P/1 – Então, dona Neuza, a gente vai começar perguntando seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R – Meu nome é Neuza Guerreiro de Carvalho, Neuza com zê. O nome completo, eu faço muita questão de nome completo, porque é uma questão de identidade, eu não respondo quando me chamam de Neuza Guerreiro ou Neuza de Carvalho, porque não sou eu. Eu nasci em São Paulo, no Brás, na Rua Benjamim de Oliveira, em abril de 1930, a data tem uma historinha já, eu nasci realmente dia 09 de abril, mas naquele tempo meu pai achava que quem não registrasse no mesmo dia do nascimento pagava uma multa, era o que corria. Então como ele só pode registrar no dia 12, ele me registrou como se eu tivesse nascido no dia 12, eu sempre pus na escola 09 e não sei exatamente em que época, em que escola, eu pus 12. E a partir daí é sempre 12, mas eu acredito que isso tenha sido já no primário, ginásio, no máximo, daí pra frente é sempre 12 de abril.
P/1 – Eu queria que a gente voltasse lá para os seus avós, falasse um pouco da história deles, o nome deles? O que você conhece deles?
R – Bom, eu me lembro muito bem dos meus avós tanto maternos quanto paternos. Os meus avós maternos e paternos são originários da Espanha e, por coincidência, de uma região bastante próxima uma da outra. É a região de Andaluzia e as cidades são próximas, mas eles não se conheciam. O meu avô paterno era de Almeria, ele era de uma família bastante importante na cidade dele, cidade de Antas, mas ele era importante, então ninguém da família queria que ele casasse ou simplesmente namorasse a minha avó, que era de família simples. Mas com o amor ninguém brinca, né? Eles acabaram se casando lá e vieram pra cá com os meus bisavós, como imigrantes. A minha avó paterna era da Espanha, do mesmo lugar, e ela já veio casada pra cá, mas com uma porção de outros irmãos, esses irmãos eram tios avós meus e esses eu convivi muito. Minha avó paterna se chamava Leonarda e o meu avô Juan, como meu pai, que virou João aqui. Eu, quando nasci, pela lei das tradições, devia me chamar Leonarda, imagina? Ou então Beatriz, que era a outra avó, ainda bem que meu pai era um pouco mais avançado e não aceitou nem uma e nem outra. Agora a minha avó materna que chamava Beatriz era de uma região de Vera, também Almeria, também Andaluzia e também Espanha. O meu avô materno era do mesmo lugar e era mineiro, mineiro de minas mesmo, ele descia nas minas na segunda-feira e voltava só no sábado e, com isso, ele não tinha um humor muito bom, né? Ele era meio bravo principalmente porque… A história que eu ouvi contar é que minha avó, no dia do casamento, disse pra ele que estava casando com ele só pra fazer pirraça com outro que ela gostava e não gostava dela. A partir daí a relação deles não deve ter sido muito boa, ele era bravo mesmo, eles tiveram quatro filhos na Espanha quando vieram pra cá. Então eles vieram com quatro filhos e a minha mãe nasceu aqui, a minha mãe e mais um irmão, eram seis filhos da família da minha mãe. Da família do meu pai tinha os tios-avós, tinha o meu pai e mais duas irmãs. Esse núcleo familiar eu convivi muito, tanto com a do meu avô materno quanto do meu avô paterno. Tinha mais simpatia com uns que com os outros, mas eu convivi com todos eles. A minha avó materna era muito (malalete?) nunca tive uma lembrança muito boa dela, porque ela era muito brava, muito chata e não tinha nada de carinhosa, mas era muito inteligente porque era a única na família que sabia ler. E aqui no Brasil, ela juntava ao redor dela uma porção de pessoas que também eram analfabetas e lia aqueles fascículos que vendiam antigamente, eram fascículos mesmo sobre O Último dos Moicanos, essas histórias e ela lia pra todo mundo. E, além do mais, ela era parteira, não diplomada, mas ela que recebia a criançada da região, eu mesma foi ela que aparou, vamos dizer assim. Esse meu avô que era bravo com todo mundo… Menos com a minha mãe porque era a mais jovem, uma das últimas e comigo ele sempre foi não muito carinhoso, mas pelo menos não era ruim. Eu me lembro muito dele, das coisas engraçadas que ele dizia porque o andaluz é muito jocoso, ele falava sempre pra cada situação, ele tinha um dito. Então se ele quisesse dizer que a pessoa era pavio curto como a gente diz aqui, ele dizia assim: (“Por menos de na mariquita não sub tem apoio”?) era o dito dele ou então... Um monte de coisas… “Mais colorau que pimento molido” quer dizer mais vermelho que pimenta moída, e assim, pra cada coisa, ele tinha um dito. Então era uma pessoa interessante que, agora, eu pensando, eu vejo que podia ter explorado mais essa parte dele, porque mais no final da vida ele morou com a minha mãe, passou por uma porção de filhos, mas acabou morando com a minha mãe. Se eu for falar de todos os meus tios, eu sei de todos eles, mas eu acho que aí fica muita divergência, muita coisa, né? Os meus tios, irmãos da minha mãe, tinha um deles que era muito interessante, o tio Paco, ele se dava muito com o meu marido e que gostava de ajudar, de mexer nas coisas e plantar uma árvore, então frequentava muito a minha casa. Os outros não muito, mas eu, quando moça, quando solteira, convivi não tanto com as minhas primas porque elas acabaram o primário e todas elas foram pra fábrica como era usual no nosso meio, mas eu não, eu fui pro ginásio. Então eu era assim tida como marginalizada mesmo, marginalizada pro bom sentido, mas era porque acabava não tendo muita prosa com elas. Então eu visitava, conhecia, sabia de todas, ia ao casamento de todas, mas era aquela vidinha pequena: casava, tinha filhos e trabalhava na fábrica, não saía disso, tanto os parentes do meu pai quanto os parentes da minha mãe. Então, na família, eu tomei outro rumo, eu fui fazer um ginásio, coisa que a turma ou saía pra fábrica do primário ou saía pra ser costureira. Quando o pai era mais bravo e não queria que saísse pra fábrica porque a fábrica tinha uma conotação com as operárias, geralmente os chefes passavam pelas operárias, né? Aí então o pai fazia ela ter uma profissão mais caseira, vamos dizer assim. As mocinhas ficavam em casa costurando, porque naquele tempo se usava fazer vestido costurado por costureiras. Então eu não fiz nada disso, eu fui pro ginásio, eu fiz quatro anos de ginásio e fiz três anos de científico e fiz quatro anos de faculdade, então você imagina como eu era diferenciada, né?
P/1 – Só pra entender umas coisas pra gente avançar. Eu queria que você conseguisse entrar na casa dos seus avós maternos e depois na casa dos avós paternos, imaginar você criança, entrando lá, vai descrevendo pra mim essa cena como que eram as pessoas? Por que estava indo lá? Era rotina todo dia? Conta um pouco pra gente isso?
R – Na casa da minha avó materna, essa que eu disse que era meio (malalete?) o que eu me lembro muito bem é a época em que eles tiveram uma leiteria, isso era interessante porque até as coisas, o contexto da época você fica sabendo, era na esquina da Rua Silva Teles com Rua Cachoeira, na zona leste, eu não sei exatamente onde fica agora essa rua, vocês têm ideia onde fica?
P/1 - Perto do centro, né?
R – Agora não deve ter mais lá, na frente eu sei que tinha um campo aberto, nada construído, era uma leiteria e depois, subindo mais escadas, era a casa onde eles moravam, moravam a minha avó e meu avô. Uma casa pequena, a coisa que eu me lembro muito é que era uma bagunça que não tinha tamanho, minha avó era muito relaxada, ela tinha um quintalzinho minúsculo e ela criava pombo, criava cachorro, criava gato, criava cabra e sei lá mais o quê. Então você imagina lembrando agora, eu devia ter uns três ou quatro por dois o quintalzinho com toda essa bicharada, então era uma bagunça. E a gente se reunia lá todo fim de ano, na passagem de ano todos os filhos jogando baralho, passava a noite inteira e a gente almoçava lá, isso era sempre certinho assim. E na leiteria… Eu achava muito engaçado porque os latões de leite eram guardados em caixas de madeira e o leite era vendido com um... Não era bem concha, porque concha era pra arroz, feijão, mas era uns bujõezinhos que eles tinham de meio litro e de um litro e geralmente o pessoal não tinha muito dinheiro pra comprar e compravam de meio litro, e era 500 réis meio litro. Tinham umas balas, que eu gostava de ir lá por causa das balas, que eram rebuçados, que eles chamavam, eram balas feitas com açúcar embrulhada em papel, papel mesmo. Então cada vez que a gente ia comer aquela bala que ia desembrulhar, metade ficava grudada na bala, era um drama. E aí depois dessa casa eu não me lembro, porque daí eu já cresci um pouco e já não me lembro muito só me lembro da última casa em que ela morou e que na verdade era um porão, era uma casa grande sempre na zona leste. Ela morou num porão, ela e meu avô. Ela tinha uma máquina de costura que ela costurava um pouco e ela teve... Acho que morreu do coração nesse lugar, e aí meu avô passou então pelos filhos. Do meu avô paterno, as minhas tias eram costureiras modistas, porque as freguesas delas eram Simonsen, Sodré essas pessoas de alta classe. E meu avô não deixava elas saírem de casa, tinha que ficar lá costurando. Tanto que uma tia minha, que ainda está viva, ela era muito inteligente e queria ter continuado a estudar, ele não deixou. E até hoje ela é uma pessoa revoltada, agora não porque com 97 anos ela já se esqueceu disso tudo, mas eu vou testar ainda. Ele não deixou e elas ficaram costurando, uma delas era uma artista, era artista na maneira de costurar, ela batia o olho passava a tesoura e dava tudo certinho. A outra foi no arrasto mesmo forçada, mas teve que ir porque não tinha outro jeito, elas então sempre moraram com a minha avó, meu avô e as duas. Quando casaram naquela época usava, né? Casaram e moraram tudo junto, imagina um casal, outro casal e meu avô e minha avó. Esse meu avô, eu não me lembro da voz dele. Meu pai dizia que tinha falado com ele meia dúzia de palavras, ele era sério, ele era fechadão, ele não conversava com ninguém da casa, controlava o dinheiro que elas ganhavam. Então elas trabalhavam davam o dinheiro pra ele e ele é que distribuía pra casa. Meu pai foi o primeiro que casou, se não, as duas não casavam, porque era assim: o homem casava primeiro e depois as mulheres podiam casar. Meu pai casou primeiro, eu nasci primeiro e quando ele viu que eu era mulher, ele ficou louco da vida, sumiu de casa uma semana e quando a minha irmã nasceu quatro anos depois, ele ficou muito mais de uma semana enchendo a cara, bebendo, pagando bebida pra todo mundo. Ele nunca falou comigo e muito menos com a minha irmã, porque ele queria um filho homem pra seguir o nome que já não era nem mais o mesmo, porque ele veio pra cá chamado Guerrero e chegou aqui… Na certidão do meu pai é Guerreiro e ainda meu pai botou Júnior. Então meu pai ficou João Guerreiro Júnior e meu avô era Juan Guerrero, então nunca ia ser a mesma coisa. A minha avó era uma pessoa maravilhosa! Cuidou dos quatro netos filhos das minhas tias e pouco tempo teve pra mim, porque junto com os quatro netos, como ela ia cuidar de mim? Mas era uma pessoa que estava sempre atenta a todo mundo. Logo que meu avô morreu, com 53 anos, de câncer no pulmão de tanto beber, ela continuou com as filhas e morreu sempre com elas. As filhas moraram muito tempo juntas, depois de 20 e tantos anos é que cada uma foi morar separada, isso é uma coisa que dá muita história, porque dois casais morando junto com quatro crianças circulando não é fácil, né? Com os homens machões, eram dois italianos, italianos mesmo, e cada um queria mandar mais que o outro e outros aspectos. Eu me lembro da casa da minha avó, eu me lembro da casa do Brás, da Benjamin de Oliveira, porque eu nasci numa outra casa, mas era na mesma rua. E como elas tinham freguesas muito importantes, elas não podiam morar lá, elas foram morar pro lado da Consolação, eu me lembro bem quando... Isso eu já tinha 18 anos, eu não me lembro da casa de antes, mas elas moraram na Rua Rego Freitas, antes disso, uma das tias tentou se separar um tempo, foi morar na Matias Aires, que é uma travessa da Consolação, enquanto que a outra foi morar na Rua Barão de Iguape, que era lá perto do Cambuci. Mas aí, por coisas de trabalho, elas voltaram a morar juntas, aí sim na Rego Freitas, na Rego Freitas já com os filhos muito moços e eles se separaram de novo. Uma ficou na casa que era dela e a outra morou, ficou na mesma casa, na mesma rua em outro apartamento. E uma delas morreu na Rego Freitas e a outra está viva ainda, a casa delas era uma casa muito... Da Rego Freitas era uma casa muito engraçada, porque era uma casa que tinha uma escada e tinha um pátio do tamanho assim dessa sala, vamos dizer assim, quatro por quatro, cinco por cinco, esses quatro eram terríveis. E tinha um porão habitável que eles guardavam muita coisa lá dentro, um dia a minha avó foi fazer uma comida e as batatas estavam todas elas com alfinetes fincados, porque eles brincavam de bichinhos. E de uma outra vez, por descuido de um, eles pegaram uma lata de azeite de oliva e espalharam pelo terraço inteirinho e quando as minhas tias deram por conta eles estavam chapeando assim. Então são essas coisas que eu me lembro bem: desse porão e dessa brincadeira e mais um monte de coisinhas que devagar a gente lembra, mas não de uma vez, né? E os quatro eram... Eu era a mais velha, então eu era a líder deles, eu que mandava, né? Um deles nasceu dois anos depois que eu, a outra nasceu... Eu sei que o mais novo de todos tinha uma diferença de uns quatro, cinco anos e lá da Rego Freitas de vez em quando, eu levava eles ao cinema no Odeon. O Odeon era pertinho, tinha sala azul e sala vermelha, né? Eu ficava com os quatro e o menorzinho deles um dia fez xixi e eu tive que mudar de lugar, porque debaixo da cadeira estava cheio, molhado, mas eles me obedeciam. Então eu levava e fazia todas as coisas pra eles nessa casa. Depois a outra foi da Rego Freitas, era uma casa mais moderna com três andares mais interessante porque eu passei os meus 15 anos lá e essas coisinhas. Agora faz alguma pergunta.
P/1 – Eu queria ainda dentro da sua casa, agora me contar um pouco dos seus pais?
R – Bom, meu pai veio encomendado da Espanha, eles chegaram aqui, eu sei que ele veio encomendado, na barriga, ele nasceu em dezembro e eles tinham se casado lá, eles se casaram à revelia da família dele e como eles vieram pra cá, eu até agora... Eu já fucei em todo lugar, mas não consigo achar, nem no serviço de imigração, eu não consegui achar o papel de chegada deles. Eles vieram no mesmo navio junto com meu bisavô, com a minha bisavó, com três ou quatro dos filhos espanhóis que vieram junto, a minha avó era uma delas veio já grávida e já com meu avô, não consta no serviço de imigração nenhum papel da entrada deles. Então o que se deduz é que: primeiro ou eles vieram a nado ou... Como era uma família muito importante, tinha bispos, tinha deputados, eles vieram clandestinos! Só pode ser, porque nós não encontramos nenhum tipo de papel. Eu só tenho do meu pai e da minha mãe, duas cartas da minha avó, da minha bisavó, a mãe dele que sabia que ele estava aqui e que escreveu, parece que escrevia muito bem, escreveu pra eles que dessem notícia, que ela sabia que ele tinha filho, sabiam que ele estava aqui. Agora é só isso que eu tenho de ligação e sabíamos também que eles eram da mesma maneira que meu outro avô trabalhava numa mina, que depois eu descobri que era uma mina de prata, porque a região é de mina de prata, os parentes do meu avô paterno eram donos de mina de prata, então era gente bem abastada. Então ou eles vieram como clandestinos ou vieram, sei lá, por baixo do pano ou qualquer coisa assim, porque não encontramos nada que relacionasse... Mas eles, lá, sabiam que eles estavam aqui, mas eles nunca mais voltaram e também nunca mais foram visitar e nem nada, o dinheiro não dava. Isso é do meu pai, veio encomendado, ele nasceu em dezembro de 1906, 26 de dezembro de 1906, ele nasceu em Brodowski e o maior orgulho dele era dizer que tinha nascido na cidade de Portinari, então ele gostava de falar isso, ele não sabia nem quem era Portinari mais ou menos, mas sabia que tinha nascido na cidade de Portinari. E ele foi o primeiro sobrinho dessas tias que vieram no navio com ele, então ele foi muito paparicado, mas muito paparicado mesmo, ele era assim um Deus delas, ele era mais bonito, era mais inteligente, era o que fazia tudo, era feio quando era menino, mas era muito querido. Eles trabalharam muito em (fazendo?) e depois acabaram vindo pra São Paulo e, em São Paulo, ele também da família foi o único que estudou, ele fez o curso de guarda-livros que agora é contadoria, né? Então ele era tido assim como o importante da família! Ele se apaixonou pela minha mãe quando ela tinha 14 anos, conheceu a minha mãe por intermédio de uma tia dele, uma dessas que vieram no navio com ele, uma tia que adorava ele. E ela trabalhava com a minha mãe, minha mãe era bordadeira e dizia pra ela: “Ah, porque eu tenho um sobrinho que é assim...”, até que fez ela conhecer o sobrinho, ela tinha 14 anos e ele 16 por aí, namoraram, pararam... A minha avó, que eu disse que eu não gostava, dizia pra minha mãe que “imagina que ela ia casar com um jovem qualquer”! Ela trabalhava numas lojas da 25 de Março que tinham uns turcos ricos que viviam atrás dela e queriam casar com ela e a minha avó dizia: “Casa com eles”. E ela desmanchou um tempo, mas depois voltaram e casaram no dia 06 de julho de 29. Minha mãe era bordadeira, trabalhava na Casa Paiva, numas lojas da Rua 25 de Março onde ela bordava enxovais que eram encomendados pela alta classe. Naquele tempo, enxoval era roupa de cama, mesa e banho e tudo com os nomes escritos, as iniciais, um negócio assim bonito e o mais engraçado que ela contava é que depois de sete meses, mais ou menos, vinha a encomenda do enxoval do nenê, porque era clássico: casava e nove meses depois tinha filho. Eu nasci nove meses e três dias depois do casamento, minha mãe casou lá... Ela morava na Mooca por ali na Rua Inácio não sei das quantas e depois ela foi morar na Benjamin de Oliveira e até o fim da vida minha mãe tinha um desgosto muito... Porque ela casou de noiva e naquele tempo se usava fazer o altar em casa e era casado lá dentro mesmo, podia não ser religioso, mas era em casa. E não teve na hora um fotógrafo e era assim mesmo e depois ia ao estúdio, vestia o vestido de noiva e aí tirava fotografia. Mas essas minhas tias nunca tinham tempo “vamos hoje?” “não, não posso” “vamos hoje?” “não, não tenho...” E assim elas foram enrolando e daí minha mãe ficou grávida e aparecia a barriga e não cabia mais o vestido e ela nunca teve uma fotografia de casamento, coisa que as outras minhas duas tias têm, eu tenho essa fotografias… Todas com a fotografia de casamento, com almofadão na frente, com buquê, tudo que tinha direito e ela não teve. Então ela sempre falava, tinha aquela magoazinha toda, né? Naquele tempo se moravam em casas compartilhadas que eu falo, tinham muitas viúvas como hoje mesmo tem mais viúva do que viúvo, geralmente ficavam com a casa que tinham construído, alugavam a parte da frente ou de trás e ficavam morando lá também. Meu pai e minha mãe moraram muito nesse tipo de casa. Era um quarto, uma sala, cozinha às vezes a mesma da dona e às vezes não, e um banheiro que era uma casinha lá mais pro fundo e eles passaram por duas ou três dessas casas. Eu me lembro quando a minha irmã nasceu! Quatro anos exatamente, porque ela nasceu no dia 09 de abril de 1934 no mesmo dia, é difícil de acontecer, né? Eu me lembro bem que ela deu muito trabalho quando ela era pequena e eu me lembro das escadinhas que minha mãe descia quando saía do quarto. Descia a escadinha, porque a cozinha era fora pra ir esquentar a mamadeira e dar a mamadeira. E ela chorava, chorava, ela passou uns três ou quatro meses chorando sem parar, mas já era um defeito congênito que ela tinha. Depois de lá na outra casa... Vocês gostam de casa, né? A Ecléa Bosi também, ela diz que a casa é a coisa mais importante da vida da gente e tem muita coisa importante. De lá, meu pai um dia foi ver um serviço no Rio de Janeiro e não podia deixar a gente lá, as minhas tias moravam... Uma casa delas que eu esqueci era na Rua General Jardim no mesmo lugar que a Rego Freitas, mas na General Jardim, era uma casa que tinha um porão alto, habitável, e nós fomos morar nessa casa no porão, agora foi a nossa vez de morar no porão. Nesse porão tinha um alçapão que comunicava com a parte de cima e eu me lembro que marcou bastante, a minha irmã era pequenininha, ela tinha meses, mas eu já tinha quatro anos e não podia subir, as minhas tias não deixavam que a gente fosse lá, de certa maneira tinha razão, porque elas trabalhavam com material, com fazendas muito caras, porque as freguesas todas traziam coisas muito caras importadas. E as crianças circulando podiam manchar, estragar alguma coisa, mas elas não explicavam nada disso, né? Elas diziam: “não pode subir” e levantavam o alçapão, elas batiam no alçapão e não podia entrar de jeito nenhum. E nós ficamos lá uns três meses cozinhando num fogão de lata de 20 litros cortada uma portinha pra entrar ar e em cima uma grelha, então era um fogão que admitia uma panela por vez. Então se precisava cozinhar primeiro o feijão, depois o arroz, depois o leite, depois qualquer coisa nesse sentido e, além do mais era perigoso porque era fácil de sair, de cair. O que tinha de auxiliar eram as espiriteiras, vocês nunca viram