Conte sua História - Vivências LGBTQIAPN+
Entrevista de Luê Stracia Jannuzzi
Entrevistade por Bruna Oliveira
São Paulo, 24 de outubro de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PCSH_HV1414
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(0:24) P/1 - Luê, para começar eu queria que você dissesse seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R - Meu nome é Luê Stracia Jannuzzi. Eu nasci em São Paulo, no dia dezenove de abril de [19]96.
(0:39) P/1 - Eu queria que você me falasse qual é a primeira memória que vem na sua cabeça da infância.
R - É engraçado, isso. A primeira memória que vem da minha infância é em relação à questão de gênero. Eu sou uma pessoa não-binária. E a minha primeira memória é de quando eu tinha uns quatro anos de idade, que eu virei e falei para a minha mãe: “Eu não sou uma menina.” E aí ela achou engraçadinho. “Ai, que engraçado! Ah, mas você é o quê? Um menino?” “Não, eu também não sou um menino.” E até eu descobrir que existia isso, demorou mais vinte e poucos anos.
Essa é a minha primeira memória mais marcante que vem na minha cabeça, quando eu lembro.
(1:18) P/1- Você quer contar o nome da sua mãe?
R - Sim! Minha mãe se chama Edilaine.
P/1 - E como era a sua relação com ela?
R - Na infância era bem legal, porque ela super deixava eu usar roupa de menino, então eu tinha aquelas bermudas surfistas, skatistas e tal. Adorava! E ela deixava eu usar isso até em coisa de família, só que conforme eu fui crescendo e o meu corpo foi se desenvolvendo como “fêmea”, isso ficou muito mais difícil para ela. Até hoje ela não aceita a minha identidade de gênero. E eu sou chamade pelo meu nome morto, por exemplo, na minha família. E aí eu vivo uma vida dupla, um pouco difícil, às vezes, mas enquanto… Agora, por enquanto, isso tá bom para mim, não é uma questão.
(2:07) P/1 - E eu queria saber o que sua mãe fazia, ou faz ainda?
R - A profissão dela? A...
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Entrevista de Luê Stracia Jannuzzi
Entrevistade por Bruna Oliveira
São Paulo, 24 de outubro de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PCSH_HV1414
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(0:24) P/1 - Luê, para começar eu queria que você dissesse seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R - Meu nome é Luê Stracia Jannuzzi. Eu nasci em São Paulo, no dia dezenove de abril de [19]96.
(0:39) P/1 - Eu queria que você me falasse qual é a primeira memória que vem na sua cabeça da infância.
R - É engraçado, isso. A primeira memória que vem da minha infância é em relação à questão de gênero. Eu sou uma pessoa não-binária. E a minha primeira memória é de quando eu tinha uns quatro anos de idade, que eu virei e falei para a minha mãe: “Eu não sou uma menina.” E aí ela achou engraçadinho. “Ai, que engraçado! Ah, mas você é o quê? Um menino?” “Não, eu também não sou um menino.” E até eu descobrir que existia isso, demorou mais vinte e poucos anos.
Essa é a minha primeira memória mais marcante que vem na minha cabeça, quando eu lembro.
(1:18) P/1- Você quer contar o nome da sua mãe?
R - Sim! Minha mãe se chama Edilaine.
P/1 - E como era a sua relação com ela?
R - Na infância era bem legal, porque ela super deixava eu usar roupa de menino, então eu tinha aquelas bermudas surfistas, skatistas e tal. Adorava! E ela deixava eu usar isso até em coisa de família, só que conforme eu fui crescendo e o meu corpo foi se desenvolvendo como “fêmea”, isso ficou muito mais difícil para ela. Até hoje ela não aceita a minha identidade de gênero. E eu sou chamade pelo meu nome morto, por exemplo, na minha família. E aí eu vivo uma vida dupla, um pouco difícil, às vezes, mas enquanto… Agora, por enquanto, isso tá bom para mim, não é uma questão.
(2:07) P/1 - E eu queria saber o que sua mãe fazia, ou faz ainda?
R - A profissão dela? A minha mãe é professora. É maluco, isso, porque eu segui esse espaço e eu tenho uma irmã gêmea, que é uma mulher cis e a gente é bem parecide, muito parecide. E as duas escolheram fazer História, na mesma faculdade, juntes, então foi uma loucura.
Até hoje rola uma comparação absurda entre o meu estilo, o meu jeito de ser e o dela. Acho que até a minha família entender tudo isso demorou muito, muito tempo mesmo.
(2:45) P/1 - Você quer falar o nome do seu pai?
R - Sim! Meu pai se chama Marcos. Eu não tenho tanto contato assim com ele, porque é aquela coisa, ele é um homem cis hetero, então tem todas aquelas questões… Pai no geral no Brasil é meio ausente; se não foi embora, meio que não fala muito com você. Tem isso com meu pai, mas ele é uma pessoa legal, aberto até certos ponto, mas ele é legal, ele é presente em algumas coisas.
(3:12) P/1 - E como você descreveria, tanto seu pai quanto a sua mãe?
R - Putz! Como eu descreveria... [Com] muitas palavras acho que dá para descrever, mas assim, de imediato, pensando nas coisas benéficas que rolaram na minha vida, que eles super ajudaram, eu diria que minha mãe é uma pessoa muito engraçada, 24 horas com ela rindo. Ela sempre faz várias palhaçadas, isso ajuda muito no dia a dia, ainda mais que trabalho em home office e agora eu voltei para casa deles - eu tive que voltar por um período, porque me separei. Enfim, várias questões da vida.
Acabo ficando lá o dia inteiro no computador, no sofá, ou sentade. E ela sempre faz umas piadinhas, o que super ajuda no dia a dia.
Acho que meu pai, uma palavra benéfica para ele seria obstinado. Tudo que ele superquer ele vai atrás, ele faz. Ele adora carros antigos, ele desmonta vários carros e monta tudo de novo. Às vezes é meio irritante, porque ele fica 24 horas na garagem, mexendo em motor, fazendo vários barulhos. Mas é muito massa ver ele fazendo o que ele gosta.
(4:25) P/1 - Queria saber como eles se conheceram. Você sabe?
R - Meus pais se conheceram numa pizzaria/barzinho, na época deles, sei lá, acho que era 80 e poucos, não sei exatamente quando. Eles se conheceram, e aí meu pai ficou super olhando pra minha mãe. E minha mãe é superdifícil, ela sempre foi uma pessoa muito difícil até de se aproximar, apesar dela ser engraçada - complexidades do ser humano. Mas ele se aproximou e deu o telefone para ela. E ele falou assim para a mãe dele no outro dia: “Se essa loira me ligar, eu vou casar com ela.” Ela ligou e eles se casaram. E estão aí, sei lá, quase trinta anos juntos.
(5:08) P/1 - Eu queria saber se eles são de São Paulo, ou de Guarulhos. Ou eles vieram de outro lugar?
R - Minha mãe é de Guarulhos e meu pai é de São Paulo. Nesse movimento em que eles se casaram, meu pai se mudou para Guarulhos também.
(5:22) - E você chegou a conhecer os seus avós?
R - Cheguei! Cheguei a conhecer todos os meus avós. Eu acho que é um privilégio falar isso, mas eu cheguei a conhecer todos.
P/1 - Tem alguma memória de algum deles que seja importante para você?
R - Nossa, sim! O meu avô por parte de mãe era muito legal, muito gente boa. Ele tinha um chapeuzinho do Chaves, aquele gorrinho fechado; ele amava Chaves. Ele sempre levava a gente para jogar… Primeiro, jogar o jogo do Bicho - ilegal, incrível, mas enfim, naquela época. Ele também comprava figurinhas pra gente colocar nos álbuns, aí tinha álbum do Harry Potter, tinha álbum daquelas novelinhas mexicanas antigas e ele sempre vinha com um negócio diferente, uma figurinha e eu adorava.
