Tecban - Histórias Diversas
Entrevista com Giovanni Venturini
Entrevistado por Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo/Curitiba, 25 de agosto de 2022
Entrevista nº PCSH_HV1268
Realização: Museu da Pessoa
Transcrita por Mônica Alves
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(00:19) P/1 - Boa tarde, Giovanni. Tudo bom?
R - Boa tarde, tudo ótimo!
(00:25) P/1 - Então a gente vai começar com as informações mais básicas. Eu gostaria que você me dissesse o seu nome completo, a sua data de nascimento e a cidade em que você nasceu.
R - Meu nome completo é Giovanni Leonardo Fiori Venturini. Nasci em 31 de outubro de 1991, em São Paulo, capital.
(00:49) P/1 - Contaram para você como foi o dia do seu nascimento, Giovanni?
R - Exatamente, não. Eu sei que nasci pela noite, às 21 horas. Foi cesariana, foi na Paulista, então mais paulistano que isso é difícil. (risos) Enfim, foi parto de cesariana. As coisas que eu sei são essas.
(01:23) P/1 - E contaram para você como escolheram o seu nome?
R - Sim, contaram como escolheram o meu nome. Era para eu ter um outro nome, que era… Deixa eu ver se eu lembro… Acho que era Acauã, minha mãe gostava muito de Acauã. Ficou naquele dilema [entre] minha mãe e meu pai, aí eles mudaram de ideia: minha mãe queria Leonardo e meu pai queria Giovanni, e aí ficava nessa briga.
Uma amiga da minha mãe falou: “Coloca o nome composto, coloca Leonardo Giovanni”. Minha mãe falou: “Ótimo! Leonardo Giovanni”. Meu pai foi e me registrou como Giovanni Leonardo.
(02:03) P/1 - Bom, então vamos começar a falar um pouco da sua família. Eu queria que você falasse sobre sua mãe, o nome dela, falasse um pouco sobre ela e também sobre o lado materno da sua família. O que você sabe deles?
R - A minha mãe se chama Marli Fiori e ela é professora de língua portuguesa, hoje aposentada. Ela foi de uma grande...
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Entrevista com Giovanni Venturini
Entrevistado por Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo/Curitiba, 25 de agosto de 2022
Entrevista nº PCSH_HV1268
Realização: Museu da Pessoa
Transcrita por Mônica Alves
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(00:19) P/1 - Boa tarde, Giovanni. Tudo bom?
R - Boa tarde, tudo ótimo!
(00:25) P/1 - Então a gente vai começar com as informações mais básicas. Eu gostaria que você me dissesse o seu nome completo, a sua data de nascimento e a cidade em que você nasceu.
R - Meu nome completo é Giovanni Leonardo Fiori Venturini. Nasci em 31 de outubro de 1991, em São Paulo, capital.
(00:49) P/1 - Contaram para você como foi o dia do seu nascimento, Giovanni?
R - Exatamente, não. Eu sei que nasci pela noite, às 21 horas. Foi cesariana, foi na Paulista, então mais paulistano que isso é difícil. (risos) Enfim, foi parto de cesariana. As coisas que eu sei são essas.
(01:23) P/1 - E contaram para você como escolheram o seu nome?
R - Sim, contaram como escolheram o meu nome. Era para eu ter um outro nome, que era… Deixa eu ver se eu lembro… Acho que era Acauã, minha mãe gostava muito de Acauã. Ficou naquele dilema [entre] minha mãe e meu pai, aí eles mudaram de ideia: minha mãe queria Leonardo e meu pai queria Giovanni, e aí ficava nessa briga.
Uma amiga da minha mãe falou: “Coloca o nome composto, coloca Leonardo Giovanni”. Minha mãe falou: “Ótimo! Leonardo Giovanni”. Meu pai foi e me registrou como Giovanni Leonardo.
(02:03) P/1 - Bom, então vamos começar a falar um pouco da sua família. Eu queria que você falasse sobre sua mãe, o nome dela, falasse um pouco sobre ela e também sobre o lado materno da sua família. O que você sabe deles?
R - A minha mãe se chama Marli Fiori e ela é professora de língua portuguesa, hoje aposentada. Ela foi de uma grande importância para eu ir para o lado da poesia, da escrita, de conhecer os livros. Na infância sempre tive muito contato com livros, ela sempre leu muito para mim, então acho que foi um grande despertar nessa parte da literatura, que eu trabalho até hoje, né?
Eu sempre tive mais contato com a minha mãe, de confidências, de amizade mesmo, a gente sempre foi muito parceiro. Como eu sou filho único e acho que tem toda essa questão do patriarcado, em que a mulher cuida mais do filho e fica mais tempo em casa com ele, a gente desenvolveu uma relação muito próxima de amizade mesmo, e de confidências.
Ela tem um irmão gêmeo, que é meu padrinho, meu tio Maurício, e eles são os mais novos; tem outros dois irmãos, meu tio Geraldo e minha tia Marlene, que já faleceu. Sempre foram muito presentes, sempre foi uma família muito próxima. A gente sempre conviveu bastante, principalmente o meu tio Maurício, que é o meu padrinho e o irmão gêmeo dela; tem essa coisa dos irmãos gêmeos serem muito próximos e ele sempre esteve muito presente na minha vida. Eu lembro de muitos momentos da minha infância, de estar com ele, por exemplo, ir ao estádio de futebol com ele; ele me levava para passear, isso antes dele ter um filho também, então tinha essa proximidade de ser padrinho e tio e essa relação muito íntima, muito próxima.
Depois ele teve filho - não que isso tenha sido motivo do afastamento, mas o dia a dia, as rotinas acabam sendo mais exaustivas e você não consegue se fazer presente todo o tempo. Mas até hoje a gente tem uma proximidade muito grande, eu converso muito com esse meu tio, que é o meu padrinho.
Como eu disse, minha outra tia faleceu e meu tio Geraldo eu também vejo, mas ele é um… Ele mora um pouco mais distante, então é um pouco menos frequente de eu vê-lo.
A minha avó materna sempre foi muito próxima. Ela já faleceu também, a Teresa Fiori. Ela tinha um problema de audição, usava aparelho auditivo, por conta de um trabalho em que perdeu parte da audição. Ela trabalhava em uma olaria e perdeu parte da audição. E meu avô materno, eu chamo ele de avô, mas ele não é avô de sangue; ele é padrasto da minha mãe. Eu não conheci meu avô materno de sangue, mas esse meu avô, o Mamédio, também já falecido, ele era baiano, da Chapada Diamantina e sempre foi muito engraçado. Na infância eu ri muito com ele, ele sempre foi muito presente também. Meu avô e minha avó cuidaram [por] muito tempo de mim, a gente morava próximo, então sempre tinha visitas, almoços de família.
(05:34) P/1 - Você disse que o seu avô não era de sangue e era baiano. E a sua avó, ela era de São Paulo, ou a família dela veio de outro estado?
R - A minha avó era de São Paulo mesmo. Bom, como meu próprio nome e sobrenome sugere, os dois lados da família são descendentes de italianos, mas já no terceiro grau, minha bisavó. A minha avó nasceu em São Paulo mesmo, meu avô nasceu na Bahia, meus pais são paulistanos e eu também.
(06:14) P/1 - E agora eu queria que você fizesse a mesma coisa com o seu pai e o lado paterno.
R - Meu pai, ele é o Jorge Venturini. Ele é formado em Artes Cênicas, mas com ênfase em cenografia, então o outro lado da minha profissão vem do lado paterno. Eu escolhi ou essa profissão me escolheu, que é ser ator, mas também tem uma relação muito próxima desde a infância, de eu ver ele construindo cenários, confeccionando figurinos, adereços; ele tinha um grupo de teatro com os alunos dele.
O que aconteceu foi o seguinte: ele se formou em Artes Cênicas e foi para a cenografia, mas virou professor de Educação Artística na rede pública, não conseguiu se manter somente sendo um cenógrafo. Dentro da rede pública, ele revolucionou, criou um grupo de teatro; ele tinha os alunos dele, esse grupo que era muito presente em casa, então também tive muito contato desde cedo com o teatro. [Ele] também é um grande responsável pela minha outra profissão que é ator, então hoje eu sou ator, poeta, roteirista, escritor, graças aos dois eixos da minha família.
Meu pai sempre trabalhou muito. Na infância eu lembro muito dele fora de casa, mas nos momentos que ele estava em casa era muito presente também, nunca foi um mau pai. Acho que ele tinha uma preocupação muito grande com questões financeiras, de gerir a família.
Minha mãe também trabalhava, mas ela tinha mais tempo livre comigo do que o meu pai. A gente veio se aproximar mais depois que eu saí de casa, depois de adulto que a gente ficou mais próximo. Depois dos [meus] dezoito, dezenove anos a gente começou a fazer passeios juntos e sei lá, tomar uma cervejinha juntos; nas festas que eu ia ele estava junto, e a gente… Eu percebi que a gente é muito igual, a gente é muito parecido e talvez por isso também a gente não fosse tão próximo na infância. Hoje em dia eu vejo o quanto a gente é igual e hoje em dia ele faz questão de estar em tudo, às vezes até demais. (risos) Ele vai em tudo, todas as festas, todas as peças de teatro, todas as estreias, e a minha mãe também, mas o meu pai faz questão de estar em todos os lugares.