uma espiriteira? Era uma coisa de ferro mais ou menos desse tamanho (gesto) dez centímetros de diâmetro mais ou menos com uma gola e umas alcinhas pra colocar, vamos dizer, a chaleira em cima. Nessa gola se colocava álcool e a chaleira nas alcinhas, mais ou menos umas três, punha álcool, punha fogo e então esquentava. E pra apagar tinha uma coisinha de ferro também assim, com um cabinho que a gente entrava lá dentro e apagava, isso era perigosíssimo porque essas coisas, elas ficavam numa altura de uns dez, 15 centímetros mais ou menos e uma chaleira lá esquentando água. Então com criança... Nunca aconteceu nada, mas era muito perigoso, dessa casa da minha tia, esses três meses foram muito ruins e meu pai estava no Rio e uma coisa que eu me lembro, uma coisa que não tem nada a ver, mas que eu me lembro até hoje e que eu tenho um comportamento a respeito dessa lembrança... A minha avó tinha uma empregada porque tinha quatro crianças mais quatro adultos, oito com mais ela e nessas alturas meu avô ainda era vivo, eram dez pessoas e tinha que ter uma empregada. Ela tinha uma empregada chamada Lazinha e a Lazinha quando ela descascava... Ela fazia a salada de tomate, a minha avó cortava o tomate como todo mundo corta com aquela coisinha que pendura o tomate e um pouco do tomate em volta, né? Todo mundo não fica prestando muita atenção, pois ela pegava depois que minha avó usava todo aquele tomate pra fazer os molhos pros genros italianos, ela pegava tudo aquilo e recortava aquele excesso do cabinho, aquele excesso que ela tinha cortado e levava pra casa dela pra fazer molho pros filhos dela. Até hoje quando eu pego um tomate, eu pego a faca e pego bem rente aquele cabinho, porque eu acho que cortar mais é desperdiçar, porque é uma coisa que ficou na minha cabeça, muito engraçada, né? Depois dessa casa, desses três meses nesse porão, meu pai voltou do Rio. Não foi trabalhar por lá e nós fomos morar no Brás, na Rua Correia de Andrade, essa rua é a um quarteirão da Rangel Pestana que, hoje em dia, tem aquele viaduto… Ela desemboca bem no comecinho do viaduto, na parte que o viaduto é mais baixo e que está cheio de morador de rua dormindo e que é uma rua muito feia, mas a casa não era tão ruim também, compartilhada com uma parente do meu tio e tinha uma sala que era compartilhada pelas duas. Era um quarto da minha mãe e tinha um quartinho de cimento no chão que era um quartinho auxiliar e a cozinha também era comum e a outra pessoa morava na frente num quarto também, um quarto porque a sala era compartilhada. Então cada uma tinha um quarto, a sala era das duas, a cozinha era das duas e o banheiro era no fundo, sempre foi comum de todo mundo. Nessa casa eu tive nefrite. Fiquei de repouso um mês, um mês e pouco. Passei um ano comendo sem sal nenhum. Nessa casa minha mãe ficou muito doente, ela tinha umas hemorragias muito fortes, não sei qual foi o tratamento, mas ela não fez nenhuma cirurgia invasiva demais, mas ela passava às vezes na cama vários dias. E meu pai trabalhava e tinha ainda minha irmã, eu me lembro agora em que causa ela morreu, a minha mãe não podia fazer nada se a minha irmã era viva, ela morreu com cinco anos, eu tinha menos de nove, tinha oito, por aí e não tinha condições de ficar numa cozinha fazendo alguma coisa. Meu pai passava no açougue da esquina e comprava uma bisteca, eu nunca me esqueço disso, uma bisteca grande que ele chegava, fritava e a gente comia aquilo com arroz que provavelmente era ele que fazia de noite, eu não me lembro esse detalhe, mas lembro bem da bisteca que ele levava pra lá. Nessa casa eu entrei... Como era pertinho da Rangel Pestana, eu entrei naquele grupo escolar maravilhoso que tem lá, chama-se Romão Puiggari, bem em frente a igreja do Brás. Esse grupo é lindo de morrer, porque eu voltei lá pra fazer uma pesquisa em 2000. É uma construção do Ramos de Azevedo, foi feita no século XIX, em 1898. Eu estudei um ano e meio lá, eu fiz o primeiro ano e metade do segundo ano. Por quê? Antes, em frente da minha cas, tinha uma escolinha, a escolinha da dona Etelvina que tinha sido professora do meu pai. Aquelas classes que tem primeiro, segundo e terceiro e quarto ano tudo junto e eu aprendi a ler bem nessa escolinha, porque meu pai já tinha me ensinado um pouco no jornal. E a coisa mais interessante é que eu não me lembro nada desse ano e meio que eu estudei no Romão Puiggari, a única coisa que eu me lembro é que devia ser perigoso atravessar a avenida em frente ao grupo, eles fizeram uma passagem subterrânea que provavelmente foi absorvida pelo metrô quando foi... Porque não existe mais a passagem, então essa passagem implicava em abrir um buraco por baixo e sair do outro lado com todos os recursos que se tinha tecnicamente antigamente, você imagina como era. Então eu me lembro daquele barro grudento pra lá e pra cá e a gente pra passar de um lado pra outro, do outro lado do grupo, a gente precisava andar pelas grades, porque não tinha nem espaço pra andar. Quando eu mudei de lá, ainda não estava pronta essa passagem, mas essa passagem não existe mais. Eu procurei saber e pelo jeito ela foi absorvida mesmo! É a única coisa que eu me lembro, não me lembro quem foi a professora depois da dona Etelvina, nada… É engraçado porque do resto tudo eu me lembro. Duas coisas eu não me lembro: eu não me lembro disso e não me lembro da minha brincadeira com a minha irmã, não me lembro de ter brincado com ela. Ela morreu com cinco anos, eu tinha quatro anos, mas tinha condições de ter brincado com ela, nada parece que apagou. Eu só me lembro dela o dia que ela morreu, na hora que ela morreu, porque ela estava meio de pé no berço nessa casa da... Não, aí eu já tinha mudado, mas aí eu me lembro só da morte dela e do enterro dela, mais nada, e do velório o dia inteiro, isso psicologicamente deve ter alguma explicação que eu não sei qual é, mas também não precisa. Dessa casa, nós fomos pro Ipiranga, aí pela primeira vez nós moramos numa casa só nossa e que não era compartilhada, eu tinha... Foi em 38, eu tinha oito anos e aí eu fiz metade do segundo ano primário no grupo escolar que tinha pertinho de casa. E foi nessa casa que minha irmã morreu, com cinco anos, em 39. A escola era na Rua Silva Bueno, porque essa casa que eu morava era na Rua Silva Bueno, mais meio quarteirão e o grupo escolar era mais meio quarteirão na Silva Bueno. Então era facílimo de ir porque não tinha nem que atravessar nada e esse grupo escolar era uma casa mesmo, uma casa adaptada e na parte do fundo dela tinha uma escadaria e tinha uma sala de aula lá em cima e tinha uma professora que chamava dona Rosalina, não era minha professora, mas ela gritava tanto e falava tão alto que da minha casa a gente ouvia toda a aula dela. Nesse grupo escolar eu fiz metade do segundo ano, o terceiro e o quarto ano, sendo que no terceiro e quarto ano eu tive a mesma professora, do segundo ano eu não me lembro, mas a do terceiro e quarto ano era a mesma professora, Maria José Gallet. E a primeira coisa que eu escrevi, vamos dizer, na minha vida, eu tinha assistido um filme… Porque ir ao cinema era muito comum naquela época, todo mundo ia ao cinema uma vez por semana. (troca de fita) Como naquele tempo a gente usava muito, ir ao cinema uma vez por semana, todo mundo ia ao cinema, e perto da minha casa no Ipiranga tinha o Cine Dom Pedro I e eu tinha assistido um filme chamado A Princesa das Selvas, com a Dorothy Lamour e ela com princesa da selva, ela usava um sarong e nunca na vida eu tinha visto um sarong, não sabia nem o que era, mas procurei saber. E aí eu peguei uma folha de caderno dessas folhas horizontais, eu dobrei em três ou quatro e fiz igual um livrinho, um caderninho e escrevi um resuminho do filme nesse caderninho e levei pra professora, como eu era a queridinha da professora, porque naquele tempo era assim: as melhores alunas sentavam na mesa da professora, do lado da mesa. Ela viu aquilo gostou e disse que eu devia continuar a escrever, mas eu nunca mais escrevi porque daí eu comecei a... Tirei o primário e fui pro Ginásio Paulistano, que era um ginásio particular. Meu pai deve ter feito muito sacrifício pra me mandar pra lá e nesse Ginásio Paulistano eu fiquei sete anos. Essa primeira coisa ficou perdida no mundo porque depois eu tinha estudos pra fazer e não me liguei mais a essa parte. No Ginásio Paulistano, eu morava no Ipiranga e o Ginásio Paulistano era na Liberdade, onde hoje é a FMU da Rua Taguá, e eu, durante sete anos, andei de bonde, bonde (fábrica?) que eu tomava na esquina da Rua da Glória com a Rua São Joaquim e fazia um trajeto que, lógico, eu sabia de cor, né? Descia a Rua da Glória, pegava a Rua do Lavapés e saía no Largo do Cambuci, do Largo do Cambuci pegava a Rua da Independência e a gente passava pelo Laboratório Adâmico que tinha um relógio que eu acho que até hoje tem e nesse relógio a gente já via se estava atrasada ou não pra aula. E da Rua da Independência caía na Avenida Dom Pedro, da Avenida Dom Pedro pegava a Rua Tabor e descia a Rua dos Sorocabanos até a Rua Silva Bueno, aí virava na Silva Bueno e eu descia na esquina Rua Lucas Gomes pra vir pro colégio. Como os bondes vinham muito cheios, eu tomava um bonde na esquina e ia até o ponto final dele, que eram uns seis, sete quarteirões, ele fazia a volta e voltava, então eu voltava no mesmo bonde, mas aí já sentada pra ter garantido o lugar e fazia o mesmo caminho. Na volta, a gente corria aquela Rua São Joaquim inteirinha pra pegar o bonde camarão, porque tinha bonde aberto grande e tinha bonde camarão e esse bonde camarão, eu não sei se vocês se lembram, alguém de vocês se lembram do bonde camarão? Era um bonde fechado inteiro, vermelho tinha uma porta que abria assim meio automática e o cobrador ficava quase no fundo, além do meio e tinha uma caçamba desse tamanho (gesto), mais ou menos, e fechava com as linguetas que viravam. Então punha o dinheiro ali e fechava de um jeito que nunca ninguém podia pegar de lá de dentro, isso garantia muito a verba, vamos dizer assim, que eles recebiam das passagens, porque nos outros bondes que tinham duas ou três fileiras de pessoas penduradas no estribo e eu não sei como os motoristas faziam... Onde eles punham o pé pra ficar cobrando, ele cobrava e tinha que puxar um negocinho pra marcar as passagens, então corria muito engraçado, porque todo mundo falava das brincadeiras: “tin tin um pra lá e dois pra mim” como se o cobrador ficasse com uma parte e devia ficar porque não dava conta de marcar tudo, né? E o camarão não, o camarão era fechado, era um bonde muito mais seguro, muito mais fácil, inclusive nesse lugar não tinha, mas na Higienópolis que às vezes a gente ia ver as freguesas das minhas tias, tinha um bonde chamado Gilda que era carpetado e estofado e com as portas todas automáticas. Então era Gilda porque era o mais chique de todos, porque aquela região era uma região chique, lógico, né? Então do bonde eu me lembro muito bem de ter andado tudo isso e os detalhes do bonde eram... Cada banco no bonde aberto, bonde grande, cada banco dava pra cinco pessoas sentadas e mais umas cinco em pé, mas a distância não era grande. Como ficavam as pessoas em pé, eu nem consigo imaginar. Fora do lado de fora que dava umas duas ou três camadas de gente penduradas nos estribos e do lado de trás, do outro lado tinha uma trava pra ninguém ficar pendurada do lado de lá, porque às vezes alguém ficava e o bonde que vinha do outro trilho pegava. Tinha ônibus já, mas a gente quase não usava não, eu não usava o ônibus nessa situação fui começar a usar ônibus quando entrei pra faculdade.
P/1 – Tá! Dona Neuza, aproveitando o que você está contando, será que você conseguiria tentar se imaginar com os olhos de menina andando pelo Brás vendo que as coisas que você via e o que você gostava de fazer naquele lugar, uma brincadeira sua? Uma percepção de menina sobre aquele bairro?
R - Quando eu morei no Brás... Quando eu nasci, mas aí eu não me lembro das brincadeiras, mas nessa Correia de Andrade, eu já tinha até... Eu morei lá até oito anos, então eu me lembro visualmente que no fim da rua era a Rangel Pestana e do outro lado da Rangel Pestana tinha uma loja Pirene, eu acho que era de móveis ou coisa assim. E do lado dessa loja tinha uma rua chamada Germaine Burchard… Não, é Buchard qualquer coisa, e eu me lembro muito bem: do lado esquerdo tinha um empório chamado Barsotti e que eu ia comprar arroz, feijão pra minha mãe e que o feijão e o arroz vinham... Eram uns papéis desses de venda mesmo, as conchas que eles pegavam as medidas e eles embrulhavam de uma maneira que até hoje eu me lembro, eles iam enrolando, mas tinham uma prática de enrolar aqueles saquinhos que ficavam... Não tinha perigo de desmanchar os saquinhos e ficava certinho. E outra a gente comprava... Não tinha geladeira nessa época, a gente comprava essencialmente aquilo que ia usar no dia, no açougue que meu comprava era uma bisteca, miúdos… Passavam os tripeiros que vendiam o fígado e essas coisas. E o arroz e o feijão, comprava também... Eu não me lembro, mas eu acho que pelo tamanho do saquinho não devia dar mais que um quilo de cada vez, azeite só tinha um de caroço de algodão, não tinha escolha. Então era, se não me engana, era salada e cebola e alho tem em qualquer lugar, era o básico. Tinha verdureiro que passava na rua, não tinha quitanda, eu não me lembro de nenhuma quitanda por lá no Brás. E outra coisa que eu me lembro, como nós não éramos religiosos, eu não me lembro de missa e nem de nada disso. Só me lembro de uma vez que essa minha irmã teve uma convulsão e meu pai saiu correndo com ela em direção a igreja, mas não pela igreja e sim porque do lado tinha um médico. E me lembro, isso eu até já contei da história do Romão Puiggari, e como eu fiquei pouco tempo no grupo, não muito pouco tempo não, porque teve a escolinha, mas não sei… Foi uma época assim que eu me lembro desses detalhes: da compra no empório, do açougue, da igreja, da escola.
P/1 - Tudo que você contou são atividades diurnas, como que era à noite? As luzes? A iluminação do bairro? Porque a noite era muito diferente São Paulo, né?
R – À noite a gente quase não saía porque nessa época no Brás eu tinha oito anos e minha irmã quatro, não dava pra criançada sair com... No fim de semana, a gente saía com meu pai pra visitar ou o pai de um ou o pai de outro. Outra coisa que eu me lembro, assim de rapidinho de ter visto uma vez só, foi o carnaval na Rua Rangel Pestana que a gente levava cadeira, porque eu me lembro de estar sentada e lá não tinha banco, devia levar de casa porque era meio quarteirão. A quantidade de confete que ficava assim que você enfiava o pé no confete... E era uma das regiões que passavam os corsos, os corsos mais chiques eram na Paulista, mas a do Brás... E o Brás e o Bexiga, eu estava estudando isso ontem. O Brás e o Bexiga era o carnaval dos brancos, não Brás e Lapa, desculpe, Bexiga e Barra Funda era o carnaval dos pretos. Então era bem dividido o carnaval paulistano e eram cordões carnavalescos, não tinha escola de samba, nada disso, né? Então eram cordões carnavalescos de Lapa e Brás que eram brancos e Bexiga e Barra Funda era o carnaval dos negros. E as modinhas, eu não me lembro, mas eu sei que naquela época de 30... Eu estou fazendo um trabalho sobre a música popular de São Paulo da década de 30 e aí me lembro por tabela que era aquela música que a Carmen Miranda cantava “Taí” “Taí eu fiz tudo pra você gostar de mim...” Então essa foi uma música característica da década de 30 que é uma década que eu devia lembrar bem, né? Agora eu já me lembro um pouco mais quando já fui pro Ipiranga que eu já fui maiorzinha. No Ipiranga eu fiquei de oito anos até casar.
P/1 – Então eu vou te perguntar desse período duas coisas, o nascimento da sua irmã afetou um pouco a sua rotina? Porque você era muito pequena, mas você começou a cuidar dela? Teve um pouco disso?
R – Olha, eu não me lembro, mas é a tal história que eu sempre digo que a memória passada está sempre impregnada no presente e do presente que você conhece. Então como eu sei de todo o drama que aconteceu, eu imagino que deve ter me atingido muito porque como eu disse, ela chorou durante três meses praticamente seguidos, sem parar. Ela nasceu e não teve problema, porque minha avó que era parteira aparou a mim e a ela, mas depois que ela morreu, nós soubemos que ela tinha um defeito congênito em que a aorta e veia cava se comunicavam, então havia mistura de sangues. Então ela nunca teve uma atividade muito grande, ela durou enquanto o organismo conseguiu se controlar com isso, né? Mas eu não me lembro exatamente porque eu era muito pequena, quatro anos, eu não ia à escola, eu não ia a lugar nenhum, eu ficava praticamente dentro do quarto com ela. Então isso deve ter afetado muito, mas eu não me lembro não.
P/1 – Mas você disse que você lembra muito do dia da morte, né?
R – Então, aí nós mudamos dessa casa do Brás. Nós mudamos para o Ipiranga e eu disse que era a primeira casa não compartilhada que nós moramos. Tinha uma sala na frente, tinha o quarto, era o tipo da casa que não tem nada de lógico, porque é uma sala na frente e em seguida é o quarto e em seguida é outro quartinho, a cozinha é do lado de fora já e no fundo um banheiro e uma laranjeira que tinha que eu me lembro muito bem. Essa casa era pegada a uma padaria e a parede do quarto que dormia a minha mãe. E minha irmã que era pequena e no quartinho de cimento dormia eu, mas a parede do quarto da minha mãe era pegado ao forno da padaria. Então era um calor tremendo e eu chamo isso de casa das baratas porque tinha barata pra burro e as baratas proliferavam muito, porque era o tipo do lugar gostoso, quentinho demais. Então tinha muita barata nessa casa por causa do forno da padaria e a minha irmã dormia num berço encostado na parede e eu me lembro do dia que ela morreu que a minha mãe foi atender, porque ela estava com pneumonia e naquele tempo se dizia assim que os sete primeiros dias de pneumonia eram importantíssimos e quem sobrevivesse ao sétimo tinha grande chance de sobreviver e quem sobrevivesse ao décimo quarto, então estava sarada, não tinha antibiótico, não tinha nada disso, né? Então ela estava com pneumonia e minha mãe foi atender e começou a gritar que a menina estava morrendo e aí eu me lembro que na sala da frente teve o velório dela e se usava aquelas coroas feitas com coisa de alumínio, a roupa se usava... São coisas básicas da época: não podia costurar, alguém costurava, um vizinho qualquer fazia uma roupa, não podia costurar a máquina tinha que ser costurada à mão. Era um vestido comprido e o velório era em casa não tinha nada de hospital, não tinha nada disso e em cima da mesa tiravam todos os móveis que pudessem ter e tinha um copo com... Alguém foi buscar a água benta na igreja, nós não éramos religiosos, mas no fim a gente acaba indo no arrasto das coisas e até hoje quando eu faço os meus encontros de memória eu sempre dou um monte de coisas pra turma lembrar das coisas e quando eu dou alecrim uma lembra de uma coisa... Eu me lembro de velório. Pra mim, alecrim é ligado a velório porque era um raminho de alecrim que se colocava no copo com água benta e cada um que ia lá olhava o morto e fazia um gesto com a água benta e o alecrim. Quer dizer cada um se lembra da coisa que é mais significativa, né? E daí... Meu avô tinha morrido... Ela morreu em junho e meu avô tinha morrido em novembro, ele estava enterrado no Cemitério São Paulo, ali na Cardeal, então não sei por que acharam... Não é que acharam que tinha túmulo comprado não, porque naquele tempo não se tinha dinheiro pra isso, acharam que ela tinha que ser enterrada no mesmo lugar. Então do Ipiranga até Pinheiros era uma distância mais ou menos, eu me lembro, eu devo ter ido junto, porque eu tenho uma boa lembrança fotográfica que furou o pneu do carro fúnebre na Avenida do Estado, eu me lembro assim... Também não sei se isso é memória contada ou é memória real, mas é o que eu me lembro, do lado de cá assim estava o Rio Tamanduateí e nessa rua a gente... Aí de repente precisou parar todo mundo porque furou o pneu e tudo e daí ligado a isso toda semana minha mãe ia ao cemitério, a gente ia até a Praça da Sé do Ipiranga até a Praça da Sé atravessava a Rua Direita, Praça Patriarca, o Viaduto do Chá e tomava um ônibus que ia pra Pinheiros que descia a Teodoro Sampaio. A gente ia ao cemitério São Paulo e pra mim que era pequena aquela subida, aquela rampa, porque ali tem uma rampa, né? E pra mim aquilo era o fim do mundo de ter que subir aquilo e eu me lembro das flores que a gente levava pra minha irmã, era branca, eram uns cachinhos desse tamanho que quando eu fui escrever a história, eu fui atrás dos floristas mais antigos, ele me disseram que chamava (idren?), mas que não existe mais essa flor. E pro meu avô, igualzinha, só que roxa, então toda semana a gente ia pra levar isso e eu ficava andando um pouco lá no túmulo e como eu sou muito metida, muito curiosa, de repente eu vi chegar gente lá pra fazer o enterro e era um caixão que não era caixão, era de madeira pura e alguém falou assim: “Isso vem da faculdade de Medicina e enterram aqui.” Eu fui lá e quis ver e o cara abriu o caixão, então tinha tudo separado: perna de um lado, braço do outro, cabeça do outro tudo de qualquer jeito, verde de ter ficado no formol muito tempo, né? Porque vinha da faculdade de Medicina pra lá, bem feito, né? Eu quis xeretar, mas eu não me lembro de ter ficado traumatizada não.