(6:14) P/1 - Eu queria saber se você tem mais de um irmão, ou é só sua irmã gêmea.
R - Não, eu só tenho uma irmã. Eu acho que minha mãe falou: “Chega, duas crianças ao mesmo tempo é muita coisa.” Mas ela teve na verdade dois abortos, que foram naturais, um antes da gente nascer e um depois, mas só foi a gente. O universo falou: são só essas pessoas. A gente faz muita bagunça também juntos, fazia também quando era criança
(6:45) P/1 - Contaram como foi o nascimento de vocês, o dia?
R - Sim! Contaram, um babado, vários babados. Foi assim: beleza, a gente nasceu, foi cesariana - até porque ter parto normal com filhos gêmeos é um pouco tenso para mulheres, imagina sair duas crianças. A minha irmã estava na parte de baixo, mas já saindo; eu meio que dei lugar para ela e fiquei na espinha da minha mãe. Nasci desmaiade. Aí a minha mãe conta como foi na hora que me tirou. Eu não respondia, eu não chorava, eu tava desmaiade. E ela entrou num pequeno desespero naquele momento, mas eu acordei logo depois e tava tudo bem, então eu só desmaiei. Foi assim: “Gente, vim ao mundo. Eu não quero. Que mundo difícil, vou desmaiar.” Aí foi isso!
(7:44) P/1 - Eu queria saber se na sua infância, tem algum prato, alguma comida, ou algum cheiro que lembre essa época?
R - Nossa, na minha infância… Eu acho que cheiro de giz de cera e de massinha lembram muito a minha infância, até porque eu e a minha irmã, a gente sempre gostou de desenhar. Minha mãe deixava a gente meio livre, no quintal de casa ficava só de fralda e ficava desenhando, pintando, livremente. Disso eu lembro bastante.
De comida, necessariamente, não sei. Eu lembro de um cheiro que eu não gosto, que era bife de fígado que a minha avó fazia, então ficou uma coisa meio marcada. Até hoje eu não como.
(8:28) P/1 - E na infância… você lembra da casa onde você passou a infância?
R - Lembro, lembro da casa onde eu passei a infância.
P/1 - Como era?
R - Foi em Guarulhos essa casa, é uma casa que meus pais conseguiram comprar depois de muito tempo batalhando. Era uma casa menorzinha, pequena, mas tinha uma garagem e era numa vilinha, numa rua que se chamava Avenida Vênus. Eu achava isso incrível, falava: “Nossa, eu moro em Vênus, gente!” Para os meus amiguinhos.
Na frente dessa casa ficava uma gruta, tinha uma igreja católica. E tinha uma gruta que ficava tipo um Jesus Cristo, então desde sempre eu ficava… Achava meio estranho. “Nossa, que estranho, o que é isso?” Por que que tem do nada uma imagem, várias imagens no meio de um parque?” - pra mim [era] um parque, porque eu brincava muito lá. A casa em si era pequenininha, mas era massa.
(9:29) P/1 - Eu acabei não perguntando nesse primeiro bloco. Queria saber se você quer contar porque você chama Luê, como você escolheu seu nome.
R - É meio maluco. Eu quero sim, eu quero contar. Eu ia falar que é um movimento até novo para mim, por exemplo, dar uma entrevista me apresentando como Luê em vários espaços que as pessoas não aceitam essa construção de mim, que foi uma construção demorada, vamos dizer assim, 25 anos quase, para que isso acontecesse. Mas eu sempre falei que se eu tivesse filhos ou filhas, eu queria muito nome tipo de natureza, então eu queria muito Lua, Sol, Terra, esse tipo de coisa. Bem aquela vibe faculdade, porque eu fiz faculdade de História e a galera era muito hippie, muito nessa vibe, e aí eu ficava assim.
Um dia eu fiquei pensando: “Meu, que nome eu teria? Para mudar meu nome de batismo, com qual nome eu me batizaria?” E aí eu pensei: “Qual é o sem gênero de lua?” Então foi isso! É lua sem gênero. Mais ou menos isso.
(10:39) P/1 - Eu queria saber como você gostava de brincar quando era criança.
R - Eu amava brincar de uma coisa bem aleatória com a minha irmã que era [de] amigas. A gente fingia que se encontrava em frente… Em qualquer lugar, num shopping, aí a gente pegava uma bolsa. “Ai, amiga, tudo bem? O que você veio fazer aqui?” Era meio que um teatro, depois eu fui me tocar que era super um teatro, mas eu adorava brincar disso.
Eu adorava brincar de fazer comidinhas, mas hoje em dia eu não gosto muito de cozinhar, de fazer comidinhas. E desenhar, eu sempre gostei de desenhar e de escrever. Desde criança eu escrevo muito, é meu momento de fuga, em todas as situações.
(11:26) P/1 - O que você escrevia?
R - Eu tenho uma lembrança muito linda. Acho que eu tinha oito anos de idade, era Dia das Mães e a gente tinha que escrever alguma coisa para mãe. Todo mundo, criança, escreveu “mãe, eu te amo” e tal. E eu escrevi um puta poema, um poema gigantesco. Lembro que a minha mãe até colocou na parede de casa, porque ficou superbonito. Até então eu escrevo poesia, tô tentando publicar um livro, mas ainda não consegui publicar.
(12:00) P/1 - E como era o bairro na sua infância?
R - Nossa, era um bairro com várias crianças e tinha crianças muito mais velhas também. Eu queria muito jogar futebol com todos os meninos, e aí era uns meninos de dezessete anos e minha mãe ficava: “Você não vai jogar futebol.”
Lembro de dar umas escapadas às vezes e jogar futebol com eles, ralar todo joelho. Sempre vivi assim, [com] meu joelho todo ralado.
(12:27) P/1 - Você gostava de brincar com outras crianças ou mais sozinha? Como era?
R - Não. Eu gostava de brincar com outras crianças. Por eu ter nascido com a minha irmã, era uma coisa meio compulsória que ela era minha melhor amiga, sempre. E até hoje é um pouco assim. Em algum momento isso virou uma coisa tóxica, porque não é muito bom viver tanto assim com alguém, mas a gente tinha outros amiguinhos da rua. Era aquela coisa, né, gente? Anos 2000, dava para sair na rua, brincar de bicicleta.
(13:00) P/1 - Você tinha um sonho de ter alguma profissão?
R - Eu lembro… A primeira profissão que veio na minha cabeça é que eu queria ser cientista, porque eu queria descobrir e inventar coisas. Mas eu nunca gostei muito de exatas, então eu era bem pequena quando eu tive esse movimento, “quero ser cientista”.
Depois, desde sempre eu queria trabalhar com alguma coisa relacionada a História, queria ser arqueóloga. Percebi que precisava saber química, física, aí eu falei: “Não vai ser isso mesmo!” Mas quase desde sempre eu queria fazer alguma coisa relacionada a humanidades, sempre gostei.
(13:43) - P/1 - E na escola, como é que foi a primeira memória que você tem da escola?
R - Primeira memória da escola… No maternal eu lembro de algumas situações, de uma escolinha que eu estudei, eu e minha irmã, e aí tinha uma piscina, num dia que era tipo um Dia da Água, aí o pessoal levou uma piscininha inflável; todo mundo brincou e foi superlegal. E eu tinha um maiô da Betty Boop, que era muito fofo - inclusive sempre está nas fotinhos, esse maiozinho.
Depois no pré, depois na primeira série, ensino fundamental, eu acabei indo para outra escola, que era uma escola privada, mas que era uma casinha, essas escolas que são bem de bairro mesmo. Tinha um monte de árvores e a gente ficava pegando fruta nas árvores. Nesse sentido, acho que a minha infância foi muito feliz.
(14:40) P/1 - E tinha alguma matéria, ou algum professor, ou professora que foi marcante?
