para mim como é que a senhora conheceu o pai do seu filho?
R – Bem, conheci lá em Natal mesmo. Chamava-se João Mendes. Já morreu. Pois é. Aí que é: eu foi quem criei, porque ele não dava nada, eu deixei ele. Foi na época que eu deixei ele, fui para a casa da madrinha do menino, aí de lá foi que minha madrinha trouxe que eu e eu fiquei aqui. Daqui eu não fui mais. Se eu tivesse deixado meu filho, eu não tinha ficado aqui não, eu tava lá, tinha voltado. Mas não deu. Não deu para eu ir, porque eu mesma não quis ir.
P/1 – Mas a senhora trouxe seu filho. Ele tinha quantos anos na época?
R – Ele veio com um ano e três meses. Hoje em dia, ele já tá velho. Já casou-se foi três vezes. Tem filho espalhado, tem neto, tem tudo ele.
P/1 – É um filho só que a senhora teve?
R – É só um. Eu tinha quatro mesmo, mas morreram. Duas...
P/1 – A senhora teve mais quatro?
R – Tive duas gêmeas. Uma durou 15 dias, a outra durou um mês. E tive dois de tempo que morreram. Francisca e a Maria José, tudo morreram. Tudinho.
P/1 – Morreram de quê, dona Maria?
R – Assim, eu morava numa casa de alvenaria, né? E lá pra fora o povo tem um negócio. Aí tem um negócio que jogaram bomba, né? Aí, a bichinha se assustou. Ficou roxa, roxa. Quando nós fomos pra base americana pra pedir socorro foi tarde, não tinha mais jeito.
P/1 – Essa base americana era lá em Natal ou era aqui?
R – No Campo Parnamirim. Era no tempo que eu morava no Campo Parnamirim, as meninas. Pois é.
P/1 – Antes do seu filho, então?
R – Meu filho eu tive ele aqui em Natal mesmo, depois do Campo de Parnamirim. Meu filho foi depois dessas meninas. Meu filho, bem dizer, agora falei aquele ditado, nasceu, bem dizer, ontem. Foi no tempo dos doze. Dentro de Natal eu tenho minhas sobrinhas, tenho sobrinho, tudo tem... minha irmã que mora em Natal. Como eu já falei, um mora em São Paulo, o Rael. Esse Manoel Pequeno mora em São Paulo. O caçula dos homens, o Manoel, mora em Epitácio Pessoa. Tudo isso, todos meus irmãos. Agora não fui para lá, porque nem me interessei de ir.
P/1 – Quer dizer, a senhora chegou aqui em Porto Velho e começou a vender feixe de madeira, foi isso?
R – Em 27, foi.
P/1 – No 27. Eles estavam fazendo...
R – Quebrava milho. Andava no trem que ia comprar remédio pro meu companheiro. Eu saía do trem e podia andar pra todo canto, trabalhar, podia tudo.
P/1 – Ele...
R – Trabalhava para não ser empregada de ninguém, para não pedir. Mas criei meu filho, assim, nessa situação.
P/1 – Mas eles estavam fazendo a estrada de ferro na época? Eles estavam fazendo o trem?
R – Eu cheguei aqui tinha trem, andei no trem muitas vezes. O trem, ele terminou de 73 para 74. 75 já não existia mais trem aqui.
P/1 – E isso mudou muito depois que terminou o trem?
R – Mudou, mudou um pouco por isso. Porque, no trem, era bom da gente andar. Porque agora tem uns ônibus grandes, mas demora. Quando chega o ônibus tem um sacrifício. No trem não, quando chegava a gente ia, não tinha esse negócio de: “Ai, espera aí.” Não. O trem fez muita falta a muita gente.
P/1 – Agora, quando ele chegou em Porto Velho, a senhora foi morar em Porto Velho ou a senhora já veio aqui para Mutum?
R – Não, eu passei... em Porto Velho eu passei só dois meses lá. Eu passei dois meses e vim para o Seringal em Moacir Rodrigo. Deixa eu ver... de 78, que teve aquela enchente, foi que a gente veio aqui, morar aqui mesmo. Que eu tive esse filho aqui mesmo, dentro de Mutum-Paraná. Porque foi assim: tinha a casa, mas eu andava pelo seringal. Eu morava na Aliança, aí para cima, morava no oco do mundo, numas colocações que tinham aí pra cima, e assim eu vivia, minha filha. Vim parar mesmo agora. Agora que eu quis parar mesmo, porque meu filho também se empregou na estrada, é gari. Ele é da prefeitura. Então eu fiz paradeiro aqui. Ele mora na casa dele eu moro na minha. Ele tem a casa dele e eu tenho a minha.
P/1 – Mas me conta, a senhora veio parar em Mutum por quê?
R – Por que eu vim? Porque em Mutum, aqui, tinha uma comadre minha que morava lá no 27 onde eu morava, aí foi e disse: “Comadre, vamos morar em Mutum?” e nós viemos aqui para o Mutum. O 27 é pertinho, é tudo uma cidade só, interiorzinho.
P/1 – E aí em Mutum a senhora também trabalhou?
R – Trabalhei.
P/1 – Há quanto tempo a senhora mora aqui em Mutum?
R – Ih, faz muitos anos. Porque eu cheguei na década de 59, meu filho tinha um ano e três meses. Fui para o Seringal do Moacir, do seringal não passei nem um ano para lá. Do 27 já vim praqui, e aqui ainda tô hoje.
P/1 – Como é que era Mutum quando a senhora chegou aqui?
R – Bem, quando eu cheguei aqui em Mutum, vou explicar para a senhora, tinha alguma casinha aqui. Não tinha casa, isso aqui era uma mata só, como ainda tem muito mato por aí, né? Tinha a casinha, se fosse possível, e para encurtar a história, se fosse possível nós passávamos num dia e contávamos as casas que tinham em Mutum-Paraná quando eu cheguei, no ano que eu cheguei, tá? Pelo menos, quando eu cheguei aqui, não tinha posto de saúde. Quem era o enfermeiro daqui nesse tempo, morava em casa dele mesmo, era o Zeca Trajano, que ainda vive e mora dentro de Porto Velho. O posto de saúde era a casa do Zeca Trajano. Então, vinha, consultava, ia lá, trazia o médico. Quando foi uma vez, eu fui pra Porto Velho. Tinha lá, naquele hospital que tem ali, Hospital São José, tinha a consulta lá, aí fui pra lá. O doutor perguntou assim: “Dona Maria”, digo: “Pronto.”, “A senhora dentro de Mutum-Paraná não tem posto?”, digo: “Não tem, não senhor.” Ele olhou de novo pra mim, três vezes: “Dona Maria, não tem posto dentro de Mutum-Paraná?”, “Tem não senhor.” Ele escrevia. “Teve?”, “Não tem não senhor.” Tá bom. Teve o enfermeiro era Zeca Trajano, mas era na casa de morada dele. “Tá bem, Dona Maria, já está tudo certo.” E vim-me embora. Que quando foi com uns tempos, eles trouxeram esse posto de saúde, esse que tem aí, que tem aqui. Que morava... eu não sei se o seu Marciano ainda mora nele. Fica lá na outra rua. Que depois fizeram esse outro posto de saúde que tem aí. Porque a delegacia tinha essas que tem mesmo, e da estrada, da casa de trem... ainda tem a casa de trem aí, encostada.
P/1 – E tinha a igreja aqui também, dona Maria?
R – Tinha a igrejinha.
P/1 – Tinha padre?
R – Tinha.
P/1 – Quais eram as principais festas quando a senhora chegou aqui em Mutum, na comunidade? Tinha alguma?
R – Festa? Uma festa que tinha aqui, pra acolá. Besteirinha. Não tinha quase gente, né? Então, tinha a festa do 27, na casa de Mindoca, eu ia para lá dançar.
P/1 – Tinha boa dança?
R – Eu ia para lá dançar. Era festa meio assim, de brincadeira. Ia para lá, ia cantar. Meu compadre ia tocar violão e eu também ia.
P/1 – E era bom?
R – Era bom sim.
P/1 – E fora a festa de dança de baile tinha festa da igreja?
R – A Igreja Católica? Tinha festa também. A gente vinha para a igreja, sentava eu, a Raimunda, que era filha de Mindoca, a Eurides. Nós vínhamos para a igreja. Nós não desprezávamos a Igreja Católica não. Depois de tudo isso, hoje, uns anos atrás, foi que eu entrei na Igreja Cristã.