P/1 – Mas qual foi a reação na hora?
R – Não sei, mas eu não me lembro de ter ficado traumatizada não, achei até que era uma coisa a contar.
P/1 – Neuza, essa época então você já tinha de nove pra dez anos e você se lembra do seu sonho de infância?
R - Não, absolutamente nada, mas sonho que você diz...
P/1 – Uma vontade, um desejo?
R – Nem imaginando alguma coisa, eu não me lembro não, não sei… Eu nunca fui muito sonhadora assim, eu sempre fui muito pé no chão, não me lembro não, nem um pingo! Tenho certeza absoluta que não, que eu imaginava alguma coisa, não. Em 1940 eu tinha dez anos, o primeiro livro que eu li foi um romance... Meu pai sempre foi meio místico, meu pai era espírita e ele frequentava o Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento, já ouviu falar nisso? Se você anda pela Rua da Glória onde antigamente tinha o Largo São Paulo, agora é aquele viaduto, mas o prédio do Círculo Esotérico ainda existe numa ruazinha que desce a direita. É um prédio lindo, inclusive muito antigo, Círculo Esotérico, essa coisa assim meio mística, né? E quando o Círculo fez aniversário, eu não sei quando, eles deram de presente para os sócios um livro que chamava Telma, a Princesa da Noruega e eu li o livro, era um romance, o primeiro livro que eu li e nessas alturas por dedução eu devo ter sonhado, porque foi um livro muito romântico daqueles amores que não existem mais, essas coisas, sabe? De um romantismo muito piegas e muito impossível, vamos dizer assim. E eu fiquei com isso na cabeça muito tempo e no momento que eu estava escrevendo a minha história de vida, tudo isso eu me lembrei e fui atrás e procurei por todo lugar ultimamente eu procurei no Google, procurei na Estante Virtual pra ver se achava no sebo, não existe mais e eu telefonei pro Círculo e eles me falaram: “Foi um livro de oferta, não tem mais, nós temos um exemplar aqui só pra consulta”. E há uns dois anos atrás num dos meus cursos, alguém que se chamava Telma falou: “Ah, eu me chamo Telma, porque minha mãe leu o livro...” e a menina tinha o livro e ela me emprestou o livro e eu li de novo, claro não tem o mesmo sabor, evidentemente, você olha... Começa que é prolixo demais, enrola pra chegar daqui até aqui e é aquele romantismo que por mais que a gente queira não acredita mais, mas tem umas coisas interessantes porque a Noruega é o país do Sol da meia-noite. Então essa diferença de seis meses dias e seis meses noite dá uma dinâmica diferente ao livro, viu? Então eu li de novo, devolvi e foi interessante, eu acredito que na época com dez anos eu ainda não estava numa fase de romantismo, né? Então eu devo ter lido aquilo talvez tenha incluído alguma coisa em mim, tanto que eu me lembro desse livro como o primeiro livro que eu li, mas não mais do que isso e porque na minha casa tinha dois livros só: Geografia Geral, que eu vivia virando de lá pra cá, de lá pra cá e teve um livro... Esse livro foi interessante na minha formação porque era o livro preto e branco como sempre, naquela época não tinha, há dez anos em 1940, e eu via, por exemplo, uma paisagem da Turquia, da Europa, da Itália e naquelas estampas, naquela imagem era tudo preto e branco, então era tudo cinza e a minha ideia durante muito tempo mesmo ficou que todos esses países eram cinzentos, que não tinha sol, porque eu só via imagens desse tipo. E o outro livro que tinha, era Gramática Expositiva, onde eu li também o meu primeiro poema, meu pai me mostrou Meus Oito Anos, de Casimiro de Abreu “Oh que saudades que eu tenho da aurora da minha vida...” eram dois livros só e mesmo quando eu estava no ginásio, a gente não comprava muito livro, eram aulas expositivas que você tomava nota e depois chegava em casa e passava a limpo no caderno. Então nesse passar a limpo se aprendia muita coisa.
P/1 – Saindo um pouco do sonho e vindo pro real, conta um pouco das brincadeiras dos amigos, amigas dessa época, do Ipiranga já?
R – Na época do Ipiranga eu me lembro que a minha casa tinha dois degrauzinhos e que a gente sentava nos degraus de tardezinha pra noite e tinha uma porção de casinhas e que todas as meninas se reuniam lá nessa casa. Bom, brincadeiras que a gente comentava da vida dos vizinhos, uma coisa que eu me lembro é que em frente tinha uns sobradinhos e tinha uma senhora que tinha tido nenê, então o comentário nosso lá é que ela estava de dieta e que durante os 40 dias de dieta, ela só podia tomar canja de galinha. Então isso eu aprendi nessa época e me lembro que uma vez, eu fiquei nessa casa das baratas até os 14 anos, 15 anos mais ou menos, foi um tempinho mais ou menos, porque depois eu mudei da mesma rua pra baixo da Silva Bueno, mas aí num sobradinho já, sabe? Demos uma melhora grande e quando eu estive nessa casa das baratas na rua, um quarteirão adiante morava uma tia-avó do meu pai, uma que tinha 11 filhos. Então era fácil de ir lá porque não precisava atravessar rua nenhuma, mas não me lembro muito das brincadeiras com ela, como eu disse eu já estava no ginásio, já não tinha muita coisa em comum, né? E lá a uns dois quarteirões tinha um parquinho e essas minhas primas tinham umas mais velhas, eu tinha uma tia aqui e outra lá em baixo, mas tudo pertinho e: “Vamos ao parquinho?”. E eu me lembro, disso eu me lembro até hoje, que eu era já... Acho que devia ser meio mocinha, né? Porque eu estava lá nesse parquinho e um cara chegou pra mim e me apertou assim... Eu não tinha nem seio, eu devia ter uma incidência só sei lá, mas era assim, quer dizer, o ambiente era esse e a turma aproveitava. Meu pai soube que eu fui pra esse parquinho, mas eu levei uma surra, a única surra que eu me lembro de ter levado do meu pai porque eu fui ao parquinho e porque ele sabia que nos parquinhos aconteciam essas coisas. Mas com as minhas primas eu nunca brinquei, agora as meninas que tinham a minha idade 10, 11 anos por aí, elas falavam muita bobagem, sabe? Bobagem assim de relação com os meninos, coisas feias mesmo, chatas mesmo, eu nunca liguei muito, mas depois eu me lembrando, achava que eram muito meninas pra saberem essas coisas todas. Eu não sei como sabiam, eu não sabia, eu aprendi... Nem aprendi porque falavam tanta bobagem, tanta coisa errada que não deu pra aprender nada. E as coisas que a gente via lá que são interessantes da época, as casinhas todas eram germinadas, pequenas, então quando casava uma, por exemplo, ou morava lá perto, mas em geral ia morar num quarto, a cozinha, banheiro nem sei, mas aí um pouco antes do casamento, uns dois ou três dias antes, ia todo mundo, os vizinhos, ver o quarto da noiva que tinha a colcha e os presentes que ficavam em cima da cama. Eu fico pensando agora: coitado dos noivos! Depois do casamento deles que iam lá pro quarto tinham que tirar todos os presentes de cima da cama, porque era usual isso, viu? Então tinha uma colcha muito bonita e todos os presentes em cima da cama que geralmente não eram muitos porque as pessoas não tinham muita posse pra dar muita coisa.
P/1 – Então uma relação sua com... Você falou que do primeiro livro... Qual essa relação dos primeiros livros, esse contato que é muito importante pra você, né?
R – É tanto que eu me lembro bem, né? Eu me lembro coisas que eu não posso transmitir, mas eu me lembro da capa dos livros que é um cinza meio encardido mais ou menos, o tamanho, a grossura do livro.
P/1 – E quais eram os primeiros livros? Você lembra alguns?
R – Então esses dois livros, a Gramática Expositiva e a Geografia Geral.
P/1 – Sim, mas depois desses vieram os romances e essas coisa que você foi descobrindo...
R – Mas aí eu não me lembro muito de romance não, porque daí eu não sei... Eu era muito caxias, então eu devia ficar estudando muito e não ficava me dispersando muito, depois que eu entrei no ginásio eram muitas matérias pra estudar, pra passar a limpo, então eu não me lembro de ter lido muito não, nem no ginásio e nem no... Nunca teve biblioteca na minha casa, uma quantidade significativa de livros não, eu comecei a ter livros em quantidade significativa depois de casar.
P/1 – E as suas preferências em estudo eram? Você lembra? Português, Matemática?
R - Ciências, né? Eu gostava de Ciências, tanto que depois eu fui fazer História Natural, né?
P/1 – Então conta um pouco dessa escolha, como se deu? Onde você foi fazer? Conta um pouco essa passagem pra faculdade então?
R – Naquele tempo a gente tinha o ginásio. Quatro anos e três anos você podia escolher clássico ou científico, o clássico era pra quem fosse fazer Letras. Ou científico, eu escolhi o científico e tinha muita matéria de biologia, física, química. Eu tive professores muito importantes, o Silveira Bueno foi meu professor de Português, eu tive um professor de latim que eu nunca esqueci, Celestino Correia Pina, que agora fazendo um curso lá na USP encontrei uma colega que está fazendo também que foi da mesma época com o mesmo professor. Esse professor de latim tinha umas características muito interessantes, ele dava zero pra quem errasse três silabadas. Silabadas era diferença de acentuação, uma acentuação ele deixava passar, duas era metade da nota, três era zero de mês. E esse professor nos fez cantar no quarto ano da formatura de ginásio, ele nos fez cantar o Hino Nacional em latim. Eu fiquei muito tempo procurando algum colega que tivesse o Hino Nacional em latim, porque é uma coisa diferente, né? Porque é uma letra homófona, ela cabe certinho dentro da música, agora não tem problema, porque depois que eu comecei a mexer com o Google, eu achei facilmente, né? Então eu tenho a letra e tudo da música. E outro o professor de biologia era o Bernardino, ele tinha uma apostila que dizia a turma que até as piadas eram as mesmas, ano após ano. Mas física eu aprendi muita coisa com o professor Max Gevertz, que ele dava uma física básica, ele não dava muito profundo, mas justamente o básico era trampolim pras coisas mais complicadas. Química eu acho que era o Castrutti e Matemática era Osvaldo Sangiorgi que foi um nome muito conhecido, né? Esse Max Gevertz foi a primeira pessoa que me ofereceu emprego, porque depois que eu entrei na faculdade quando eu estava no quarto ano, ele tinha um cursinho e ele me convidou pra dar aula de biologia no cursinho, foi o primeiro emprego remunerado, vamos dizer assim, que eu tive. Eu tinha dado aula num curso de admissão lá no Paulistano mesmo, porque eles achavam que se eu estava fazendo uma faculdade, eu podia dar aula de admissão. Não podia nada, eu não tinha condição nenhuma, mas dei.
P/1 – E a faculdade? Qual faculdade que era? O ambiente da faculdade como era?
R - A faculdade era faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, não é como agora, porque agora é Ciências Humanas, né? Letras e Ciências Humanas, antes era Filosofia, Ciências e Letras, a faculdade de Filosofia Ciências e Letras, ela tinha sido criada junto com a universidade em 34, o objetivo dela era ensino e pesquisa. E ela tinha que congregar todas as faculdades já existentes, ou seja, faculdade de Medicina, de Direito, de Odontologia, de Farmácia, a Politécnica todas juntas na faculdade de Filosofia que se faria pesquisa de qualquer assunto e ensino no caso de segundo grau, mas não tinha um lugar pra ela. Então durante muito tempo a faculdade de Filosofia ficou dançando: Matemática ficou na Politécnica, Física ficou numa casa que tinha na Brigadeiro Luís Antônio, Geografia e História ficou... Em primeira vez ficou lá pro lado da Consolação, mas depois elas e Letras foram pra Caetano de Campos, cada um foi para um lugar. E a minha seção que era História Natural, antes chamada de Ciências Naturais, ela foi para um palacete na esquina da Alameda Glete com Rua dos Guaianazes. Era um palacete muito bonito de um industrial chamado Jorge Street, ele tinha perdido toda a fortuna dele em 29, passou pra companhia de seguro e foi comprada pelo Estado. Nem pela universidade, porque a universidade não tinha autonomia pra comprar e o Estado alugou ou cedeu pra universidade e pra lá foi História Natural e Química. A Química fez um prédio ao lado e História Natural ficou funcionando no palacete, eu fiquei quatro anos nesse palacete. Esse palacete tinha tudo que não devia ter uma escola, porque era uma casa. Então no térreo tinha mineralogia, a sala de visita, a sala de jantar, cada coisa tinha um lugar, fora que antes um pouco da gente ir pra lá, ele tinha sido da administração da universidade. Então tinha a biblioteca… É uma confusão que eu sei de todos os detalhes porque nós estamos agora na USP escrevendo um livro sobre a Glete, na universidade de São Paulo, somos cinco que estamos... Está quase pronto o livro sobre a Glete, então tem toda essa história. Nesses quatro anos, eu frequentei a Glete seguidamente, porque tinha dias que era de manhã e à tarde, no primeiro andar era mineralogia, no térreo, no primeiro andar era zoologia e física e biologia e no sótão era biologia. No sótão, para chegar lá, tinha um elevador daquele de porta pantográfica, mas que parava no meio do caminho e conta as histórias que tinha fantasmas, eu nunca vi fantasma nenhum, eu sabia sim que quando esse elevador parava ou quando se transitava por ele tinham alguns professores que abusavam das alunas, isso a gente sabia, mas que tinha fantasma, não sei. Mas era assim. A gente não conhecia coisa melhor, então não pode dizer... Nem achava que era ruim, achava que era bom, porque era o que tinha, a gente pra desenhar um esqueleto de cachorro desse tamanho na primeira ou segunda aula do primeiro ano você tinha uma bancada de 30 centímetros. Então você vê um cachorrão numa bancada de 30 centímetros, cada vez que você mexia a cabeça você tinha uma visão diferente e pra desenhar tudo aquilo. Então foi difícil o primeiro ano, os professores tinham um sotaque terrível, todos eles, porque eram todos vindos de fora, mas foi muito interessante! A minha turma começou com 23 alunos, a maioria como segunda opção de medicina e no segundo ano sobramos cinco e esses cinco foram até o fim. Então com cinco pessoas a gente conhecia bem todos os colegas, estudava-se bastante, os professores eram diferentes do que são agora porque com cinco alunos no último ano o professor Savaia levava todo mundo pra tomar lanche na casa dele que era lá perto, era uma ligação assim muito mais afetiva inclusive com os professores também. Fora que também a cabeça da turma lá era muito diferente, diferente do meu ambiente, porque eu não era de classe baixa de tudo, mas não era de classe alta e também não era de classe intelectual. A classe intelectualizada já havia determinado os comportamentos como normais, eu não porque eu vinha de outra formação, muitas vezes quiseram fazer a minha cabeça, passear com rapaz… Mas não é que eu não aceitasse, mas não estava em mim assim as coisas, porque era outro tipo de formação. Então não me afetou quanto a isso, mas afetou muita gente que achava que estava na faculdade já podia fazer tudo que queria, né? Mas eu passei os quatro anos, nunca fiquei em nenhuma matéria, fiz Especialização em Genética de Populações Hidrosófilas, fiz Didática Especial, Didática Geral, Psicologia Educacional e tudo que tinha direito. Só que eu me formei em dezembro, em setembro eu conheci o meu marido, né? Aí meu filho, acabou os estudos, não teve mais nenhuma importância, vamos dizer assim pra mim, mas eu já estava no fim, eu me formei e a formatura toda foi em fevereiro de 52. (troca de fita)
P/1 – Então Neuza a gente vai entrar na história de como você conheceu o seu marido, conta um pouco?