R - Nossa, acho que todos, principalmente no ensino fundamental. Todos foram muito marcantes na minha vida. Nessa escola realmente tinha educadores incríveis e eles faziam toda a diferença no dia a dia. Por ser uma escola bem pequena, eles tinham um contato bem dia a dia com os alunos, bem íntimo, sabe? Mas teve uma professora de Biologia, ela se chamava Iara, [que] ficou muito minha amiga, muito amiga da minha irmã. Inclusive eu cheguei até ir na casa dela uma vez, que ela apresentou um trabalho. Foi superlegal.
(15:22) P/1 - E nessa época, como você ia pra escola?
R - Eu ia para a escola geralmente de carro, meu pais me levavam. Minha família era classe média baixa, daí virou classe média média e agora tá só classe média, esses momentos classe média. Mas a gente sempre teve um carro, pelo menos, para que pudesse levar para a escola.
(15:47) P/1 - Você tem alguma lembrança, algum momento marcante, principalmente nessa primeira escola, nessa segunda do ensino fundamental?
R - Nossa, tenho muitos momentos marcantes.
Eu lembro que tinha um jabuti na escola. Eu não lembro se era um jabuti ou se era um cágado, a gente sempre ficava nessa treta entre as crianças: “É um jabuti”, “É um cágado.” Mas tinha um jabuti na escola, que era da escola, que essa professora de Biologia cuidava. Ele ficava andando por lá direto; a gente deu um nome, a gente dava comida.
Também apareciam alguns bichos, do nada. Tinha um lagarto que às vezes aparecia lá também, era tudo meio… Parecia muito mística a escola pra mim, era algo muito fantasioso, sabe? Até hoje eu falo… Tinha meio que um barrancozinho na escola, que era de lama, às vezes as crianças ficavam lá brincando e pulando.
Recentemente eu tive a oportunidade de voltar para esse lugar onde era a escola. E eu ficava: “Gente, parecia gigante!” E hoje é muito pequeno, é minúsculo. Mas eu lembro de várias coisas.
(16:54) - P/1 - E como é o nome da escola?
R - Essa primeira escola no ensino fundamental que eu estudei se chamava Colégio Alfa. Era lá em Guarulhos.
P/1 - Eu queria saber se tinha algum amigue especial nessa época da escola, além da sua irmã.
R - Além da minha irmã, tinha uns amigos. Tinha o Eduardo, que era um amigo… Geralmente eu sempre andava com os meninos, porque eu gostava muito de coisas de meninos e [com] as meninas eu tinha que me encaixar, de alguma forma. Eu tinha que passar a maquiagem X, eu tinha que passar um gloss para andar com elas, e eu ficava: “Gente, eu não quero passar um gloss, eu quero andar com os meninos.”
Tinha o Gabriel, que era um menino que era meio meu crush e também foi crush da minha irmã. Essas histórias amorosas entre a gente foram até a vida adulta; até hoje a gente fica: “Hummmm, gostar da mesma pessoa, não!”
O Eduardo era um dos meus melhores amigos. Ele jogava basquete, sempre vinha com umas camisetas de basquete. Eu achava ele muito cool, com as camisetas de basquete. E é isso!
(18:01) P/1 - E na adolescência, mudou alguma coisa na sua vida?
R - Mudou tudo! Mudou várias [coisas]. Primeiro que eu mudei de escola, então essa escola que era meio pequenininha, que me acolheu, que era super fofinha, não existia mais, acabou! Eu tive que ir para uma das maiores escolas de Guarulhos, que era um ambiente… Não sei. Eu acho que quase todas as escolas são ambientes meio ruins, não sei. Foucault já dizia, parece uma prisão, você chega lá e é tudo cinza. Era demais.
E eu e a minha irmã, a gente ficou meio chocade, porque era muito diferente do ambiente que a gente tava acostumade a frequentar, mas mudou.
Acho que a questão da própria puberdade, da adolescência… Aflorou várias coisas. Na infância era tudo muito legal, era tudo muito bom, nenhuma criança julgava ninguém, todo mundo era amiguinho. E na adolescência não, já teve esses momentos meio de embate.
(19:00) P/1 - Tinha alguma questão já de gênero aparecendo ou de sexualidade também, ou não?
R - Era muito maluco, porque eu nunca… Na época eu sentia várias coisas, mas eu nunca identifiquei isso como questões de gênero e sexualidade. Primeiro, porque os meus pais jamais falavam sobre sexualidade dentro de casa, sempre foi um grande tabu. E segundo porque eu tinha certeza absoluta que eu era assexual, porque eu não sentia atração por ninguém - na verdade, tudo que envolvia sexo, ou sexualidade, beijar pessoas, me deixava muito estranha, sabe? Tudo bem que eu não sabia que existiam pessoas assexuais, que existe esse termo, mas hoje, fazendo uma retrospectiva, eu me via muito dessa forma, porque eu tinha medo de tudo que era desse universo. Também porque a minha família não falava sobre, mas começaram a rolar várias questões e eu não entendia nada, era uma bagunça absurda, sabe? Era uma bagunça, no sentido de que eu não me sentia bem com quem eu era, o cabelo que eu tinha, e eu não podia mudar, porque querendo ou não, minha mãe ficava vigiando. Às vezes eu colocava uma roupa que eu queria para sair e ela virava e falava: “Você não vai sair de casa assim.” E aí eu, adolescente: “Não, eu quero usar essa roupa.” Daí ela fazia um estardalhaço, começava a chorar, começava a gritar, fazia pressão psicológica até que eu tirasse a roupa e colocasse a roupa que ela queria. E a roupa que ela queria sempre era uma roupa feminina, sempre uma sandalhinha, era uma saia, era um shortinho, e não era o que eu queria usar, então eu fiquei por muitos anos, principalmente na escola e na adolescência, performando uma coisa que eu não era, 100%.
(20:54) P/1 - Eu queria saber se tinha alguma referência fora de casa. Você falou que não conversava dentro de casa sobre isso, mas tinha fora de casa alguma referência?
R - Eu acho que as únicas referências que eu lembro nessa época… Parecia um assunto muito proibido e muito perigoso, então até fora de casa eu me sentia mal de falar sobre isso com qualquer outra pessoa. Mas as referências que eu lembro de ter foram referências filmográficas e referências de música também. De filme eu lembro de ter assistido “Priscila A Rainha do Deserto”e ter ficado assim: “Gente, existe isso? Que da hora!” E de música… Ah, eu ouvia umas musiquinhas meio pop, então Taylor Swift, Katy Perry. Na musiquinha da Katy Perry, I Kissed a Girl, eu lembro de ficar mexide. Eu ficava assim: “Caraca, será que um dia vai acontecer isso comigo?”
(21:57) P/1 - Eu queria saber se você saía com outras pessoas para se divertir. Você saía com outras pessoas ou se divertia mais sozinha, como era?
R - Pessoas, tanto da escola, quanto de outros lugares? Não. A minha adolescência foi bem solitária, muito solitária mesmo. Eu não tinha quase nenhum amigo na escola. Aí começou a virar uma coisa que minha irmã era minha única amiga e a gente estudava na mesma sala, o que eu achei um desserviço para a minha vida, sinceramente, então a gente ficou nesse movimento de não conhecer tanta gente.
Todo mundo achava muito estranho porque era isso, era uma galerinha bem héterotop e eu era muito fora dessa vibe. E aí todo mundo ficava meio: “Nossa, vocês são muito estranhas, cara!”
A gente gostava de estudar muito, de ler, sei lá, Carlos Drummond de Andrade, aos quinze anos de idade. Ninguém queria saber disso, então a gente era bem excluída.
(22:59) P/1 - E depois como seguiu a escola, o momento que você terminou? Como foi esse momento?