P/1 – Por que é que a senhora mudou de igreja?
R - Não, eu mudei porque, eu vou dizer para a senhora. Eu andei em muitas Igrejas, tanto a Católica, que nem a Batista, a Adventista, tudo eu andei. Não achei fundamento em nenhuma, não senhora. A igreja que eu vim a achar fundamento é essa igreja que eu estou, é essa.
P/1 – Qual que é o fundamento que a senhora fala?
R – Eu digo assim, porque tem muitas coisas que nessas igrejas falam e lá não tem esse negócio, não. É a igreja, comum mesmo. Uma igreja mesmo que a gente pode assistir ela, não tem esse negócio de isso e aquilo. A pessoa dá o quer para a igreja. Porque a gente tem obrigação de dar para qualquer igreja. Tem que dar o dízimo, tudo isso.
P/1 – Nessa igreja tem dízimo?
R – Hein?
p/1 – Nessa igreja a senhora paga?
R – Pago. Não pago agora, depois que eu quebrei a perna, nunca mais eu fui à igreja não. E eles vem aqui fazer oração, mas nunca mais eu fui não. Uma que eu não posso ir, porque é de noite. Eu não posso ir na cadeira de roda. De noite no escuro não dá, eu já não enxergo bem. E assim não vou. E mesmo me incomoda demais eu sair. Olha, eu estou aqui sentada, mas já tô que não agüento mais. Porque, olha, até pra eu ir para Porto Velho... porque eu tenho que ir agora para receber minha senha. Eu tenho que fretar um carro pra ir deitada. Um tempo eu vou deitada, outro tempo eu vou sentada, porque eu não agüento muito tempo sentada e nem muito tempo deitada. E nem posso também esperar que seu fulano venha para encher o carro. Eu tenho que tirar do dinheiro que eu ganho, do salário. Ganho 510 e eu tenho que tirar 240 para poder ir e vir.
P/1 – Gastar esse dinheiro na hora.
R – Pois é.
P/1 – Dona Maria, me conta mais quando a senhora chegou em Mutum, o pessoal vivia de quê aqui?
R – Aqui em Mutum uns vivem de roça, outros vivem de pescar. Pescaria. Outros, empregado na prefeitura, que nem meu genro é, que nem meu filho é, empregado. Tem bem uns quatro ou cinco que é empregado aqui da prefeitura. Tem uns também que vão sair, que vão lá pro Mutum-Novo.
P/1 – Agora, quando a senhora chegou era mais roça, mais prefeitura ou mais pesca? Quando a senhora chegou.
R – Quando eu cheguei... eu não sei nem lhe contar o quê quando eu cheguei aqui. Que as casinhas aqui era o que mais tinha, mas casinha assim. E tudo era barato.
P/1 – A senhora foi trabalhar no quê, quando a senhora chegou aqui?
R – Bem, quando eu cheguei aqui eu trabalhava de lavar roupa. No tempo do garimpo, no garimpo do Valadares, da Narcisa que vinha no tempo do Caxuaripe. Me empreguei no bar do velho Nagib, para dar de comer ao meu filho e ao meu companheiro, que tava aleijado no fundo de uma rede. Eu morava na Serra de Mané Errádio, mas vinha todo dia aqui pro Mutum. Depois que ele morreu foi que passei-me pra cá.
P/1 – Ele ficou aleijado, dona Maria?
R – Ficou aleijado no fundo da rede, mas ficou bom. Trabalhei, comprei muito mel de caniço para ele, ele ficou bom. Ele morreu, mas não foi mais aleijado, ele morreu em 75.
P/1 – E o que foi que fez ele ficar aleijado?
R – Reumatismo.
P/1 – Reumatismo. Ele trabalhava em quê, dona Maria?
R – Era a turma e ele que trabalhava no seringal, né? Aí, uma onça deixou ele todo aleijado. A boca dele ficou torta assim de lado, ficou com seqüela, ficou torta assim do lado. Isso aqui dele, daqui pra trás, foi tirado o couro, que a onça tirou ficou assim. Nesse tempo, o Zeca Trajano morava... aí foi que o companheiro dele veio arrastando ele da onde a onça pegou. Veio arrastando ele até uma canoa. Ninguém disse que ele escapava. Mas nesse tempo, eu não estava com ele não. Duvidavam ele escapar. O Zeca Trajano chegou, levou para Porto Velho, que lá eles costuravam. Isso dele era tudo remendado. A boca dele era torta e tudo. Rapaz novo. Nesse tempo ele pesava 80 quilos.
P/1 – Mas então ele era feio, dona Maria?
R – Era feio, mas não tem gente bonita, né? Para quem quer, a pessoa não tem gente feia nem bonita. Nem tem mulher feia nem tem homem feio. Vai que seja feio quando seja mulher e seja homem também, mas não tem ninguém feio não.
P/1 – E a senhora gostava dele?
R – Não. Eu, falar a verdade, eu fui junta, mas nunca gostei de ninguém. Sabe por quê? Eu, toda vida, sempre tive comigo. Porque no dia... e toda a vida sempre gostei de morar só na minha casa. Até de meu filho, porque eu moro na minha, eu tenho a minha e ele tem a dele. Lugar em algum outro também lá eu tenho, mas eu tenho a minha, tudo eu tenho. Não gosto de murar junto, sabe por quê?
P/1 – Por quê?
R – Porque se seu fulano, um dia, abaixar e olhar para mim com a cara feia já vou dizer: “Pega os seus paninhos e vá embora.” É assim.
P/1 – Quer dizer que a senhora nunca foi doida de amor por ninguém?
R – Não, não, não. Eu não sei disso aí. Esse negócio de amor, a senhora me perguntando, eu sei lhe responder bem, porque nunca tive amizade a homem nenhum, porque eu não vou me fingir pra esse homem. Eu nem sou dessas que... porque tem as moças que seu Fulano pega... e tem delas que eu conheci, né? Que apanha e não deixa, porque tem amor. Você não está vendo que não vou ter amor pra fulano me bater e eu ficar espiando para a cara dele. Não, minha filha. Isso aí é duro demais. Porque eu conheço a mulher assim, e o homem... a mulher é esposa do homem, não é filho, não. O que a senhora acha nisso?
P/1 – Eu acho que a senhora está certa.
R – Não é não?
P/1 – É.
R – Isso aí. Porque a senhora tem seu marido, uma comparação que eu faço. Uma pergunta que eu vou fazer pra senhora. A senhora tem seu marido, a senhora acha bom ser batida?
P/1 – Eu não.
R – A senhora acha bom de apanhar? Agora, porque a senhora tem aquele amor a ele, a senhora agüenta tudo isso? Agüenta isso?
P/1 – Não, não.
R – Lógico que não. Mas tem muitas que eu já vi, apanham e não deixam, porque têm amor. É por isso que eu nunca tive amor a ninguém. Tá ouvindo?
P/1 – A senhora chegou a apanhar de algum?
R – Não. Graças a Deus nunca apanhei. Mas por quê eu não apanhava? Porque quem morreu já sabe, que chegou lá em casa e viu, uns tempos atrás, que eu fiz, já morreu preocupado. Ele olhou assim para mim, disse, eu digo: “Venha.” Peguei o terçado e mandei ele correr dele. O compadre Antonio já morreu, a mulher dele mora aqui mesmo em Mutum, a filha dele, tudo. Mas não me bateu não. Eu não nasci para apanhar. Eu apanhei do meu pai uma vez. Aí disse pra meu pai: “Olha, meu pai, apanhei essa vez do senhor, mas não apanho mais”. E não apanhei, não. Da minha mãe eu apanhei muito, porque eu era danada, viu? Eu casei não pra apanhar.
P/1 – Mas qual companheiro seu que quis bater na senhora?
R – Esse já morreu muito tempo, coitado, não tem mais nem...
P/1 – Era o pai do seu filho ou é outro?
R – Não, não, não. Ah, o pai do meu filho nunca chegou a esse ponto de querer bater em mim, não.
P/1 – É esse que veio...