R – Tá. Posso começar? Bom, eu acabei de dizer que eu tive um professor o Max Gevertz que me ofereceu o primeiro trabalho, esse cursinho dele era na Rua da Liberdade, mais ou menos no começo da Rua da Liberdade, daquelas casas bem antigas que tem uma escada, daquelas escadas inclinadas de tudo que não tem nem a divisão no meio, as casas antigas eram assim, né? Porque agora se for muito alta você depois tem uma parte retinha e depois continua, aquela não era inteira até lá em cima e tinha uma sala só e ele dava Física e Química e eu dava Biologia. Dando toda essa matéria, eu não sei por que alguns alunos lá, uns dois ou três alunos acharam que eu era muito chata e um desses alunos que conversava mais comigo, porque ia para aquele lado lá do Ipiranga, ele sempre conversava comigo e disse assim: “O que você tem é falta de homem, por isso que você é uma chata!” Aí cada um deles tinha namorada e quando eles saíam ou um casal ou outro casal saíam sempre com um primo deles que era de São Carlos, mas que estava fazendo estágio com o pai deles que era dentista “Ah, nós precisamos apresentar você para o nosso primo, porque ele vai sempre com a gente e é uma coisa muito chata uma pessoa segurando vela o tempo todo, né? Se forem dois casais é melhor”. Eu morava nessa época, quase na formatura, eu morava na Avenida Dom Pedro, daquela casa das baratas eu tinha passado para um sobradinho novo, daquele sobradinho bem comum que tem uma sala na frente, cozinha, banheiro em baixo, dois quartos em cima, ele existe até hoje, eu até fui lá uma vez, mas não tinha ninguém. Não pude entrar. Tinha uma salinha pequena que tinha um jogo de móveis de jantar que tinha uma mesa grande, tinha etager, fuffet, cristaleira e ainda meu pai alugou um piano pra mim, não sei... Eu fico pensando agora, não sei como cabia e dessa casa, desse sobradinho, nós, numa época de vacas gordas, meu pai comprou uma casa na Avenida Dom Pedro, uma mansão, que eu chamo nas minhas memórias. E essa mansão era pegada a um castelinho lá na Avenida Dom Pedro que todo mundo conhecia o castelinho dos Bernardini, dos cofres Bernardini. Eu morava pegado, uma casa grande, enorme, era uma mansão, nos nossos padrões era uma mansão, tinha uma sala, acho que de uns 40 metros quadrados por aí a sala de visita, depois tinha a sala de jantar, tinha jardim de inverno, mas meio mal construída, tinha uma cozinha no meio de tudo isso, em cima tinha dois quartos só, mas tinha terraço suficiente pra construir quantos quisesse, mas nós éramos só três nessas alturas dava certinho. Então eu passava pelo Largo do Cambuci e nessas alturas até tem... Aqui no Museu deve ter… No museu deles, eu tinha um carro em 51, eu tinha um Volvo da época, tem uma fotografia que é de um calendário aqui do Museu, eu dentro do carro. E eu descia... Acabava o cursinho, eu dava carona pros dois que eram o Rui e o Décio, eu dava carona pros dois, porque eu passava pelo Largo do Cambuci pra ir pra Avenida Dom Pedro e eles moravam no Largo do Cambuci, então eles desciam no Largo do Cambuci e eu seguia em frente. Tanto eles falaram que combinaram um dia que era aniversário de uma delas pra eu conhecer o tal primo deles, eu fui lá pro lado de Tucuruvi, longe pra burro, numa espécie de chácara e eles me pegaram lá e naquele tempo eu cheguei até a dirigir esse carro com o qual eu fui, era um Hudson, aquele barco, era uma barca mesmo de tão grande que era, né? E chegaram lá me apresentaram pro primo deles. Era o tipo do negócio assim que você vai pra ser apresentada a uma pessoa que eles querem que você namore, eu nunca tinha namorado na vida e nem sabia como se namorava, mas eles sabiam, né? Aí “esse aqui é Fulano...” e aquela situação meio sem graça e então “vamos dançar”? E você não se sente à vontade nem nada, mas também não foi aquela história de olho no olho e pegou fogo, não foi assim, eu tinha nessas alturas 21 anos e ele tinha três anos mais que eu, 24 anos e não era um (botinho?) assim adolescente, né? Mas ficou... Dançamos, batemos pão, fomos embora pra casa e se vocês quiserem saber dos detalhes perguntem para o Eduardo porque o Eduardo leu todo o meu diário desse dia que eu conheci! Com tudo escritinho desse dia que eu o conheci. Aí fui pra casa, ilusão sempre tem, né? E era engraçado porque ele era baixinho, um pouquinho mais alto que eu só e, pra ele, eu estava muito bem, porque não ficava discrepante assim, né? Mas só que ele tinha uma ideia de montar um consultório, casar com uma fazendeira rica e gozar a vida, azar dele porque não foi nada disso, né? E aí os dois meninos o Décio e o Rui que já tinham as namoradas deles, o Décio tinha a Janete e o Rui tinha a Mei, eles chegavam pra mim e diziam: “Pois é, o Airton achou você uma maravilha... e pepepê e falou isso e falou aquilo”... Mentira porque ele não tinha dito nada, chegavam pra ele e diziam: “Ah, ela ficou encantada com você, adorou!”. Tudo que eles diziam era mentira tanto da parte dele quanto da minha parte, mas com isso foi estabelecendo alguma coisa. E aí isso foi dia 02 de setembro de 51. Ele viajou pra São Carlos e tal, eu sei que a gente se encontrou de novo no dia 15, 17, por aí, de setembro. Está tudo escrito no diário, mas eu não me lembro exatamente o dia que a gente se reencontrou, fomos ao cinema e no cinema mãozinha dada. Mas eu nunca tinha visto isso na vida! Pra mim era tudo novidade tudo, tudo não sabia nem como reagir e reagia fisicamente, lógico, mas não sabia nem se aquilo era certo ou se não era certo e beijinho aqui e tremia nas bases e foi um negócio muito complicado, ele viajou, voltou, mas nunca foi assim de dizer: “Você quer namorar comigo?”. Não foi, foi uma coisa assim bem automática porque a gente era grande, né? Aí um dia... Isso eu me lembro até hoje, eu encontrei com ele no dia 02 de setembro, fomos a primeira vez ao cinema e não me pergunte que filme foi porque eu não sei, porque estava fora do ar, no dia 15 de setembro. Aí no dia 07 de outubro um deles fazia anos, então “vamos passear, vamos passear” e pegaram o carro do pai que é esse Hudson desse tamanho e “vamos passear” e puseram nós dois no banco de trás e os dois no banco da frente pra que a gente pudesse aproveitar um pouco, né? E aí a primeira vez na vida que eu não sabia que existia é que eu realmente fui beijada, porque eu não posso dizer que eu beijei, eu não sabia como é que era, o beijo mesmo de boca, beijo de língua essas coisas todas, eu não sabia nada disso, eu era uma professora de Biologia que sabia tudo de organização, como era o aparelho masculino, o feminino como funcionava, toda a fisiologia e tudo, mas na prática nada, eu era assexuada totalmente. Bem, daí pra frente as coisas foram um pouquinho mais rápidas, mas naquele tempo esse mais rápido não era rápido, nunca se chegava naquele tempo uma relação total, eu explico o porquê que eu casei virgem. Na época não existia pílula anticoncepcional, camisinha tinha sim, mas era uma coisa assim meio tabu, não se comprava camisinha de uma maneira muito normal se você chegasse numa farmácia e tivesse uma mulher servindo, homem nenhum comprava camisinha com uma mulher, precisava farmacêutico. Aliás, eu escrevi no meu blog um texto sobre a AIDS na terceira idade e eu comecei com uma piadinha dessas, uma hora vocês leem. Então tinha, mas era uma coisa que tinha, mas ninguém andava com ela no bolso, imagina! O filho que nascesse fora do casamento era considerado ilegítimo e vinha na certidão “pai desconhecido” não era casada, não podia ser de outro jeito, e isto era o resto da vida da pessoa. Então todo esse contexto social te levava a um comportamento que era normal não querer nada disso, era normal, você tinha todos os instintos que se tem agora, nada era diferente só que no meu contexto social o controle era feito dessa maneira, o que se falava... Porque se dava muito importância ao que o outro dissesse ou não, muitos pais punham os filhos pra fora de casa quando engravidava e as coisas eram feitas tão na corrida, tão mal feitas que nem pra tomar cuidado não dava, certo? Então engravidar era a coisa mais fácil do mundo, então a gente nem se passava… Então o contexto social é que fazia o seu comportamento. Quando eu entrei na faculdade as coisas realmente eram diferentes, então a turma dormia com os namorados e quiseram fazer um pouco a minha cabeça, mas acho que pararam quando viram que não era um campo fértil, porque era intuitivo, o negócio era da gente mesmo ser assim e da família toda ser assim, mas os instintos eram os mesmos. Então como é que sublimava? A gente ouvia música, então aquelas músicas, aqueles boleros mexicanos, aqueles boleros mexicanos com aquelas letras, maravilhosas: Una Mujer, Só Lamente uma vez, Pecado... Tudo isso tinha letras que se reportavam muito à gente e a gente perdia fôlego com aquilo, chegava a ser até umas preliminares, mas muito de leve, sabe? Nada muito não, o beijo sim, porque já tinha aprendido, então já gostava, mas mesmo assim a gente não saía de casa, a gente namorava de noite mesmo depois de noiva namorava na sala e minha mãe ficava no escritório, mas e daí? A gente sabia que tinha uma pessoa lá perto, não dava pra fazer grandes coisas e viajar sozinho, a gente não viajava, nós saíamos muito com minha mãe e meu pai porque eu era filha única se saísse com outro, era sempre com alguém, com outro casal ou... Mas o outro casal era mesma coisa pra gente, não fazia as mesmas coisas também é por isso que se casava mais depressa, né? O que era muito bom, que eu sempre falo, era baile por quê? Porque baile você tem a crescência da sociedade pra agarrar uma mulher, é ou não é? Você pode abraçar uma mulher num salão de baile e ninguém acha nada de diferente, naquele tempo, né? Faz isso na rua daquele jeito que se abraçava num baile não pode, né? Então por isso que os bailes naquele tempo eram bailes de dois encostadinhos e eram coisas que todo mundo gostava porque era uma maneira de ficar encostado, de ficar tirando as lasquinhas... A dança mais sensual que tinha naquela época era o bolero, bolero é até hoje uma dança muito sensual, eu acho engraçado de hoje ver essas baladas que cada um pula do lado de cá o outro do lado de lá que graça tem? E o bolero não, o bolero é aquela sensualidade, era muito engraçado que a turma comentava quando acabava, tinha aquela roda de boleros, depois blues e quando acabava uma roda de bolero os rapazes saíam correndo do salão porque sempre estavam dando vexame. Mas era assim mesmo, viu? É claro que nós tivemos problemas, nós tivemos sustos, vamos dizer assim, porque a gente não estava assim preparada pra de repente dizer: “Vou casar.” Então essas coisas que se apresentavam, precisavam ser muito conversadas, então as arestas tinham que ser aparadas e levou pelo menos um ano pra que a gente... Embora soubesse que existia sentimento, mas tudo o resto que precisa num casamento não estava bem determinado, então todo esse resto nós tivemos que preparar ao longo de um ano que foi de namoro, mas assim namoro que era já em casa que o Airton chegou pro meu pai e foi comunicar pra ele que estava namorando comigo, ele nunca foi pedir minha mão em casamento, foi comunicar. Durante um ano foi assim, mas nada de ficar separado, brigar, a gente não brigava, a gente conversava muito mesmo porque o Airton era uma pessoa muito especial, ele nunca brigou, era tudo na base da conversa mesmo. Depois de um ano quando a gente tinha certeza disso e que ele já tinha um consultório, porque também tinha essa parte, você tinha que saber que podia assumir um compromisso de um casamento, quando ele já tinha um consultório e o consultório já estava se sustentando, vamos dizer assim, que era possível já ter alguma coisa a mais, então nós ficamos noivos como se usava na época, noivo de aliança na mão direita. E aí ele foi... Foi num Natal e ele foi passar o Natal com a família em São Carlos e esse foi o Natal mais doído que eu tive, eu acho porque já estava noiva, já estava com aquela paixão, mas ele tinha que passar com a família também, quer dizer foi o primeiro teste em que você divide alguma coisa, sabe? Que não é só seu e que você compreende que tem alguma coisa também que é importante e eu tive que ficar com meu pai e com a minha mãe que tinham amigos que foram passar o réveillon numa boate chamada Bambu e eu fui junto, tive que ir, não tinha jeito! Onde eu ia ficar? Então vocês imaginem como eu estava com aquela agonia de estar longe do amor, saber que ele estava se dedicando à família e por mais que a gente queira ser lógica, a gente tem ciúme e estar num lugar que você não queria estar com aquela música toda, eu passei o tempo todo chorando. Bom, essa foi... E daí esse ano de 52 eu parei de escrever meu diário, não sei o porquê! De 51 inteiro eu tenho dia por dia.
P/1 – Começou em 51?
R – Em 51 quando eu conheci... Aliás, eu conheci muito antes, mas quando eu casei, eu fiz a besteira de achar que nada daquilo prestava, eu joguei tudo fora e botei fogo. E fiquei só com o de 51 a partir do dia que eu o conheci.
P/1 – Mas só uma pergunta, esse diário que você começou antes que você colocou fogo, você lembra por que você começou?
R – Porque eu gostava de escrever, eu não sei por que, eu via que todo mundo... As meninas tinham uns livros de passar pra um e pra outro escrever alguma coisa, eu joguei tudo fora, não devia ter porque isso era uma coisa importante. Então tudo que eu escrevi até aí foi tudo de memória, tudo, tudo de memória e aí em 52 eu parei de escrever provavelmente porque a gente... Esse ano foi um ano de muito trabalho meu e dele, eu dei muita aula e quando a gente estava junto, era mil coisas pra resolver, era comprar móveis, era saber onde ia morar, mudar o consultório, foi um ano que meu pai perdeu tudo que tinha e eu perdi carro, perdi tudo, foi um ano que eu sustentei a casa. Então foi um ano que... Não devia ter parado se fosse hoje eu não teria parado pelo contrário, eu teria anotado todas essas coisas diferentes, eu não sei, eu conversei até com o Eduardo, não me pergunte porque eu não consigo saber por que eu larguei de escrever. Aí nós resolvemos que já podíamos casar. Já tínhamos comprado móveis e tudo, então “vamos casar”. Eu sei que em janeiro, era fim de janeiro e eu sei que no fim nós fomos antecipando, antecipando e casamos no dia 26 de dezembro de 53, no dia do aniversário do meu pai. Foi um casamento simples porque nessas alturas já não tinha dinheiro nenhum pra fazer nada, mas deu pra fazer uma recepção pequena, uma coisa interessante... Quando eu me formei na faculdade, dois anos antes... Eu conheci o Airton em 51 e a minha formatura foi em fevereiro de 52, fazia três meses que eu o conhecia, as minhas tias como modistas que nunca faziam nenhum vestido pra ninguém da família, porque não tinha cabimento porque a hora delas era muito cara pra fazer isso, ela fez o meu vestido de formatura que era um vestido todo de tule, bonito e tudo. E eu guardei esse vestido de formatura e foi o meu vestido de noiva dois anos depois, em geral, hoje em dia a turma aluga tudo, mas naquele tempo não era assim e eu usei o mesmo vestido, porque também não tinha também dinheiro pra ficar... É meio chato, porque as minhas tias... No meu convite de casamento dizia que os noivos se despedem na igreja, mas é claro que as minhas tias de convivência quase que diária, não tinha nem o que pensar, elas se ofenderam e não iam mais ao meu casamento, uma delas nem foi. Elas não fizeram meu vestido de noiva, então eu usei aquele vestido de formatura, à parte eu fiz um blusãozinho com manga comprida. Assim que foi feito! E foi uma cliente do Airton que fez, que nem isso elas fizeram. Então o meu vestido de noiva não foi nada assim de extraordinário, eu casei na Igreja do Carmo da Martiniano de Carvalho. Também não sei por que eu fui lá, porque tinha uma escadaria bonita, eu tinha tido a formatura lá, porque na verdade eu morava no Ipiranga. Não tinha nada o que fazer lá, né? Mas eu casei lá e teve um bolo e uma coisa qualquer na minha casa e eu fui a noiva que toda família diz… Que nós somos os noivos mais sem vergonha que a família jamais viu, porque a partir do momento em que ninguém mais tinha nada com isso, era um pendurado no pescoço do outro se beijando, se agarrando. Então de vestido de noiva ou não estávamos lá aos beijos e abraços, fomos passar a nossa lua de mel na Lapa no nosso apartamento porque o Airton já tinha mudado, tinha consultório junto com o apartamento. Então era um lugar mais pessoal, melhor do que hotel ou qualquer coisa e era noite de núpcias como manda o figurino mesmo, primeira vez, primeira relação sexual. O dia que vocês foram lá em casa vocês vão ver tudo isso escrito. Eu tenho um bauzinho da memória que eu tenho um monte de fichinhas escritas e uma delas está escrito assim: “a primeira transa a gente nunca esquece” é o título e tem toda essa descrição, né? Como a última transa a gente também nunca esquece, o Eduardo conhece bem esse bauzinho da memória. E a explicação é essa que eu já dei que não tinha camisinha, camisinha tinha, mas era difícil de encontrar e os homens no caso... As mulheres era fácil de sublimar, né? Você pega um bordado, faz uma comida pro amor, enfim lê um romance e fica lá no alto é fácil, muito mais fácil de sublimar e o homem, se não tivesse o sentimento muito forte, eles saíam do namoro e iam pras prostitutas, com certeza. Quando tinha já uma paixão mais centrada e tudo também tinha uma sublimação não só fisiológica como também de pensar, de imaginar as coisas, né? Depois que eu levei minhas coisas pra lá onde eu ia morar, até as minhas roupas, ele ia mexer lá um pouco antes de casar, quer dizer era uma sublimação, porque as vontades, os desejos são os mesmos, não vai dizer que é diferente não, certo? Agora, interessante do casamento também é o contexto da época, você tinha dois padrinhos: um pra noiva e outro pro noivo, em geral, eram conhecidos ou amigos dos pais, não dos noivos, os presentes que a gente recebia, eu tenho... Um desses padrinhos, eu acho que é do civil, eu não me lembro se era do civil ou do religioso, era um amigo do meu pai que nem foi ao casamento e nos deu de presente, porque ele tinha alguma posse, nos deu de presente um jogo de jantar inglês que eu tenho até hoje. Mas que não tinha um mínimo propósito para um casal que vai começar a vida... Nunca usei, quer dizer, ultimamente eu tenho usado, essas coisas que existiam que se você compara com hoje, que eu já fui a casamento que tem 15 padrinhos de cada lado, os presentes vão de geladeira, máquina de lavar, freezer e essas coisas todas. De outro padrinho eu ganhei um jogo de whisky de cristal sim, mas um jogo de whisk, o baldinho com meia dúzia de copos, o outro foi um pouco mais… Lógico também porque trabalhava com enceradeira, então me deu uma enceradeira e o quarto padrinho, que foi do Airton, deu dinheiro pra nós viajarmos, eu não me lembro quanto, mas ajudou pra casar. Nós então passamos a noite de núpcias lá no apartamento, o café da manhã eu não me lembro, mas o almoço eu me lembro que eu fiz uma gororoba qualquer lá de um molho com ervilha, com ovo... Foi o nosso almoço. E no dia seguinte nós saímos com o carro do meu pai porque o meu já tinha ido, né? Um Mercury 49 e nós fomos pra São Pedro, não, Piracicaba… Íamos pra são Pedro, mas paramos em Piracicaba e de lá de São Pedro nós passeamos um pouco lá naquele hotel escola, ficamos num hotel na esquina. Aí a gente fez tudo que tinha direito e durante os meus 46 anos de casada nós fizemos tudo que tinha direito, tudo por isso nunca ninguém precisou sair de casa, vamos dizer, pra procurar outras pessoas, porque era tudo que a gente tinha mesmo. Durante o casamento alguém fez uma gravação e nós não percebemos e depois que eu vejo as minhas fotografias é que eu vejo um microfone desse tamanho assim na frente e aí durante a semana foram oferecer ao meu pai que tinham gravado o casamento. Meu pai, coitado, não tinha dinheiro nenhum, mas comprou o disco, um disquinho de 45 rotações naquele plástico mesmo, né? E aí, no fim do ano, nós fomos passar na casa do meu sogro que era perto de Piracicaba, São Pedro, São Carlos e meu pai também foi pra lá pra gente passar o ano novo todos juntos e meu pai levou o disco, foi uma surpresa muito grande a gente ouvir o casamento. Uns 30 anos depois, por aí, meu filho mandou transformar o disco em um cassetinho, depois desse cassetinho passou para o CD e depois passou pro computador, eu ia fazer isso, mas eu esqueci, mas eu vou passar agora pro pen drive porque assim eu vou levando sempre comigo onde eu quiser, em casa quando eu quiser ouvir a voz do meu marido, eu coloco no computador e ouço.
P/1 – Eu queria que você contasse um pouco dessa parte da ida pra lua de mel, vocês escolheram Piracicaba por qual motivo? Por que tinha parente perto?
R – Eu não sei por que a gente queria um lugar que fosse no meio de São Carlos, porque a ideia era passar o dia primeiro do ano em São Carlos, o que a gente queria mesmo pra lua de mel era São Pedro, mas nós paramos em Piracicaba por motivos óbvios, nós queríamos ficar mais perto de onde a gente estava saindo. Aí nós ficamos lá em Piracicaba, encontramos umas pessoas conhecidas passeamos bastante lá na Escola Lins de Queiroz, era ainda meio pequenininho e tudo… Depois nós fomos pra São Pedro que já é uma estação de águas e já é mais condizente com lua de mel, né? Mais por isso, porque a gente também não tinha como passar em lugares longe, em viagens pra Europa e nem pra lugar nenhum.
P/1 – E depois de um ano de casada é quando você volta a escrever? É isso?
R – Não, eu voltei a escrever agora tudo isso?
P/1 – Você parou de escrever o diário por um ano...
R – Parei com tudo. Um ano eu voltei a trabalhar lá na Lapa, tinha uma escola perto, tinha uma professora que ia dar a luz e me contrataram lá. Nessa escola eu fiquei 27 anos, lá no Campos Salles, eu tinha mais o que fazer do que ficar escrevendo, né? A gente transava adoidado, era uma época muito engraçada, porque era uma época que não tinha luz o dia inteiro, então lá na Lapa, por exemplo, de uma às seis horas da tarde não tinha força, desligava tudo. Então a gente não podia trabalhar, então eu trabalhava até a uma, almoçava mais tarde e depois recomeçava às seis e ia até a meia-noite pra compensar, mas em compensação da uma às seis a gente não tinha o que fazer, né? Então era ótimo! Foi de acordo com o nosso primeiro ano, nós não pretendíamos ter filho logo, mas acidentes de percurso... Eu tinha quantos anos? O Flávio, ele nasceu em fevereiro, foi concebido em maio mais ou menos... Também era muito abuso, né? Uma hora tinha que dar errado, entende? E a gente também não queria, mas fazer o quê? O primeiro filho não querer era muito relativo, né? Mas eu continuei a trabalhar e eu me lembro que eu fiz exame de segunda época em fevereiro, dia 16 de noite arrebentou a bolsa, eu tinha cinco provas pra corrigir, eu falei: “Ainda não tem nenhum tipo de contração, então aguenta firme aí que eu vou corrigir essas provas.” Corrigi as cinco provas, deixei as provas corrigidas e daí que eu fui pra maternidade, porque também eu nunca tinha tido filho, eu não sabia e eu falei: “isso é que é ter filho? Não tenho nada” depois é que eu vi o que era a coisa porque esse primeiro foi... Aquela época era muito complicada de ter... Foi forte, não se fazia assim uma cesariana rapidinho não. Eu fui pra maternidade às duas horas da manhã por aí e ele nasceu a uma e vinte até que não demorou muito, foi com fórceps e tudo, mas foi normal, praticamente normal, né? Agora uma coisa interessante aqui, um parêntese o que foi um saco na minha vida, você tem ideia? Durante o período de estudo da faculdade, todas as nossas experiências de fisiologia animal eram feitas com sapo, sapo espinhalado, sapo anestesiado, sapo morto, sapo com os aparelhos ligados, tudo era sapo. Então durante um ano ou dois anos, os sapos eram o que mais a gente mexia e fazia. Quando eu casei e engravidei naquela época, vale por aula isso agora, o meio de diagnóstico de gravidez era o chamado Galli-Mainini. Galli-Mainini estava já num passo adiante do (Agis-odec?) que tinha sido o teste anterior, esse teste anterior de gravidez se injetava urina numa rata e se a urina tivesse o hormônio de gravidez a rata desenvolvia no seu útero vários ratinhos. Então depois de certos dias matava-se a rata, abria a rata e via se tivesse ratinhos, o teste era positivo, demorava uns dias, eu não me lembro quanto, mas alguns dias. Quando eu fui fazer o teste de gravidez já estava em outra fase que era o Galli-Mainini, feito com sapo, então como é que faz? O sapo só fabrica espermatozóide, vamos dizer assim, quando ele está sobre a fêmea, quando ele está copulando com a fêmea, antes disso ele não fabrica espermatozóide. Então o que se fazia, pegava a urina da mulher, injetava nos sacos linfáticos do sapo e deixava umas duas horas, duas horas com conta-gotas, o sapo tem um buraco só, né? É cloaca, botava o conta-gotas e retirava material e olhava no microscópio, ele não deveria ter espermatozóides porque ele não estava copulando se ele tivesse espermatozóide é que a urina da mulher continha hormônio. Então era um processo muito melhor do que o anterior, primeiro porque você não matava o sapo, você deixava depois ele hibernando, passeando um tempo mais e podia usar o mesmo muito mais rápido e muita técnica mais simples, você puxa o material e vê se tem espermatozóide e fim de papo. E nas minhas duas gravidez o método usado foi o Galli-Mainini porque aí ainda não tinha nenhum desses outros processos mais modernos. Então por isso o sapo na minha vida é um bicho importante, certo? Pode não ser pros outros, mas pra mim é e então eu fiz teste Galli-Mainini para ver a gravidez, É engraçado, às vezes vem de um relance assim, uma emoçãozinha interna, mas não chegou nem a perceber porque sai, mas deve ter sido alguma coisa muito importante que ficou registrado em alguma célula pra dizer qual é a emoção que você sentiu, vamos dizer na hora. Porque isso é uma coisa que não tem que dizer, não tem que contar é só sentir, a primeira vez que você sente um movimento dentro não dá pra falar o que é, é uma coisa indefinível, né? A maternidade também, porque a maternidade é uma coisa biológica e só feminina mesmo, que nenhum homem pode participar ativamente. Nem que queira acompanhar tudo não dá, fica pelo caminho, mas é uma coisa importante, vamos dizer, do ponto de vista social e familiar porque o nascimento de um filho, principalmente o primeiro... Veja: não é só o filho que nasce, uma mãe que nunca foi mãe, um pai que nunca foi pai e uma família, porque a partir de então são três, então são muitas coisas que acontecem com o nascimento de uma criança. E o resto tudo é um negócio que dá coisas pra falar, porque são coisas... Arquétipos que você tem, que ela tem, entra em choque e que tem outra criança com isso. Então ser pai e mãe não é uma coisa tão simples como muita gente pensa ou como muita gente faz, entende? Dar uma escorregada, ter um filho nessas alturas é preferível não ter, certo? Aí eu tive o Flávio, chorou igual a um louco quando era criança, mas aí foi indo e eu voltei a trabalhar um mês depois, eu sempre fui uma tonta, eu podia ter licença, mas nem me passava pela minha cabeça, eu achava que ia atrapalhar muito os alunos e depois voltar quando a aula já estava começada e tudo. Depois eu voltei a trabalhar e daí nós resolvemos depois de algum tempo ter outro filho, eu falei: “Mas dessa vez nós vamos pensar” porque o Flávio tinha nascido em fevereiro, eu falei: “Espera um pouco, fevereiro é mês de férias, eu não tenho licença nem antes e nem depois, outro nós vamos pensar, nós vamos fazer nascer em setembro, porque aí eu tenho uns meses de licença, depois eu pego as festas todas e depois eu pego as férias ele nasce em setembro e eu vou voltar a trabalhar só em março”. Só que o Airton pegou uma caxumba e a caxumba não pode fazer nada, né? Sob pena de ficar esterilizado mesmo, né? E com isso atrasou e no fim das contas a Jurema foi encomendada em abril e nasceu em janeiro. Então de novo eu não tive nem férias, nem licença, nem nada e poderia ter tido porque a Jurema foi um caso muito... Eu tive um descolamento prematuro de placenta, a placenta descolou antes e ela quase morreu mesmo, teve convulsões e enfim... E durante muito tempo depois que eu saí da maternidade a gente ficou muito tenso porque até quando ela andou, falou e enfim teve todas as reações, você não sabia que sequela podia ter tido, né? Mas aí com dois filhos a coisa já esquentou, né? Mas a gente morava no apartamento e gente foi levando até... (troca de fita)
(FIM DA PARTE 1)
Ponto de Cultura Museu Aberto
Depoimento de Neuza Guerreiro de Carvalho
Entrevistada por Tiago Majollo e Mariana Caselato
São Paulo, 26 de novembro de 2009
Realização Museu da Pessoa
Entrevista nº HV_PC_MA 198 – continuação
Transcrito por Rosângela Maia Nunes Henriques
Revisado por Carolina Grohmann
P/1 – Então, dona Neuza, a gente parou no seu casamento, a gente parou naquela discussão sobre o convívio, como ele muda um pouco durante um tempo e a gente te convidou a pensar um pouco nesses dias que a gente ficou de pausa sobre esse convívio. Eu queria que você contasse um pouco do convívio desse casamento, o que mudou em você e no seu marido?