R - Nossa, foi um alívio, o maior alívio da minha vida. Foi tipo: “Gente, eu vou sair desse lugar opressor”, porque para mim o ensino médio foi o momento mais opressor de todos, então sair daquele ambiente…
Ainda tinha aquelas festinhas do terceirão, sabe? E eu não queria ir em nada. Eu tava assim: “Gente, eu quero ir embora!” Sempre foi desse jeito.
(23:33) P/1 - E como seguiu? Você logo entrou na faculdade? Como foi?
R - Sim, eu logo entrei na faculdade. No segundo ano eu já tinha prestado e entrei na faculdade, aí não podia fazer, tinha que ficar no ensino médio. Fiz de novo e entrei na mesma sala, na mesma faculdade que a minha irmã.
(23:50) P/1 - E como foi esse momento da escolha da História?
R - Isso é uma coisa que me pegava desde do ensino fundamental. Eu lembro que a gente tinha um professor, acho que era Marco Antônio, o nome dele, e ele era superfofo, ele dava uns livros muito legais sobre História pra gente. Eu comecei a pensar: ‘Nossa, que legal. Acho que eu quero trabalhar com isso.” Desde uns quatorze anos de idade, foi aí que eu decidi. Acho que eu falei: “Que massa!”
Eu sempre meio que dava aula para os meus amiguinhos. “Aí, gente, tá chegando a prova de História, de Filosofia”. Sentava todo mundo no pátio; eu ficava lá: “Gente, então, é isso, é isso.” Aí comecei a perceber: “Hum, talvez eu tenha um dom meio natural para fazer isso.”
(24:36) P/1 - E como foi o processo de vestibular quando você passou? O que você sentiu?
R - O processo em si é horrível, né? A gente sabe. Mas depois de tanto tempo estudando e me privando de várias coisas, [com um] estresse absurdo, foi muito bom ter entrado na faculdade, principalmente porque eu ficava: “Meu Deus, imagina se eu entrar e a minha irmã não entrar, ou vice-versa. Alguma pessoa vai ficar muito machucada.” Mas deu certo, eu e ela entramos.
Não sei os motivos dela de fazer História, mas eu ficava falando que ela me copiou.
Foi um alívio também, ter entrado. Vou recomeçar num lugar que ninguém me conhece, num lugar que ninguém é héterotop, ou sei lá, poucas pessoas são. Nada contra héteros tops, tá, gente! Mas é que momentos de opressão na adolescência geralmente são feitos por pessoas cis, héteros, brancas e tal.
(25:41) P/1 - Queria saber como é que foi esse primeiro ano, se mudou alguma coisa também de ter entrado na faculdade, em relação a amizades.
R - Nossa, foi um ano muito maluco, porque eu vivia numa bolha muito absurda. Eu entrei na USP, e aí as pessoas [viviam] loucamente em festa, droga rolando e tal.
Fiquei em completo choque no primeiro ano, depois eu andei nessa vida. Vamos à festa, vamos beber. Mas eu nem bebia, eu comecei a beber com 22 anos de idade - eu tenho 27 agora, então as coisas foram muito tardias na minha vida, muito! Só que também foram muito intensas. Foi esse movimento mesmo de entrar na faculdade.
(26:27) P/1 - E tinha algum professor ou professora na faculdade que foi marcante, ou alguma matéria específica que você gostou de estudar?
R - Eu adorei muito estudar História Indígena Colonial. Era um professor… Chama Natalino, não lembro o primeiro nome dele, mas enfim, ele era um querido. Ele dava toda essa perspectiva histórica dos povos originários e é muito difícil acontecer isso em qualquer faculdade de História. Mesmo na USP, a galera é muito… É só branquitude, colonizador, aí você só vai ler autores assim. E ele dava várias outras perspectivas, então isso era muito legal.
(27:20) P/1 - Tem alguma história marcante da faculdade que você queria compartilhar?
R - História marcante da faculdade?
P/1 - Pode ser tanto acadêmica quanto de vivência.
R - Eu não queria a vida acadêmica. A faculdade inteira eu ficava: “Gente, que coisa chata!” Porém, agora estou tentando o mestrado. A vida dá voltas.
Mas da faculdade em si… Ai, tem alguns pequenos acontecimentos que eram legais e engraçados. Sempre que alguém ia fazer um simpósio, um seminário, alguma coisa… Tinha uma biblioteca lá que é a Brasiliana, é uma biblioteca supergrande. E tinha um grupo no Facebook na época que avisava todo mundo que ia ter coffee break de graça e aí vinha todo mundo, de todos os lugares, para comer um negocinho. Acho que isso é uma boa história.
Tem festa também, histórias de festas. Mas eu acho que essa história é engraçada.
(28:23) P/1 - Tem alguma festa que tenha sido marcante?
R - Nossa, a primeira festa que eu fui, que eu virei a noite na minha vida, foi na faculdade. Foi no Pancadão da FFLCH [Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas], que consistia basicamente de todo mundo lá, virando a noite. Na época a USP era aberta, não era fechada para as pessoas de fora, se alguém quisesse vir na festa. E eu lembro de um monte de gente com carro de som no estacionamento - era uma música para cá, uma música pra lá, era uma loucura. E eu fiquei passada! Fiquei: “Nossa, gente, que legal, hein?” Enfim…
(28:57) P/1 - Você fez algum estágio durante a faculdade?
R - Eu fiz estágio remunerado e não remunerado. Não remunerado eu fiz na licenciatura, porque eu também fiz licenciatura lá, então a gente tinha que ir à Faculdade de Educação. Tinha um amigo meu que era professor de História numa escola pública lá em Santo André, aí eu falei: “Amigo, por favor, me ajuda a fazer esse estágio.” E aí eu fui fazer esse estágio na escola que ele trabalhava e foi superlegal, foi incrível mesmo. Tudo bem que era em Santo André e eu saía de Guarulhos, mas foi legal.
(29:32) P/1 - Você quer contar alguma história, se tiver, algum momento marcante desse estágio?
R - Esse estágio foi meio curto. É, ele foi bem curto! Mas teve um estágio remunerado que eu fiz que foi numa escola bilíngue, uma escola internacional. E essa escola [era] super elitista. Enfim, tem várias histórias, tais como as crianças quebrarem o brinquedo e falarem: “Não, meu vai pagar. Meu pai é rico, sabe?” Até humilhar professores.
Não são histórias muito legais, mas é uma bagagem, entendeu? É bom ver o outro lado, às vezes, da educação. Viver tanto numa escola pública, numa escola particular ultra-elitista, para você entender qual… Quais são os problemas, né?
(30:22) P/1 - E nesse estágio remunerado, como foi seu primeiro dia, você lembra?
R - Eu lembro! Foi meio natural, na verdade era com crianças, educação infantil. E eu sempre gostei de criança… Mas eu sempre fui a tia da recreação mais do que “nossa, sou uma pessoa educadora da infância”; eu gosto mais de mais velhos. Lembro que foi legal e eu achei: “Nossa, que escola superinclusiva”. Foi a minha primeira ideia, porque eles sentavam em roda. Eu falei: “Nossa, que lindo!” Só que no final não era muito inclusivo, não era lindo.
(31:07) P/1 - E você lembra o que você fez com o seu primeiro salário?
R - Nossa, eu lembro, eu fui comer… Óbvio que eu fui comer! Eu fui comer no Croasonho, eu e minha irmã. A gente chegou lá e falou: “Desce um croasonho!” A gente comeu. Foi a primeira coisa que eu fiz.
(31:23) P/1 - A sua irmã acompanhou você em algum desses estágios, ou não?
R - Sim! Ela trabalhou comigo nessa escola, inclusive. A gente trabalhou lá durante quase quatro anos, ela trabalhou comigo. E a gente foi demitide no mesmo dia. Gente, são bizarras as similaridades da minha vida e da vida dela.
(31:44) P/1 - Como continuou o momento da formatura na faculdade? E como seguiu sua vida profissional?