R – E outra, ele nunca chegou em tempo de bater e nem me deu nada para viver. Eu que trabalhava para sustentar meu filho. Na vez que ele não me deu nada, eu deixei. Eu disse: “Procura o seu, que eu procuro o meu. Que eu tenho coragem de trabalhar.” Nesse tempo eu tinha saúde, tinha a minha vista boa. Trabalhava em tudo que fosse possível. Pois é. Nunca enjeitei um negócio de trabalhar, de enxada, de terçado, no tempo que eu podia trabalhar. E terra aqui dentro de Mutum-Paraná. Isso aqui não está limpo, porque eu quebrei a perna. Isso aqui é uma hérnia, tá vendo? Isso aqui é uma hérnia. Tá aqui amarrada. Mas agora não trabalho devido à perna que eu quebrei. Quebrei mesmo no fêmur. Eu me entortei assim, caí por cima, nem bati com a cabeça nem com o espinhaço. Estiquei, por isso que ela é torta assim, não posso andar. Mas trabalhava. E onde eu morei, aí perto, aqui mesmo, tem trabalho que eu fiz. Mandei cercar tudinho, e já foi vendido tudo. Mas feito por meus braços, eu trabalhei e paguei a pessoa para fazer. Fazer poço e tudo. Agora não, não posso fazer nada disso. Porque a senhora sabe, a pessoa...
P/1 – Essa casa aqui quem construiu foi quem? Essa que nós estamos.
R – Essa aqui? Essa aqui foi assim: eu tinha uma aí... tinha não, tenho, que foi trocado, a de frente o negão aqui mesmo na rua. Troquei com um senhor por nome Feliciano. Troquei a casa com ele com três terrenos. Que aqui são três terrenos, e a outra lá também são três terrenos. É da minha filha a outra de lá, que é da minha neta.
P/1 – Mas quantas filhas a senhora tem, dona Maria?
R – Eu só tenho um, que as meninas morreram, que foram quatro. Como eu contei para a senhora as duas gêmeas, e a que, de sete meses, que nasceu morta e a outra que nasceu. Que as duas que morreram. Pois é, mas meu filho só é um.
P/1 – Ah, então a senhora só tem um mesmo.
R – Só tenho um.
P/1 – Como é que é o nome dele?
R – É Francisco Simão de Oliveira. Ele mora aí na outra rua.
P/1 – Ele faz o que, o seu filho?
R – Ele é gari da prefeitura. Ele trabalha na prefeitura.
P/1 – E, dona Maria, a senhora, então, trocou essa casa aqui, que a senhora vai para a casa nova lá depois, que vai trocar...?
R – Tá tudo já pronto. Tá tudo legalizado, tudinho. Já vieram aqui me buscar, trouxeram o carro. O negão que mora aí, que trabalha lá mesmo, pegou, me botou dentro do carro e me levou pra lá. Lá a senhora mesmo viu, fizeram o papel, já tem tudinho, tá tudo pronto aí.
P/1 – O que é que a senhora achou de mudar para lá?
R – Bem, achei que tem que ir, não é não? O que é que a gente vai fazer? Se o pessoal é rico. O pobre pode lutar com o rico? Não pode. Quem tem dinheiro, minha filha, é quem tem valor é quem tem dinheiro. O pobre não tem valor de nada, que ele não tem dinheiro, como é que ele pode fazer questão? Tem que ir. Vou e acho bom eles botar a gente pra lá, que eles não querem botar a gente pra lá? Tem que ir. A gente vai brigar? Não. Tem que ir pra lá mesmo. Deixa tudinho aí, as plantinhas que tem por aí e vamos.
P/1 – Mas a senhora está achando bom ou está achando ruim?
R – Não, eu até acho bom ir pra lá, porque todo mundo não vai? Pois é. E ainda que ache ruim, mas tem que ir, sempre. Que é que a senhora acha? Nem que assim, uma comparação, a senhora tem uma casa, se chegasse: “A senhora vai sair”, a senhora tem que sair. Ou a senhora sai, a senhora ficar. Porque se um quer ficar e não ficar, o que é que tem? Não, vai largar tudo para quem ficar aqui no canto trabalhando. Porque isso aqui, se fizer como estão dizendo, isso aqui vai alagar tudo.
P/1 – E nenhuma dessas árvores foi a senhora que plantou?
R – Não plantei, porque eu plantei lá e troquei lá com o homem que eu troquei aqui, não sabe? Foi trocado. Porque lá eu plantei. E aqui ele plantou também, ele saiu de lá. Lá é mais do que isso aqui. Mas não reparei isso não. Troquei isso aqui, porque eu gostava de trabalhar e lá onde eu morava era pequeno o quintal, não dava pra eu trabalhar como eu queria. Mas quebrei a perna, que é que posso fazer? Nada, nada.
P/1 – Quando foi que a senhora quebrou a perna?
R – Olha, eu quebrei a perna no dia 15 de agosto. Agora vai fazer seis anos que eu quebrei a perna, no dia 15 de agosto. E no dia 19 de setembro fiz a operação na perna. Fazem seis anos.
P/1 – Ah, faz muito tempo, então.
R – Faz, sim senhora. E não tem jeito de andar. Já pelejei tudinho, fui operada... que quebrou mesmo no fêmur, sabe?
P/1 – Sei. Depois disso a senhora não anda mais?
R – Não, não ando, não senhora. Não ando, porque a perna é torta. Às vezes, eu tenho um bisneto, aí ele vem me tirar daqui. Ele diz: “Eu vou por a senhora em pé”. Ele me pega... porque isso aqui era no lado que eu caí... e a perna entorta.
P/1 – E, dona Maria, a senhora é a parteira daqui?
R – Bem, não sou a parteira, eu fui parteira assim: morava no Campo Parnamirim, como eu contei ao rapaz que veio aqui, então, que a Lipordina, ela era a parteira de cá. Ela foi um dia e disse para mim: “Dona Maria, a senhora, eu acho a senhora tão sabida, que a senhora conversa comigo. A senhora quer ser minha ajudante?” Eu digo: “Quero.” E eu fui. Eu era ajudante dela.
P/1 – Como é que foi? A senhora lembra a primeira vez que a senhora viu um parto para ajudar?
R – Não, a primeira vez, eu vou lhe explicar à senhora como foi que eu peguei um menino sem eu saber de nada. Eu tinha 15 anos.
P/1 – Como é que foi?
R – Escute só. Minha mãe morava num lugar por nome Volta do Camelo. Aí, tinha uma comadre minha que morava na ________ Moreno. Eu disse: “Vou na casa da minha comadre.” Quando eu fui passando, aí a menina dela me chamou: “Ah, Maria, vem cá, pelo amor de Deus. Papai não está em casa, minha mãe não está.” Aí eu disse assim: “O que é, comadre Joana?”. Ela disse: “Sabe, comadre, estou aqui numa situação, meu marido não está em casa”. Chamava Tercibaldo o marido dela, ele era do Piauí. Eu digo: “E agora?”. Porque parteira não tinha lá, não tinha ninguém, morava longe. Só Deus e mais ninguém. “Vambora”. Graças a Deus veio o pai. Eu digo: “E agora, como é?”, porque não tinha visto. Nesse tempo local, assim, ninguém não sabia dessas coisas. Quem era besta de entrar no quarto para ver essas coisas no tempo da minha mãe? Não tinha não. Mas Deus me deu um ____. Aí eu pelejei, cortei o umbigo tudinho, ajeitei.
P/1 – Como é que a senhora fez se a senhora nunca tinha visto?
R – A senhora sabe, Deus dá o saber. Porque a gente, me desculpe essa proposta que eu vou lhe responder, a senhora não vai ter raiva não. A gente não nasce sabido, não é? É Deus que dá o dom, não é?
P/1 – É.
R – Pois Ele me deu aquele dom, naquela hora. Cortei o umbigo, amarrei, fiz um cordãozinho até de algodão de caseador. Peguei o caseador, coisei tudinho, fiz o cordãozinho, quando acabou, eu amarrei aqui na pontinha. Amarrei bem aqui e cortei. Medi os dois dedos e cortei. Botei ela pra lá e fui ajeitar ela. Veio a placenta, peguei a placenta. Fui bem devagarinho, aí desorrubou, graças a Deus. Cabacei ela, limpei ela, peguei uma garrafa com água morna, botei ela de jeito, cabacei ela todinha e deitei ela na cama. E fui dar banho, que eu não dou banho. Eu pegava o álcool, botava um pouquinho d’água no álcool, acabava eu passava ___________. Só dava banho no outro dia. Ficava todo limpinho. Quando acabava, eu botava o talquinho. Aprendi assim. O primeiro assim, eu tinha 15 anos.
