Projeto CSP
Depoimento de Raimunda Cruz do Nascimento
Entrevistada por Eliete Pereira
Caucaia, Ceará 02/06/2014
CSP_HV017_ Raimunda Cruz do Nascimento
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Karina Medici Barrella
P/1 – Dona Raimundinha, bom dia!
R – Bom dia.
P/1 – Dona Raimundinha, qual o nome completo da senhora?
R – Raimunda Cruz do Nascimento.
P/1 – Onde a senhora nasceu?
R – Nasci no Croatá, cheguei aqui pequena e me sinto uma Tapeba, sou uma Tapeba.
Apesar de eu ser descendente dos Tremembé.
Mas pra mim eu sou uma Tapeba, eu cheguei aqui muito criança, comecei na luta muito cedo, e respeito muito o meu povo, Tremembé, mas o meu povo Tapeba, principalmente.
P/1 – Dona Raimundinha, qual a data de nascimento da senhora?
R – 18 de março de 47.
P/1 – E o nome dos pais da senhora?
R – Maria Augusta Souza da Cruz e José Ferreira da Cruz.
P/1 – Os pais da senhora eram daqui?
R – Meu pai que eu estou lhe dando o nome foi o pai que me criou, porque o meu pai verdadeiro mesmo saiu e deixou a minha mãe com cinco filhos pra criar, tudo pequenininho.
E a mais velha era eu, que tinha sete anos, os outros quatro pequenininhos, tinha um que sentava.
E de lá pra cá a minha vida de criança passou a ser adulto.
P/1 – A senhora ajudava os irmãos.
R – Minha mãe saía pra trabalhar e eu ficava em casa.
Eu era a mais velha.
Nessa vida, inté eu poder criar mais força nos braços pra ajudar minha mãe.
A outra foi crescendo também, a que era mais nova que eu.
A partir dos meus oito anos eu comecei a acompanhar ela pra trabalhar.
P/1 – E no que a mãe da senhora trabalhava?
R – Trabalhava em pedra, essa pedreira aí que hoje é cheia d’água.
Ela quebrava pedra.
E tinha um roçado que ela plantava, que ela limpava nos dias de sábado e de domingo.
Longe, no Lameirão.
Aí eu ajudava ela, de todo jeito eu ajudava a minha mãe.
P/1 – O que vocês plantavam?
R – Milho, feijão.
Só que o roçado que ela plantava era pequenininho porque ela não tinha condições de plantar um roçado grande.
Mas como ela era uma pessoa que tinha criado duas filhas dela só apanhando arroz e colhia outras plantas, minha avó toda vida era uma pessoa que plantava, a família da gente já era, não vivi a agricultura, não dependesse só de coisa que não fosse agricultura não é viver.
Entonce, a vida da gente é uma vida muito sacrifiçosa.
P/1 – E quando a senhora fala da avó seria a mãe da mãe da senhora?
R – É.
Minha avó.
P/1 – E ela também morava com vocês?
R – Morava.
P/1 – Quantas pessoas moravam na casa de vocês?
R – Minha filha, quando a minha mãe era viva, aí nunca parei, assim, pra pensar quantas famílias.
Quando eu tomei conta da minha casa, a minha casa era conhecida como Casa 22, que eram 22 pessoas que moravam na casa, antes de eu vir pra essa casa aqui.
Vinte e duas pessoas.
P/1 – E foi a casa que a senhora nasceu?
R – Não.
Não foi a casa que eu nasci.
A casa que a gente morava quando eu era pequena era aqui no centro da mata, uma casinha de taipa, pequena, e nós passemo muito tempo lá.
E o posseiro da terra foi lá onde nós tava, porque eles tinham se apossado dessa área aqui, que era dos antepassados e que passou pra mão dos posseiro.
O velho foi lá na casa onde nós morava e a casa tava torta.
Ele perguntou à minha mãe: “Quem botou vocês aqui?”, e ela disse: “Foi seu Alfredo Miranda”.
Ele disse: “Botaram vocês pra morar ou pra morrer debaixo dessa casa? Porque essa casa está caindo, escore ela enquanto ela não cai.