R - Você diz momento de formatura no geral, ou uma festa de formatura?
P/1 - O momento de se formar.
R - Ah, tá! Porque festa e formatura não teve. Mas foi meio estranho, porque eu fiquei, assim: “Tá, e agora?” Você sai da faculdade e meio que a faculdade não te prepara para o mercado de trabalho. Você fica: “Beleza!”
Eu trabalhava nessa escola, só que eu estava bem feliz nessa escola também, e aí eu queria super achar algum lugar para dar aula de História, mas todo mundo ficava: “Você não tem experiência, então você não pode dar aula.” Aí eu pensei: “Então me dê uma experiência, por favor! Seja legal!” Enfim, depois eu acabei dando aula de História também e saí dessa.
(32:27) - P/1 - Como começou a sua vida profissional de fato depois da formatura, de quando você se formou?
R - Eu acho que o momento que realmente foi mais importante na minha vida profissional, [se] pensar nisso, é o momento que você tem que sobreviver/morar sozinha. Enquanto eu estava nessa escola com a minha irmã, a gente alugou um apê no centro de São Paulo. E aí realmente é o momento que você pensa: “Meu, eu trabalho muito e ganho pouco. Poderia me especializar, poderia ir atrás de outro tipo de emprego, sabe?” Então foi isso!
(33:16) P/1 - Como foi essa mudança? Quando você decidiu, por que você decidiu mudar para São Paulo?
R - Realmente, Guarulhos é muito longe, né? Na verdade, a gente nem mora no extremo. Tem o extremo leste de Guarulhos; a gente mora no extremo norte, que é do lado da zona norte. Do metrô Tucuruvi dá uns vinte minutos de carro, não é algo absurdo de longe. Mas todo dia fazendo a mesma jornada… Às vezes a gente ia trabalhar de manhã e até a noite a gente tava na faculdade, tinha que pegar outro ônibus para ir para a faculdade, chegava uma hora da manhã em casa. Foi todo esse processo que fez a gente pensar: “Nossa, não! Não quero essa vida!”
(33:59) P/1 - Como foi essa mudança? Vocês alugaram apartamento juntes? Como era?
R - A gente alugou um apartamento juntes, ali na Liberdade, bem pertinho do metrô, mas do lado da [Avenida] 23 de Maio - viaduto, carro passando 24 horas, então era um caos, por isso que eu não gostei de morar lá. Não moraria de novo tão no centro, se eu morasse em São Paulo.
(34:27) P/1 - E nessa época, o que você fazia para se divertir?
R - Eu amava ir em karaokê, sempre frequentei com os meus amigos, mas karaokês variados por São Paulo - na Parada Inglesa, em Pinheiros, em vários lugares. Eu fazia capoeira na época, fiz cinco anos de capoeira; tinha vários amigos da capoeira e a gente… A gente ia fazer treino de capoeira de sábado, domingo, depois a gente saía, ia para algum bar, alguma coisa assim.
(35:00) P/1 - Nessa época, você começou a entender melhor a sua identidade de gênero, a sua sexualidade, ou isso ainda não passava pela sua cabeça?
R - Aí começou a passar pela minha cabeça a questão da sexualidade, porque todo mundo sempre me lia como a ‘mina sapatão’, várias pessoas. Ficavam: “Nossa, você não beija meninas?” E eu ficava: “Não sei, nunca pensei sobre isso!”
Nessa escola que eu trabalhava, me apaixonei por uma professora que era muito hétero; foi um erro muito grande, mas vivendo e aprendendo. Comecei a questionar isso e eu comecei a sair com meninas, ficar com meninas. Só que eu também continuei saindo com meninos, então eu fiquei: “Tá bom! Eu sou bi, pan”, enfim.
Isso começou a aflorar nesse momento. Foi nesse momento que eu tinha um cabelo grande e cortei o cabelo, então fui modificando algumas coisas. Antes eu achava que era uma questão de sexualidade, mas eu nunca pensei assim: “Putz, é uma questão de gênero”, sabe?
(36:13) P/1 - E em que momento isso muda?
R - Em que momento isso muda na minha vida? Nossa! Eu acho que na minha vida adulta mais recente, sei lá, de uns 23 pra frente.
Eu ficava pensando: “Putz, será que eu sou um cara trans?” Isso era muito presente na minha vida. Isso já tinha passado pela minha cabeça, sabe aqueles pensamentos que vem do nada? Não era uma coisa que eu super discorria, super me debruçava. Mas do nada, às vezes vinha um pensamento assim: “Nossa, será que eu sou um cara trans?” E eu ficava, gente, atordoade. “Meu Deus, eu não posso pensar isso, que coisa horrível”. Até porque eu não tinha muitas referências de pessoas trans, até porque [há] cinco, sete anos atrás, a gente não tinha tanta representatividade assim, tanto na internet….Era um pessoal começando a fazer canal sobre transição, então era muito difícil.
Eu me culpava… Toda vez que eu saía bem menininho, usava uma roupa bem menininho, eu ficava: “Gente, eu não posso!” Várias vezes, na rua - ainda acontece isso, mas hoje não é uma questão para mim - as pessoas me chamavam no masculino e eu ficava: “Não sou menino, pelo amor de Deus.”
Eu fui entendendo onde era esse lugar de desgostar dessa figura do masculino, porque a figura do masculino que nos é apresentada é uma figura hétero, patriarcal, cis, mas eu não era essa figura, entendeu? Gostava de outros tipos de masculinidades. Demorou muito tempo para eu entender isso também.
(37:54) P/1 - E o que você sentia nesse momento?
R - Eu sentia muita vergonha de me mostrar para o mundo, de qualquer forma, tanto [que] eu sempre usava as roupas que me escondessem o mais possível. Eu sempre usava meu cabelo para me esconder; eu tinha uma franja meio emo, sabe? Não queria que ninguém me visse, porque com certeza se alguém me visse e percebesse, eu ia ser uma pessoa impostora. É óbvio que eu ainda tenho esse sentimento hoje em dia, algo bem trabalhado na terapia, mas acho que qualquer pessoa LGBT já passou por isso, de “putz, vão me descobrir de alguma forma”. Eu me sentia exatamente assim nesse momento que eu entendi minha sexualidade, mas o gênero ainda estava tipo “putz, não sei o que é isso, sabe?”
(38:41) P/1 - Sabe o que eu fiquei curiosa? Como se deu - se você quiser contar - a sua relação com a sua religião?
R - A minha religião é algo que assim… Eu sempre frequentei terreiros, sempre frequentei umbanda, mas eu nunca participei. Hoje eu sou filhe de santo, então eu tô lá dentro do congá, todos os dias - hoje, inclusive, estou indo para lá depois daqui. Mas eu nunca vi de dentro essa questão. Para mim era superinclusivo porque é muito mais inclusivo do que sei lá, uma igreja católica, vamos combinar. Óbvio que tem alguns lugares que são inclusivos [e] evangélicos, mas é muito difícil de a gente achar hoje em dia.
Pra mim era ok, só que depois, quando eu realmente entrei para a religião… Eu ainda tenho umas questões. Eu acho que todo lugar religioso, querendo ou não, não é perfeito. A gente tem vários questionamentos. Eu me sinto bem no lugar que eu tô hoje, mas tem coisas que eu ainda fico… “Humm, porque todo mundo, toda pessoa que tem buceta que usa saia, sabe?” Isso é uma questão, inclusive, isso é uma coisa que eu já coloquei em vários movimentos e é conversável, sabe? Não é tipo o pai de Santo que fala: “Não, gente, vai ser do meu jeito.” Mas tem questões e questões.
Hoje eu penso como um lugar em construção. Acho que é… Eu sou a única pessoa não-binária, trans de lá, então é meio chato. E aí tem, sei lá, dois meninos gays e o resto é gente hetero cis, então não tem muito bem para onde eu correr. A gente tem o nosso grupinho, tem o nosso rolezinho lá, enfim.