R – Inclusive esses dias eu pensei alguma coisa e vocês me perguntaram algumas vezes, não só você, mas algumas outras pessoas, né? Se eu tinha grandes mudanças na minha vida? Eu pensei bastante e eu acho que não sou uma pessoa muito complicada, acho que é o contrário, eu acho que sou fácil demais, isso não é muito bom. Mas eu pensei que devo ter tido...Se bem que não me lembro de nenhuma consequência uma mudança bastante grande quando a minha irmã morreu, não porque ela tenha morrido, eu era pequena e não entendia ainda muito bem as coisas se bem que com nove anos... Mas não ficou nada, mas principalmente porque eu passei a ser filha única. Então mudou muito a minha situação, eu não me lembro assim de ter sido muito mais paparicada, de minha mãe ter ficado muito atrás de mim, mas inevitavelmente devo ter mudado bastante nessa época de nove anos. Eu ainda fiquei um ano e meio no curso primário sem mudar o status, vamos dizer de estudante, mas esse status familiar mudou muito, mesmo que eles não quisessem, não fizessem força pra me paparicar ou não estivesse no pensamento deles, de qualquer maneira perdendo uma filha, a outra fica toda ela cercada de cuidados. Deve ter sido assim, mas não causou grandes problemas, porque eu não me lembro disso, qualquer coisa psicológica forte que tivesse acontecido teria deixado marcas principalmente porque a minha memória tem sido boa, né? Agora a seguinte mudança, que foi uma mudança longa, foi quando eu passei pro ginásio, pro colegial e faculdade porque além de passar para um meio cultural completamente diferente, intelectual diferente, eu passei familiarmente para um meio simplérrimo porque todos os meus parentes eram no máximo até o curso primário pra outro status completamente diferente, outro ambiente, outro comportamento, outra visão das coisas, outro mundo afinal de contas. Então isso ao longo desses 11 anos foi que me formou e que deu toda a mudança da minha vida, são 11 anos de estudo que eu fiz num meio que não se costumava muito fazer isso, um mundo que não se costumava nada. Então isso sim foi uma fase muito grande, a terceira grande mudança foi o casamento, o casamento você muda fisicamente por motivos óbvios, fisiologicamente porque toda parte hormonal começa a funcionar de maneira completamente diferente, você muda socialmente porque você passa de Neuza Guerreiro pra Neuza Guerreiro de Carvalho, de senhorita pra senhora. E psicologicamente muito mais, porque de uma pessoa você passa a ser... No caso de um casamento bem estruturado, em vez de uma pessoa, você passa a ser não duas, mas uma junção de duas coisas... E aprender a viver a dois não é uma coisa muito fácil, há muitas arestas pra serem aparadas, coisa que hoje a moçada não pensa muito nisso, né? “Ah vamos casar mesmo, depois a gente descasa quando não quiser mais!” Não era assim, o pensamento era uma força danada que a gente fazia pra aparar tudo que tivesse de torto. E foi isso que a gente fez no primeiro ano de noivado e continuou fazendo ao longo da vida porque ao longo da vida a gente muda, a outra pessoa muda e a gente tem que ter jogo de cintura uns e outros pra pode acomodar tudo. Então essa mudança sim do casamento e a quarta mudança agora onde nós estamos seria a maternidade, a maternidade é uma coisa importante, pra mulher não dá muito pra falar porque as outras pessoas... Quem não passou por isso, no caso o homem jamais pode entender a coisa como ela é fisicamente, fisiologicamente, psicologicamente, socialmente de tudo, eu não sei se eu falei esse pedacinho, mas eu costumo falar sempre que quando nasce uma criança, ela não nasce sozinha, nasce o filho, nasce uma mãe, nasce um pai mesmo que tenha outros filhos ele é pai outra vez e nasce uma família. Você era sozinha virou dois, agora três, quatro ou cinco, então essa família é uma célula social importante que se formou.
P/1 – Eu queria convidar você a descrever um pouco então um dia da maternidade, porque foi um período muito longo entre passagem, sabe? Imaginar como foi aquele dia?
R – Eu falei alguma coisa já, não falei? Que eu corrigi as provas antes de ir que o Flávio nasceu e depois durante... Isso foram três horas da manhã mais ou menos, eu achava que não tinha nenhuma contração, eu falei: “Isso aí é ter filho? Grande coisa!”. Mas depois a coisa é diferente, eu sabia teoricamente tudo, tudo e esse mecanismo fisiológico vai preparando realmente pro auge da maternidade e não tem como falar, não tem palavra, não tem frase, não tem nada, só tem essa sensação, parece que a gente é outra pessoa, outra coisa, a gente se desprega da gente pra ficar pensando e ligada ao filho e pode passar anos e anos, eu tenho um filho de 54 anos e adivinha se eu não tenho a mesma coisa: “Flávio, você pegou o agasalho pra sair?” A vida inteira essa ligação fisiológica e biológica sempre existe e sempre vai existir, mas descrever é impossível! De vez em quando tem alguma sensação que parece que dá uma coisinha assim que remete a essa situação, mas acaba logo, passa logo porque aquilo é do momento, de momento, não fica esticada.
P/1 – Neuza, você falou uma frase que eu achei muito importante na sua vida, agora a pouco, eu posso estar errado, mas você falou que sabia tudo, teoricamente, sobre a maturidade é você saber tudo de alguma coisa, se informar... De onde vem isso?
R – De onde vem? Porque eu sabia tudo informado?
P/1 – De tudo assim, de você procurar tudo, de você saber antes, de estar sempre preparada pras coisas, né?
R – Eu não sei, mas eu sempre fui muito curiosa e fico cada vez mais, eu estou fazendo alguma coisa que eu pesquisei... Agora mais ainda, porque agora eu tenho respaldo de um Google, de uma internet. Então se eu faço alguma coisa se eu ouço falar em alguma pessoa que eu não sei quem é nunca ouvi falar, ah, não tenha dúvida, eu vou correndo lá no Google e vou querer saber quem foi? Quando viveu? Se foi importante ou se não foi é uma curiosidade inata, inata mesmo e continuo fazendo isso. Agora no caso de eu saber tudo teoricamente é quando eu estudava... Eu estudei Biologia e Biologia tinha muita anatomia, então a gente tinha projeção lá no quadro negro do aparelho masculino, aparelho feminino e daí? Eu só sabia daquilo, porque eu não sabia como funcionava, não sabia nada, eu tive que aprender na prática mesmo, certo?
P/1 – E quando começa? Então começa no casamento essa preocupação com a memória ou isso começa... Quando que começa?
R – Não, foi um pouco antes, mas não consciente, lembra que falei que joguei fora todos os diários, naquele momento eu já devia ter uma preocupação inconsciente de manter alguma coisa, porque eu escrevia toda noite. E não sei por que cargas d’água, eu não entendi até hoje porque eu achei que eu me casando todo o resto acabava, o que não é assim, a gente sabe que não é, mas achava porque era assim: “não interessa mais nada o que passou, passou, agora minha vida é daqui pra frente” e botei fogo em tudo. Hoje eu tenho um remorso danado de ter feito isso, porque devia ter alguma coisa que eu devia ter escrito que devia ser muito interessante se bem que você vê que eu tenho uma memória, então tudo isso... Até depois de eu começar, tudo isso de memória e tudo que eu falo agora pra vocês, que eu falei com vocês desde praticamente que eu possa me lembrar é tudo de memória mesmo, mesmo.
P/1 – É que na verdade você falou: “botei fogo” você botou fogo literalmente, né?
R – Toquei fogo literalmente mesmo, eu estava fazendo faxina das coisas, eu morava nessa época numa casa muito grande, numa mansão lá na Avenida Dom Pedro e eu ia para um apartamento e minhas... Minha mãe ainda ficava lá, mas minhas coisas todas, eu tive que rever e arrumar. Então isso eu pus num latão que eu estava jogando a papelada e botei fogo literalmente.
P/1 – Eu queria que você descrevesse um pouco os seus filhos, porque é muito diferente você olhar... Eu falei isso na outra entrevista, mas você olhar a foto e escrever a vida da mãe falando dos filhos, tanto fisicamente como o que você sente deles pra gente entender um pouco mais essa maternidade?
R – Mais a maternidade? É difícil falar porque é uma coisa tão sentida, né? Quando a Jurema nasceu, a Jurema nasceu, eu tive descolamento de placenta antes e ela perdeu oxigenação e eu fiquei oito dias no hospital, não porque que eu precisasse ficar, mas porque ela estava na incubadora e etc. o mundo para simplesmente e parou, não tinha... Não interessa o que acontecesse fora, o que fulano falasse o mundo parou em função daquilo só. E eu só pude relaxar um pouquinho quando eu fui saindo da maternidade e eu fui para um médico que já era médico do Flávio, era um figurão chamado Pedro de Alcântara, era um médico conhecidíssimo, o Flávio chorava tanto que eu precisei levá-lo num figurão pra poder dar um jeito, né? E quando ela teve todo esse problema, telefonamos pra ele da maternidade direto pro consultório dele pra não ficar trançando. E a prática é uma coisa, né? Ele tirou a roupinha dela, botou ela na palma da mão levantou e fez assim (gesto) como se fosse soltá-la, ela estremeceu toda, ou seja, teve todas as reações e reflexos normais. Ele olhou pra mim e disse: “Essa menina não tem mais nada, tudo que ela teve já consertou” foi metade, vamos dizer assim do alívio, porque até que ela andasse, até que ela falasse, até que ela fosse à escola e aprendesse... Até que ela casasse, até que ela tivesse filho, vamos dizer a gente sempre estava com medo de alguma coisa, essa ligação umbilical que existe que você corta o cordão umbilical, mas abstratamente continua sempre é uma coisa muito pessoal e muito feminina. Nunca vocês homens vão poder entender uma coisa dessas. Limitem-se a respeitar muito a mulher, muito, muito no momento que vocês olham uma pessoa grávida com aquela barriga enorme carregando uma criança dentro, vocês têm que levar essa mulher assim com todo carinho, com tudo que vocês puderem se for seu mais ainda, né? Mas se não for também, né? A minha nora, por exemplo, teve gêmeos, né? A barriga dela, você olhava e dizia que ia explodir mesmo, não dava pra acreditar que aquilo ficasse daquele jeito. Então é um respeito muito grande que se tem por uma mulher não é uma coisinha assim que em alguns casos a gente vê passa a ser um negócio meio banal, não é assim não, viu?
P/1 – Quantos anos você foi casada?
R – Quarenta e seis. Com 46 anos de casamento, eu acho que tenho muito direito, vamos dizer assim às vezes de... Não de dar conselho as moças, mas dizer como são as coisas realmente, como elas acontecem porque pra manter um casamento de 46 anos não é tão fácil, né?
P/1 – Essa rotina, é claro, deve ter mudado muito, acontecido muita coisa, né? Mas se você pudesse ir contando um pouco dos momentos?
R – Então nós casamos, eu tinha... Eu já era velha nessa época, eu tinha 23 anos e ele tinha quatro anos mais do que eu, mas ele já era formado, eu já era formada. Então nós não éramos adolescentes, então não tínhamos aquela paixão... Paixão sim do ponto de vista físico e fisiológico, mas não aquela falação muito grande, a gente tinha vontade muito grande de voltar pra casa pra começar a vida, a lua de mel não interessava muito, sabe? Era assim: “Vamos embora, vamos embora, vamos começar a vida logo”. E nós moramos num apartamento que era grande, mas tinha o consultório junto com a residência, então o consultório tinha uma sala de espera, um banheirozinho, tinha o consultório e eu tinha uma sala de visita, uma sala que chegou a ser sala de visitas, uma cozinha que fazia as vezes de jantar, dois quartos, cozinha e banheiro. Eu morei durante nove anos nesse apartamento, vocês imaginam que não era tão fácil porque eu saí de lá, a Jurema tinha uns cinco anos e o Flávio oito anos, quase nove. Então duas crianças dentro de um apartamento com o consultório junto e que precisa ter todos os cuidados pra não deixar haver uma invasão, não atrapalhar e nem nada disso e pensando assim, pra trás, a gente vê que não foi tão fácil assim. Mas a gente era muito moço com muita garra, muita energia, nada disso deixa a gente cair e a Jurema durante algum tempo deu um pouco de trabalho, dava mais preocupação, porque ela era muito miudinha como até hoje ela é, você conhece a Jurema? Ela trabalhou aqui muito tempo, ela sempre foi miudinha, mas era bonitinha e quando ela nasceu, quando tinha um mês ou dois, entrou na nossa vida uma pessoa muito importante que eu acho que vocês podem botar isso... Ela já foi alguma vez entrevistada pelo Museu que foi a Penha, a Penha foi a babá dos meus filhos, eu não vou começar a falar da vida dela, porque é uma vida muito complexa, muito interessante, a Penha ainda está viva, completamente cega e tem mil coisas pra contar, mesmo que ela tenha dado um depoimento aqui, ela tem a continuação. Foi a Penha que me ajudou muito porque ela cuidava das duas crianças, a minha mãe morava a um quarteirão de distância, mas mesmo assim não era lá e a Penha dormia em casa, cuidava deles, cuidava da roupa deles e tudo isso. Durante esse tempo todo eu já trabalhava, eu lecionava no Campos Salles e eu levava... Quando o Flávio era um pouco maiorzinho, eu o levava pra escola e a Jurema deixava na casa da minha mãe e tinha uma aluna que morava no mesmo quarteirão e nunca mais vi aquela moça, mas gostaria muito de encontrar, pode ser até que tenha morrido. Ela descia todo dia até o consultório e me ajudava com as duas crianças, ela levava uma, eu levava o outro, deixava a Jurema na casa da minha mãe e nós íamos pro colégio, foi um tempo bastante difícil. Mais ou menos no fim desses nove anos, um amigo do Airton que era cliente dele insistiu e o obrigou a comprar um terreno muito bom que ele tinha no Alto da Lapa, praticamente obrigou: “Você paga do jeito que você quiser”, nós pagamos muito antes. E nesses últimos anos, nesses últimos nove anos, nós trabalhamos desesperadamente, eu cheguei a dar 55 aulas por semana com duas crianças e marido e tudo… E aulas pra dar que não eram fáceis. E nós construímos essa casa que tínhamos lá no Alto da Lapa na Rua (Tativa?), essa casa era uma casa muito grande, muito pessoal nossa, porque cada tijolo dela tem a história da gente e ela tinha a cara da gente. Era uma casa que as pessoas achavam “nossa! Mas que desajeitada”, um arquiteto achava aquilo horrível, a minha nora nunca quis morar nessa casa, porque ela é arquiteta e nunca concordou com ela. Mas era a nossa cara, tinha uma salona de jantar, devia ter uns 40 metros quadrados e tudo junto porque era assim a casa, não tinha uma sala de visita fechada. Quer dizer, todo mundo que chegava, acabava jantando e todo mundo no mesmo lugar e tudo junto. Essa casa foi uma casa que teve muita história e foi uma casa construída inclusive para que meu pai e minha mãe morassem junto, porque eles tinham que ficar... Agora era longe e eles tinham que ficar com as crianças um pouco e quando a gente saía sempre ficava alguém porque era um lugar mais isolado, isso me custou 30 anos e um pouquinho de... Mas o meu marido não gostava do meu pai, por motivos pessoais, meu pai era meio vaidoso e tal, meu marido não gostava... E eu precisei ter muito jogo de cintura sim, porque a gente morava junto dentro da mesma casa, dentro do mesmo corpo da casa. Então isso não facilitava muito as coisas, mas foi dando certo e nessa casa... Eu nunca tive grandes dramas físicos de saúde, eu só fiz uma histerectomia sabe o que é isso? É a retirada do útero porque eu tinha muitas hemorragias e não pretendia ter mais filhos, o susto da Jurema já foi grande demais. Chegou e a gente foi trabalhando, trabalhando e foi uma parte… A nossa fase construtiva e a nossa fase assim de estabilidade emocional, física... O que a gente tinha que aprender um do outro na parte de convivência, fosse sexual ou fosse pessoal mesmo, a gente já, nesses nove anos, a gente já tinha aprendido, todas as arestas já estavam aparadas e agora as arestas que vinham não eram nossas, eram de família não só minha, mas da família dele. Então a gente... Mas foi muito importante a gente estar muito entrosado porque a gente tinha estrutura pra aguentar os problemas que viriam e inevitavelmente vem… Você não casa só com a mulher, você casa com a família inteira. E nessa casa eu recebi muitos amigos, a casa vivia cheia, quando eles eram maiores, meus filhos eram maiores, então eles traziam os amigos todos, apareciam três, quatro ou cinco pra almoçarem sem pensar, no domingo de tarde aparecia uma meia dúzia pra comer canja de capeletti e foi aumentando o número, aumentando o número, até que eu precisei cortar porque tinha um montão de gente. Fomos sócios de um clube muito bom da Lapa, o Clube Jaraguá, mas paramos um pouco porque o que não era meu aluno que a gente encontrava… Porque a Lapa inteira estava lá e o que não era meu aluno, era cliente do Airton e a gente não tinha muito sossego. Mas eu levei muito as crianças pra lá de manhã e passeava bastante e uma coisa... Posso voltar um pouquinho? Uma coisinha rapidinha, a Sears da Água Branca tinha sido inaugurada e, é claro, marketing é marketing em qualquer tempo, tinha um ônibus que circulava pela Lapa, então ele passava em frente ao consultório, eu já tinha ido dar aula nessas alturas, eu dava aula de sete às nove, nove e pouco, o ônibus passava, eu pegava as duas crianças, entrava dentro do ônibus e o ônibus dava toda a volta pela Lapa ia até a Sears e nós descíamos e sempre comprávamos alguma coisa, é claro. E depois tomávamos o ônibus de volta e descíamos em casa e tinha sido dado o passeio das crianças principalmente ir lá pra comprar o amendoinzinho, porque a Sears... Não sei se vocês pegaram essa época, o cheiro da Sears é inconfundível é aquele cheiro de amendoinzinho torradinho é só ela que tem esse cheiro mesmo. Lá em cima, na outra casa, já não dava muito pra fazer isso, nessa outra casa nós tivemos um financiamento na Caixa Econômica, mas sempre atrasava como sempre, até que a última parcela, nós já tínhamos acabado de pagar tudo, compramos um carro novo que foi um fusquinha zero quilômetros. Anteriormente nós tínhamos tido um Fordinho 27 de breque de barão que eu nunca soube o que era breque de barão a não ser quando eu tive que brecar numa ladeira, aí que eu vi que tinha que botar todo o meu peso pro... Nem vocês sabem o que é isso, não é hidráulico, então você tem que por todo o peso pra brecar e eu só entendi isso quando tive que fazer. E depois dele nós tivemos um Citroën daquele baixinho, não desses novos é aquele que é encostadinho no chão, difícil de dirigir, porque o câmbio era no painel, imagina o painel que é um câmbio e as embreagens, elas não eram... Eram como é agora, mas antigamente não era assim, antigamente era preso no chão e de cima pra baixo e o Citroën era o contrário, era como é agora e eu dirigia já porque eu tirei carta em 1951. Então eu dirigia o Fordinho e depois dirigi o Citroën que tivemos que por um taco desse tamanho pra poder alcançar, porque eu era perna curta e meu marido também era baixinho. Aí com esse carro nós começamos a viajar um pouco, viajamos pra Brasília com os dois, ida e volta assim... Hospedados no Hotel Nacional, a gente tinha um pouquinho de dinheiro ou as coisas eram mais fáceis ou mais baratas não sei. Hotel Nacional e visitamos Brasília inteira e voltamos muito satisfeitos e daí pra frente... Eu nunca fui de viajar muito, nunca tivemos dinheiro pra viajar pro exterior e outra quando a gente tinha um pouco de... Que poderia ter ido viajar sempre os filhos precisavam de alguma outra coisa mais importante, então passava a ser mais importante… Mesmo assim, nessa casa, ainda fomos com a desculpa de um Congresso, nós fomos para os Estados Unidos, tipo bate e volta passando pelo México e foi uma viagem bastante interessante principalmente pra nós que vimos as coisas interessantes, não fomos pra fazer compras, porque na turma do Congresso... Um caso muito interessante, a primeira parada daqui foi em Lima, no Peru, e uma das senhoras estava com o marido dentista, né? Comprou um calendário Asteca desse tamanho (gesto) quer dizer, meio metro de diâmetro pesado e ela foi toda a viagem carregando o dito cujo e na volta o avião fez escala no mesmo lugar (riso) foi muito engraçado isso. E nós não ficamos fazendo compra, fizemos claro, mas não muito, mas vimos coisas que interessavam, por exemplo, a mim a coisa... Tem coisas que ficam, né? Foi a visita ao Cemitério de Arlington, enquanto a turma estava conversando, procurando saber onde compravam as coisas mais baratas, eu estava sentido aquela coisa, uma coisa muito forte, muito perto do... A troca de guarda do cemitério do Kennedy, sabe? Pra mim, começam a tremer por dentro as coisas e são coisas que ficam e se fixam e não saem mais… A qualquer hora que eu me lembro dos Estados Unidos eu me lembro disso. Tem outras coisinhas também, mas...