Com a família do meu pai, na infância eu tive mais contato. Meu pai é o filho do meio, ele tem um irmão mais velho e uma irmã mais nova, que é a minha madrinha, então a minha madrinha é por parte de pai e o meu padrinho é por parte de mãe. Mas depois, na adolescência… Já na adolescência, quase adulto, a família deu uma brigada e umas pessoas se afastaram, aí acabei perdendo o contato de grande parte da família paterna.
Meu avô sempre foi muito engraçado, meu avô paterno, o Domingos, e sempre muito apaixonado por futebol, torcedor da Portuguesa. Lembro de ele ir quase todas as quartas-feiras em casa quando eu ainda era criança para assistir ao jogo de futebol comigo. A gente ficava jogando bola na sala de casa, quebrei várias coisas do meu pai jogando bola dentro de casa. Mas eu tenho essa memória muito forte do meu avô na infância, indo toda quarta-feira em casa assistir futebol comigo, foi em alguns jogos no estádio também comigo.
Ele era meio palhaço, ele era bem engraçado - os dois avôs, tanto o materno quanto o paterno, eles tinham uma pegada engraçada muito forte. Meu avô paterno tinha uma sorveteria numa época - uma sorveteria não, uma fábrica de sorvetes; ele não vendia no local, mas fabricava sorvetes e distribuía para as sorveterias. Eu também tenho essa memória de ir visitar a fábrica de sorvete e sempre ter um sorvetinho de graça ali, que seu avô te dá, sempre de vários sabores. Tenho essa memória também do picolé e das festas de final de ano, em que ele sempre levava um balde de sorvete para todo mundo, para a gente tomar junto.
Com meus tios eu perdi contato. Meu tio e minha tia, faz um bom tempo que eu não os vejo, acho que até pela própria estrutura da família - meu pai também nunca foi muito de família. A minha mãe já é muito mais próxima dos irmãos; o meu pai sempre foi mais descolado da família, e acho que isso favoreceu para o afastamento.
(11:05) P/1 - Você sabe como os seus pais se conheceram, Giovanni?
R - Eu sei que meus pais se conheceram ainda adolescentes, eles têm uma relação muito longa. Acho que eles deviam ter uns quinze anos, talvez. Não estudavam na mesma escola, mas tinham amigos em comum, aquela coisa de um ir na escola do outro. E eles se conheceram, tiveram um namoro longo, terminaram, voltaram. Tiveram uma relação muito longa, demoraram para casar, e só depois de três anos de casados que resolveram ter filhos, que fui eu, mas eles se conheceram na adolescência.
Eu lembro de uma história que eles contam - lembro em partes. Tinha uma pedra na frente da escola, acho que da minha mãe, que ela sempre ficava ali, sentada, esperando o meu pai, que vinha visitar os amigos nessa escola. Ficava ali, paquerando ele nessa pedra, em frente à escola.
(12:05) P/1 - E falando da sua infância, Giovanni, do que você gostava mais de brincar nessa época? Você se lembra?
R - Nossa, na infância eu brincava de tudo, absolutamente tudo! Eu brincava muito na rua. Eu chegava da escola, fazia a lição de casa… Eu estudava de manhã e ia para a rua depois do almoço, umas duas, três horas [da tarde] e ficava até às dez da noite brincando com as crianças na rua. Brincava de carrinho de rolimã, esconde-esconde, pega-pega, futebol; joguei muito futebol na rua, muito dedão arrancado no asfalto, a tampa do dedão arrancada no asfalto, mas acho que carrinho de rolimã é uma memória que eu tenho muito forte. A minha rua era sem saída, então favorecia muito para as crianças ficarem na rua também, e era uma descida, então eu lembro da gente empurrando o carrinho até lá em cima e descendo todo mundo junto no carrinho de rolimã pela rua. As vizinhas deviam adorar aquele barulho o dia inteiro do carrinho de rolimã descendo. (risos)
Acho que essa memória eu tenho muito forte, do carrinho de rolimã, mas futebol também, joguei muito futebol. Teve uma época da infância que eu fiz capoeira, fiz aula de capoeira. Cheguei a pegar o meu primeiro cordão. Quando era para pegar o segundo eu tive que parar de fazer capoeira, o médico aconselhou não praticar esportes de impacto, então eu tive que parar. Mas eu lembro muito do futebol e do carrinho de rolimã na infância.
(13:35) P/1 - Tem alguma comida que você gostasse na sua infância que até hoje você gosta?
R - Uau! Eu gosto de comer tudo, na verdade, mas teve uma época, por incrível que pareça, que me perguntavam: “Qual é a sua comida favorita?” E eu falava: “Arroz, feijão, salsicha e purê.”
Hoje em dia eu não gosto mais de salsicha, mas eu sou fanático por purê. A minha avó fazia um purê maravilhoso e eu tenho uma memória muito afetiva com o purê. Já cheguei a chorar fazendo purê, agora, depois de adulto, lembrando da minha avó e do purê dela, quando eu estava fazendo um purê na minha casa.
O purê tem uma memória afetiva muito grande. Acho que o purê seria essa comida que eu gosto até hoje - purê de batata, né?
(14:28) P/1 - Você se lembra da casa onde você passou a sua infância?
R - Lembro, lembro. Meus pais moram até hoje nessa casa, ela já passou por muitas modificações, muitas reformas, mas sim, é uma casa… É um sobrado e tem uma garagem para dois carros, não muito grande. Eu brincava bastante de futebol ali também; quando eu não estava quebrando as coisas dentro de casa, eu estava jogando na garagem. E logo que entrava tinha um corredor e um balcão, um corredor com um balcão de madeira, que dava acesso à sala.
Sempre teve um barzinho na sala de casa, porque a estrutura da casa precisava de um pilar no meio, por conta do segundo andar. Meu pai aproveitou esses dois pilares e construiu um barzinho de tijolinho à vista, para usar esses pilares para pendurar coisas, e tá lá até hoje. Tinha um telhadinho, ali no meio da sala tem um barzinho, que era o meu gol, que era onde eu chutava a bola - bem no barzinho, o lugar mais tranquilo da casa. Tinha um corredor para cozinha, e a cozinha era pequena - depois de um tempo, meu pai a ampliou - e tem um quintalzinho no fundo.
Outra característica muito marcante dessa casa é que quando meu pai comprou e foi fazer a reforma, no fundo tinha uma mina d’água, não parava de brotar água. Ao invés dele acabar com aquilo, ele fez um aquário natural no chão; um aquário minúsculo, de um metro quadrado, mas tem um quadradinho de água que surge do terreno e ele colocou uns peixes ali - tem até hoje, também. Os peixes já mudaram, já morreram, já vieram outros, mas até hoje ele mantém esse aquário ali. Colocou uma fonte, é um mini- aquário no chão do quintal do fundo.
(16:22) P/1 - Avançando um pouquinho mais na sua infância, quais as primeiras lembranças que você tem de ir para a escola, Giovanni?
R - Eu me lembro muito da fase da escola, desde o pré, que eu era muito… Tinha cinco anos, muito criancinha, e era perto de casa. Eu lembro que a gente ia andando. Apesar de ser perto, eu me cansava muito fácil e sentia muita dor quando eu caminhava, então eu lembro de ser um pouco chata essa ida pra escola, mas eu adorava estar na escola.
Eu lembro também dessa primeira parte da escola, com seis anos, no pré I e no pré II, de já aprender as primeiras letras. Eu lembro que as professoras falam: “Nossa, mas você aprende muito rápido!” A gente brincava na areia da escola desenhando palavras, desenhando letras.
Depois veio a primeira série, a segunda série, que foi numa escola superpequena, numa escola particular que se chamava Mundo Colorido, e foi… Meus pais tinham uma preocupação muito grande de não me… Apesar de serem professores da rede pública, eles tinham medo de me colocar na escola pública, pela quantidade de pessoas que tem dentro de uma sala de aula, por não ter uma atenção mais especial em relação à acessibilidade arquitetônica, porque todas as escolas públicas tem muito degrau, muita escada. Eles procuraram escolas pequenas e que tivessem acessibilidade, que tivessem rampas, que tivessem poucos degraus, e aí encontraram essa escola, que era bem pequena, o Mundo Colorido. Tinha outras pessoas com deficiência estudando lá, as turmas eram muito pequenas, mas eu lembro de ter pessoas com outros tipos de deficiência em outras turmas.
(18:10) P/1 - Nessa época, falando sobre o seu ensino fundamental, tinha alguma matéria que você gostasse mais? Algum professor que te marcou por algum motivo?
R - Sem dúvida. Já avançando um pouco mais, quando eu saí do Mundo Colorido e fui para o Colégio Estela, que foi onde eu vivi grande parte da minha vida - estudei lá da quinta série até o terceiro colegial - tive muitos professores incríveis e muitos amigos incríveis que eu trago até hoje, a gente mantém contato. Mas teve uma pessoa muito especial, que foi a Cris Lira, uma professora de Português. A gente é amigo, até hoje a gente se fala, hoje ela mora nos Estados Unidos. Essa relação de professora/aluno passou para uma grande amizade.