E quando desocupar uma casa na beira da lagoa vocês passem pra lá, ordem minha”, que era o posseiro dono da casa.
Sempre as pessoas por coração duro que tiver, quando vê uma mulher sozinha tomando conta de um bocado de criança, as pessoas sempre ficam.
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Foi isso a nossa estadia de mudança, mudemo pra beira da lagoa.
Depois minha mãe.
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nós já tava mais maior, eu trabalhava muito, eu não ia estudar.
Eu não ia estudar pelo seguinte, eu não tinha tempo pra estudar.
Minha mãe não tinha com que comprar material escolar pra botar os outros na escola, porque o que a gente ganhava era tão pouco, se tirasse pra comprar material didático pra ir pra escola não tinha o que dar de comer às crianças.
Entonce era essa.
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P/1 – E o pai da senhora, o biológico?
R – Ele foi embora.
Depois de muito tempo ele casou-se com outra mulher e depois, quando ele tava pra morrer, ele morreu no nosso poder.
Porque eles não quiseram tratar dele doente.
P/1 – Então ele voltou pra casa?
R – Depois de velho, depois de muitos anos porque eu já era casada, já tinha meus filhos, já morava nesta casa, quando ligaram pra eu fazer o favor de ir buscar ele porque eles não podiam cuidar dele.
P/1 – E a mãe da senhora conheceu o pai da senhora que criou a senhora lá na Lagoa?
R – Aqui mesmo na lagoa, a lagoa é aqui.
Nós morava numa casinha que ficava na beira da Lagoa dos Tapebas, por um lado ali.
Nesse tempo eu já tinha dez anos quando ela conheceu ele, talvez eu tivesse uns 11 quando eles casaram, que foi assim que ele registrou nós.
E esse foi o pai que na verdade eu tive mais conhecimento, porque foi aquele que me deu amor, me deu carinho, me ensinou uma parte da minha vida, que a vida não é feita de mares e flor, mas também a gente tem direito de brincar que eu era criança.
E eu queria muito ganhar ele.
P/1 – Ele era agricultor?
R – Era agricultor.
P/1 – E vocês chegaram a ter uma roçado na casa de vocês aqui na Lagoa?
R – Olha, toda vida a gente plantou no Lameirão porque aqui não tinha onde a gente plantar.
Não tinha.
Mas lá no Lameirão os Nogueira arrendavam os roçado pra plantar.
E era pagar renda com milho.
P/1 – Os Nogueiras eram os donos das terras?
R – Os Nogueiras eram os posseiros das terras do Lameirão, porque lá no Lameirão também tem uma parte que fica dentro da área indígena.
É tanto que a gente plantava assim um pouquinho e não lucrava quase nada.
Na verdade ninguém lucrava nada com o milho.
P/1 – Mas dava pra comer?
R – Tirava uma parte, a metade do milho, partia a metade.
Essa parte aqui a gente podia tirar pra comer, canjica, pamonha, milho assado, o que desse.
E essa outra parte era do posseiro.
E era assim que gente vivia.
P/1 – E lá na pedreira? Como era trabalhar na pedreira?
R – Detonava os fogos, quebrava alvenaria.
Fazia o meio fio, que é umas pedras grandes que tem.
E a gente juntava aquelas pedrinhas finas, as metralhas que a gente chamava, pra quebrar concreto.
Minha mãe era quebradeira de concreto.
Era medido por lata.
Todo dia ela media aquele concreto que ela quebrava durante o dia.
P/1 – Mas ela quebrava como? Ela tinha algum.
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R – Martelo.
P/1 – Martelo?
R – É, quebrava com martelo.
Tinha um arco feito numas, assim da largura de dois dedos de uma, como é que a gente chama? Umas braçadeiras que vinham nos tambores de antigamente, aí o pessoal tirava pra fazer arco, pra gente quebrar concreto.
A pessoa arrastava com aquela coisa e quebrava com o martelo, pra não pular muito pra fora.
P/1 – E a senhora também com martelo?
R – Eu ajuntava as metralha pra ela.
P/1 – Ela ia quebrando e a senhora ia juntando.
R – Eu ia juntando as metralhas pra ela e ela ia quebrando o concreto.