P/1 – E a senhora fez da sua cabeça, na hora?
R – Da minha cabeça, sim senhora. Porque olha, não tinha cristão ali naquele mundo, era só eu e ali não tinha parteira. Aquela mais perto que tinha era com uma meia hora de viagem, com 20 minutos de viagem. E eu ia passando, ela me chamou e eu fui.
P/1 – E a senhora ajudou a puxar o neném pra fora?
R – Assim que eu cheguei lá, que eu peguei e ajeitei o bucho dela, passei o óleo assim, aí a criança coroou, né? Aí, eu passei azeite doce tudinho e a criança veio. Deus me deu... eu digo assim: “Ah, Senhor. Nessa hora o Senhor que me tem, só Tu mesmo que és um Pai poderoso e milagroso é quem pode me ajudar a mim e a essa criatura que está nessa situação.” O marido dela não tava em casa. Foi de repente, foi assim. E aquele minuto eu peguei. Peguei, assisti, fiz o parto da comadre Chiquinha... dois. Fiz das minhas netas: a Rosanira, a Dalva, o Junior que é o meu neto, que é o filho do meu filho com a mãe desse último meu neto aí, foi eu que peguei também. Lá no seringal, quando eu peguei o Junior no seringal, meu filho estava no garimpo, trabalhando aqui no garimpo, no tempo do garimpo com o seu moço. Nós estávamos no oco do mundo, sozinhas e Deus. Eu digo: “É só nós duas aqui.” Peguei. Já tinha as duas meninas, já tinha a Dalvanira e a Rosanira, aí peguei o Junior. E fiquei pegando assim. E nunca, graças a Deus, nunca morreu nenhum nas minhas mãos, graças a Deus.
P/1 – Mas agora a senhora já sabe como é que faz?
R – Não, agora eu não faço mais nada, porque uma que eu não enxergo bem, essas coisas mais para mim...
P/1 – Mas quantos nenéns a senhora já fez nascer?
R – Meninos? Eu não sei mais nem quantos que são. Porque aqui eu peguei um bocado, aqui. No Campo Parnamirim eu peguei um bocado. Dentro de Natal, eu também peguei. Eu não sei a conta. Se eu for fazer a conta...
P/1 – E o que é que a senhora foi aprendendo com o tempo, que a senhora foi fazendo tanto parto, o que aprendeu mais?
R – O que é que eu aprendi?
P/1 – É. Como é que é agora, se a senhora tivesse que explicar para alguém e passar isso?
R – Bem, o que a senhora quer saber é o que eu aprendi?
P/1 – É.
R – Aprendi o quê, que a senhora quer que eu diga? De cantar, de...
P/1 – Ah, isso eu também quero, mas antes sobre parto. Tudo que a senhora aprendeu, com o tempo que a senhora...
R – Aprendi tudo, o parto todinho. Compreendia tudo, já. Ali podendo ensinar como era, como não era. Se tava emborcado ou que não tava. Se tava sentado ou como é que tava. Tudo isso.
P/1 – Se o neném tivesse sentado a senhora sabe virar?
R – Quando ele está... eu me achei numa situação ali dentro do 27, eu sozinha e Deus. Quatro horas da madrugada com uma comadre minha. O marido dela não tava em casa e eu estava sozinha e Deus. A menina tava sentada. Aí ela foi e disse, eu digo: “Agora, Deus é quem vai nos ajudar.” Aí pelejei, ela desceu, eu fui, o bichinho com a perna de fora, eu peguei. As luvas... eu já estava com as luvas, fui ajeitando, as luvas de óleo tudinho. Quando acabar, eu fui ajeitando, ajeitando até que ajeitei ela e puxei a bichinha, vim puxando bem devagarinho. Aí no 27.
P/1 – A senhora puxou pela perna mesmo?
R – Fui puxando devagarinho, sabe? Puxando primeiro a perna, que a bichinha tava sentada com a perna dobrada assim, né? Aí, eu já sabia como era, porque a Lipordina, uma vez eu mais Lipordina pegamos uma sentada e ela me ensinou como era. Tudo eu fazia. Peguei, graças a Deus.
P/1 – Como é que puxa quando está sentada, dona Maria?
R – Fica sentado, porque, às vezes, é o seguinte, né? Porque tem o jeito da pessoa virar também. Mas eu não tinha força também para virar. Porque quando a mulher é assim, a Lipordina me ensinou como era, quando a mulher sentada, a pessoa pega a mulher com as duas assim, bota de cabeça para baixo para a criança se virar. Mas eu não tinha força, nem o marido dela não estava em casa. Tinha que ser do jeito que eu fiz, mas graças a Deus ela ficou boa. Ela não ficou magoada, nada, não senhora. Porque eu sabia, e assim foi.
R – A menina estava sentada chupando o dedo.
P/1 – Mas dona Maria, naquela época não tinha essa idéia de ir para o hospital ter neném, não?
R – Naquela época, do tempo que eu nasci não tinha, por isso que eu digo assim, às vezes, eu digo assim, porque o lugarzinho que eu vi mais ter mulher aqui, às vezes não tem passagem. Mas lá não, todo menino que eu peguei lá no Campo de Parnamirim e dentro de Natal onde eu morei, por onde e onde todas já tinham passagem e aqui não tem. Tem dessas que qualquer coisa passa para a faca. Eu não sei por que é isso, eu não sei.
P/1 – O que é que é passagem?
R – A passagem... porque a mulher, não sei, ela é assim: isso aqui é a passagem da criança, né? Se ela for fechada a criança não passa. Porque a senhora sabe, eu sei melhor explicar, a senhora não me ignora não que eu vou dizer? A senhora não me ignora, não? Olha, a mulher ela é fechada assim, ela é aberta assim. Aqui é o canalzinho, vem aqui a criança, não? Se ela for fechada, não tem meio da criança vir, tem que ser operada. Porque se não tirar, morre a criança e morre a mulher. E a senhora sabe, também, que tem a mulher rasa e tem a funda, não é não? A senhora deve compreender isso. A senhora compreende isso aí?
P/1 – Sim.
R – Pois é esse negócio aí.
P/1 – É mais fácil quando a mulher é rasa?
R – Pois é, tem a mulher rasa e tem a mulher funda, como a senhora sabe. Olha, eu tô com 90 anos, muitas coisas eu não sei, porque eu sou analfabeta, nunca fui à escola. A primeira vez que eu fui à escola, não pisei mais lá, porque vieram brigar e briguei logo, não deu certo. Então, por isso que eu digo para a senhora: muitas coisas que eu sei, minha senhora, é a sabedoria que Deus me dá o dom, não é que ninguém me ensina. Só quem me iniciou foi a Lipordina, que eu era ajudante dela. Mas o resto, assim, de juntar as coisas, chegar aqui no trem eu sei dizer, porque eu via como era.
P/1 – Mas então a senhora teve essa senhora que chama Lipordina que ajudava a senhora?
R – Era, essa Lipordina já era velhinha, ela já morreu há muito tempo. Enquanto eu já estou dessa idade já aqui, ela já era mulher avançada. Eu já estou com o quê? Com 90 anos eu tô _____, ainda estou viva por aqui, graças a Deus.
P/1 – Graças a Deus. A senhora gosta de viver?
R – Como é?
P/1 – A senhora gosta de estar viva, é bom viver?
R – Se eu gosto dessa vida? De quê, pra viver?
P/1 – É, pra viver.
R – Pois é, é bom. O que é que acha a senhora isso?
P/1 – Eu acho bom também.
R – Aí.
P/1 – Agora, dona Maria, fora o parto quais foram as outras coisas que a senhora aprendeu ao longo da vida?
R – Fora os partos? Bem, eu aprendi muita historinha, assim, do trem, que o povo me pergunta como eram os cassacos, como era o trem, o que é que o trem... para quê o trem servia? Eu disse: “Para descarregar os cereais, carregar os animais, carregar o feijão”. Tudinho isso aí eu sei. Os cassacos eram... os cassacos, tinha o mestre de linha, que era o mestre, o mestre de linha. Tinha o capataz, que era para reparar os cassacos, o que é que estavam fazendo. Tudo isso eu sei, e outras coisas também. A primeira... a senhora quer saber também, quando o trem saiu, a primeira partida que o trem fez de Porto Velho a Jaci, quer?