Ela foi uma grande incentivadora também para eu ir para o mundo das artes. Ela dava umas aulas de Português que eram muito dinâmicas e com encenação teatral; a gente lia um texto e tinha que encenar aquele texto. Tinha coisas muito práticas, de corpo mesmo, e ali me despertou o interesse pelo teatro, ali eu falei: “Nossa, eu quero fazer teatro! Isso que é ser ator!”. Ela percebia isso desde cedo. E para escrita também, ela fazia muitos trabalhos de poesia; quando ela lia minhas coisas, ela falava: “Nossa, muito legal!”
Ela me incentivava e me apresentava muitas coisas. Em paralelo às aulas, ela falava assim: “Você conhece o grupo tal? Você já ouviu a banda tal? O cantor x? o cantor y?” Então ela foi alimentando esse desejo por arte, que eu tenho até hoje, e eu sou muito grato, porque ela realmente foi a primeira diretora teatral que eu tive. A gente fez um trabalho na Feira Cultural e aí [a gente se] apresentava para escola inteira, não era mais só encenação dentro da sala de aula. Eu fui Zeus e foi demais atuar, improvisar, esquecer o texto e conseguir me virar. Despertou esse desejo de ser ator, então eu sou muito grato pela amizade e por ela ter visto isso desde cedo.
A gente é muito próximo hoje em dia, a gente se fala sempre. Apesar da distância física, dela estar morando em outro país, sempre que ela vem para o Brasil a gente dá um jeito de se encontrar. Foi uma pessoa, é uma pessoa muito especial, que a gente troca muito até hoje.
(20:35) P2 - Já na sua infância você já tinha o sonho de ser ator, ou você tinha algum outro sonho naquele período?
R - Nossa, eu já quis ser tanta coisa na infância! Mas eu acho que despertou esse desejo por ser ator nessa fase, com onze, doze anos, ali na quinta, sexta série, quando eu fiz esses trabalhos na aula da Cris. Mas antes eu dizia que queria ser biólogo, biólogo marinho. Eu lembro de falar muito que queria ser biólogo marinho, mas quando comecei a ter aula de Biologia no colegial eu vi que não era para mim. Eu sempre fui muito ruim em Biologia, Química e Física, essa parte de exatas não era para mim. Depois, na época de prestar a universidade, prestei para tudo. Prestei para Psicologia, Audiovisual, Rádio e TV, Teatro, tudo, tudo. Mas eu acho que na infância, o que eu lembro mais é de falar que queria mais era ser biólogo marinho.
(21:39) P2 - Fora da escola, nessa época, o que que você gostava de ouvir, se você ouvia música? Ou o que você gostava de assistir na TV, você se lembra?
R - Eu lembro, lembro de uma fase da minha vida que… Bom, a minha família é de Osasco e tinha uma banda que surgiu em Osasco, o Teatro Mágico, que misturava circo, teatro, música, e aquilo na minha época de infância… "Uau, que incrível!” Eu lembro muito de ir nos shows do Teatro Mágico, ainda quando eles nem eram tão conhecidos assim, em shows pequenos no teatro de Osasco, nos espaços culturais ali. Lembro de ir muito no show do Teatro Mágico e de me despertar também esse desejo de fazer circo, dessa imagem de palhaço.
Acho que lembro muito de ouvir Teatro Mágico, mas lembro de uma fase bem roqueira que eu tive. No comecinho, na pré-adolescência, com doze anos, eu lembro de ouvir muito Charlie Brown Jr, Linkin Park, CPM 22, umas coisas que eu não me orgulho muito, mas que, enfim, fazem parte da minha trajetória. Eu ouvia bastante rock. Sempre fui fanático também por Raul Seixas, por conta do meu pai; dessa parte eu me orgulho muito, porque meu pai ouvia muito Raul Seixas e eu achava geniais as letras e o modo como ele construía as músicas. Lembro que era até motivo de piada na rua eu gostar de Raul Seixas, porque os menininhos todos gostavam dos rocks novos e eu adorava Raul Seixas.
Lembro que eu tinha uma bandana do Raul Seixas; às vezes eu saía na rua com a bandana escrito Raul Seixas, e aí era zoado por isso, mas enfim, eu lembro dessa fase bem roqueira também, antes do Teatro Mágico, na pré-adolescência.
Conheci o Teatro Mágico, que foi para esse lugar mais da parte cênica mesmo, de ver essas figuras do circo em cima de um palco, fazendo música. Essa mistura de linguagens me chamou muito a atenção.
(23:50) P/1 - Você comentou que a sua mãe foi um incentivo, além da sua professora de português também, pra literatura, para que você lesse. Você lembra de algum livro dessa época que te marcou?
R - Eu lembro de dois livros que me marcaram na época da infância, que eu tinha que ler para a escola. Mas também tinha uma certa preguiça. Sei lá, eu devia ter uns dez, onze anos, e lembro da minha mãe incentivar e ler junto comigo; ela lia um pouco, eu lia um pouco, e toda noite a gente lia um pouco. Um deles é A Ilha Perdida, eu lembro muito desse livro; depois eu tive um papagaio, inclusive coloquei o nome dele de Bonnie por causa do livro. E também lembro de um, que é Memórias de Um Cabo de Vassoura, que eu achei incrível! Era contado por um cabo de vassoura, o personagem era… O protagonista da história contava na primeira pessoa, era um pedaço de madeira, um cabo de vassoura contando essa história.
Lembro desses dois livros na infância que me marcaram bastante. Não lembro muito bem da história, mas eu lembro que foram marcantes para mim.
(25:09) P/1 - Avançando um pouco, já para sua adolescência, para o seu ensino médio, como você começou a pensar em algo para fazer na faculdade? Você falou que você prestou para vários cursos diferentes, então você já tinha alguma ideia definida ou você foi meio que atirando para todo lado, para pensar melhor? Como foi isso?
R - Nossa, eu acho muito ingrata essa coisa de ter que escolher uma profissão, de ter que escolher o seu futuro com dezesseis, dezessete anos. Lembro que isso era terrível para mim, porque eu não sabia o que eu queria ser. Eu sabia que tinha uma paixão muito grande pelo teatro, mas aí tinha aquela história de: "Ah, mas isso não dá dinheiro, você vai passar fome. Você precisa ter outra profissão!" Eu lembro que eu ouvia muito isso e aí eu tinha medo de prestar vestibular para Teatro, para Artes Cênicas, para Cinema, as coisas que eu queria realmente fazer.
Acho que eu sempre quis ser ator. Desde essa época da quinta, sexta, sétima série, fui desenvolvendo essa paixão e essa vontade por estar em cena, mas fui bloqueando [isso] por conta dessa posição da sociedade mesmo, de achar que quem é artista vai passar fome, vai morrer de fome. Eu bloqueei um pouco isso e não sabia o que eu queria fazer se não fosse isso, então saí prestando o vestibular para tudo e falei: "Vamos ver no que que eu passo."
Eu dizia que eu queria ser psicólogo, prestei Psicologia, aí eu falei: "Não, vou trabalhar ainda envolvido no cinema, mas nos bastidores. Vou prestar Rádio e TV.” Prestei Rádio e TV, prestei Audiovisual, prestei Teatro em uma faculdade lá no Rio Grande do Sul, em Pelotas.
Passei na Federal de Pelotas em Teatro e passei na Federal em São Paulo em Turismo; prestei Turismo também, porque eu não sabia o que eu queria. E aí passei nas duas, em Turismo e Teatro, só que fazer Teatro lá no Sul… Eu não conhecia ninguém, na época eu tinha acabado de sair do colegial e já estava com emprego em uma financeira, então eu estava trabalhando em São Paulo, tinha meu salário, tinha passado em uma Federal em São Paulo. Já tinha uma base em São Paulo. Falei: "Vou fazer Turismo."
Fui fazer faculdade de Turismo. Enquanto isso eu levava o teatro em paralelo. [No] final de semana eu fazia uma peça, viajava; durante a semana eu trabalhava no escritório na financeira, fazia minha faculdade de Turismo, mas estava ali dentro essa vontade de ser ator, realmente.
(27:45) P/1 - Então me conta um pouco como foi esse período da faculdade. Como foi para você fazer Turismo? Teve algum choque, dificuldade? Você se sentiu bem, ou você pensou: "Tô fazendo, mas estou vendo que talvez não seja isso que eu queira mesmo?" E em paralelo também essa questão do teatro, como isso foi se desenvolvendo na sua adolescência?
R - Chegou no colegial, eu passei nessa faculdade e falei: "Vou fazer Turismo." Quando eu fui fazer Turismo eu me apaixonei, eu amei estudar turismo, mesmo!
Eu estava trabalhando em uma financeira e estudando Turismo. Falei: "Vou pedir demissão da financeira." Pedi demissão; ainda no meio da faculdade, no segundo, terceiro semestre, fui procurar emprego na área de turismo. Consegui emprego na área de turismo, comecei a trabalhar com turismo.
Odiei trabalhar com turismo, porque você trabalha no escritório para os outros viajarem. E é muito difícil você trabalhar com turismo em São Paulo, né? Ou você, sei lá, vira guia nos pontos turísticos de São Paulo… Mas era uma coisa que eu não queria muito. Não queria ser guia, eu queria estar mais em contato com a natureza, fazer turismo de aventura, ecoturismo. Eu gostava muito dessa parte, mas não conseguia desenvolver isso em São Paulo, e as empresas de turismo que eu trabalhei - trabalhei em duas - era dentro de um escritório, atrás de um computador, cadastrando tarifa para os outros irem viajar. Era muito chato trabalhar com turismo, mas eu amava estudar turismo.