(40:30) P/1 - E depois que você se formou, você chegou a dar aula, a trabalhar dando aula, ou você foi direto para sua atividade atual?
R - Não, eu trabalhei dando aula. Trabalhei numa escola particular em Guarulhos, dando aula, contraturno de aula de História - [para] as crianças que estudavam de manhã, à tarde eu dava meio que um reforço de História, Filosofia, tudo isso.
Foi superlegal! Mas eu fiquei seis meses nesse lugar, porque viraram para mim e falaram: “Você é muito diferente do que a escola procura.” Lembro que eu era a única pessoa que me vestia de forma diferente, que tinha cabelo curto, sabe? E eu comecei a entender que não era muito bem sobre eu ser diferente no meu trabalho, era sobre eu ser diferente sendo eu.
Até hoje eu penso: “Gente, eu sou uma pessoa branca, magra.” Vários padrões, sabe? E os caras já acharam: “Nossa, não gostei!” Imagina uma pessoa preta, periférica. Enfim, tem várias questões.
(41:33) P/1 - O que você sentiu nesse momento?
R - Nossa, eu senti muito ódio, muito ódio mesmo, porque a gente sabe quando a coisa é direcionada. Se eu tô andando na rua eu sei quem tá olhando para mim tipo: “Isso é um menino? Isso é uma menina?” Eu tenho certeza quando o olhar é direcionado a isso, a preconceito, sabe? Então, ficou muito claro nesse dia, nessa época, que não era sobre trabalho, não era sobre o que eu estava entregando ou não, porque eu tava entregando muita coisa, inclusive. E eles não souberam nem me falar o porquê. Eu virei e falei: “Tá aí, gostaria de ter um feedback.” “Ah, não. A gente não vai te dar um feedback”. “Tá! Então vocês responderam a minha pergunta.” Acho que foi isso.
(41:18) P/1 - E como começa a sua história na Diversidade e Inclusão?
R - Minha história na [área de] Diversidade e Inclusão começa fazendo um processo seletivo para uma empresa chamada Alicerce e Educação, não sei se vocês conhecem. Alicerce e Educação é tipo uma startup, é uma empresa que dá esse processo de reforço de aulas a mais, principalmente para crianças que fazem escola pública num lugar que não tem professor. O projeto do Alicerce vai lá e dá de tarde esse movimento. A gente tem também [projetos] com pessoas trans, a gente tem vários recortes: pessoas acima de sessenta, trabalhadores da construção civil, então é bem legal o propósito. E aí eu falei: “Ah, que legal!” Gostei do propósito deles, vou me inscrever.
Quando eu me inscrevi, eu acabei passando por um processo de líder, que eles chamam lá, que é [para] professor. Era para dar aula mesmo, só que do nada mandaram um formulário num grupo e o formulário estava completamente errado, misturando o que era identidade de gênero, o que era orientação sexual. E aí eu falei pra menina que mandou o formulário: “Oi, tudo bem? Tá errado o que vocês colocaram aqui, é melhor vocês revisitarem isso, porque eu me senti mal lendo isso e outra pessoa LGBT pode [se sentir também].”
Tinha uma área de Diversidade e Inclusão lá, eu nem sabia. O head de Diversidade e Inclusão achou ótimo eu ter feito essa pontuação e me contratou. Falou: “Agora você vai ser Analista de Diversidade.”
Eu toco alguns projetos também lá, que fazem sentido para quem eu sou hoje. É isso.
(44:14) P/1 - Eu queria saber se você publicamente se reconhecia como uma pessoa trans, nessa época que você começou a trabalhar no Alicerce.
R - Eu acho que lá foi o momento perfeito para eu fazer isso, porque em todas as escolas que eu trabalhava nunca achei um espaço, e quando comecei a trabalhar com Diversidade, foi inclusive quando eu comecei a pensar sobre meus pronomes, sobre mudar meu nome. Eu já me entendia como uma pessoa não-binária, começando a trabalhar lá, só que era uma ideia bem incipiente, sabe? Era uma coisa que eu ficava: “Putz, e aí, como que eu quero ser chamade?” Ainda não tinha esse olhar. E lá as pessoas me deram 100% de apoio, de tudo. Até no nível “troquei de nome, vou precisar trocar meu e-mail institucional”. [Tive um] superapoio para trocar o e-mail institucional. Pra qualquer coisa que eu precisasse em relação a isso, eles sempre foram muito solícitos, muito mesmo!
(45:20) P/1 - E sendo profissional de Diversidade e Inclusão, eu queria saber como você se sente lidando exatamente com Diversidade. Quais são os desafios? O que você enxerga de positivo?
R - Eu acho que num lado meio de militância, é bom, porque eu acabo conhecendo muita gente que também trabalha com a pauta LGBT e também com a pauta racial - enfim, todas as diversidades possíveis. E essas pessoas fortalecem, meio que a gente faz o network, é superlegal! Até fiz amigues nesse processo. E [tive] referências que eu não tinha, porque, pra falar a verdade, eu quase nunca tive referências trans. As referências que eu tinha era ver pessoas trans na televisão, naquele lugar sempre chacota, sexualizada e tal. Conhecer amigues trans e falar: “Nossa, eu sou também não binárie”. Foi nesse processo de ir a eventos e conhecer pessoas não-binárias também.
(46:23) P/1 - E tem algum momento que você encontrou outra pessoa não-binária que foi importante?
R - Sim, sim! Tem um amigo meu que usa os pronomes masculinos também, Caê. Eu lembro que Caê tava palestrando num evento que eu fui, da Mais Diversidade, que é uma rede bem grande de diversidade. Ele tava lá, palestrando, e eu: “Nossa, que incrível.”
Depois teve um social, depois que acabou o evento. Fui lá falar com ele e a gente virou muito amigo, muito mesmo! Até hoje a gente troca ideia, tanto de trabalho, quanto de vida pessoal, enfim.
(47:04) P/1 - E como está sendo esse momento de repensar, entrar no mestrado?
R - Uma coisa que eu acabei de lembrar, que você tinha falado de como também trabalhar com essa questão LGBT. Uma coisa ruim sobre isso é [que] a partir do momento que a gente se coloca nesses espaços, em que outras pessoas LGBTs também contam suas histórias, isso acaba afetando, às vezes, a nossa própria, sabe? Muitas coisas são gatilhos. Às vezes é muito cansativo até falar sobre isso, porque parece que eu sou “Luê, pessoa não-binária”. Eu não faço mais nada da vida, eu não sou mais nada, eu não tenho família, eu não tenho sonhos, eu sou só isso, sabe? É o que a gente chama de ‘tokenização’, dentro da pauta da diversidade. E é muito difícil lidar com isso.
É muito difícil lidar com [o mundo] corporativo, que são empresas que tem CEOs brancos, cis, hétero. Esse embate é absurdo, sabe? Até outro dia o CEO da empresa que eu trabalho ficava me chamando ora no feminino, ora no masculino. E aí teve uma hora que ele [disse:] “Como que eu te chamo?” Depois de dois anos que eu tô trabalhando lá, sabe? Então é bem cansativo colocar essas pautas, mas ao mesmo tempo é uma forma de resistir.
Esse processo do mestrado, que eu te comentei… Lá na cidade que eu moro, em Guarulhos, agora, eu tô fazendo um super movimento cultural/político com o pessoal de lá, porque sempre foi uma cidade… É a segunda maior cidade de São Paulo, só que nunca teve aparato cultural da prefeitura, nada! A galera teve que começar a se auto-organizar e fazer essas coisas.
A gente construiu várias coisas, tem uma casa comunitária lá, que se chama Nossa Casa. A gente fez o primeiro festival LGBT, esse ano, de Guarulhos. Enfim, vários movimentos.