P/1 – Quero.
R – A primeira viagem, partida de Porto Velho para Jaci foi em 1912.
P/1 – Ah, é? Mas a senhora não estava aqui, né?
R – Eu não estava aqui não, mas quando eu cheguei aqui eu tenho que içar as coisas, pra quando alguém me fizer uma pergunta, que nem agora, eu saber responder. Eu chegar aqui me informo. Eu cheguei aqui no tempo do trem e me informaram de muitas coisas, né? É que nem no tempo do Padre Cícero Romão, quando ele ia passar, eu era de pia porque tinha oito anos, eu ia saber como era o fim das épocas, como é que ia ser. Eles me explicavam como era. Isso tudo eu tenho na minha cabeça. A pessoa perguntar eu digo como é. E eu tinha sete para oito anos, mas aprendi tudo. Sei também do tempo do meu pai, que ele sabia ler, contava a história de uma menina. Eu aprendi tudo de cabeça e sei tudinho.
P/1 – Qual era a história que seu pai lhe contava?
R – Não, primeiro a senhora não vai querer saber já do trem tudinho? Pra depois eu te explicar tudinho.
P/1 – Tá. Conta.
R – De trem era isso aí: tinha o mestre de linha, que era o seu Alvinho, não sei se já morreu. Tinha o Sebastião da dona Dija, que era o capataz. Tinha o Gustavo, também, que era delegado, era capataz aqui da estrada de ferro. E tinha os cassacos que faziam, que quebravam pedra, que limpavam, de tudo eles faziam. Tiravam, arrancavam aquele prego do fio que estava coisado, botavam outro, era assim.
P/1 – Dona Maria, nessa época do trem, o que é que a senhora comia? A senhora chegou a ser pescadora?
R – Não, eu pesquei muito, viu? Mas quem pescava mais era meu companheiro. Ele pescava para acabar de criar meu filho. Era peixe, era surubim, era jatuarana, era matrinxã, era piau, era pacu, tudo isso era o peixe.
P/1 – Era fácil, tinha muito peixe?
R – Nesse tempo era fácil. Nesse tempo a pessoa não tinha um, chegava ali pegava um peixe, o que é que é? Para o almoço. Fazia: “Vou pegar o almoço”. Pegava almoço e janta e tudo. Era bom. Mas hoje em dia não, hoje em dia, a senhora sabe, que tudo que... a senhora não sabe? Tudo com o tempo se acaba, só não se acaba a palavra de Deus, não é não? Por isso eu digo para a senhora: tudo vai e vem. Vai e volta e assim vai. É que nem o pobre, o pobre vive assim: um dia está bem, outro dia está mal e assim.
P/1 – Mas a senhora chegou a passar fome por aqui?
R – Não, nunca passei, graças a Deus. A senhora... eu dizia nunca passei fome. Nem no tempo que meus pais morreram. Eu trabalhava, mas meus irmãos nunca passaram fome, nem eu. E também não andava pedindo não, eu trabalhava. Trabalhava nas casas, porque lavava roupa, carregava água como eu já contei. Aqui no 27, eu carregava peixe, fazia peixe e ainda vendia para os cassacos. Para não pedir, tudo isso eu fiz.
P/1 – A senhora caçava também?
R – Não, caçar não.
P/1 – Seu companheiro caçava?
R – Caçava.
P/1 – Que é que ele caçava?
R – Era, matava veado, matava porco, tudo ele matava. Galinha, mutum, jacamim, tudinho ele matava sim.
P/1 – Para comer?
R – Nunca faltou, graças a Deus. E vou dizer para a senhora que eu nunca soube o que é que foi fome na minha vida. Que eu tenho uma bisnetinha que ela diz assim: “Hein, vó, tem tantos pobrinhos”. Eu digo: “É, minha filha, mas graças a Deus vocês nunca chegaram um dia aqui, seu pai e sua mãe nunca souberam o que é fome e nem o que vai ser, e nunca vai saber.”
P/1 – Seu filho também nunca passou fome?
R – Graças a Deus não. Porque eu trabalhava para chegar ao ponto que ele está hoje em dia. E botei ele para estudar, ele não está, hoje em dia, porque ele não quis, só estudou quatro anos, até com a professora Venita. Ela mora em Porto Velho. E com o professor Fercino. Mas ele não quis mais, eu digo: “Então, meu filho, eu não vou lhe obrigar. Eu não posso obrigar você a querer uma coisa que você não quer. Agora, o que vai acontecer é que a sua lapizeira vai ser o cabo da seringa”. Como ele ficou conhecido mais o meu companheiro. Até que chegou o tempo que ele tá aqui, que arranjou esse emprego na prefeitura e tá.
P/1 – Dona Maria, agora me conta um pouquinho da época do garimpo. Primeiro teve a época do trem, né?
R – Foi.
P/1 – E quando é que chegou o garimpo?
R – Garimpo do Tamborete? Bem, eu estou até esquecida. Na época que foi... (pergunta a um rapaz) Tu não sabe me explicar, por que eu não tô boa, quando é que foi aberto o garimpo do Tamborete? (o rapaz responde que não e ela continua). No caso do Tamborete, era muita gente. Morreu muita gente também. Tinha dia que aqui nesse Mutum tinha dois, três amarrados que o rabecão vinha buscar e não cabia mais. Aqui dentro de Mutum-Paraná. Era mulher, era homem, matavam. E muitos morriam afogados. Tinha um cara uma vez, que teve muitos que megulhavam com uma chupeta, às vezes coisava e morria, aquilo morria. Meu filho, pelo menos, quase ia morrendo, um dia. Que ele foi trabalhar, ele foi mergulhar no tempo do moço, que era negócio de balsa. Não era essa coisa, não tinha a draga era balsa, ele quase que ia morrendo. Foi obrigado ele a pegar uma lata aqui para dar sinal, todo o povo correu, e ainda entrou água nos ouvidos. Quase que ele ia morrendo. Mas depois não, agora hoje em dia não. Que já tem as dragas, mas no tempo era nas balsas.
P/1 – Era na balsa, como é que era? A senhora sabe me explicar?
R – As balsas? Era assim a balsa era que nem um tipo flutuante. A senhora sabe o que é flutuante? Não?
P/1 – Sei.
R – É por que é um tipo de flutuante, é balsa. É fechadinha para trabalhar.
P/1 – Tinha que mergulhar dentro do rio?
R – É, tinha que mergulhar. Tinha a chupeta, e tinha um negócio que a pessoa mergulhava, e tinha um negócio para ficar assim, para não entrar água. Mas às vezes que teve, meu filho eu não sei o que houve, quase que ele morria.
P/1 – E o que é que o pessoal procurava? Era ouro, era cassiterita?
R – Era ouro. No tempo do garimpo de cassiterita era cassiterita, foi no tempo do Valadares e o seu Justino. Que o Valadares era cassiterita e o seu Justino, tudinho. Na bacia, na São Lourenço, na (São Longás?). Agora o garimpo era só ouro. Ainda hoje eles tiram ouro.
P/1 – O ouro vinha do rio?
R – É do rio.
P/1 – E o seu filho trabalhou lá?
R – Não, o meu filho trabalhou, assim, com um moço, mas era motorista de carregar o pessoal. Agora, quando foi um dia, num dia faltou o rapaz que trabalhava com seu moço, aí meu filho foi mergulhar. Isso pro seu moço. Foi da vez que quase ele ia morrendo, mas não morreu não. Mas assim mesmo, ainda ficou mergulhando um bocado de tempo aí.
P/1 – E ele conseguiu achar ouro, não?
R – Conseguiu. Porque aquilo é... eu não sei como é aquilo não. Tem um negócio lá que eles botam, uma coisa assim pra... quando é na hora, se às vezes está em perigo, tem uma coisa que ele balança assim, o camarada vai de repente. Mas assim mesmo ainda morreu muita gente por causa dessas coisas aí.
P/1 – Mas a morte era do garimpo ou porque eles se matavam, dona Maria?
R – Não. Eu não sei. Eu não sei, porque eu não sei se era por causo disso, eu não sei se alguém matou. Só sei que morreu muita gente.
P/1 – Mas morria como?
R – Afogado, só podia ser afogado, né, minha filha? Porque matado não sei não. Esse negócio de explicar pra senhora se era matado, eu não sei. Sei que morrei muita gente.
P/1 – Mas era matado por quê? Eles brigavam muito?