[Quando] eu já estava quase no final da faculdade, faltava um semestre, as coisas começaram a dar muito certo no teatro para mim. Comecei a receber muitos convites; fiz a minha primeira publicidade, fui convidado para fazer a primeira participação em uma série de TV, aí uma companhia de teatro abriu um processo seletivo e eu passei. Era a primeira vez que eu estava em uma companhia profissional, e trabalhando na empresa de turismo.
Lembro que teve uma vez que eu faltei uma semana na empresa para poder gravar a série que eu tinha sido selecionado para gravar. Simplesmente faltei na empresa. Depois conversei com a minha chefe e repus esses horários que eu tinha faltado; falei que tinha surgido essa oportunidade e que realmente era o que eu queria ser, ator, e que eu não podia perder. Chegou esse momento, que eu falei: “Putz, é isso que eu quero. As portas estão se abrindo, não posso fechar agora. As coisas estão dando certo, tudo junto: publicidade, série, teatro.”
Pedi demissão da empresa de turismo, só que eu já estava no último semestre da faculdade e eu falei: “Vou terminar a faculdade. Vou continuar trabalhando com teatro, não vou mais trabalhar com turismo; não é o que eu quero, realmente, mas vou pelo menos me formar", porque eu realmente gostei de estudar Turismo.
Terminei a faculdade. Nos dois últimos semestre eu já estava muito voltado para o teatro, cinema. Eu só terminei para cumprir mesmo, sabe? Para pegar o diploma e falar: "Olha, completei." Mas minha paixão já estava… As portas já estavam abertas, aí já não tinha mais volta. Já tinha pisado com os dois pés dentro da arte e aí não voltei mais.
(31:04) P/1 - Antes da gente continuar falando sobre essa questão do teatro, sobre como essas oportunidades foram surgindo, eu queria te fazer uma pergunta que você vai achar curiosa, mas a gente costuma fazer em todas as entrevistas. Você se lembra do que você fez com o primeiro salário que você recebeu?
R - Nossa, eu acho que eu não lembro o que eu fiz com o meu primeiro salário. Eu lembro de ficar muito feliz com o meu primeiro VR [vale-refeição]. Eu lembro que com o meu vale refeição eu podia comer à vontade. Era um VR bom, era um valor alto; eu lembro que tudo… Eu pagava pra todo mundo, assim: "Ah, é comida? Vamos lá, eu passo no meu VR.”
Com o primeiro salário eu não lembro o que eu fiz, não lembro mesmo, mas o VR eu lembro que foi importante, meu primeiro VR. Poder comer em um restaurante à vontade, sem se importar com o preço, foi ótimo.
(32:01) P/1 - Bom, então vamos voltar para a questão da sua carreira.
Quando você finalizou a sua faculdade de turismo, você já estava imerso no teatro, já estava fazendo série, já tinha conseguido entrar em uma Cia, e aí me conta: como foram os seus próximos passos, a partir daí?
R - Estava uma maravilha, né? As coisas começaram a dar certo, pedi demissão. "Agora eu vou ser feliz fazendo o que eu quero." Mas não é bem assim. Na arte tem altos e baixos, e aí começou… É isso, tem época que você tem tudo e tem época que você não tem nada.
Eu comecei a entender que para seguir nessa profissão eu precisava de um planejamento muito grande. Quando eu tivesse trabalho, eu precisava guardar uma parte para as épocas de baixa. E eu sempre consegui administrar muito bem isso. "Cara, agora que eu estou com trabalho, não vou sair gastando tudo." Aprendi na raça, porque nas primeiras vezes você fica ali no sufoco. Depois você fica três meses sem trabalho e você fala: "Ai, meu Deus, o que está acontecendo?" Aí eu comecei a parar e falar: "Não, no próximo trabalho eu não vou gastar 100% do meu cachê de uma vez, porque eu não sei o que eu vou ter no próximo mês, então eu preciso saber guardar.”
Eu fui conseguindo administrar isso, mas foi difícil, é difícil até hoje. Não é uma profissão fácil, mente quem fala: "Ah, é uma maravilha ser ator." Nossa, até hoje tem momentos que eu penso em desistir, em ter outra profissão. Todo ator, toda atriz pensa nisso, porque são fases muito difíceis. A gente precisa de editais, aí a gente precisa competir com muita gente, ou a gente passa por um processo seletivo dentro do cinema. Você recebe muito mais ‘não’ do que ‘sim’ na carreira de ator, então tem que estar acostumado com o ‘não’, não pode desanimar com os nãos que você recebe, né?
No meu caso tem um outro agravante, porque no início eu aceitava alguns papéis, personagens que eu não aceito mais hoje em dia. Eu precisava abrir esse espaço, precisava cavar esse espaço para entrar no teatro, dentro do cinema, principalmente. Só que aí são personagens estereotipados, capacitistas. A pessoa com nanismo sempre está ligada ao humor, ou a esse universo lúdico, esse universo mágico e eu não queria ser isso. Eu não queria fazer só esses personagens, eu queria mostrar que sou capaz de fazer um drama, que eu sou capaz de fazer qualquer personagem, como outra pessoa qualquer, então eu comecei a dizer muitos nãos. Vinha uns convites e eu falava: “Não, não quero mais fazer isso! Já fiz, não vou mais fazer.” E aí você vai se complicando, porque as pessoas param de te chamar, só que é bom, porque aí você se posiciona no mercado e os convites que começam a chegar para você são convites que realmente estão interessados na sua capacidade artística, nas suas qualidades, e não na sua condição física.
Hoje em dia ainda recebo muito convite capacitista, muito convite estereotipado e continuo dizendo não. Às vezes me dá um arrependimento, porque você fala: "Putz, eu estou há cinco meses sem nenhum trabalho, mas eu não vou me sujeitar a fazer esse tipo de personagem. Vou manter a minha posição política, artística, fazendo o que eu acredito, porque senão as coisas não mudam, você vai aceitando e aí os convites que chegam para você são sempre os mesmos.” Então é isso, é difícil, mas é um trabalho de persistência; até hoje é bem complicado.
No primeiro semestre, acho que eu fiquei aproximadamente quatro, cinco meses sem nada de trabalho, sem nenhuma probabilidade, nenhum… Nada, nada. Nenhum convite, sem nenhum cachê, me virando com o que eu tinha guardado, já meio no sufoco. E aí agora virou o semestre e começou aparecer um monte de coisa ao mesmo tempo, eu não tô conseguindo administrar a agenda agora. Então é isso, você tem que saber, você tem que ter a cabeça no lugar para entender: "Putz, não vou desistir. São cinco meses difíceis, [mas] não vou desistir, porque daqui a pouco vai vir alguma coisa. Vamos persistir, né?"
(36:12) P/1 - Pegando o gancho sobre o que você falou a respeito dos convites que você recebe, você sente que existe uma rejeição muito grande no mercado de trabalho, nesse mercado de trabalho em relação às pessoas com deficiência?
R - Existe, existe uma restrição muito grande. A gente só é chamado quando o personagem está descrito com algum tipo de deficiência, quando o tema desse filme, dessa série, dessa peça vai passar por esse tema. A gente sempre tem que falar sobre isso, ou a gente só vai ser lembrado de ser convidado quando é para falar sobre a deficiência, ou então nesses lugares cômicos - ainda mais com a questão do nanismo, que tem um estigma muito grande, mais do que outros tipos de deficiência, que é historicamente ligado ao humor desde o Egito antigo, mesmo. Não tô brincando, é desde o Egito antigo mesmo, historicamente a imagem da pessoa com nanismo é ligada ao humor.
É muito difícil mudar isso, é um passo lento. É difícil mudar a cabeça das pessoas que estão acostumadas a assistir um programa de humor onde a imagem da pessoa com nanismo é arremessada e todos riem. Os convites que continuam chegando ainda são esses, e os convites que não estão ligados ao humor são nesse lugar de tipo, de vítima, de coitadinho, ou de exemplo de superação, de ter que falar sobre a deficiência.
Ainda tem um agravante muito maior: hoje mesmo eu estava lendo uma pesquisa que 95% dos personagens com deficiências são interpretados por atores que não têm deficiência. O espaço já é pequeno; quando existe uma oportunidade, eles preferem chamar alguém que tem um nome, que é conhecido e fazer alguma… Trabalhar esse ator para desenvolver um personagem com deficiência, do que ir atrás de algum ator ou atriz realmente com deficiência. Isso é cripface, da mesma forma que existe o blackface, que é o branco se pintar de preto para interpretar um personagem preto. Uma pessoa sem deficiência fingir ser uma pessoa com deficiência também é errado, é cripface, então a gente ainda tem que desconstruir muito esse lugar, para conseguir abrir essas portas, que já são poucas. As oportunidades que tem ainda são negadas para a gente, são colocadas ali para o Cauã Reymond fazer, sabe? Então é difícil, são sempre os mesmos nomes, as mesmas pessoas; tem que ser famoso, tem que estar na mídia. Mas eu acho que está mudando, aos poucos está mudando.
O Brasil é sempre mais lento, passos mais lentos, mas eu acho que tem uma grande mudança vindo na indústria do cinema, principalmente no cinema, eu acho, e as pessoas com deficiência já não aceitam mais essa posição dentro da mídia.