Eu comecei a pensar: “Putz, será que existe uma história LGBT em Guarulhos, será que alguém já documentou essa história?” Fui lá no arquivo Municipal de Guarulhos, fui caçar. Eu falei com o cara que era responsável por lá e ele falou: “Meu, muita gente vem aqui procurando isso e não encontra absolutamente nada.”
Eu achei notícias num jornal… Fiquei lá horas, pesquisando. Achei algumas notícias sobre uma primeira Parada LGBT, porque lá tem também Parada LGBT, mas coisas bem indiretas, não era nada muito diretamente sobre o movimento LGBT.
Abri o edital de mestrado na Unifesp, que é lá em Guarulhos também. Eu falei: “Vou juntar o útil ao agradável. Eu quero entender porque não existe documentação sobre o tema em Guarulhos, enquanto em São Paulo a gente sabe que N pessoas já estudaram, vários documentos. E por que não existe? Qual foi o problema? Foram políticas públicas, foi a gestão que apagou tudo isso, o que foi?” Então eu comecei nesse processo.
Agora eu acabei de escrever o projeto e vou enviar. E é isso! Vamos esperar que role!
(50:37) P/1 - Como foi esse processo de voltar para Guarulhos?
R - Foi um processo muito muito gostoso, na verdade, porque durante a adolescência, putz, eu quase não tinha amigo. Eu não saía, eu não conhecia nada em Guarulhos. E agora, voltando, eu passei a ressignificar muitos lugares que eu já estive na minha adolescência, infância, com esse punho muito político.
Conheci pessoas que são de movimentos sociais de lá. Inclusive participo, a gente faz palestras, conversas sobre questões de diversidade. Foi muito legal ver que ativamente eu podia servir a cidade em que eu cresci, basicamente nasci, quase. Foi bem legal, isso!
(51:24) P/1 - E tem algum rolê lá que você vê que é LGBT?
R - Tem, isso que é o melhor! Tem muitos rolês. Na verdade é isso, como a gente não tem uma representatividade como em São Paulo… Ah, em São Paulo tem vários bares, baladas LGBT. Em Guarulhos, se você for ver, sei lá, o centro de Guarulhos, vai ter muito bar hetero, muito rolê hetero, muito, e não tem quase nada LGBT, então essa galera se organizou de uma forma bem comunitária mesmo, bem ativa, para fazer eventos, festas.
A gente organizou esse primeiro festival LGBT. Agora vai ter uma festa de Halloween, nesse sábado, LGBT também. E só tem gente LGBT, então tem gente trans, enfim, é muito bom! Muito bom!
(52:11) P/1 - Você quer contar desse festival, como foi?
R - Quero! Quero contar.
Foi um festival que o pessoal… A gente pensou sobre a Parada LGBT e rolou várias notícias nos jornais de Guarulhos, de posto de saúde, de várias coisas que fizeram ações de diversidade para pessoas LGBT, só que de uma forma horrenda, do tipo: “Você é LGBT? Você quer um abraço?” E a gente ficou revoltado, tipo: “Como? Vocês não dão uma ajuda de nada, não tem…” Tem na Unifesp ambulatório trans, mas a gente não tem uma discussão sobre transexualidades aqui em Guarulhos, não tem ninguém que seja vereador, vereadora etc que esteja falando sobre isso. E a gente falou: “Mano, a gente vai fazer o nosso festival LGBT, porque não dá! Os caras tão malucos.” E aí a gente organizou todos os artistas.
Eu tenho muitos amigos que são artistas, que são músicos da cidade; a gente organizou várias apresentações. Teve pessoal fazendo teatro, teve pessoal fazendo dança, fomentando mesmo o pessoal de lá. E a gente até conseguiu uma verba para isso, então pagamos mesmo os artistas, para estarem lá fazendo esse movimento.
Foi um festival de rua, então tinha várias barraquinhas. Os empreendedores de Guarulhos: “Eu vendo X.” Pode expor o seu trabalho. Foi superincrível isso, é um movimento.
(53:47) P/1 - Qual é a importância, para você, desse festival?
R - Nossa, é uma… Não sei. Eu acho que é uma visibilidade, por mais que seja algo pequeno, que não tenha uma repercussão midiática. Ele passou na TV? Não! Um monte de gente viu no Instagram? Não, também! Mas significou muito para gente, que tá diariamente lutando por essas pautas em Guarulhos e percebe que é isso, as cidades que não estão no eixo de São Paulo…É só São Paulo mesmo. Mas a grande São Paulo em si, tipo Santo André, São Bernardo, existe um certo largar, sabe, desses movimentos. Esses movimentos são feitos pelas próprias pessoas mesmo, porque o poder público tá fazendo o quê? Nada!
Isso significou demais para gente, de tantas formas! Foi muito lindo! [Quando] acabou o festival várias pessoas choraram, porque foi um trabalho físico, mental também, muito grande.
(54:54) P/1 - Luê, você que já morou em São Paulo e está morando em Guarulhos agora, está resgatando de alguma forma Guarulhos… Eu queria saber se você acha que tem diferença entre ser LGBT aqui em São Paulo, principalmente no centro e na Grande São Paulo, nas periferias também.
R - Sim, eu acho que [há] muita diferença. A primeira delas é que ser LGBT no centro de São Paulo, por exemplo, é algo muito nichado. É assim: existe um bar para pessoas gays de tal perfil X, Y, Z, que vão nesse bar, aí existe um bar para pessoas lésbicas de tal perfil, que é esse. Existe um bar para pessoas trans - nem existe um bar, eu acho, para pessoas trans, estou falando isso, mas é realmente e de se pensar; em São Paulo, não. Enfim, existem rolês de pessoas trans também e que abarcam pessoas X - pessoas de X classe social, pessoas de X cor, de raça etc.
Em Guarulhos, e eu acho que em todas as cenas mais periféricas… Não moro na periferia de Guarulhos, mas posso falar que o movimento que a gente constrói lá é quase 100% feito por pessoas que moram na periferia de Guarulhos. São movimentos que agregam as pessoas, então não importa se você…. “Ah, fulano é a sapatão X, fulano é gay, não sei o quê.” Todo mundo tá no mesmo rolê. Isso eu acho superlegal. Não é assim: “Ai, a gay branca da Augusta que não fala com a travesti preta”. Com certeza não vai encontrar no rolê, sabe? Lá não! É todo mundo no mesmo rolê, porque a gente sabe dessa importância de agregar.
Acho que é [um movimento] muito mais agregado e muito mais voltado para as artes. Acho que tem uma questão artística muito absurda, que surge muito nas periferias, por várias questões, que tudo é ligado a questões… A gente nunca faz um rolê só pelo rolê em si, sabe? A gente sempre vai tocar fulano de tal. Hoje a gente vai fazer tal dinâmica de roda de conversa. Sempre tem uma questão política ou artística muito forte, sempre trincada. E aqui em São Paulo existem lugares assim, mas existem lugares tipo: “Ah, vamos sair, beber, rebolar a raba e acabou.” Lá a gente faz tudo isso também, isso que é bom!
(57:26) P/1 - Queria saber se você acha Guarulhos uma cidade acolhedora para pessoas LGBT.
R - Eu acho que depende de quem você é. Acho que essa pergunta, ela… Em qualquer espaço eu acho que depende… Qual é seu recorte social, qual é sua história de vida? É isso! Para pessoas trans, por exemplo, eu conheço poucas pessoas de Guarulhos, no geral a galera é receptiva. Mas já aconteceram situações transfóbicas? Já, principalmente… Até no próprio movimento LGBT. Lá tem uma questão muito forte de movimento sapatão odiar pessoas não-binárias, ou pessoas trans no geral. Aquela coisa bem radfem [feminista radical]: “Nossa, você negou a sua mulheridade. Como assim? Eu tô aqui o dia inteiro ralando por ser uma mulher e você simplesmente negou a sua mulheridade.”