P/1 – Quanto tempo vocês ficaram lá?
R – Quize, 20 dias, nessas alturas, eu já tinha desenvolvido um método de lecionar que é meu orgulho profissional, vamos dizer assim, inclusive é uma maneira de dar aula que eu não falo tanto, não explico tanto, mas eu organizo um tipo de trabalho que o aluno é que vai procurar fazer a pesquisa e escrever. O tema era: quanto mais se é ensinado, menos se aprende, porque ensinar é fornecer as coisas dadas e aprender é procurá-las e eu tenho um trabalho que foi inclusive registrado pelo MEC, não foi pra frente comercialmente porque eles queriam que eu fizesse uma fase, um exemplar de base e não tem cabimento porque se é o aluno que vai fazer separado como eu vou dar pro professor um preenchido, ele pega qualquer livro de texto e tem, né? Mas eu tenho, ainda, esse calhamaço desse tamanho e como eu tinha já esse tipo de trabalho e eu tinha uma pessoa que... Uma monitora, eu deixei tudo, tudo arrumado, ela conseguiu dar a aula todinha sem a minha presença e eu deixei todas as sabatinas prontinhas já no mimeógrafo, deixei tudo pronto. Eu cheguei de lá 15 de novembro, no dia 16 de novembro... Olha, chegamos dez ou 11 horas da noite, aquele monte de gente, e no dia 16, sete e meia da manhã eu estava na escola pra aplicar a sabatina, eu sempre fui muito caxias, muito boba, os dois filhos que eu tive, eu não peguei um dia de licença, porque os dois nasceram nas férias, eu falei com você, né? A Jurema, eu pretendia, mas não sei, a caxumba atrapalhou, eu contei isso?
P/1 – Contou.
R – Mas não tive um dia de licença e esse dia também, eu voltei e fui dormir duas ou três horas da manhã e sete ou oito horas eu estava na escola porque tinha dito que dia 16 eu viria pra aplicar a sabatina e eu estava lá. E daí pra frente sempre que eu me lembro, eu sempre sou assim, eu não consigo relaxar nessa capacidade que eu tenho de ser certinha, é muito chato.
P/1 – E teu marido era assim também?
R – Não, ele era muito certinho, ele era uma pessoa extraordinária, mas ele era muito mais calmo nesse ponto, então ele era exatamente o contraponto, sabe? O equilíbrio que dá certinho, eu sou... Ele dizia que eu faço as coisas tudo agitada e faço tudo mal feito, mas ele fazia tudo perfeitinho. Como dentista, ele foi alguma coisa assim muito extraordinária. Esta semana agora eu recebi um e-mail da Jurema dizendo que ela foi ao dentista na Itália, eu coloquei no blog isso, ela foi ao dentista lá na Itália e o dentista disse pra ela que nunca tinha visto um serviço feito daquele jeito, nem em livro e nem em faculdade e nem em lugar nenhum! Que ele queria vir aqui pra tratar dos dentes com essa pessoa e queria levar essa pessoa pra lá pra levar pra dar aula. A Jurema custou a dizer pra ele que ele tinha morrido fazia 20 anos, ele disse: “Mas ele é o Michelangelo da odontologia” nós ficamos todos orgulhosos, mas ele era perfeito. Aí o dentista lá ficou ainda mais surpreso quando ela falou que fazia 30 anos que ela tinha aquela coroa, né? Então ele fazia isso, ele era perfeccionista mesmo por isso nós nunca fomos ricos, porque ele curtia tanto que ele fazia que ele levava aos mínimos detalhes e era um artista mesmo, né? E artista não ganha dinheiro, né?
P/1 – Voltamos até o momento do casamento, depois daí pra frente...
R – É… A convivência é a vida de família.
P/1 – A senhora falou da parte da viagem que era mais ou menos anos 80 ou 90?
R – A viagem? 72, 73.
P/1 – Depois disso a senhora mudou de casa de novo ou continuou...
R – Não, eu já tinha mudado, eu mudei em 62 pra essa casa nova.
P/1 – E depois não mudou mais?
R – Mudei só pra esse apartamento que eu estou agora, eu fui mudar em 89, eu morei 26 anos nessa casa. Então muita coisa aconteceu nessa casa nossa, continuamos a fazer aquilo que a gente fazia de sair na sexta-feira, lembra que eu falei que a gente agora tinha uma casa maior pra comprar mais bugiganga, mais quinquilharia ainda, né? A gente ia e namorava adoidado, ia em boate, tirava aliança pra fazer de conta que não era casado e fazia mil e uma coisas, tudo que tinha direito.
P/1 – Dessa parte da história eu quero um detalhamento maior!
R – A gente ia, por exemplo, uma vez fomos com um casal numa boate e uma boate, hoje não tanto, mas naquela época era tudo casal que não era casado mesmo, né? E se eu chegasse numa boate de parzinho tudo de aliança na mão até chama a atenção e, além disso, a gente se comportava como se não fosse casado, né? Isso era o tempero do casamento, sabe? E é o tempero mesmo, a mudança de comportamento, a mudança de atitude, esse dia estava num fogo, chegava em casa, tinha uma garagem e em baixo tinha umas escadinhas, não sei hoje como eu subi as escadinhas e no dia seguinte, eu acordei na cama sem uma peça de roupa no corpo, mas acho que é porque meu marido precisou me ajeitar pra dormir, né? Ele era mais comedido um pouco, mas a gente aprontava, aprontava mil e umas, viu?
P/1 – Eu queria que você contasse... Você mudou só quando seu marido faleceu ou você mudou antes?
R – Da casa? Eu mudei bem antes, eu mudei... Como ele era diabético e ele teve problema de vista, ele perdeu uma das vistas, ele perdeu a visão de profundidade e a visão de profundidade pro dentista é essencial e ele precisou... Ele parou em 89, mas ele também já tinha mudado de consultório, porque aquele consultório que ficou na Faustolo... Esqueci de contar duas coisas muito interessantes... Eu morava no último quarteirão da Faustolo, naquela época os ônibus passavam por lá em baixo da nossa janela e a janela... Não tinha jardizinho, era janela na própria calçada e aquele barulho... E eles engatavam justamente embaixo da nossa janela, eles engatavam a primeira pra subir e era aquele barulhão! Tinha uma garagem perto dos ônibus que ficavam parados lá esperando pra dar baixa e uma noite nós acordamos com o ônibus dentro do quarto. Por pouco a parede inteira não caiu! Se tivesse caído, tinha caído em cima da gente porque tinha um metro e pouco de distância da janela onde estava a nossa cama, mas a parede rachou toda e o ônibus ficou com uma boa parte por dentro do quarto, precisamos dormir em outro quarto… Foi um trabalhão danado! Uma outra vez teve um caminhão que foi subindo aquela subidona toda carregado de cabos de aço e quando chegou lá em cima, ele virou, empinou e todo o material caiu pela rua inteira, cobriu a rua inteira de cabo e deu um trabalhão e outras coisas que aconteciam nessa rua. Teve outra vez, caiu e voltou também um caminhão com sacos de farinha, encheu a rua inteira e outra vez foi um caminhão, alguém deixou um caminhão estacionado, presumiu-se que pra fazer algum programa com alguma mulher, e era um caminhão carregado de gasolina que começou a pingar, pingar e começou a escorrer gasolina, precisamos chamar o corpo de bombeiro. Todas essas coisas, isso tudo aconteceu na Faustolo, depois que nós fomos pra cima, pra Rua Tativa, ele ficou com o consultório na Faustolo, mas pra evitar qualquer susto, ele passou o consultório pra onde era a cozinha, porque quando era na frente cada vez que a gente voltava... Eu fechava os olhos e pensava “será que está inteiro o consultório ou entrou alguma coisa dentro?” porque era um lugar meio perigoso. Ele passou o consultório pra cozinha e ainda ficou uns bons tempos lá, ele mudou lá pra Heitor Penteado, eu acho que mais ou menos na época que nós viajamos por aí. Aí ele mudou pro outro, porque lá era alugado ainda, ele comprou outro consultório, fez dois consultórios assim com o objetivo de trabalhar com dois clientes, enquanto um espera... Esse tipo de ergonometria que chama é qualquer coisa assim, mas ele não tinha esse estilo de trabalho, não tinha jeito de ficar correndo de um pra outro, ele gostava de conversar e não deu certo e continuou trabalhando num só. E em 89 ele atingiu, vamos dizer, a consciência de que ele não podia mais a continuar a trabalhar e parou mesmo assim. Ele ainda viveu 11 anos, além disso, ele tinha também uma fibrose pulmonar, ele tinha uma tosse meio boba e um médico disse: “Olha, não cheguei à conclusão quanto a radiografia, vou te mandar pro Hospital das Clínicas, porque lá eles têm gente especializada”. Isso foi em 97, mais ou menos. Até chegar a um diagnóstico demoraram porque eles fazem a coisa como deve mesmo e não era câncer, não era nada, mas era tão grave quanto, porque fibrose pulmonar é uma doença que não chega a ser degenerativa, mas ela vai em frente sempre e devia dar uns dois anos de sobrevida mais ou menos, mas o tratamento dele lá nas Clínicas foi muito bom e ele durou ainda três anos e sete meses depois do diagnóstico. Ele teve um enfarte também antes disso tudo, mas do enfarte, ele não teve muitas consequências não, porque quem tem enfarte é muito mais bem tratado, porque aí fica o susto e aí se cuida mais, né? Mas não foi por causa do enfarte não, porque ele tinha uma vida praticamente normal. A nossa vida mudou um pouco porque a gente fica com medo, porque durante uma relação, vamos dizer assim, o gasto de energia é muito grande, a fisiologia toda pra gente que sabe, né? Porque quem não sabe vai em frente, a fisiologia toda muda muito. Ainda na casa da Rua Tativa, como nós moramos 26 anos lá, muita coisa aconteceu, muita coisa importante e coisas que ficaram gravadas, uma delas foi que nós passamos a acampar enquanto morávamos lá com duas crianças, quatro pessoas pra viajar ficava muito caro e nós descobrimos, porque era comecinho da coisa ainda, descobrimos que acampando ficava mais barato. Eu fui contra de cara “não quero, não vou, não gosto”, mas os três me convenceram e quando eu me convenço eu vou de cabeça mesmo. E aí foi todo um tempo de muito... Muito gostoso de muita preparação e compramos barraca, porque não se acostumava acampar naquela época, isso foi em 60 e poucos por aí e nós fomos... Resolvemos acampar e comprar barraca, a barraca que nós compramos parecia um circo! Tinha dois por quatro e nós fomos acampar com um primo nosso, dois carros, e íamos a Foz do Iguaçu e como é muito longe resolvemos parar em Cascavel, chovia o que podia e aí fomos montar... Paramos no posto de guarda onde sabíamos que era seguro e “vamos montar a barraca”, inexperientes como nós, nós tínhamos um Opala grande que tinha um porta mala enorme, muito bem arrumadinho tipo meu marido, só que a barraca no fundo de tudo, toda a tralha em cima, ou seja, a gente teve que tirar tudo pra tirar a barraca de baixo e montar, montar com o esquema de uma barraca enorme e três, quatro pessoas pra montar embaixo de chuva e foi terrível. Essa história é muito engraçada, quando nós estávamos prontinhos, a barraca... As duas eram iguais, a família deles e a família nossa quatro deles e quatro nossos dentro da barraca, “agora vamos fazer o jantar” já era de noite, né? E conversando lá com os guardas “essa cidade tem muito movimento?” “tem, tem muito turista” e aí chega outro guarda com uma cobra pendurada num pau e todo mundo levou um susto danado “tem muita cobra por aqui?” Ele falou: “por que a senhora acha que chama Cascavel?” O medo já foi grande, aí “vamos jantar?” “vamos jantar” já tínhamos comprado panelas, aquelas panelas que cabem uma dentro da outra, mas eram todas elas as primeiras, super rudimentares e compramos cantil. Eu nem percebi se o cantil era de um litro ou se era de dois litros e aquele monte de sopa pronta, fogão novo e ligamos o fogão com bujãozinho de gás... Lembra que isso tudo agora é comum, mas naquela época não era comum, botamos a água pra ferver e fizemos a sopa e a sopa não engrossava, aí nós fomos descobrir que o cantil era de dois litros e não era de um. Então tinha o dobro de água, bom, então vamos tomar a água quente com gostinho de sopa e na hora que nós fomos pegar a... Alguém bateu com a cabeça num avance da barraca e o avance fez um bico e caiu a água toda que estava em cima caiu dentro da panela, ou seja, aí sim nós tomamos água quente mesmo. E daí pra frente foi só gozação, chegamos até Foz do Iguaçu não tinha camping, era tudo barro mesmo, barro grudento e a gente andava cem metros pra poder lavar louça, encontramos um grande amigo que depois ficou grande amigo, que nós apelidamos de Professor Pardal, porque ele vivia dando trombada nas árvores. E a gozação maior que a turma fez comigo, vocês também vão rir! Foi que eu levei em toda a bagagem, eu levei peruca no camping, naquela época usava peruca, usava muito, eu sempre tive pouco cabelo, eu usei peruca adoidado, eu usei peruca pra dar aula, eu tenho umas fotografias de peruca loura, peruca Chanel, perucas de todo jeito. E eu levei dentro da mala a peruca! É claro que não cheguei nunca a usar, mas até hoje quem é da turma me goza por causa da peruca. E daí pra frente nós acampamos muito porque daí meu filho fez 18 anos, ele ajudava a dirigir o carro que é muito difícil, passava um Cometa do lado da gente, o trailer virava assim, porque depois da barraca nós tivemos trailer e um pedaço muito engaçado também da barraca é que é muito feio, vocês já estão acostumados, né? Nós tínhamos uma barraca chamada... A gente chamava ela de holandesinha porque era um cliente dele que trouxe da Holanda mesmo, porque aqui tinham essas barraconas feito um circo feias, sem graça nenhuma, aquela não, parecia uma casinha mesmo. Externamente tinha paninho e por dentro pendurados tinha dois quartos de pano, dois quartos e depois uma salinha e tinha uma parte, um avance que funcionava como terraço e a gente acampava muito com essa barraca. Ela chamava muito a atenção porque era uma barraca de formato diferente, então todo mundo parava pra olhar a tal de holandesinha “olha que bonitinha, olha que gracinha de onde veio?” E nós nos divertíamos porque a gente ficava dentro do quarto transando adoidado e ouvindo todo o comentário de volta, então isso era um negócio muito bacana porque era excitante pra burro, você já viu você tem um paninho em volta de você, eu morro de rir cada vez que... Nós achávamos os melhores lugares, as coisas mais diferentes, então a gente ficava com aquele paninho em volta da gente e a turma conversando e a gente ouvindo todo o papo e a gente lá dentro. Olha, curtimos muito isso, viajamos pra Bahia inclusive... Mas aí já foi de trailer, as barracas duraram menos tempo, aí compramos um trailer pequeno bonitinho e fomos pra Bahia, fomos até Salvador e chegamos... Íamos perto do Rio Jequitinhonha por ali, o guarda nos parou, eu pensei: “Ixi, e agora?” tem que ter licenciamento e tudo, estava tudo em ordem, mas... Aí ele parou: “Será que o senhor pode abrir a porta pra gente olhar a casinha por dentro?” Ele queria ver como era por dentro e era lindo de morrer, porque tinha uma mesa com dois bancos, esses bancos que levantavam e formavam uma cama, então formava uma cama de casal e os meninos dormiam no terraço e tinha cozinha, tinha banheiro, era uma gracinha, mas uma gracinha. Uma vez que nós pegamos uma estrada ruim na Bahia ele chacoalhou e quando nós paramos e abrimos tinha macarrão estrelinha e pó de café o trailer inteiro, até o fim que nós vendemos o trailer a gente ainda achava macarrão estrelinha pelos cantos. Então foi tudo muito divertido porque a gente tinha muito bom humor pra fazer as coisas, viajávamos com os dois filhos e o Flávio nessas alturas tinha 18 anos já e viajavam com a gente. Nada deixava a gente chateado, tínhamos bons amigos pra acampar também e tem muitas histórias interessantíssimas se eu parar pra pensar ainda vou... Camping foi uma coisa interessante, até que os tontos aqui resolveram comprar um sítio e sítio e camping não dá ou faz uma coisa ou faz outra. E aí compramos um sítio e curtimos muito o sítio, era um sítio que não tinha nem luz, era no meio da estrada, quer dizer, a estrada passava no meio do sítio, né? A Fernão Dias em Extrema, tínhamos até piscina e não tinha força, era tudo no braço ou então com motor de gasolina, mas depois a Jurema casou e foi morar adiante de Extrema, em Pouso Alegre, e aí o sítio passou a ser parada técnica pra fazer xixi e depois ia pra casa dela, aí acabamos vendendo. Mas em compensação tínhamos também uma casa... Nós fomos gente de bem, viu? Tínhamos uma casa em Caraguatatuba, uma casa daquelas bel recanto pré-fabricada e como nós curtimos aquela casa, como tinha gente sempre de visita, eu fazia mil e um patezinhos, a turma não ia pela casa não, iam pelos patezinhos que tinha pra comer. Era sempre assim e saíamos lá uma, duas horas da manhã. Quando eu penso agora, eu fui muito corajosa, às vezes saía de lá uma ou duas horas da manhã e aí o Airton dizia: “Amanhã eu tenho cliente cedo, vai dirigindo você” estava todo mundo dormindo no carro e eu ia de Caraguá até São Paulo e a gente era moço era diferente, né? Então essa casa de Caraguá também foi muito aproveitada, tudo tem sua fase, além disso, tem duas coisas ainda que eu precisava... A viagem é uma viagem que nós fizemos de navio, eu falei? Essa viagem de navio fomos nós dois só, a viagem para os Estados Unidos eu falei, mas a viagem de navio, era um navio da Hamburg Süd e cada vez que eu vejo um navio da Hamburg Süd volta toda essa memória... Era uma companhia que eles tinham navio de baixa tonelagem em que eles tinham todo um pequeno espaço pra passageiro, não era tão pequeno assim, mas era pra passageiro, ele só admitia 12 passageiros. A vantagem é que eles tinham preferência nos portos por isso então eles tinham... E nós fomos com mais um primo nosso. Éramos dez passageiros e mais duas pessoas desconhecidas que passaram a viagem inteira na cabine, enjoadas. Então nós éramos dez só. Eram umas acomodações tão maravilhosas! De um lado do navio estávamos eu, meu marido, o meu primo e a mulher dele, do outro lado o Flávio tinha uma cabine só pra ele, a Jurema tinha uma só pra ela, os outros dois meninos cada um tinha uma cabine pra si com camas enormes. Enquanto a gente jantava, eles enchiam o quarto de frutas pra noite. Paramos em Buenos Aires e o navio ficou carregando e nós ficamos passeando, mas na volta ele parou em Montevidéu. Como era hospedagem nossa, a gente ia passear e o mordomo dizia assim: “Volta pra hora do almoço” ele falava tudo em alemão. E a gente voltava porque a comida era uma coisa extraordinária. “Vocês querem sair de noite pro cassino?” Eles tomavam conta das crianças, hora do café todo mundo aqui e a gente voltava, foi uma viagem assim de navio diferente, navio de baixa tonelagem e levantava a ponta dele e ia lá em cima e voltava, chacoalhava... Na volta, em Santa Catarina foi um negócio, caiu comida por todo lugar, um negócio meio... Mas foi interessante, então essa foi uma das coisas que eu acho que não tem mais outra coisa não se tiver eu volto. Aí nós voltamos a mudar de casa, a Jurema já casou, o Flávio já casou nenhum dos dois casaram em igreja, nenhum dos dois casou em grandes pompas e nem circunstâncias. A Jurema casou grávida e o orgulho dela era casar grávida, não era o casamento, só que ela foi passar a lua de mel em Caraguá e perdeu o nenê e depois custou bastante pra engravidar, mas ela já tinha engravidado de novo, já tinha filho, as crianças já estavam crescendo. O Flávio já tinha casado também, teve gêmeos e aquela casa estava muito relaxada, muito bagunçada porque tinham quatro crianças agora circulando lá por dentro. Tinha a parte que era garagem e era cheia de almofadões que era da criançada brincar, era a casa mesmo deles e sempre muita gente, sempre muito movimento. Só que a gente vai ficando mais cansada, o Airton já tinha tido um enfarte e nós já tínhamos comprado esse apartamento há muito tempo, compramos o apartamento, em 80 estava alugado, durante algum tempo alugado. Então cada um agora vai pra sua casa e vamos pro apartamento, a Jurema já morava em São Roque, veio de Minas pra São Roque que era mais perto, a gente estava sempre lá. Nesse apartamento, nós entramos… O Airton tinha tido não um segundo enfarte, mas uma angina e foi direto do hospital pra lá, mas aí já era um pouco mais tranquilo, porque num apartamento era muito mais fácil. Eu pensei: “Agora ninguém mais vai querer a casa da vó porque é pequeno” ledo engano, porque eles continuaram a bagunçar os quatro, isso foi em 89 e nós viajamos muito pra São Roque, porque aí nós fizemos uma casa lá que depois demos a casa pra Jurema e fizemos outra pequena. Então a gente ficava às vezes 15, 20 dias por lá, meu pai e minha mãe estava juntos ainda com a gente no apartamento também, mas em 93 meu pai morreu lá em São Roque. O Airton continuou dirigindo ainda algum tempo, durante algum tempo ele não dirigiu mais a noite, então a gente ia pra qualquer lugar, escurecia era eu que pegava, até que um dia ele me entregou a chave e disse: “Não tenho mais condições de guiar, assuma agora.” Esses pontos-chave e são muito dolorosos porque quando eles acontecem, eles marcam uma passagem, é um ritual… Praticamente foi esse dia e o dia... Porque ele sempre gostou muito de mexer com ferramenta e tudo, o dia em que ele deu todas as ferramentas dele pro Flávio, pro meu filho, foi outro dia assim doloroso, porque é uma hora que ele diz assim: “Não posso mais fazer isso, estou com essa deficiência grande”. E outra coisa é o relógio de casa e esse relógio é famoso, foi um relógio que tem um carrilhão muito bonito, tem um som muito bonito, mas não é nada de extraordinário, mas é de dar corda ainda e era obrigação dele dar corda no relógio... Ele tinha que subir numa escadinha e dar corda no relógio, até que não pode mais dar corda no relógio, aí não foi assim acintoso, mas ele foi deixando e eu tive que assumir também as cordas do relógio. Aos poucos eu fui tendo que assumir, mas não foi uma coisa fácil porque você se arrisca a melindrar a pessoa, não tem uma linha certa pra você... O que você deve e o que você não deve fazer se você se omite um pouco a pessoa fica esperando que você faça alguma coisa, se você passa um pouco dos limites ele pode dizer, como eu ouvi uma vez, “eu ainda sou gente” sabe? Porque é difícil você verificar uma coisa dessas, mas aos poucos foi indo e eu tinha que levá-lo e aí eu via a progressão assim dele, por exemplo, durante o começo ele ia sozinho de ônibus, depois eu comecei a levá-lo, mas a gente parava no estacionamento subterrâneo e subia tudo aquilo e ia pro ambulatório. Numa fase seguinte, ele já não aguentava vir de lá do estacionamento até lá, eu passava com o carro, deixava ele na porta do ambulatório e ia estacionar o carro, ele me esperava, porque pra andar lá dentro, ele também não tinha muita segurança. Numa outra vez o meu filho teve que levá-lo porque eu tinha que descer com ele, isso já foi das últimas vezes e a última vez mesmo, além de descer com ele e ir pra lá e pra cá, que eu sempre ia com ele andando, essa última vez ele já foi de cadeira de rodas pra tomar o soro que ele tomava toda semana. Então foi uma coisa assim que se você para pra pensar a coisa é consequente, é seguido, seguido e você vê cada passo pra trás que a pessoa vai dando.