(39:03) P/1 – E você pessoalmente, Giovanni, passou por alguma situação de preconceito nesse sentido? Ou de capacitismo, de algum papel recusado? Algo nesse sentido?
R - Muito, todo dia. Todo trabalho que eu faço tem alguma situação, ou de alguém se achar no direito de fazer uma piadinha, porque é isso, está acostumado a ver a pessoa com nanismo sendo motivo de chacota, de piada. Então até nos bastidores [acontece] uma piadinha ou outra que a pessoa acha que não é agressiva, que é na brincadeira, na amizade, mas é uma forma de continuar reproduzindo esse pensamento capacitista. Isso acontece sempre, ou até mesmo do diretor…
Eu tive um problema recentemente… Sei lá, um ano, dois anos atrás. [Recebi] um convite para um trabalho, uma série, e eu questionei coisas do roteiro. Falei: “Olha, não concordo com a forma como está escrito, não concordo dessa cena ser assim.” Ele foi superaberto e falou assim: “Não, claro. Vamos mudar, vamos fazer do jeito que você acha.” Chegou o dia da filmagem e o roteiro estava exatamente igual. Ele não mudou nada, ele queria que fizesse o que estava escrito ali. Eu estava tentando mudar, ali no improviso, e ele questionando: “Por que você está errando o texto? Por que você não está fazendo como está escrito?” E eu falei: ‘Então, lembra que a gente conversou que eu não concordava?” Enfim, gerou uma situação assim, no momento da gravação. Sempre tem essas situações, e aí eu tenho que me posicionar.
Alguns diretores, alguns roteiristas estão abrindo mais a cabeça e chamando pessoas com deficiências para consultorias, para participar da sala de roteiro. Acho que é essencial, porque não adianta uma pessoa sem deficiência querer falar o que é ser uma pessoa com deficiência. Você não vai saber, você precisa de alguém para te ajudar, para construir esse roteiro.
Eu acho que além de colocar a imagem da pessoa com deficiência na frente das telas, para contar essas histórias é preciso ter gente nos bastidores, é preciso ter gente na sala de roteiro, é preciso ter uma consultoria, gente ocupando esses lugares também por trás, porque é assim que vai mudando. Chega do homem hetero, branco, cis, querer contar todas as histórias; você não vai saber o que é ser uma mulher, você não vai saber o que é ser um LGBTQI+, você não vai saber o que é ser uma pessoa com deficiência. A gente precisa ampliar e trazer essa diversidade pros bastidores, para poder contar essas histórias.
(41:24) P/1 – E isso tem a ver com o fato de você ter se tornado roteirista?
R - Completamente. Eu fui estudar roteiro, porque eu estava cansado dos personagens que eu recebia, dos convites que eu recebia; eram sempre no mesmo lugar. Eu falei: “Não é possível, nada vai mudar? Então vamos lá, eu vou estudar isso e vou começar escrever as histórias que eu quero fazer. Eu preciso saber essa técnica de escrever roteiro, saber como faz, para contar as histórias e criar os personagens que eu quero interpretar, porque eu não vou mais ficar esperando.”
Eu fui estudar roteiro por conta disso, para me posicionar e abrir essa porta também. Então hoje em dia eu consigo falar, por exemplo, se eu sou convidado para uma série, ou para um filme que eu não concordo com o personagem: “Olha, não concordo. Acho que vocês precisam de alguém, uma consultoria. Inclusive eu sou formado em roteiro, se você quiser a gente conversa, a gente pode fazer.” Eu consigo fazer isso, poucas pessoas aceitam, mas é uma forma de tentar abrir essa porta, de colocar um lugar ali, da pessoa com deficiência dentro do roteiro, dentro da sala de roteiro.
Estou conseguindo aos poucos, bem devagar, mas já [tem] uns dois ou três projetos que eu consigo ter esse diálogo franco e aberto com os diretores e com roteiristas. Alguns não aceitam, mas ultimamente tenho trabalho com pessoas muito generosas e muito com a cabeça aberta.
Esse último filme que eu fiz, o Big Bang, que ganhou um prêmio agora em Locarno, no festival de cinema, é um curta e o diretor é um maravilhoso, o Carlos Segundo. Quando ele me procurou para fazer e ele me mostrou o roteiro, eu já me apaixonei de cara no roteiro. Tinha uma coisinha ou outra para ajustar, e eu falei: “Olha, eu não concordo muito.” Ele falou: “Não, cara. Essa história é sua, vamos escrever juntos.” Então a gente mudou cenas, a gente mudou falas, a gente mudou coisas. Ele sempre deixou muito aberto, desde a hora que a gente estava conversando sobre o roteiro por computador, até a hora do “ação”, do “gravando”. A gente foi conversando e: “Putz, você não acha que é melhor assim, você não acha que é melhor assado?” A gente foi mudando e construindo juntos.
Fico muito feliz [por ter estado em] um dos maiores festivais de cinema do mundo - Locarno é o terceiro maior festival de cinema - e ter esse reconhecimento do nosso curta, ganhar como o melhor curta internacional. Significa que a gente está no caminho certo. A gente foi positivo, [teve] esse trabalho em equipe, essa abertura da cabeça para falar: “É meu filme, mas cara, ele que é o protagonista e a história é sobre ele. Ele que é esse corpo, ele sabe o que está falando.”
(43:55) P/1 - Você também é poeta. Isso surgiu lá atrás, junto com a sua paixão pelo teatro, ou isso surgiu depois? Me conta um pouco como essas três atividades se definiram para você?
R- Quando me perguntam quando comecei a ser poeta, eu também não sei, mas eu acho que foi mais ou menos na mesma época que eu me apaixonei pelo teatro. Foi na adolescência, [aos] catorze, quinze, com aqueles trabalhos da professora Cris. Eu adorava escrever e adorava escrever poema. Eu adorava rimar, eu adorava essa coisa da métrica e de experimentar também fugir da métrica, ou fugir da rima. Eu gostava dessa estética mesmo, da escrita, desse tipo de escrita, tanto que eu sou poeta antes de ser roteirista.
Quando diziam: “Ah, você é escritor”, eu falava: “Não, eu sou poeta”. Porque eu não sei se eu sei escrever um romance, um conto ou um roteiro. Hoje eu falo que eu sou roteirista porque eu estudei para isso, mas eu sempre escrevi muito poema, muito, e aí eu tinha vergonha de mostrar, eu guardava muita coisa para mim.
Acho que foi nessa fase, com catorze anos, quando estava aquela febre do blog. Criei um blog no Blogspot e comecei a colocar meus textos lá, os meus poemas e compartilhar com amigos, coisa pequena. As pessoas começaram a gostar, comentar; eu falei: “Olha, que legal, que bacana.”
Já um pouco mais velho, adulto, eu descobri o sarau, então comecei a frequentar muito sarau, muito slam, batalha de poesia. Comecei a desenvolver ainda mais essa paixão pela poesia e conheci pessoas incríveis, que trabalham com literatura de forma independente. Daniel Minchoni, meu parceirão, me convidou para lançar o meu livro pelo Selo do Burro, de forma independente. A gente fez ali um trabalho junto, em equipe, e putz, foi um sucesso, porque na época que eu lancei o livro eu estava em uma novela infantil, estava no ar, então o meu livro vendeu muito.
Foi um livro feito independente, em uma editora pequena, e deu muito certo. Nunca mais lancei outro livro; preciso, inclusive, retomar esse processo, esse projeto de um segundo livro, mas continuo escrevendo até hoje.
Eu guardo muita coisa. Às vezes, eu publico uma coisa ou outra no Instagram. Eu gosto muito da forma poética de se escrever e trouxe isso para o espetáculo também, pro teatro; meus dois monólogos têm muita poesia dentro, têm muita rima. Eu tenho dois monólogos, o Anão Ser e O Corpo Celeste, e nos dois eu trago muito essa forma de falar, essa métrica, essa oralidade, a rima, então eu trouxe muita da poesia para as artes cênicas também.
(46:43) P/1 - Conta um pouco sobre esse processo. Você falou que você tem já algumas coisas prontas, que você escreve. Você vai guardando essas coisas, não está lançando agora por que você está sem tempo? Mas você pensa no projeto antes? Ou isso vai aparecendo de forma espontânea, e você só vai mesmo registrando, digamos assim, e acumulando, para pensar depois o que fazer com ele?
R - Eu acho que o meu primeiro livro teve um planejamento muito grande de tema, de estética. Tinha muita coisa escrita, mas o que entrou no livro convergia no tema ou numa estética, enfim. Tem essa coisa que o Minchoni, ele que fez o design do livro, então a gente pensou muito no título e nessas letras irem diminuindo, na estética mesmo, o material físico ter a ver com o tema, porque o título é Anão ser. E aí as letras vão diminuindo e muitos poemas passam por essa temática, de ser uma pessoa com nanismo, mas não só, né?