Neguei! É isso mesmo, eu neguei. E não é fácil ser uma pessoa trans. Como se ser uma pessoa trans fosse mais fácil do que ser lésbica, do que ser uma mulher, sabe? Acho que tem todos esses lugares tensos, em qualquer espaço, mas no geral é bem acolhedor, sim.
(58:43) P/1 - O que é importante para você hoje?
R - Ai, o que é importante pra mim? Paz! Paz de espírito, de tudo, ninguém enchendo o meu saco. O mínimo que eu puder responder a perguntas ofensivas muito diretas em relação à minha identidade de gênero, à minha sexualidade… Eu vou responder o mínimo quando as pessoas vêm realmente com essa questão de preconceito dentro de si.
Eu quero estar nos espaços em paz, eu acho que essa é a questão. Eu quero não falar [disso] depois de um rolê, depois de um movimento, depois de uma aula. Eu quero virar e falar: “Nossa, eu esqueci que eu sou.” Não quero que as pessoas me lembrem sempre disso.
Mas é óbvio que é muito importante a gente se lembrar nos espaços certos. Aqui é um espaço certo para se lembrar disso, no movimento social é o espaço certo, e não, sei lá, na balada, alguém aleatoriamente vira e fala para mim: “Nossa, não era para você estar aqui.” É isso.
(59:59) P/1 - E quais são os seus maiores sonhos hoje?
R - Os meus maiores sonhos… As coisas mais palpáveis são passar no mestrado, que alguma editora publique o meu livro. Oi, editoras, tudo bem? Se vocês tiverem me ouvindo, publiquem! Mas já mandei para várias e é um processo muito… É um processo demorado, é um processo bem difícil mesmo, porque muita gente manda, então a editora tem que ler, sei lá, dois mil exemplares. E aí eu fico… Eu sou ariane, fico nervose com isso. Eu fico: “Gente, lê o meu, por favor!”
Acho que eu queria muito - já tô um tempo com essa ideia - viver de forma nômade, porque eu trabalho 100% home office e meu trabalho me permite isso. Conheço várias pessoas da minha área que fazem isso, sabe? O mundo tá acabando, a gente tá em ebulição global, vai, sabe… Tá tendo guerra, entendeu? Então eu queria pegar minhas coisas e viajar.
Acho que os meus maiores sonhos são esses.
(1:01:07) P/1 - E qual a importância da escrita para você?
R - Nossa, a escrita é um refúgio. De alguma forma, sempre foi um refúgio pra mim. A minha cabeça é uma bagunça. Eu sou uma pessoa diagnosticada com transtorno de ansiedade generalizada, então minha cabeça sempre foi uma bagunça muito forte. E escrever sempre foi um momento de silêncio. É muito difícil a minha cabeça estar em silêncio.
Quando eu tô escrevendo parece que as coisas fluem de uma maneira orgânica, sabe? Eu não preciso pensar no que eu vou escrever, aquilo apenas flui.
(1:01:46) P/1 - E qual o legado que você deixa para o futuro?
R - O legado que eu individualmente deixo para o futuro? Individualmente? Ai, que maluco isso!
Eu nunca consigo pensar em… Nesse aspecto individual assim, é muito louco! Acho que a gente é tão social e tão comunitário que não dá para pensar que só eu vou deixar um baita legado para a sociedade. Mas eu acho que talvez [seja] inspirar outras pessoas que se identifiquem como não-binárias a se entenderem, a procurar uma ajuda, se precisarem, porque foi um processo comigo.
A primeira coisa que eu fui fazer quando eu entendi quem eu era foi jogar no Google: “Não sou homem e nem mulher.” Google! E aí apareceu uma pessoa que é o Gui, que é uma pessoa não-binária que trabalha com diversidade, que eu conheço hoje em dia. E eu já tive a oportunidade de falar para ela assim: “Olha, você mudou minha vida! Eu joguei lá no Google e quando eu vi a reportagem que falava sobre você me deu um alívio muito absurdo, de ter entendido: “Cara, isso existe!” Acho que talvez [seja] isso, ajudar as pessoas nesse nível.
Queria também ajudar de formas práticas, acho que eu queria deixar um legado prático de… Ou educar, em qualquer espaço que seja, que eu esteja, que eu possa educar as pessoas a estarem num ambiente mais respeitoso.
(1:03:24) - A gente já tá chegando ao fim, eu só tenho mais duas perguntas. A primeira é se você gostaria de contar alguma coisa que eu não perguntei.
R - Tô pensando.
Ah, eu acho que… Acho que não! Acho que foi bem completo. E agora também eu não consigo puxar da memória tão rápido.
(1:03:51) P/1 - Você quer deixar alguma mensagem?
R - Eu acho que pro geral, para as pessoas em geral, humanidade. Oi, humanidade!
Acho que eu gostaria que as pessoas no geral olhassem menos para o ego delas. Eu vejo [isso], principalmente em São Paulo; isso é muito real, em todos os contextos. Tipo, diversidade e inclusão, você que já trabalhou com RI sabe, você que trabalha com audiovisual sabe. As pessoas colocam o ego delas acima de qualquer movimento pessoal.
Você tá fazendo um trampo com alguém. Não é: “Eu tô conhecendo alguém, tô trocando de forma legal e orgânica.” Não, é tipo: “Ah, eu vou aparecer, eu vou não sei o quê.” Isso eu acho que deixa as coisas perderem um pouco a verdade mesmo, de existir, de se conversar com as pessoas, de trocar. Porque é sobre isso, é o que a gente tá fazendo aqui, sabe?
(1:04:57) P/1 - E como foi contar sua história hoje no Museu da Pessoa?
R - Nossa, eu acho que foi um exercício de autocrítica e de autoleitura também. Isso é muito legal!
Eu não imaginava, eu tava aqui achando que eu ia chegar: “Então, gente, meu nome é tal, eu faço isso de trabalho.” E foi um exercício de autocrítica, autoleitura, até pela trajetória. “Nossa, até que a minha trajetória é grande!” Às vezes a gente não tem essa dimensão no dia a dia, a gente fica: “Nossa, tenho quase trinta anos. O que eu fiz na minha vida?” Aquela coisa bem crítica e capitalista, né? Porque o capitalismo coloca a gente sempre nesse lugar: “Nossa, eu não fiz nada da minha vida.” Caraca, fiz um monte de coisa!. E quantas memórias, quantas coisas eu tenho para contar!
Acho que ninguém é um livro em branco. Todo mundo, até um bebê de dois meses tem alguma história, tem alguma memória.
(1:05:53) P/1 - Bom, em nome do Museu da Pessoa, a gente agradece. Em meu nome também, em nome do Alisson. Muito obrigada Luê!
R - Eu que agradeço, gente!
(poemas de Luê)
“Oh, my Jesus! Enquanto eles chapam, não de marijuana, chapam como imbecis, fomentam marchas para Jesus, reverenciam a família hétero cis normativa, tem gente vivendo de amor - lésbicas futuristas, boycetas não-binárias, travestis, corpos dissidentes no tempo e no espaço. Corpos que são só e principalmente carne, carne a mesma que fez Jesus. Diga átomos, moléculas, células; no fundo, somos menos do que imaginamos.”
“Se eu não escrevo, eu tenho medo que meus dedos caiam por falta de uso, que a minha cabeça pife com tanta informação e eu seja vomitade para fora do meio social, com lágrimas duras e pesadas nos olhos. Um dia, se você for embora, não me avise, nenhuma pequena linha. Um dia, se eu não escrever, é porque me fui. Peguei todo pouco que tive e amarrei em nós bem grossos. Ainda que eu não entenda os seus meios, as suas particularidades e todos os dias pela manhã, ainda que eu não tenha medo e vice-versa, ainda que o fundo dos seus olhos sejam iguais a todos, tem uma mágica na sua voz que desperta o meu emburrado coração.”
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