P/1 – Neuza, o primeiro momento desses momentos chaves que você chama foi o momento da chave?
R – Da chave. Bom seria mesmo quando ele parou de trabalhar, mas é que chegou o momento.
P/1 – Você lembra o que na hora você pensou que você refletiu sobre isso, você tem alguma lembrança disso?
R – As coisas acontecem em lugares que você não pode... Não dá pra você pensar, ele fez isso, a minha memória fotográfica funciona exatamente no meio da garagem quando eu estava chegando perto do carro que ele me deu a chave e eu já tive que abrir. Então eu não tive um tempo, não foi assim lá dento de casa que ele me deu e falou: “olha daqui por diante você vai fazer isso” entende? Foi numa situação que eu tive que pegar ir...
P/1 – A senhora esperava, né? Que estava chegando esse momento?
R – Eu esperava, mas sabia que um dia isso ia acontecer, mas a cabeça da gente é muito esquisita, viu? Você foge do pensamento, não fica pensando mesmo que você está sabendo que vai acontecer, mas você não está... Outra coisa que eu fiz muito durante esse período da doença dele, porque a partir desse tempo que ele piorou um pouco mais, o mundo todo passou a girar em torno dele, tudo. Ele sempre gostou muito de ler, eu sempre gostei muito de ler e eu lia muito pra ele, ele não podia mais ler e eu lia. E a gente parava e discutia as coisas, comentava as coisas, ele morreu numa quinta-feira de manhã e na terça-feira de tarde eu estava na cama com ele, estava lendo pra ele, eu estava lendo pela segunda vez, mas pra ele era a primeira, o livro do Vargas Llosa, A guerra do fim do mundo e eu parei pra... E nós começamos a falar “será que o Lombroso tinha razão?” porque ele explicava pra pessoa ruim ou assassina em função do cérebro, da forma da cabeça... Então nós ficamos discutindo um pouquinho, nessas alturas eu consegui pensar alguma coisa… Que ele fazia isso pra ele mesmo se testar como estava o raciocínio dele, porque ele era muito racional. Uma das coisas por causa dessa fibrose pulmonar, ele ia tendo cada vez menos oxigênio, entrava o oxigênio, ele não tinha falta de ar, mas não passava pro sangue e uma das coisas que podia acontecer era ele entrar em coma por falta oxigênio cerebral. Então eu tenho a impressão que ele queria se avaliar pra ver, porque não tinha muito sentido a gente discutir uma coisa ali, ele já estava com um pouco de febre, isso foi na terça-feira de tarde, na quarta-feira ele não quis mais saber de nada e na quinta-feira ele morreu. Então era pra saber, inclusive, ele estava raciocinando perfeitamente, eu li até o último dia, até a última hora. Aí como ele já tinha tido um infarto, o coração já estava comprometido com pouquíssimo oxigênio. O coração tinha que fazer um esforço muito grande pra transportar aquele pouco de oxigênio pro corpo todo. Tanto que durante muito tempo, ele viveu... Como ele era muito racional, ele tinha muito cuidado, ele viveu em função daquilo que ele podia só, o médico dele conversava “faça só aquilo que você pode fazer, não se esforce mais.” Então foi indo numa sequência e aí então o coração não aguentou, na verdade ele morreu de um infarto imediatamente no meu braço, morreu na minha cama, depois que ele morreu, eu toquei todo mundo do quarto e falei: “Eu quero os meus dez minutos agora.” E a outra coisa interessante, eu fechei a porta e falei: “Agora sou eu e ele” eu falei e falei sem parar se você me perguntar, eu não me lembro de uma palavra que eu falei, mas eu falei dez minutos com ele como se ele tivesse vivo, não sei nada, apagou... Eu tenho a impressão que não foi apagado não, não registrou e aí eu entreguei ele pro resto e eu administrei muito bem a perda, porque eu não me desesperei de jeito nenhum. E assim acabou o nosso “nosso” e voltei a ser eu sozinha.
P/1 – E como foi isso?
R – Eu tive tempo pra me preparar, porque a partir de novembro... Ele morreu dia 02 de março, a partir de novembro eu já sabia que era terminal, não foi uma coisa muito sofrida pra ele, quando a pessoa sofre é pior, né? Mas ele foi assim uma decadência de funções. Só eu estava muito bem preparada e eu também sou muito pé no chão, eu tinha muito medo que ele ficasse cego de tudo ou em coma, porque o irmão dele estava em coma fazia dois anos. Então no fundo eu preferia que acabasse do que ficasse desse jeito, porque cego de tudo, eu tinha pavor que ele ficasse. E não chegou, ele enxergava muito pouco, mas o suficiente ainda pra se deslocar, pra levantar, pra ir... Então eu acho que isso me segurou muito e outra coisa que todo mundo fica... Depois, porque eu detesto esse negócio de velório, essas coisas todas, né? Fica todo mundo dizendo “ah, meu Deus está chegando a hora” eu vou contar pra vocês que eu não via a hora que chegasse, porque... É de biologia, né? Depois que as funções todas param, existem diferentes maneiras do organismo reagir: ou sai sangue pelo nariz ou estoura todas as coisas e tudo. Então eu tinha pavor que acontecesse isso, quando chegava a hora, eu pensava “ah meu Deus eu não vejo a hora que vai, porque eu quero a lembrança dele desse jeito, não... Já que ele chegou não decadente de tudo como a maioria chega, quando está ruim mesmo, eu quero que tenha uma visão dele normal, não quero...” Histórias dessas coisas quando acontecem e ele realmente foi e acabou e eu fiquei um mês resolvendo coisinhas sem uma lágrima, nenhuma… Não que eu não sentisse por 46 anos de casamento e um tipo de casamento como o nosso era diferente, né? Mas aí eu quis ir a todos os lugares que ele tinha ido a última vez comigo, porque ele quis ir pra São Calos, quis ir pra Araçatuba. Então eu quis ir e falei: “Uma hora qualquer eu vou ter que ir pra todos esses lugares e vai ser muito mais penoso, eu vou enfrentar logo de cara” fui pra são Carlos, fui a todos os lugares que ele foi, fui pra Araçatuba, fui a todos os lugares que ele foi. E a minha mãe ficou na casa da Jurema, aí quando eu voltei pra casa, aí acabou toda a minha resistência, né? Essa foi bem brava mesmo, mas como tudo passa na vida você vai... Minha mãe voltou pra casa ficamos eu e ela sozinhas, muita coisa não mudou, porque eu continuei na mesma casa com a mesma rotina tendo que cuidar da minha mãe do mesmo jeito, as mesmas pessoas em volta, isso tudo... Não houve uma mudança material, ambiental não houve uma mudança drástica e a minha mãe, eu tenho a impressão, a minha mãe nessas alturas ela tinha 91 anos, ela achou que eu ia ficar quietinha em casa fazendo tricô e vendo televisão, não sou eu, né? Aí ela se acostumou que eu fazia mil e uma coisas durante os dois primeiros anos e eu passava 50% do tempo levando ela pra acupuntura e mais pra médico daqui e de lá, a gente não saía muito pra passear, porque chegava no domingo eu dizia: “Onde nós vamos? Na casa de outras pessoas? Nós agora somos duas mulheres e não temos muita coisa pra conversar”, mas foram dois anos assim, até que ela teve um problema sério de ameaço de dormência porque não foi dormência, era uma dormência causada pela infecção urinária. Eu tenho tudo isso escrito, palavra por palavra, tudo, os dias e como foi essa coisa, ela ficou dois meses no Hospital das Clínicas internada e eu junto, eu internada também porque a pessoa bem velha precisa ficar com uma pessoa. Quando ela conseguiu vencer a primeira infecção, apanhou uma infecção hospitalar e aí eu fiquei 15 dias trancada dentro do quarto, confinada dentro do quarto, eu não podia chegar perto dela sem estar paramentada de luva, de máscara a porta do quarto fechada, a alimentação tudo com coisa descartável isso foi praticamente o fim do ano. Passamos o Natal e o Ano Novo lá, teve uma época que o Flávio precisava viajar, eu falei: “Vai filho, eu não sei quanto tempo dura isso” ele deixou tudo arrumado pro velório, você acredita? Pois ela durou mais quatro anos e por falar em velório, um parênteses, eu detesto velório, eu detesto enterro e detesto cemitério, já falei… Só preciso ultimar as coisas que eu não quero quando eu morrer, nem velório e nem enterro. Vai diretamente pra faculdade de Medicina. Então não tem velório e também não tem enterro, porque não tem corpo pra enterrar e pelo menos eu não dou pra bicho comer e aproveita-se para alguma coisa, certo? Aí eu fiquei lá esses dois meses, ela voltou pra casa e ficou ainda quatro anos completamente inválida porque ela perdeu a sustentação e não ficava nem em pé com uma sonda uretral e eu não tinha nem muita condição porque eu sou pequena e não dava nem pra levantá-la. Então eu arranjei gente que me ajudasse. Porcarias, gente horrorosa porque além de todo problema que você tem, você tem que conviver com pessoas de outro nível sem preconceito, mas tem que conviver dentro de casa com uma pessoa de outro nível, outra formação, pessoa que é angustiada e revoltada e você tem que aguentar porque você precisa da força física pra ajudar. A última que ficou em casa foi uma pessoa maravilhosa, mas ela era evangélica e queria cantar hino. O que eu faço? Comprei um fone de ouvido e falei: “Pra você ouvir os hinos que você quiser, as novelas que você quiser de fone de ouvido” e assim eu resolvi praticamente. E nesses quatro anos eu podia sair depois que eu tinha gente mais confiável, mas se pensar agora, eu aproveitei muito esses quatro anos porque eu, na falta de poder sair, eu me dependurava no computador e fazia mil pesquisas, que era o que eu gostava, comecei a sair pra ir pra USP assistir alguns cursos. A Jurema foi embora pra Itália e eu fiquei praticamente sozinha porque filho é outra coisa, né? Ele morava perto de casa, me deu muita assistência, mas ele mesmo precisava de assistência pra vida dele porque a vida dele era uma caca, né? Então foi difícil. Mas eu estudei muito nesse tempo e aprendi muita coisa que eu não sabia de computação, o meu filho me ensinava, mas quebrei a cabeça com muita coisa, mas aproveitei. E a minha mãe morreu de velhice mesmo. Foi um processo nesses quatro anos. O Hospital das Clínicas me assistiu a mim também e a ela durante 52 visitas que eles fizeram, na última semana dela eles estiveram quatro vezes em casa, mas com uma infecção que já não tinha mais controle e eu fiquei nos últimos três dias... A gente tem uma força que a gente não sabe, né? Como eu não sou religiosa, eu acho que é física mesmo, eu fiquei três dias sentada numa cama pegada a cama dela olhando esperando ela parar de respirar, meu filho dizia: “Eu durmo aqui” eu dizia: “Não, pra quê? Pra que dois dormirem mal? Vai dormir, tem o telefone aqui, o máximo que pode acontecer é ela parar de respirar”. A babá dela tinha ido pra casa porque ela morava no interior e tinha que ir também, né? Eu me lembro que pus uma toalha aqui no peito dela porque enquanto ela respirasse a toalha mexia, pra eu poder avaliar, né? E aí ela sossegou, teve o bom gosto de morrer a uma hora da tarde de um dia de semana, sim porque eu já tinha tudo preparado pra doação de cérebro dela se ela morresse fim de semana ou morresse a meia- noite não adiantava, porque o prazo de validade é muito pequeno. Pois ela morreu a uma e vinte, eu telefonei imediatamente para o meu filho, ele passou imediatamente na delegacia, porque nesse caso precisa fazer BO, voltou pra casa e era assim uma morte esperada, então não tem nada de desespero, não tem nada de gritaria, não tem nada de choração porque não é normal, era o que estava precisando acontecer. Às quatro horas da tarde chega o camburão, porque o carro do Instituto Médico Legal estava estragado e eles sabiam que tinha pressa, foi lá pro Instituto Médico Legal e os caras não sabiam nem o que fazer. “Dona, o que eu faço com essa...” era... De vez em quando me foge a palavra... a sonda, o que eu faço com a sonda? Eu falei: “põe em cima do corpo e lá vê o que vocês fazem, né?” Eles não sabiam porque estavam acostumados a pegar defunto, a pegar presunto mesmo, né? Às quatro horas ela já estava no Instituto Médico Legal e foi aproveitada toda a parte cerebral pra estudo, não pra... E mais ainda, o líquor também foi aproveitado. E aí outra coisa interessante é que ela queria ser enterrada em São Roque, onde meu pai estava e meu pai foi enterrado numa vala comum e foi depois exumado e colocado numa gaveta, mas um parente tinha um terreno lá, o meu genro telefonou lá da Itália e falou: “Olha, eu já falei com meus irmãos, vocês enterrem a dona Dórsia lá no terreno que era da Cleide” e nós fomos pra São Roque pra enterrá-la lá e quando eles estavam enterrando estavam pondo aquelas placas, na terceira placa eu olhei pro cara e falei assim: “Não pode pôr a caixinha de ossos aí no canto?” Ele falou: “pode” era cemitério novo lá em São Roque, eu falei: “meu pai está ali naquela gaveta” “A senhora sabe onde está?” Eu falei: “Sei” “Vai lá na secretaria e telefona pra administração e pede autorização pra eles” “Tudo bem, não tem problema” o cara foi lá, quebrou a caixinha, tirou a coisinha de ossos, botou junto com a minha mãe e acabou de fechar. Ela queria ser enterrada em São Roque perto do meu pai, mas foi enterrada muito mais perto do que ela pensou, que foi no pé dela. Isso em outubro fez três anos e a partir daí eu fiquei sozinha, quer dizer, os filhos é aquele cordão umbilical que tem que eu te disse, mas é outra coisa é outro tipo de relacionamento. Jurema lá na Itália é só... Porque agora, hoje em dia, a gente fala por Skype, fala por webcam, fala por todas as coisas, mas está lá, não pode dar assistência direta de dizer “Você vai dormir que eu fico com ela”, não é assim, né? Nora é meio difícil e eu fiquei sozinha, aí eu me esbaldei, o que eu achei de curso pra fazer de 2005 pra cá, um pouco antes já da minha mãe morrer, eu fiz... Outro dia eu fiz uma relação, eu fiz uns 22 cursos lá na USP, todo curso que eu vejo que eu gosto... Às vezes eu passo o dia inteiro lá, às vezes eu exagero como eu exagerei o ano passado e esse ano, eu quero abraçar o mundo com um braço e eu vejo dois, três cursos e depois não dou conta, porque eu quero fazer todas as tarefas certinhas que eles falam, né? E depois esqueço a pasta. Aí fiz tudo direitinho e muito, muito e trabalhei um pouquinho, tenho uns projetos muito bons de trabalho, mas eu não estou sabendo vender o meu peixe porque ninguém me contrata, então eu estou esperando um milagre cair do céu. E agora faz uns dois ou três meses eu voltei a não estar sozinha, não olha pra mim e dá risada não, não é nada do que você está pensando não, até que era bom, viu? Mas meu filho depois de 25 anos de casado se separou da mulher, devia ter se separado antes, mas separou agora porque ele se apaixonou... Enquanto ele estava casado e não tinha uma paixão, vamos dizer assim, tinha dois filhos gêmeos e tudo foi ficando, até que se apaixonou e agora então saiu de casa mesmo, né? E adivinha aonde vai quando sai de casa? Vai pra casa da mamãe, aí um dia fica na casada da paixão e outro dia traz a paixão pra minha casa e vai e vem assim. “Não, porque nós vamos alugar uma casinha...” Eu falo assim: “Vocês não acham mais barato vocês ficarem aqui comigo? O meu apartamento é grande” “Não, porque não sei o quê...” Outro dia: “Nós queremos falar com você” “O quê?” “Nós vamos ficar um tempo aqui...” Eu não falei nada, né? “Nós vamos ficar um tempo aqui, porque aqui é bom, é claro, atravessa a rua e tem oito linhas de ônibus aqui.” o meu apartamento é ótimo tem uma vista maravilhosa, tem quarto e um banheiro especial só pra eles, ela adora cozinhar e eu detesto. E assim nós estamos vivendo faz uns dois meses na santa paz de Deus, nós somos agora três na casa, há um tempo atrás eu não ia gostar não, porque eu ainda tinha esperança de arranjar um namorado, mas como eu não arranjei até agora e não vou arranjar mesmo, porque em abril do ano que vem eu faço 80 anos. E com 80 anos o que sobra pra mim? Mocinho de 70 ou 70 e poucos anos também é muito novo porque não viveu as coisas que eu vivi, o negócio agora é outra coisa, é diferente e mais velho que isso estão tudo caindo os pedaços, homem se entrega muito mais... (troca de fita) Agora façam vocês as perguntas. Bom, nós chegamos praticamente agora aqui, né? Não aconteceu mais nada a não ser todos esses cursos que eu faço que eu adoro fazer isso, eu fico passando a limpo as lições e eu não sou obrigada a fazer nenhuma tarefa porque a Universidade Aberta à Terceira Idade não precisa, mas eu faço tudo que me pedem. Só falta falar mais uma coisinha que a partir do ano passado pra cá o meu filho inventou mais uma moda pra mim.