Acho que hoje em dia eu escrevo mais no fluxo; o que vai aparecendo, eu vou acumulando. Mas eu tenho uma coisa que é muito difícil: [para] lançar um livro, tem uma hora que você tem que desapegar, porque se não você fica mudando, você fica querendo corrigir, você fica querendo… E aí você não sai do lugar. Eu estou nesse processo, nesse segundo livro; tenho esse projeto já há quase uns dois anos desse segundo livro, converso direto com o Minchoni, mas eu fico mudando ele, então tem uma hora que você precisa parar e falar: “Não, é isso, vai pro mundo." E eu estou nessa fase de acumular, ainda não consegui desapegar.
Estou acumulando as coisas que eu estou escrevendo, no fluxo e sem me preocupar muito com os temas ou com a estética, aí tem coisa que eu quero que entre e daqui a pouco eu quero que saia. Daqui a pouco eu quero aquele texto antigo, mas aí já não faz mais sentido… Enfim, eu fico nesse processo de ficar rodando mesmo, ficar girando lâmpada e às vezes o livro não sai do lugar.
Hoje em dia eu não tenho publicado muitos poemas nas redes. Vez ou outra, caso tenha alguma comunicação com alguma imagem que eu quero publicar no Instagram, por exemplo, eu penso: “Putz, tem aquele texto que fala mais ou menos sobre isso”, e aí a legenda é um poema, ao invés de fazer uma legenda para foto. Mas ultimamente eu não tenho publicado muito, não tenho compartilhado muito meus escritos por falta de tempo, porque a profissão de ator tomou uma proporção muito grande, então eu não consigo também direcionar muito do meu tempo para poesia, para escrita, para pensar o livro, para planejar esse lançamento. A carreira de ator deu uma crescida e tomou um espaço um pouco maior, mas não quero que adormeça, sabe, quero manter e quero voltar a lançar coisas, publicar meus textos.
(PAUSA)
(49:45) P/1 – Retomando a nossa conversa, Giovanni, eu queria que você me contasse como surgiu a oportunidade de você ir no primeiro sarau que você foi.
R - [Quando] eu conheci o sarau, eu acho que eu devia… Acho que eu ainda estava na faculdade, no começo da faculdade, talvez. Nessa coisa de ir muito em show do Teatro Mágico, conheci uma galera que escrevia também, que fazia poesia e que frequentava muitos movimentos culturais diferentes, dentre eles o sarau. Mas eu fui num sarau que não foi com essa turma do show. Eu conheci um sarau, ou vi alguma chamada, alguma coisa assim, e fui sem conhecer muita gente; vi como funcionava a dinâmica, não falei nenhum texto.
Teve uma vez também, acho que quando eu me aproximei mais dos meus amigos da poesia, meus amigos que eu mantenho até hoje, que foi no Menor Slam do Mundo, que era apresentado pelo Daniel Minchoni. Foi quando eu o conheci. Eu fui por conta de um amigo em comum, que é o Caco Pontes, que também é poeta; eu tinha encontrado com ele em um sarau e aí ele falou: “Amanhã eu vou me apresentar no Menor Slam do Mundo.” E eu falei: “O que é um slam, cara? Deixa eu ir lá ver.”
Fui assistir e conheci o Bobby Baq, conheci o Minchoni, a Eveline, a Anna Zêpa, e aí eu me apaixonei. Eu me apaixonei por poesia e por esse formato de poesia curta, porque o Menor Slam do Mundo é uma batalha de poesias de até dez segundos. O Caco Pontes que fez essa ponte com o Minchoni, aí o Minchoni falou: “Cara, você não quer apresentar junto comigo o Menor Slam do Mundo?” E aí, na edição seguinte, eu já estava junto com o Minchoni, apresentando - até hoje a gente tem essa parceria, de apresentar o Menor Slam do Mundo. Além de ser o meu editor do meu livro, ele é o meu parceiro de cena na apresentação do Menor Slam do Mundo.
Acho que o primeiro foi um sarau na casa de uns amigos em comum, na sala de casa; conheci o Caco Pontes, Caco Pontes me levou para o Menor Slam do Mundo, e aí abriu um mundo dos saraus. Comecei a ir em um monte de sarau, um monte de slam e me envolver mais com a galera da literatura, e com os meus amigos que eu trago até hoje.
(52:20) P/1 - Como foi essa sua primeira experiência de estar lá, apresentando? Você chegou a recitar algum poema seu, ou você só estava como apresentador? Deu pânico na hora? Me conta um pouco como foi isso.
R – Acho que a primeira vez que eu apresentei um poema meu foi num sarau desses que eu falei, na casa de um amigo. Era um sarau mais íntimo, na sala de casa, só amigos e aí eu fiz o primeiro poema assim, em público. Fiquei muito nervoso.
Depois, no slam, quando o Minchoni me convidou pra… Antes de eu apresentar junto com ele, eu participei de uma outra edição, onde eu falei, competi também com dois textos meus, curtinhos; fiquei muito nervoso, porque tinha poetas ali que eu gostava muito e que eram muito bons. [Quando] chegou no final dessa primeira apresentação, o Minchoni me convidou para apresentar a edição seguinte, então na verdade eu fui em duas edições: uma para conhecer, na outra eu apresentei um poema meu, competi, e na terceira eu estava de apresentador com ele.
Quando fui como apresentador, foi muito mais tranquilo para mim, porque é um teatro. Você está ali em cena, é um personagem, apresentador, divide a cena com o Minchoni, que é super, um baita de um apresentador. O Minchoni tem uma presença de palco, um dinamismo muito grande, então a gente jogava muito, era praticamente um jogo de palhaços, sabe? Uma dupla de palhaços, improvisando ali com os temas dos poemas que estão aparecendo, com as pessoas que estão competindo na hora. Nunca é igual, então apresentar foi mais tranquilo.
Quando eu apresentei pela primeira vez um poema meu, aí eu fiquei um pouco nervoso. Tem aquele julgamento, você fala: “Nossa, será que as pessoas gostaram? Nossa, que ruim isso que eu escrevi! Nossa, olha quanto poema bom e eu lendo isso. Meu Deus, que vergonha!” Tem esse julgamento a todo instante.
(54:15) P/1 – Eu queria que você falasse sobre a sua mudança para Curitiba. Teve algum motivo para você sair de São Paulo?
R- Há muito tempo eu queria sair de São Paulo. Veio a pandemia, fiquei um tempo ainda ali, em São Paulo. Teve uma oportunidade de eu ir morar em Monteiro Lobato, no interior de São Paulo, e eu amei, me apaixonei pela cidade. Nossa, eu amava morar lá em Monteiro Lobato. Fiquei lá um ano, só que no meio desse ano conheci uma pessoa muito especial, que é a Lívia, a minha atual companheira. Ela vivia em Curitiba e a gente manteve uma relação à distância por um bom tempo: ela ia para Monteiro para me visitar, eu vinha para Curitiba para visitá-la.
A vontade nossa é morar em Monteiro Lobato, mas ela tem uma filhinha de quatro anos, então a transição para ela de ir pra lá ia ser mais complexa, mais demorada e a gente não estava mais aguentando manter uma relação à distância. Eu falei: “Bom, eu tenho menos coisas que me prendem aqui, então eu vou para Curitiba e a gente faz esse movimento de voltar para Monteiro Lobato com calma." Então eu estou aqui em Curitiba faz sete meses agora, vai fazer sete meses, e a ideia é [de] ano que vem a gente voltar para Monteiro Lobato. O que me trouxe para Curitiba foi o coração, o amor. (risos)
(55:43) P/1 – Eu justamente ia perguntar para você sobre a pandemia. Como a pandemia te afetou, não só profissionalmente, mas psicologicamente também. Conta como foi esse processo.
R - Ah, eu acho que não tem um que saiu ileso da pandemia, né, nos dois quesitos, seja profissionalmente, seja psicologicamente.
Bom, para a arte é muito complexo, todos já estamos cansados de saber que foi um momento de maior incerteza. Já é uma profissão muito incerta e com a pandemia foi muito difícil. Nada acontecia, não tinha investimentos, não tinha nada; ainda mais com o governo, foi muito complexo conseguir se manter nessa profissão, mesmo. Acho que toda aquela angústia que eu falei lá atrás, aquela incerteza e insegurança da profissão que a gente escolheu foi redobrada; você fica muito inseguro e isso te afeta psicologicamente também. Mas eu acho que o que mais me afetou psicologicamente foi a falta de contato, principalmente com os amigos; essa coisa de não ter mais o contato físico, de não poder encontrar os amigos, essa coisa do abraço - nossa, isso pra mim doía muito! De não poder abraçar. Eu sou um cara muito do contato [físico], então não poder ver meus amigos e não poder abraçar ninguém, ficar longe do meu pai e da minha mãe, de não poder abraçá-los… Nossa, era terrível vê-los de máscaras, ficar distante, sabe? Era muito complicado.
Eu acho que no começo teve aquela coisa de: “Ah, vai ser rápido, vai durar pouco, né?” Toda aquela desinformação que a gente tinha. A gente falava: “Daqui a dois meses a gente está de volta, daqui a quatro meses." E aí as coisas foram aumentando, aumentando, então vai te dando um peso muito grande. “Nossa, quando eu vou ver as pessoas que eu amo? Quando eu vou poder tocar as pessoas que eu amo?” E aí, no meio disso, perda de pessoas que eram amigos; perdi um grande amigo por conta da covid, e aí vai te abalando cada vez mais.