R – Eu não sei se eles brigavam, eu não sei não. Eu sei que morria gente.
P/1 – E aqui ficou com muito dinheiro na época ou não?
R – Dinheiro. A senhora sabe que o garimpeiro, quando ele pega dinheir,o ele vai gastando, né? Acaba tudo. Tem muitos garimpeiros, se eles soubessem, às vezes, eles eram ricos. Mas por quê? Vai pegando e vai gastando, logo acaba tudo. Pronto, acabou. Muitos pais de família também, que é desses, Deus me perdoe de falar, que vão falar que eu não tô escutando, mas tem muitos pais de família vagabundo que deixam a mulher em casa, o dinheiro que pega vai gastar na rua, as pobres ficam com fome. Assim acaba tudo de repente, por isso.
P/1 – Veio muita gente de fora trabalhar no garimpo?
R – Vinha gente de todo lugar. Ouvi falar que vinha gente do Maranhão, vinha gente do Rio Grande do Norte, vinha gente não sei de onde, vinha gente do Piauí, diz que era. Que eu nunca fui lá na beira, eu tinha minha casinha. Lavei muita roupa de garimpeiro, tudo eu lavei. Roupa dos garimpeiros, de mulher solteira, tudo eu lavei aqui nesse Mutum. Eu e a vizinha. Mais uma vizinha que eu tenho, nós lavávamos roupa no rio. Não tinha esse negócio de máquina não, era na mãozinha. Quando não tinha a bucha, era com sabugo para esfregar aquela roupa todinha. E o quarador a gente fazia. Botava uns paus, quando acabava botava um bocado de palha, aquelas palhas de palheira pra botar a roupa pra quarar. Aí saía o homem passear, a roupa ficava limpa. Não tinha esse negócio de máquina não. Porque, hoje em dia, se a mulher não tem uma máquina, ela não sabe lavar a roupa, porque não tem máquina. Mas eu cresci assim, eu lavando a roupa, quando não era com sabugo era... aí depois eu comprava uma escova para esfregar a roupa. Como ainda hoje a minha roupa mesmo, eu que lavo, que não gosto que ninguém bote a mão. Agora, a minha neta ela lava coberta, ela lava tudo. Mas ao meu filho eu não dou não, para ele lavar roupa na máquina. Eu mesma lavo na minha casa. Eu vou tomar banho ali, eu sento no meu banquinho, aí pego o sabonete para lavar e tudo.
P/1 – Até hoje a senhora lava roupa, então?
R – Lavo, a minha roupinha eu lavo, só as roupas mesmo, essas roupinhas minhas. Mas a rede, manta, coberta e pano, isso quem lava é minha neta, que é a irmã desse daí.
P/1 – Então, dona Maria, hoje a senhora tem um filho, quantos netos e quantos bisnetos?
R – Vou dizer já. Olha, a Dalva tem quatro, a irmã dela tem quatro, são oito, né? A minha neta que eu chamo ela Laranja, que eu não sei dizer o nome dela, tem dois, faz 10, né? Oito e dois são 10, né? A Nega, que é minha neta também, que é Francisca o nome dela, faz 11. A Guel tem um, faz 12. A Carol tem um, faz 13. A outra tem, eu tenho um neto por nome Adriano que é irmão da Dalva, fora esse daí. Esse daí, o Adriano é por parte de mãe que ele é meu neto, mas eu gosto muito dele, gosto mais dele que dos meus netos. Que os outros me xingam, ele não me xinga não. Eu digo logo a verdade. Quem é bom pra mim, eu digo que é bom, quem é ruim, pode ser até meu pai, se for ruim eu digo que é mesmo, mas ele é bom. Aí tem o quê? Eu disse 13, foi? 13. Agora, tem um neto que ele está aí num sitio aí para as bandas de Guajará-mirim, já se soube da notícia, primeiro o boato que correu é que ele tinha morrido, mas tá vivo. O meu filho foi lá, tá vivo. Ele tem sete filhos. Quer dizer, cinco dele e dois são da mulher que ele vive com ela. Quer dizer, eu disse o quê? 13?
P/1 – Ele tava morto, por quê, dona Maria?
R – Porque soube que ele deu um passamento e botaram no hospital. Disse que ele tinha morrido, mas não morreu não, foi engano. Outro que morreu no lugar dele. Pois é. Então ele ficou bom, tá vivo, tá morando num sítio aí para as bandas de Guajará. Então, o meu filho foi, desencantou ele, tá vivo. Ele tem sete filhos, dois da mulher que ele vive com ela e cinco são dele. Treze que eu falei, não foi? Treze com cinco, quanto é que dá aí?
P/1 – Já está quase quinze.
R – Pois é. Tem o que mais, espera lá.
P/1 – Isso tudo veio do seu filho? Quantas mulheres que seu filho teve?
R – Três com essa de agora que ele tem. Mas com essa de agora não tem não. A primeira mulher de meu filho é a mãe desse daí. É por isso que esse daí é meu querer, porque isso aí é meu neto. Isso aí é um menino legal, isso aí faz tudo para mim e não reclama. Aonde meus próprios netos reclamam. Eu digo logo pro pai dele e pra mãe dele tudinho. Esse menino aí, esse veio mandado... esse é uma bênção que Deus mandou aqui para a casa da irmã dele. Que a mãe dele mora no sítio, na fazenda. A mãe dele tem... o pai dele tem um galinho, mora pra lá. Mas ele vive aqui, que ele estuda aqui, né? Tem uma escola aqui para ele estudar. Isso aí é sabido, vocês não querem nem saber isso aí. Então, eu adoro ele como sendo meu neto legítimo, e quero bem a ele. Como seja meu neto legítimo. O que é verdade eu digo, eu não sei, olha, eu não vou esconder uma coisa que eu sinto. A senhora pode esconder uma coisa que a senhora sente?
P/1 – Não.
R – Assim sou eu. Isso aí, eu adoro ele como seja meu filho. Meu neto. Eu quero bem a todos os meus netos, todos os meus bisnetos. Eu tenho bisnetos, um bocado de bisneto, tenho neto, tenho tudo. Mas o do meu querer mesmo é esse daí. Mas por quê? Por que eu adoro ele? Porque ele é um menino que ele faz tudo para mim. E não reclama nada, ele chega, quando a irmã dele não pode vir fazer, né, e nem o bisneto também, que o bisneto está com receio, mas o bichinho é medonho. Às vezes, eu digo as coisas a ele, ele vai embora com raiva. Ele não, ele faz, ele só faz dizer assim pra mim: “Vó, tem paciência, vó. Esse menino é assim”. E eu tenho paciência. O que é verdade a gente diz. Quem fala a verdade não merece ser... merece ser prezado, não é não?
P/1 – Dona Maria, agora que a senhora vai mudar, o que a senhora acha, o que a senhora quer do futuro?
R – Meu futuro? Bem, eu quero do futuro, assim, que nós vamos pra lá, que Deus leve nós para lá, se Deus quer, permitir nós irmos para lá, nós vamos com fé em Deus. E tudo há de dar certo. Tudo há de dar certo. Deus é que dá o saber a nós de tudo, como é que nós vamos para lá tudinho, isso há de dar certo, não é não? A gente tem que ir mesmo.
P/1 – Mas a senhora tem alguma espécie de medo?
R – Não, não, eu não. Porque não adianta. Eu vou dizer para a senhora, explicar pra senhora a verdade. Que é que adianta eu ter medo de uma coisa? Porque não adianta, porque se tiver que acontecer acontece. Ninguém não tem pra onde correr, né não? Eu sou assim. Esse negócio de medo, negócio de: “Ah, eu tenho medo de morrer?” Morrer? Todo mundo nasceu pra morrer. A senhora sabe muito bem, não tá escrito: “No céu...” Como é o ditado que o povo diz? “No céu, na terra se corta mortal...” Como é? Sei lá, um ditado que diz. Então, isso aí ninguém deve ter medo da morte. Todos nós não temos que ir? Ou quer queira, não queira tem que ir. Deus querendo tirar, não leva? Tudo é prometido por Deus.
P/1 – A senhora já conversou com alguém que morreu?
R – Eu? Bem, em sonho já conversei. Já conversei em sonho, já vi tudinho. Mas é, assim, que o povo diz que não tem alma, né? Que é que a senhora acha? Tem? Existe alma?