P/1 – O que é?
R – O blog, ele dizia pra mim assim: “Você não vai fazer um blog?” Eu dizia: “Não, eu tenho mais o que fazer, isso é coisa de moçada” porque eu ouvia falar só isso “Não, não vou.” Tanto ele me encheu que eu falei: “Tá bom, vamos lá, monta aí um blog que eu faço”, como eu tenho muita coisa escrita, não é difícil abastecer é só eu saber... E eu comecei a abastecer esse meu blog pessoal com muita coisa dessa história de minha vida, eu fiz como se fosse um diário e ultimamente então todos os lugares que eu vou, a minha atividade cultural toda, aí coloco no blog como um diário meu. Mas junto com o diário escrevi um monte de outras bobagens. Faz um ano e pouco e tem 200 e tantas coisas publicadas já, aí em março deste ano, março ou maio, eu fui convidada pra ser colunista de um blog do Top Blog. O Top Blog é um blog institucional da UNIP e eles me escolheram lá entre as 16. Não sei por que me escolheram, acho que é porque faltava uma pra colunista da... Mas aí só pra falar sobre a cidade de São Paulo, como também outra vertente minha de estudo grande é sobre a cidade de São Paulo, então eu tenho já... Eu publiquei acho que umas 60 coisas, sempre ligado a cidade de São Paulo. Então como blogueira estou muito importante e você sabe que repórter precisa de assunto qualquer que seja o assunto e tendo buraco pra fazer as coisas e eu estou toda atrasada com meus trabalhos de escola porque esse ano, acho que eu fiz... Não fiz ainda a retrospectiva, mas acho que tem pelo menos umas dez entrevistas sim, uma delas da Ana Maria Braga, que eu fui pro Rio pra ser entrevistada e todo mundo viu, eu encontro gente da família que eu não via há séculos e que viu o programa da Ana Maria Braga. A Record, a Band, a Gazeta… Todo mundo de uma maneira ou de outra acabou fazendo entrevista. Tudo isso porque eu tenho blog, porque eu uso pen drive, porque eu mexo com computador, agora mesmo eu tenho que fazer três palestras pra umas pessoas idosas sobre o uso do computador ou o uso do blog, principalmente porque eu uso muito como informação e vou... Mas não adianta muito dizer: “eu faço isso” porque as pessoas vão pra esses cursinhos clicar pra terceira idade e aprendem o bê-á-bá e depois não fazem mais nada! É igual dirigir carro, porque se você não anda, se não tem prática, não adianta nada, mas eu vou lá e falo, né? Porque a casa a Casa das Rosas quer que eu fale, eles me pagam, então eu vou lá e falo, né? E agora eu vou fazer algumas coisas, esse projeto meu, eu vou agora investir nesse projeto de qualquer jeito, porque eu acredito nele, acredito que está muito ligado a memória está muito ligado a vocês aqui. E eu ainda fui convidada pra fazer a memória da Associação dos Amigos da Estação Ciências. Isso eu tenho que fazer agora, conversar com a turma e uma porção de coisinhas pequenas que vão pintando e que eu faço porque eu gosto e porque eu sei e porque eu acho importante, agora vai.
P/1 – Agora eu fiquei curioso?
R – Vocês também podem fazer perguntas.
P/1 – Um dia, vou voltar à sua vida lá atrás que você queimou todo o diário, quando você voltou a escrever?
R – De repente.
P/1 – Você voltou a escrever um dia, né? Por quê?
R – Não sei, eu já estava aposentada, eu comecei a escrever mais ou menos em 96, um pouquinho antes, eu tive sempre essa mania de família, a primeira árvore genealógica que eu fiz foi num papel... Esse papel (crofick?) e que fui escrevendo e não sei onde foi parar isso, até que um tio do Airton morreu e ele tinha um diário do pai dele, portanto do avô do Airton e da avó, e quando ele morreu ninguém da família se interessou. Me deram o tal diário. E aí eu comecei a escrever, mas comecei a escrever assim... Não tinha muito o que fazer, eu ficava muito dentro do apartamento sem o que fazer, comecei a escrever à mão sobre a minha vida e o Airton escreveu uma parte da vida dele e foi aí que o Flávio estava em casa na primeira separação dele, ele tinha dois computadores lá, eu comecei a mexer no computador porque sabia digitar e ele foi me ensinando e eu aprendi, não sabia muita coisa, mas fui aprendendo. E fui escrevendo, mas eu escrevia muito por cima assim, aí eu andei lendo duas coisas muito importantes, uma delas foi o Pedro Nava que é o maior memorialista que tem e eu comecei a ver que ele escrevia tanto detalhezinho que aquilo é que dava o gostinho, aquilo é que era o temperinho das coisas. Depois eu peguei um livro do Boris Fausto, Negócios e ócios e aí eu vi que também tinha detalhe, aí eu peguei tudo aquilo que eu tinha escrito e eu refiz, quer dizer, fui colocando no meio, com o computador era fácil de colocar as coisas, certo? Então aquilo virou, não conscientemente, mas virou o diário de novo, só que tudo de memória e aí em 81, 82, por aí. Aqui em casa eu tenho umas agendinhas que eu comecei a fazer não como diário, mas mais como agenda. Uma tinha pouquinha coisa escrita, só programas de música, outra tinha só despesa. Até que eu comecei a escrever em 85, 86, eu comecei a escrever o que acontecia naquele dia como diário mesmo e a partir daquilo frasezinhas, eu posso montar e aí comecei a escrever e olha: comer, escrever e coçar é só começar. E comecei a escrever com mais detalhes e eu continuo... Tenho todas as agendas. Se você chegar na minha casa e perguntar o que aconteceu dia 02 de dezembro de 92? Eu vou lá, abro e digo exatamente o que aconteceu no dia 02 de dezembro de 92. E uma vez por ano eu pego aquela agenda... Eu estou atrasada dois anos, estou atrasada o ano passado e este, eu pego e levo uma semana mais ou menos, leio todos os dias com umas folhas e vou separando por itens: trabalhos, estudos, visitas, viagens, leituras tem vários itens lá, agora tem vários itens, eu leio lá que li tal coisa, então vou lá na folha de leitura e escrevo lá “li tal coisa.” Então eu fico com itens, então eu vou pro computador, aí que dá mais trabalho porque a partir daqueles itens... Eu vou escrever viagens: eu fiz tal viagem e tal... Essa não deu certo, esta foi boa e aí vem os comentários, isso se chama retrospectiva, a de 2008 eu não fiz ainda porque esse ano foi muito atribulado, mas até 2007 elas estão prontinhas e dizem tudo que eu fiz. Isso é ótimo pras pessoas fazerem porque você chega ao fim do ano e você não perdeu tempo, aumenta a autoestima. “Será que eu fui capaz de fazer tudo isso?” E fiz. Então isso voltou inconscientemente, eu não posso dizer que parei, eu disse assim: “Não, vou começar a fazer diário outra vez” e eu fiz não só da minha família que tem lá 11 pastas, mas eu tenho a família de todos os ascendentes de toda a família, a família do meu marido e a minha família desde os bisavós e avós dele. Tenho a minha família do meu pai, da minha mãe, da minha avó, eu não tenho bisavô conhecido, depois eu tenho uma pasta só do meu pai e da minha mãe, uma pasta só do pai e da mãe do Airton e dos irmãos dele. Depois tenho os descendentes que são os filhos e depois tem as famílias que chegaram por agregação que são de noras e genros e a partir disso eu fiz oito árvores genealógicas a partir do computador... A família Casalli, por exemplo, tem 250 pessoas. Parei de fazer, embora o programa permita, eu parei de fazer porque é muita mudança de marido e mulher, de primeira esposa, segunda esposa, terceira esposa, filho da primeira, filho da segunda e começou a dar uma encrenca tão grande e, além disso, começou a abrir muito o leque e onde eu vou parar? Então eu parei num determinado ponto. Mas de vez em quando tem alguém... Outro dia uma prima fez aniversário e eu imprimi de novo a família dela e coloquei na parede da casa dela e todo mundo se achou lá “Ah, escreve mais daqui” “Eu não tenho bola de cristal e não sei inventar se vocês me derem os dados eu faço!”.
P/2 – A senhora fez a versão de Cem anos de solidão, do Gabriel García Márquez?
R – Cem anos de solidão? Eu acho que os Cem anos de solidão deve ter influído um pouco, sabe por quê? Alguma coisa eu já tinha na cabeça, porque quando eu li Cem anos de solidão, eu fiz uma... Eu tenho até dentro do livro em casa porque eu não conseguia saber quem era quem, era muito nome igual, então eu fiz com todas as sequências “fulano transou com cicrano e cicrana” eu fiz toda a árvore, quer dizer que eu já tinha essa veia inata.
P/1 – O tema o tempo todo que passou pra entrevista e pra sua história e que eu fiquei captando e o que você faz hoje é a passagem do tempo é a memória, o que te encanta tanto nesse tema Neuza?
R – De memória?
P/1 – De passagem do tempo?
R – Bom, passagem do tempo você não pode dizer que não seja ligada a memória. O que é importante na passagem do tempo são as marcas que ele deixa no tempo... Você nunca consegue saber do tempo na íntegra, primeiro porque você não é fundo memorioso, né? Se você souber de tudo que aconteceu hoje, você não tem tempo pra viver o hoje. Então a passagem do tempo, acho que é pontual, entende? Não precisa que você lembre tudo, eu lembro tudo, mas não precisa, se eu estou dizendo que eu fiquei filha única com nove anos toda uma consequência vem junto e o fato pontual disso serve pra aparecer, mostrar tudo isso. Então o que me encanta é isso, é que pontos da vida são suficientes pra te levarem a detalhes. E a memória é uma coisa muito interessante porque ela desenrola igual novelo sempre, não é só a madeleine de Proust não, viu? Porque todo mundo que fala em memória fala na madeleine do Proust quando podia falar... O livro do Carlos Heitor Cony, quando ele fala que ele recebe um pacote, o livro chama Quase memória, ele recebe um pacote, ele põe a mão no nó que o barbante dá e gera o livro inteiro, entende? Por que não usa uma coisa nacional em vez de falar de novo no Proust e todo mundo, olha eu fico esperando quando alguém vai falar e memória eu fico esperando que todo mundo fale na madeleine, vocês conhecem, né? Ou não conhecem? Fazem mais perguntas, eu gosto de perguntas, alguma coisa que passou que eu não tenha falado.
P/2 – Eu queria que você falasse um pouquinho mais do momento que seus filhos saíram de casa quando casaram? Porque eu acho que muda um pouco também a rotina do casamento porque você está com as quatro pessoas dentro de casa e aí de repente...
R – De repente... É que saiu um por vez, né? Primeiro saiu a Jurema, só que hoje em dia sair de casa pra casar é um negócio muito diferente do que era no meu tempo, Jurema viajava com o Oscar seguidamente e passava dias fora. Uma vez eu levei uma bronca da mãe dele. “Como é que eu deixava minha filha ficar no sítio com ele?” Eu falei: “Eu não amarro ninguém no pé da mesa, são adultos”. Então essa maneira que você sabe que a sua filha sai, que sua filha viaja, que sua filha fica uma semana seja lá quanto maritalmente com uma pessoa já sabe que ela é outra pessoa. Então isso já significa casamento, entende? Não oficialmente. Então não dói muito não, eu acho que esses casamentos muito comentados ou festas muito grandes parecem que é um ritual de passagem do jeito que era lá em casa. Todo mundo aceitando muito, todas as coisas não teve ritual de passagem teve um casamento civil por força das circunstâncias porque nem um dos dois era disso. Ela porque ia comprar um sítio e tinha que ter um pacto antenupcial, portanto tinha que casar por causa da escritura porque se não, não casava só dá trabalho pra depois descasar. E o Flávio também não era nunca de casar, mas aí o pai dela era libanês e não aceitava muito as coisas. É claro que eles ficavam juntos adoidado, mas ele não aceitava assim oficialmente, então precisou casar. Mas foi um casamento simplesmente social, não teve aquela conotação de sair de casa mesmo porque a Jurema quando casou, ela ficou ainda um tempo em casa, o Oscar lá no sítio e ela lecionando aqui. Então não tive assim... Não foi sair de casa, foi uma coisa muito gradativa, muito natural e chega uma hora que você não vê a hora que sai de casa, que os filhos saiam de casa. “Ah que bom que agora eu vou ficar sozinha, agora não vou ficar preocupada se ele chega de madrugada ou se não chega”. Ele saía de moto e se está em casa você sempre fica pensando se chegou ou não chegou. Então se está morando em outra casa, você não pensa mais. O que mais?
P/1 – Eu tenho uma pergunta só, porque é assim a gente contou muita coisa e cada vez que você sentar aí vai contar outra história, por enquanto eu tenho uma pergunta, depois a gente pode um dia voltar...
R – Isso, na hora que vocês forem fazer a listagem “ah, eu queria saber isso?” vocês vão marcando e depois vocês me chamam.
P/1 – A gente pode continuar isso eternamente, mas a pergunta que eu tenho, eu acho muito importante. Qual é o seu sonho hoje?
R – Hoje? Não posso falar, esse negócio de falar que o sonho de hoje é ver os filhos bem isso tudo é circunstancial, você não pode nem pensar em ter sonho. Na verdade eu gostaria de ter um pouco mais... Um sonho assim muito pequeno e próximo é ter um pouco mais de liberdade financeira, eu vivo de INSS, embora seja pensão e benefício, é porcaria, é irrisório... Ah, eu preciso contar outra coisinha e isso tudo me restringe um pouco porque eu moro num lugar que não é condizente com aquilo que eu ganho, é muito melhor e consequentemente eu pago por isso, eu pago um condomínio alto e tenho as minhas... Tudo isso está escrito no meu blog, eu tenho as minhas necessidades, eu gosto de comprar livro, eu babo por um livro, uma coisa qualquer e não posso comprar, eu tenho que ter uma NET em casa porque senão eu fico restrita a Rede Globo... Eu falei isso na Ana Maria, ela quase me matou, eles cortaram esse pedaço que eu falei: “Eu preciso dessas coisas, não posso ficar só com televisão comercial, eu tenho que ter uma Geographic Magazine...” Agora que meu filho está em casa, não sai do bendito canal de história dia e noite, essas coisinhas pequenas que eu tenho que fazer, né? Eu tenho um carrinho de 95 que está velho pra burro, eu jamais posso comprar um novo, né? Até que comprar um novo seria um sonho, sabe? Mas assim, se caísse do céu, porque dinheiro eu não tenho pra isso. E eu fico muito restrita a essas coisas e você acostuma a viver com pouco e depois se tiver muito dinheiro não sabe nem o que fazer com ele. Então é ter um pouco mais de liberdade, de flexibilidade financeira, por exemplo, eu às vezes não vou numa Sala São Paulo assistir um concerto porque de lá eu tenho que sair de táxi e se eu for usar táxi toda vez, onde eu vou parar? Então essas coisinhas eu gostaria de ter um pouquinho sim, fazendo um parêntese nesse negócio um pouco ligado até ao Museu da Pessoa é o começo do Museu da Pessoa em 90 e pouco por aí, eu tinha aqui... Era site do Museu da Pessoa e cheguei a ter mais de mil páginas, porque tudo que eu escrevia inclusive da família toda eu mandava pra cá e era colocado. Então tinha um monte de coisas todas as histórias, a Karen usava muito isso pra mostrar como eram as coisas e um dos parentes do meu genro, ele era um... O tio dele era um infeliz porque ele se apaixonou por uma mulher e a mulher era muito bonita na época, mas ela se mostrou... Ela virou uma mulher relaxada, ficou feia, ficou desdentada, ficou velha, ficou tudo isso e mesmo assim ele continuava apaixonado. Então um pedacinho era esse, mas tinha os nomes deles, o tio Mário que sofreu depois um AVC porque dormia junto com o Oscar e o Oscar tinha que dormir na sala, ele fazia xixi no sapato do Oscar. Todos esses detalhes que a família inteira contou, mas alguém falou pra mim e pra Jurema que eles tinham lido e não tinham gostado. Imediatamente eu tirei, mas eles me lançaram processo pedindo uma indenização de 50 mil reais por danos morais, eu mesma fiz a minha defesa, mas depois o advogado entrou não estava mais há muito tempo que não estava mais no Museu da Pessoa, não tinha nada. E qualquer pessoa relaxada é uma coisa muito relativa, velho é relativo, tudo isso... Eu fiz a minha defesa e tudo, o advogado depois entrou e tudo e acabou. O negócio parou, supunha-se que tivesse sido arquivado ou qualquer coisa, mas alguém não arquivou e no fim do mês passado eu fui pegar o dinheiro pra pagar as contas “bloqueio judicial” eu tinha míseros 2800 reais no banco, 1800 na poupança e 1000 fora, eles bloquearam tudo. O banco me deu o papel e falou: “Ordem do juiz, nós não temos nada com isso” me deu o papel, era ela porque o Mário já tinha morrido, a Maria Aparecida Costa que estava pedindo indenização agora um pouco menor, porque era o que eu tinha. Imagina como eu fiquei, eu fiquei sem um tostão pra comprar um picolé e aí... Eu tenho tudo escrito nas pastas. Fui ver quem era o advogado, eu tinha até o telefone dele e tal, era amigo do meu filho, enfim, já está sendo mexido e tudo, mas fizeram duas besteiras muito grande a juíza... Primeiro que ela não pode bloquear de maneira nenhuma INSS e o único rendimento que eu tenho é esse, não pode, é alimento, né? Segundo, essa mulher, a Maria Aparecida Costa, ela morreu faz três anos. Se fossem os filhos dela que tivessem aberto deveria constar o nome deles e não o dela, eu fui pra Santos... A Jurema da Itália fez todo o levantamento do lugar onde estava a certidão de óbito eu fui pra Santos buscar a certidão de óbito e está… A mão do advogado agora que está mexendo. Então você veja só que eu ganho tanto, tanto e ainda me tiram o pouco que eu tenho. Meu sonho mais ou menos seria esse, agora eu estou bastante acompanhada com o filho e a mulher dele agora lá, mas eu gostaria é o que eu acabei de dizer agora há pouco, uma companhia um pouco mais masculina, sabe? Pra conversar, pra tomar um café, pra tomar um vinho, pra fazer companhia, eu tenho às vezes um programa pra ir lá na Sala São Paulo, vamos dizer assim, e não posso ir porque eu não posso ir sozinha e também não posso estar atrás de filho e neto. “Oh me leva aqui, vai ali” não é assim. Não custava nada ter um pouco de companhia, nada que ofenda ninguém, muito menos ao Airton de jeito nenhum, o que ficou dele está tudo por aqui, mas seria muito bom uma coisinha assim, esse é o sonho assim de imediato, um pouquinho mais de dinheiro e um pouquinho mais de atenção masculina porque eu vejo tanto homem bonito por aí e ninguém olha pra mim, será possível?
P/2 – Porque a senhora quer algo mais que companhia? Além da companhia o que é a figura masculina que a senhora deseja?
R - O que representa? Companhia mesmo.
P/2 – Só companhia?
R – Uma companhia culta é meio difícil também de achar, viu? Tem que ser uma companhia culta pra início de conversa porque o que se vai conversar? Não vai ser abobrinha. Então é trocar ideias, porque muitas vezes você faz alguma coisa, você lê um livro, você vai a um concerto, você estudou alguma coisa, você não tem pra quem passar ou pra quem trocar isso, isso que é chato.
P/2 – Por que tem que ser masculino?
R – Mas eu não sei... Precisa é diferente a cabeça, a maneira de ver as coisas é diferente é mesmo diferente, viu? Eu tenho bons amigos que de vez em quando somem do mapa. Esses bons amigos… E no fim eu acabo sendo confidente deles, mas eu prefiro até assim, até mais que fosse assim uma companhia masculina. O que mais que eu sonho? Achar minha pasta e de imediato agora é achar minha pasta.
P/1 – Neuza, eu acho que não se encerra aqui, mas a gente vai acabar por hoje e espero que um dia a gente continue.
R – E você não tem nada pra perguntar?
P/2 – Tenho, mas eu acho que... Eu tenho muito a perguntar, mas tem o formato aqui a seguir e não se dá o tempo, eu estou chegando agora.
P/1 – Então tá bom. Obrigado.
R – Acabou? Que pena! Isso pra mim é um bate-papo. Agora eu faço... Não é difícil pra mim, mas também eu não acho que é natural, porque eu vou seguindo a linha da minha vida, eu vou vendo a minha vida direitinho organizadamente pra rever. Às vezes esqueço alguma coisinha ou outra, mas...
P/1 – Eu achei bom, bem organizado o que eu acho que a gente poderia fazer...
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