Acho que no começo, em relação à profissão, teve essa coisa da internet, das redes sociais, que facilitou muito. Só que também teve uma hora que estafou, você estava cansado de consumir muita coisa virtualmente. Acho que no começo tinha um oba oba assim, tipo: “Nossa!”
Eu lembro que nos dois primeiros meses da pandemia eu fiz um videozinho todos os dias do meu dia a dia em casa, trancado em casa. Lembro que eu parei no dia sessenta. Eu falei: “Gente, não dá mais, não vou seguir com isso.” Porque eu não sabia mais até quando ia. Além disso, fiz umas vídeo-poesias com textos de amigos, com textos meus. Dentro de casa eu ficava buscando imagens, filmando com o celular, montava, ficava editando vídeo, colocava um poema, então teve esse momento do tipo: “Nossa, vou produzir coisas minhas, já que o mercado está fechado. Vou fazer coisas que eu tenho vontade, vou por nas minhas redes”. Mas aí tem uma hora que cansa, você fala: “Não, quero voltar para rua, quero voltar a gravar. Quero voltar a ter contato, quero voltar a filmar com os outros, não me filmar sozinho em casa.” Toda essa questão de saúde e de distância vai te abalando mais ainda psicologicamente, aí afeta o seu trabalho, e aí nada acontece. Foi bem complexo, no começo.
(59:17) P/1 – E mudando de assunto, quem você considera que é o seu grupo de apoio, aquelas pessoas com as quais você pode contar nos momentos em que a coisa fica difícil?
R- Nossa, grupo de apoio é uma coisa que direto eu discuto com a minha companheira né, de quem é o real grupo de apoio, porque às vezes a gente tem amigo que a gente fala: “Nossa, eu posso contar, você pode contar comigo.” Mas são pessoas que não estão ali no dia a dia, nos perrengues mesmo.
Acho que o meu grupo de apoio mesmo, sem dúvida, são os meus pais, que são um suporte muito grande, tanto emocionalmente, quanto financeiramente. Quando as coisas apertam, às vezes eu [falo:], “Mãe, estou sem trabalho há cinco meses; me empresta um dinheiro, assim que cair um cachê eu te pago." Tem essa troca, tanto financeira, quanto emocional, do tipo: “Mãe, estou precisando de uma ajuda. Também não sei o que fazer, se eu vou morar em Curitiba, se eu não vou. Não estou aguentando a distância, sabe?” Essa troca é real;
Minha companheira, sem dúvida. A Lívia, putz, é uma parceira imensa disso no dia a dia, nas trocas e nas rotinas, nas decisões, nos dilemas - dilema é uma boa palavra. A gente tem muitos dilemas no nosso dia a dia, todos temos, mas acho que essa troca, dela trazer os dilemas dela e eu levar os meus, e aí a gente poder se ajudar, poder tocar… É muito rico ter alguém [pra isso].
Eu sempre fui filho único e morei muito tempo sozinho também, dividi casas com amigos, com grandes amigos, mas ter alguém dentro de casa que você pode contar, pode trocar, pode falar sobre o seu dia, sobre os seus problemas é muito bom, então a Lívia é uma grande rede de apoio. E eu tenho um grande amigo meu, que eu falo que vira e mexe eu procuro ele quando estou nos perrengues - mas não só, a gente é parceiro também nos momentos bons. O Murilo Meola segurou uma barra minha, em alguns momentos de dor muito forte. É um cara que a gente trabalhou junto na novela, depois a gente fez uma peça juntos, agora a gente está desenvolvendo um projeto de um roteiro de uma série juntos, então é um cara que eu sempre tenho muito contato. Apesar da distância física, agora ele está em São Paulo e eu em Curitiba, teve alguns momentos muito específicos da minha vida em que ele estava muito próximo, e aí eu ia para casa dele chorar, enfim, desabafar, então é um cara que eu sei que é a minha rede apoio também.
(01:01:50) P/1 – E falando na Lívia, na sua companheira, como vocês se conheceram?
R - Ah, essa coisa de internet, né? Cara, a gente se conheceu pela internet, mas não em aplicativo de relacionamento. Nunca me dei bem com esses aplicativos, já até tentei, mais como um experimento social do que qualquer coisa. Nunca deu certo.
Ela viu um trabalho que eu fiz com pessoas que ela conhecia, um trabalho virtual no começo da pandemia. No começo da pandemia, ela assistiu um trabalho que a gente fez virtual pelo Zoom, através de um Instagram de um pessoa que ela seguia da dança, e aí ela começou a me seguir. Eu vi aquela pessoa seguindo e não tinha foto, não sabia quem era, sabe? Artista da dança contemporânea, que coloca umas fotos assim, que não mostra o rosto? Eu falei: “Quem é essa pessoa?” Aí eu olhei, [tinha] um monte de amigos em comum; falei: “Cara, eu devo conhecer, sei lá”. Segui de volta.
Ela começou a curtir umas coisas minhas e eu via que ela curtia, comentava. Comecei a ver uns trabalhos dela que ela tinha publicado no Instagram, e aí achei uma proximidade muito grande com umas coisas que eu estava desenvolvendo no momento, em relação ao corpo e em relação à natureza. Vi que ela trabalhava com pessoas com deficiências também, com dança, e eu falei: “Olha, a pessoa é interessante!” E a gente começou a trocar mensagem, aí eu fui conhecer a imagem da pessoa. Ela mandou uma foto, a gente ficou conversando, fez chamada de vídeo.
Surgiu um convite para um trabalho, ainda na pandemia, de forma virtual, para lançar uma vídeoperformance, e eu queria muito filmar lá em Monteiro Lobato por conta dessa relação do corpo com a natureza, lá onde eu morava. Eu tinha visto um trabalho que ela tinha feito que era justamente isso, o corpo dela em relação à natureza, ela mostrou um vídeo. Além de ser da dança, a Lívia trabalha com audiovisual também, ela filma e edita, aí eu falei: “Hum, então, estou com um projeto assim, fui convidado. Você não quer vir para Monteiro Lobato filmar e editar esse material, entrar na parceria, na direção disso também?” Ela foi e a gente nunca mais desgrudou. A gente se apaixonou - já estava, né? A gente já estava completamente apaixonado; foi só o encontro presencial e a gente confirmou isso. Começamos uma relação à distância e hoje estamos aqui, morando juntos.
(01:04:25) P/1 – E esse impacto dessa mudança de cidade? Primeiro você foi para Monteiro Lobato, porque você disse que você queria uma cidade menor, você queria mais contato com a natureza, e aí, algum tempo depois, você se muda para Curitiba. Teve estranhamento nessas mudanças para você?
R- Sim, teve. Teve muito estranhamento. Eu sempre fui de São Paulo, eu nasci em São Paulo, vivi a minha vida inteira em São Paulo. Morei em Osasco, mas é cidade grande, é São Paulo também. Quando eu fui para o interior, foi uma coisa muito louca, porque eu não pensava em morar no interior, mas aí eu conheci esse lugar Monteiro Lobato, o bairro de Souza, e foi mágico, porque tem um movimento cultural muito interessante, por ser uma cidade do interior. Tem um circo lá, então comecei a dar aula de circo, fui chamado para ser professor de circo; tem muitos músicos que moram lá, então sempre tem algum show, algum sarau, alguma coisinha. É uma cidade pequena do interior, mas que tem um movimento cultural muito bonito. Isso me encantou profundamente, e ao mesmo tempo tinha essa paz.
Para mim, a maior mudança e a maior diferença foi a poluição sonora. Cara, como me irrita o barulho de cidade grande para dormir. Eu tinha uma insônia em São Paulo… Essa coisa de nunca parar, de sempre ter um ruído, isso me irrita profundamente. Quando eu fui para Monteiro Lobato, nossa, a minha insônia passou, meu bruxismo passou. Eu tinha noites incríveis de sono, uma relação de acordar cedo bem e ver a natureza.
Acordar com o galo cantando foi maravilhoso, só que tinha essa distância para os trabalhos, os grandes trabalhos ainda eram em São Paulo, então tinha esse movimento muito frequente de pegar estrada, vai para São Paulo trabalhar e volta. São duas horas e meia, é perto, mas é cansativo ficar nessa ida e vinda para trabalhar, para dormir, para trabalhar. Enfim, esse movimento foi um estranhamento negativo, e teve o estranhamento positivo, que foi essa questão sonora.
Quando eu mudei para Curitiba, que eu voltei a morar em uma cidade grande, foi de novo me acostumar com os barulhos, com o ruído da cidade grande. Apesar de Curitiba ser menor que São Paulo, é uma cidade grande, tem um movimento, tem um fluxo de pessoas, de carro, de trânsito. Isso foi muito complicado nos primeiros meses; me irritava muito isso do som, das noites de sono, isso… Aí eu já voltei a me acostumar, o organismo acostuma. Agora eu já estou acostumado a morar aqui em Curitiba, mas acho que essa coisa do trânsito e do barulho me incomoda um pouco.
(01:07:10) P/1 – Bom, então a gente vai para as perguntas finais, Giovanni. Primeiramente, quais são as coisas mais importantes para você hoje?
R - Nossa, que difícil!
(01:07:24) P/1 – Pode ser mais que uma, tá?
R - As coisas mais importantes para mim hoje? Nossa!