P/1 – Eu acho que sim, o que é que a senhora acha?
R – Tem, não é não? Me diga uma coisa: quem morre não nasce outra vez? Quero que a senhora explica isso aí para mim?
P/1 – Eu não sei, o que é que a senhora acha?
R – É porque, olha, quando a gente morre o espírito da gente não sai? Aquele espírito se tem, uma comparação, é assim, aquele espírito se tem uma mulher, se ele encarnar numa mulher e nascer uma criança, se for boa a criança, sai uma pessoa mais ou menos. Sai, é humilde. E se for um cabra que seja bandido, seja isso, seja aquilo, que ele seja ladrão, vai ser a mesma coisa que era aquela, em vida com aquela, tá vendo? Não é não?
P/1 – Não melhora não?
R – Não, não senhora. A senhora acha que quem morre nasce outra vez? A senhora tem isso na sua cabeça?
P/1 – Acho.
R – Não é? Olha, quando... não era pra nós morrermos, né? O que a senhora acha? Jesus, quando andava com São Pedro, né? Aí, Pedro disse assim: “Senhor, como é a vida?”. O Senhor disse: “Nunca morre. Nasce e morre. Não morre, nunca há de morrer.” “Senhor, mas eu num quero assim”. “Como é que você quer?”. Aí, ele pega, joga uma pedra, como dizem na história. Jogou uma pedra, afundou. Não, primeiro Jesus disse: “É assim”. Aí, jogou a laranja, espalhou a água e disse: “É assim, morre e vem”. Aí, Pedro foi e disse: “Não, eu não quero assim não. Eu quero assim”. Jogou a pedra e afundou lá. Que quando a mãe de Pedro morreu, ele correu: ‘”Senhor, minha mãe morreu”. Ele disse: “Não, você não pediu que era para ir e não vir mais? Então, foi isso que eu fiz”. Isso é história que eu vejo contar e eu conto. Nunca saiu da minha cabeça essa história. E eu conto o que eu sei, e que Deus me dá o tom pra eu contar uma coisa.
P/1 – É certo, dona Maria. A senhora quer contar mais alguma coisa?
R – Bem, o que é que a senhora quer que eu conte mais? A senhora quer que eu conte do Padre Cícero Romão?
P/1 – Quero.
R – Quer mesmo? Já tem o microfone aí, o gravador?
P/1 – Tá tudo aí para gravar.
R – Bem, eu tinha sete anos pra oito anos quando eu morava, como eu já contei. Aí chegavam umas mulheres lá em casa. Aquelas mulheres e mãe entravam lá pra dentro. Lá a gente chama... aqui a gente chama areazinha, lá é alpendre que chama, no sertão. Chegavam as mulheres e iam para a romaria. Aí diziam: “Nós vamos pra a romaria do Padre Cícero”. Eles iam e vinham. Quando eles chegavam, eu dizia assim: “Ei, o que é que o senhor disse? O que é que o Padre Cícero disse? Qual é o fim das épocas? Como vai ser?” Ele disse assim: “É, menina, você desse tamanho quer saber das coisas. Faz bem, minha filha, você saber”. Aí, minha mãe vai e diz assim: “Espera aí, que o padre agora vai confessar vocês”, minha mãe dizia. Aí ele disse: “Vem, minha filha, é o seguinte, o fim das épocas...” Ele disse assim, fez uma roda bem grande popular, e dentro daquela grande fez uma pequena, né? Ele disse: “Olha, minha filha, o fim das épocas é isso daí”. Eu disse: “Taí.” E disse: “Bem, você vai lá para onde você está hospedado lá e, quando for amanhã, você vai me dizer o que significa o fim das épocas”. E foi pra lá para onde ele se hospedava. Chegou lá de tarde, tomou banho, jantou, depois foi deitar. Ele disse que não dormiu. Quando foi no outro dia, eu cheguei: “Bença, meu padrinho”, “Deus que te faça feliz, meu filho”, “Tu não dormiu, não foi?”. Ele disse: “Oxente, ela sabe que eu não dormi? É verdade, eu não dormi, não.” Disse: “E o que é que significa o fim das épocas?”. “Isso aí, minha filha, essa roda grande que você está vendo, com essa pequena dentro, essa roda grande vai cair dentro dessa pequena”.
P/1 – A roda grande vai cair na pequena?
R – Na pequena. Aí ele foi e disse: “Padrinho, e como é que essa roda grande vai caber dentro dessa pequena?”. “Essa pequena, que você está vendo, são vocês pobres, e essa aí são os ricos, que querem ser ricos. Vai cair numa só”. Ele foi e disse assim: “E qual é o resto?”. “Bem, o resto é assim: vai ter bom tempo por pouco tempo. Muito pasto e pouco gado. Muito rastro e pouca fala”. Isso tudo ele dizia, tá tudo na minha cabeça, eu tinha sete pra oito anos. Disse: “Olha, quando chegar o tempo, vai haver filho contra mãe, sogra contra nora. E, assim, vai filho matar pai, mãe matar filho e filho matar mãe, como já tem acontecido.” Tudo que esse romeiro disse, nunca me esqueci e está aqui na minha cabeça. E tudo isso eu já vi e tenho visto dizer pelo jornal, né? E tudo isso está acontecendo, né não? A senhora não acha. Pois é, tudo isso. Então, eu conto o que eu sei. Tudinho que eles contavam.
P/1 – Mas a senhora acha que está chegando o fim das épocas? É agora?
R – O fim das épocas? Eu não sei, minha filha. Eu só sei que... eu acho que sim, né? Ele dizia, assim, que quando fosse no tempo que houvessem essas coisas todinhas é que estava perto de chegar o fim das épocas. Mas ninguém não sabe. O que eu acho... porque vieram com uma história, um dia desses, que o mundo ia se acabar agora, não sei quando. Eu digo: “Olha, é história”. Porque Jesus, quando andava mais São Pedro, que ele chegou e disse pro discípulo dele como foi, como é que tem que fazer, São Pedro disse: “Senhor, até quando isso?”, Ele disse: “Eu não sei, só quem sabe é o Pai”. Porque nem Jesus não sabe quando é que Ele vem, só quem sabe é o pai Dele, que é o Pai Eterno. Então, por isso que eu digo: “Tá tudo escrito nas Escrituras”. Eu digo, assim, porque eu vejo falar e eu aprendo tudinho para poder saber. Porque ninguém disse que vai se acabar não sei quando. Só quem sabe não é Deus, né não? A senhora acha que o que come farinha vai saber disso? E pode até saber também, que eu não duvido. Que possa ser que tem algum do tempo antigo, que tinham os servos de Deus, que tinham os apóstolos, os discípulos de Deus, sabiam, né não? E Jesus. O que é que a senhora acha nisso aí?
P/1 – Acho interessante. A senhora lembra desse padre?
R – Do quê?
P/1 – De lá quando a senhora tinha sete anos, lembra da cara dele, como ele era?
R – De quem, do...?
P/1 – Do Padre Cícero.
R – Não, o Padre Cícero eu nunca vi, não. Os romeiros é quem contavam lá.
P/1 – Eram os romeiros que contavam o que o Padre Cícero...
R – Os romeiros é que contavam o que o Padre Cícero contava para eles. Agora, um romeiro disse pra mim que ele era moreno. Disse que o Padre Cícero era um moreno e ele era... então, que ele ia estudar, quando chegava, ele colocava o chapéu, assim, na parede e ficava. Aí, os alunos ficavam olhando, sem ter prego sem nada. O chapéu ficava lá. Diz assim o romeiro também. Eu conto o que eles disseram para mim. Eu me lembro.
P/1 – Entendi. Tá bom, Dona Maria, muito obrigada. A senhora lembra de mais alguma coisa para me contar?
R – Bem, o que a senhora quer que eu fale mais? Que eu diga, quer que eu conte alguma historinha do meu tempo, que eu aprendi? O que é que a senhora quer que eu conte?
P/1 – A senhora sabia cantar?
R – Bem, cantar não, eu sei arremedar, né? Como é que a senhora, o que é que a senhora quer que eu diga? Quer que eu diga um verso como era, que eu via meu pai contar no tempo de eu menina? Quer?
P/1 – Sim.
R –“Leitores, prestem atenção, no que eu vou narrar agora. O pai que tem uma filha, não sabendo para quê. Nota pouco, mais ou menos, ali a idade que pinta. Elisa era uma menina que de sete meses nasceu. Como uma filha única, nunca irmão nenhum conheceu. Sua mãe Rosa Virginia e seu pai Roque Mateus. Com oito anos foi à escola, com 10 anos estudou. Com 12 anos foi moça. Com 13 anos, casou. Antes de Elisa casar, o seu pai lhe fez um pedido: ‘Minha filha, não se case com rapaz desconhecido. Mesmo porque, você não sabe se terá um bom marido’. Elisa, pela meninice, fez um plano. Assim, cresça ou apareça, deixa vocês que eu ensino. Parece que foi um causo já prometido por Deus, quando foi com oito dias, um homem lhe apareceu. Perguntado a Elisa se queria se casar com ele. ‘Seu Hilário, vá embora, suas conversas tão ruim, que meu pai não deixa eu com homem conversar. Que o senhor é muito rico, e não há de querer me dar’. Ele disse: ‘Com riqueza, não senhora, nós podemos contestar. Tenho 40 estradas e 30 embarcações no mar. O dinheiro é sem medida, tanto nós possa gastar’. Ela cheia de sangue já lhe disse assim: ‘Seu Hilário vai embora, suas conversas estão mal, uma que seus gracejos tá todo pegando em mim. Que eu sou muito menina, mas posso lhe dar um fim’. ‘Elisa, tu vai para dentro cuidar nos teus aprontamentos. Que eu só venho te tirar na véspera do casamento’. Fugiram à boca da noite, de madrugada casaram. Foram para a sua casinha, tapadinha de cavaco. De pano não tinha um fio, de noite não tinha um taco. É mentira do safado, que nada o safado tinha. Ela virou-se para ele: ‘Olha lá que homem ingrato, contaste tanta riqueza, vantagem não pude achar. Só quero que tu me sejas um amor’. Aí Elisa foi e disse: ‘Vai me levar aos meus pais, que desde que vim de lá, notícia não tive mais’. Ele disse: ‘Elisa, teus pais morreram, eu não disse porque não quis. Já se fez os inventários, que foi que arrecebi. Com a minha, botei no jogo e perdi. Como não farás comigo, sendo eu o teu marido?’. Estava com um punhal na cinta e perto dela sentou-se. Elisa estirou o braço, a perna mal alcançou. Elisa com suas mãos próprias, ali se trespassou. Tinha uma filhinha nobre, que nesse dia falou: ‘Minha mãe por que não deixa mamar seu leite de amor?’. ‘Deus te abençoe, minha filha, até o Dia de Juízo, que minha morada agora, é debaixo do fio santo. Vá procurar outra mãe que te dê educação’. Aí. virou-se para o marido e disse: ‘Olha lá que homem ingrato, vais me dar a sepultura, que enquanto eu tive vida, de ti só tive amargura. Possa que, depois de morta, eu tenha alguma ventura”. Isso tudo eu aprendi no tempo que meu pai cantava e eu vivia para lhe escutar. Eu tinha de sete para oito anos. Aprendi isso tudinho e ainda tenho na minha cabeça.
P/1 – Incrível, a senhora sabe tudo de cabeça.
R – Sei. E sei também, quer ouvir mais? A minha mãe ia trabalhar e eu ia com ela, né, pra ajudar. Aí ela cantava: “As nuvens parda são chuva, as brancas são ventania, as verdes são esperança de eu te largar algum dia. Plantei e semeei semente preta na mata, nasceu um pé de ciúme e a suspeita que me mata. Atirei, mas não matei. Lá vai meu tiro perdido, a minha pólvora derramada e meu chumbo derretido. Ninguém faça pontaria onde o chumbo não alcança. Não eleve seu sentido aonde não tem esperança. Quem me vir eu estar chorando, ninguém sorria ou tenha dó, que os trabalhos deste mundo não foi feito pra mim só. Possa que o mundo desande da feia é feliz também”. Tudo eu aprendi e tenho na minha cabeça.
P/1 – Nossa, como a senhora sabe! A senhora cantou para o seu filho também essas coisas?
R – Não. Eu canto, às vezes, eu canto. Às vezes eu canto pra um, às vezes eu canto para outro. E tem... e assim vai levando a vida. Quer mais coisas, quer?
P/1 – Tem mais coisas?
R – Que é que a senhora quer que eu cante agora?
P/1 – Qual outro canto que a senhora lembra?
R – Vou cantar O Violão, tá bom?
P/1 – Tá.
R – (Entrevistada canta) “Violão, fere um pouco as tuas cordas, só assim tu me recorda uma aventura de amor. Violão, tuas cordas de tortura faz lembrar uma criatura, que arruinou o meu viver. Pára tuas cordas, violão, dás ali deste coração que está cansado de sofrer. Na escuridão ouço teu acorde violão, e permanece a solidão por causa daquela fingida mulher que hoje zomba de mim. E faz o meu sofrimento não ter fim. Violão”. Tá bom, tudo eu aprendo.
P/1 – Muito bom. Isso era o que cantava no baile?
R – Pois é. Eu ia pras festas dançar. Meu companheiro tocava e eu cantava. Teve o casamento do Wanderley, de um guarda que tem aí, eu fui pra festa dele cantar. Nesse tempo, era mais nova. Hoje em dia não, porque eu tive uma gripe medonha, não cantei mais, mas eu gostava de cantar. Tem essa outra também. Se a senhora quiser, eu canto também.
P/1 – Canta.
R – (Entrevistada canta) “Risque o nome de teu caderno, já não suporto o inferno, nosso amor fracassado. Deixa que eu siga novos caminhos, em busca de outros carinhos, nosso amor terminou. Mas se um dia, talvez, a saudade apertar, não se perturbe. Afogue a saudade num copo de um bar. Deixa que a espuma se desmancha na areia.” A gente canta isso aí. Num é porque eu tenho rádio, um dia desses, tô aí cantando.
P/1 – Muito bom, Dona Maria.
R – Num tá bom?
P/1 – Tá ótimo.
R – O que pede eu aço, minha filha. É porque eu faço aquilo que eu sei. E tem mais coisa, deixa pra... ficou de vir uma mulher aqui, um homem também, nesses dias. Vem aqui, também, que tem, disse, que a notícia... que ela é repórter, eles vêm. E eu sei e pronto, não é não? Agora tem gente que diz: “Não, mas não é assim”. Aí teve um aqui que perguntou assim: “Em qual série foi que a senhora aprendeu?”. Eu digo: “Nenhuma, que nunca fui”. “E qual foi o cantor?”, eu digo: “O cantor foi eu mesma. Cantor e cantora foi eu. Eu aprendo e canto”. E assim, minha vida é essa, filha. Eu agora estou na igreja, mas não é pecado eu cantar, assim, conforme pedem, porque eu estou na igreja não é pecado não.
P/1 – Dona Maria, pros seus netos e bisnetos, o que é que a senhora gostaria de deixar dito? Sobre como eles têm que fazer a vida, o que é que tem de importante nessa vida.
R – Bem, é isso aí mesmo. Tem que levar a vida assim mesmo, como Deus tá, como Deus quer. Tem que aprender alguma coisa, não é não? Tem que se aprender, pelo menos, eu tenho esse neto aí. Mas ele aí... ele só procura ir pra frente, não pra trás. Tudo dele... ele quer estudar faculdade, vestibular, porque ele quer ser enfermeiro. Então, eu digo para ele: “Filho, tá tudo bom”. Quanto mais ele procure ir pra frente. Esse daí, esse neto. Agora, os meus bisnetos... eu não sei o que é que eles querem. Nem os netos também. Eu tenho o quê? Tenho um bocado de neto, mas o mais interessado é esse daí.
P/1 – É esse aí que é o seu herdeiro, né?
R – É, esse daí, para mim, é tudo na minha vida. É tudo na minha vida esse meu neto.
P/1 – Então, deixa eu fazer uma última imagem da senhora com ele aqui. No vídeo.
R – Me diz uma coisa, que eu vou explicar para a senhora agora. Será fácil de a senhora se reunir tudinho com o seu pessoal e fazer um quadrinho, nem que seja assim? Um quadrozinho pra mim? Trazer a fotinho com eu e ele?
P/1 – Lógico, eu vou mandar. Um quadro da senhora com ele? Tá bom? Como é que é o nome dele todo?
R – Diga aí, meu filho, seu nome.
R/2 – Adriano Ferreira dos Santos.
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