Eu vou dar uma resposta, mas eu preciso contextualizá-la. Eu sempre fui um cara muito ligado ao trabalho, o trabalho realmente tem uma importância muito grande na minha vida, o meu trabalho como ator, e isso é bom e ruim. Acho que é uma das coisas mais importantes para mim hoje, o meu trabalho como ator, e de como eu venho me posicionando pro mercado, e de como eu tenho conseguido mudar muitas coisas. Isso para mim é muito importante. Apesar de ter momentos de desânimo e de quase desistir, eu ainda o coloco num lugar muito importante, porque eu acho que não é só para mim, não é só pelo ego, não é só pelas conquistas pessoais que eu estou tendo. Acho que tem uma relevância muito grande social, de mudança, de abrir portas para outras pessoas com deficiência, desse posicionamento político-artístico dentro da arte, de pessoas, de corpos dissidentes dentro da arte.
Acho que isso tem uma importância muito grande para mim, seguir firme nos meus ideais. Por mais que às vezes a gente balance, por mais que às vezes a gente queira desistir ou quase aceite uma proposta - ou até aceite uma proposta que você fala: “Hum, não devia ter aceitado, não é bem isso que eu acredito”, acho que manter a cabeça firme nesse trabalho e no modo como eu venho me colocando no trabalho está trazendo resultados agora. Como eu disse, o prêmio de Locarno foi uma resposta muito grande e acho que isso tem uma grande importância para mim hoje.
Bom, essa relação que eu tenho construído com a Lívia está entre as mais importantes, sem dúvida. Eu nunca tive um relacionamento tão sincero, tão verdadeiro, de tanta troca, de tanto amor assim, então sem dúvida está me mudando como pessoa e está num grau muito elevado da minha vida. Acho que eu destacaria essas duas, o meu trabalho e a minha relação com a Lívia.
(01:09:38) P/1 - E pegando o gancho nessa questão profissional que você disse, qual você acha que é a importância da diversidade para o mercado de trabalho?
R - A gente sempre está acostumado a ver sempre os mesmos corpos ocupando os lugares, seja dentro de empresas, seja na mídia, nas frentes das telas, nos bastidores, no cinema, como eu disse. Então eu acho que dar abertura e essa visibilidade para a diversidade é um modo de ser verdadeiro e contar as histórias que estão aí na nossa sociedade e que a gente fica ocultando e negando há muitos anos.
Acho que a importância de ter essa a diversidade no mercado de trabalho, seja ele artístico, ou qualquer outro tipo de mercado de trabalho, é dar voz realmente à sociedade que a gente existe. É dar essa possibilidade de a gente assumir o eixo da nossa história, de assumir a condução dessa história que sempre foi negada né, de tirar a condução desses corpos padrões, tirar dessas pessoas que estão aí há anos, milênios ocupando esses lugares e contando as histórias por nós. Então, eu acho que a diversidade vem nesse papel importante de retomar a nossa voz, de retomar a nossa história, de assumir realmente as rédeas da nossa história.
(01:11:01) P/1 – E qual o legado que você gostaria de deixar?
R - Nossa, qual legado eu deixaria? Qual legado eu gostaria de deixar? Eu não sei, as pessoas às vezes colocam uma importância muito grande em deixar algo, mas eu acho que naturalmente eu estou fazendo isso com esse posicionamento meu. Acho que isso de estar em um grande festival, pela primeira vez uma pessoa com deficiência recebendo um prêmio, acho que é um legado que fica, para abrir a porta para as pessoas verem: “Nossa, eu também posso, eu também posso chegar lá". Outras pessoas com deficiência. Então eu acho que o meu legado é dentro da arte, realmente, de desconstruir essa imagem que estão acostumados a nos enxergar, e esses estereótipos que estão acostumados a nos encaixar, essas caixas; desconstruir isso, mostrar que é possível, mostrar que outras pessoas com deficiência podem ocupar esses lugares.
Eu costumo dizer que quando eu decidi ser ator eu não tinha referência de outras pessoas com nanismo fazendo o que eu queria fazer. Eu via sim pessoas com deficiências, pessoas com nanismo na mídia, na TV, no cinema, mas ocupando lugares que eu não queria estar, então acho que eu queria deixar esse legado de ser uma referência positiva, de ser uma possibilidade para outras pessoas, de falar: "Nossa, ele conseguiu. Eu também posso!" E não é chegar só até ali, é ir além do que eu cheguei, sabe? “Ele abriu a porta, agora eu posso ir até onde ele foi e mais um pouco.”
Acho que esse é o legado que eu gostaria de deixar, porque também vou falar de uma coisa muito importante também, de saúde mesmo. A questão da depressão é muito forte dentro das pessoas com deficiência, e muitas pessoas com deficiência cometem suicídio, então você ter uma representatividade, uma imagem de uma pessoa na mídia, uma imagem de uma pessoa com deficiência de sucesso é uma forma de salvar vidas, também.
Acho que esse legado que eu quero deixar, salvar essas vidas e mostrar que elas podem ocupar o lugar que elas quiserem e não o que é determinado para elas.
(01:13:19) P/1 – E quais são os seus sonhos para o futuro, Giovanni?
R - Meus sonhos para o futuro? Eu vivo mudando de sonhos e isso é bom, porque às vezes eu conquisto os sonhos e às vezes os sonhos mudam mesmo né. Acho que tem alguma... Eu ouvi outro dia, essa semana eu ouvi uma entrevista que eu dei há alguns anos atrás; em 2012, acho que foi essa entrevista, 2013, e eu estava reassistindo isso. Estava procurando um material antigo meu e eu falava que o meu sonho era protagonizar alguma novela, ou chegar, conquistar um espaço no cinema nacional de relevância, com um personagem digno, e aí eu acabo de ganhar um prêmio foda. Ai, desculpa! Não pode falar palavrão, né? Não sei se pode.
(1:14:14) P/1 - Pode!
R - Tá, pode. (risos) Acabo de ganhar um prêmio foda no cinema e eu falo: "Caraca, as coisas estão mudando! Devagar, né? Pô, 2013, mas só agora eu estou tendo um certo reconhecimento no mercado audiovisual. Ainda não consegui o protagonismo numa novela, mas tudo bem, as coisas estão mudando." E é tão bom saber que aquele sonho está sendo realizado, ou que mudou, já não é mais o mesmo.
Acho que hoje em dia o meu sonho é realizar um filme meu, um roteiro meu, conseguir realizar um longa-metragem ou um curta que eu tenha escrito, e construir a minha casa. Eu queria muito construir uma casa em Monteiro Lobato, uma casa com mais conforto, pensando nessa questão de acessibilidade, pensando nessa questão das alturas das coisas. Eu gosto de construir coisas, e acho que ter um espaço meu, pensado por mim também, acho que seria um sonho legal de realizar. Então acho que tem esse sonho pessoal de ter uma casa minha, pensada e planejada, e esse sonho de realizar um filme que eu escrevi.
(01:15:23) P/1 – Tem alguma coisa que você gostaria de falar que a gente não abordou aqui, porque o caminho foi para o outro lado, a conversa tomou outro rumo?
R- Não, acho que não tem nada que eu gostaria de falar para além disso, só lembrando agora dessa entrevista que eu revi e me perguntaram qual era o meu sonho, e aí eu respondi isso, de protagonizar uma novela ou um filme. Eu lembro que depois que eu respondi isso, porque eles perguntavam qual era o sonho para tentar realizar algo, eu parei, assim… Depois que já estava filmado, dias depois eu entrei contato com a produção e falei: “Nossa, lembrei de um sonho que seria fácil de realizar: queria andar em uma montanha russa.” Acho que eu nunca encontrei uma montanha russa que eu pudesse entrar, pro meu tamanho, só que aí já era tarde demais, já tinham editado o programa, enfim. Mas aí eu fiquei pensando nisso, eu ainda não usei… Eu ainda não andei em uma montanha russa, ainda não encontrei nenhuma montanha russa que eu possa entrar. Talvez esse seja um sonho mais, sei lá, frugal e mais irrelevante, mas eu queria um dia ter a experiência da adrenalina de uma montanha russa. (risos)
(01:16:41) P/1 - Bom, então vamos para a última pergunta. Como foi para você contar a sua história para a gente hoje?
R- Nossa, foi demais, porque eu já dei muita entrevista, mas essa forma de resgatar desde a infância e ir construindo essa história, relembrando momentos, é muito legal. Às vezes tem coisas que estão no nosso subconsciente, assim, no nosso… E a gente não imagina que vai falar sobre isso. As coisas que eu falei sobre o meu avô, sobre a memória do sorvete, do picolé, são coisas que vão vindo, que a gente vai resgatando, e que às vezes a gente não sabe que estão guardadas lá dentro, esse sentimento de carinho. Ver esse trajeto, como um todo, onde a gente está e por tudo que a gente passou, por mais que eu não tenha entrado em detalhes, gera outras coisas na cabeça, percalços e conquistas, outras coisas que aconteceram no meio do caminho e que foram importantes para mostrar onde eu estou hoje. Então foi muito legal resgatar essa história minha, às vezes a gente esquece de olhar para trás também e é importante para saber para onde a gente quer ir também, é importante olhar para trás.
(01:17:58) P/1 – Bom, então pessoalmente e também em nome do Museu da Pessoa, eu agradeço muito a conversa que a gente teve hoje.
R- Obrigado, valeu! Eu que agradeço, foi demais, demais!
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