Quando eu cresci mais um pouco, aí além de juntar metralha pra ela, eu ajudava a quebrar o concreto, porque aí eu já tinha força de correr, de metralhar pra ela e ainda fazia uma pra mim, ainda dava tempo para eu quebrar meu concreto.
P/1 – A metralha eram as pedras que ela quebrava?
R – É, as pedrinhas finas.
P/1 – E vocês colocavam onde essas pedras?
R – Na pedreira mesmo tinha aqueles lugar vago que a pessoa fazia as ruma pra quebrar lá mesmo.
P/1 – Aí vocês juntavam os montes.
R – É.
P/1 – E alguém ia pegar depois?
R – Era eu quem juntava.
Onde o pessoal tava fazendo meio-fio, que tirava as lapas de pedra, aí eu tirava, juntava aquelas metralhas em uma lata, levava e colocava na ruma pra ela.
E era assim, minha vida era essa, criança.
P/1 – E dona Raimundinha, a senhora se lembra quanto tempo vocês ficaram na pedreira? Vocês ficavam o dia inteiro lá?
R – Era assim, a gente saía de casa de manhã depois que fazia o café das crianças.
P/1 – O que vocês comiam de manhã?
R – Café com farinha, café com beijuzinho que a minha mãe fazia no caco.
Ela ralava mandioca, quando tinha mandioca ela ralava, espremia, aí fazia os beijuzinhos no caco.
P/1 – No caso? O que seria o caco?
R – No caco, ó, podia ser um caco de pote.
Porque de antigamente a gente usava os potes, as panelas de barro, e também a gente encomendava na louceira umas frigideirazinhas assim, por isso que a gente chama beiju no caco.
P/1 – No caco.
Então vocês comiam, tomavam café, comiam um beijuzinho.
R – Era, comia um beijuzinho, bebia um cafezinho, quando não tinha café minha mãe fazia chá.
P/1 – Que tipo de chá vocês tomavam?
R – Chá de cidreira, chá de hortelã.
Tudo ela fazia chá.
Aí a gente bebia aquele chazinho porque a gente achava muito bom chá de erva-doce.
E uma vez minha mãe plantou um pé de erva-doce.
Ela comprou erva-doce e disse: “Eu vou plantar um pé desse erva-doce que ele vai nascer, que ele tem verdinho”, o verdinho diz que é novo.
Aí ela preparou lá um pedacinho de chão, botou uns tijolos, botou a semente lá, nasceu um pé de erva-doce, a coisa mais linda do mundo.
E eu tinha vontade de beber chá de erva-doce, só que a minha mãe não tinha como comprar a erva-doce que era comprado.
E os outros chás não, porque era tirado na natureza, plantava, o capim santo, cidreira, tudo ela plantava em casa.
P/1 – Aí vocês tomavam chá, comiam beiju e iam pra pedreira.
R – Comia beiju.
Quando não tinha beiju a gente tomava era com farinha mesmo.
Ela fazia o chá de cidreira, botava um pózinho de farinha dentro e mexia, aí ficava aquele mingauzinho fino de cidreira E ela botava uma canequinha pra cara um.
E assim a gente levava a nossa vida.
P/1 – E vocês acordavam muito cedo pra ir pra pedreira?
R – Acordava, ela acordava cedo.
Ela banhava o menino mais novo pra deixar ele banhadinho.
Minha mãe era muito cuidadosa com os filhos dela.
Quando ela chegava meio-dia ela banhava tudinho de novo, dava de comer, botava na rede, nós voltava pra trás, ficava tudo deitadinho.
Fechava as portas, deixava a gente trancado dentro de casa, não deixava a porta aberta.
P/1 – Vocês tinham medo?
R – Tinha medo que eles se perdessem na mata.
Porque tinha mata, mata grande, mata grossa.
Hoje nós não temos mais nada disso, mas tinha mata grossa.
Aí ela deixava tudo trancado, que era pra eles não saírem pra fora, com medo deles irem brincar na mata e se perder.
P/1 – Iam todos os irmãos pra pedreira?
R – Só eu.
P/1 – Só a senhora.
R – Só eu.
P/1 – Então ela deixava todos os meninos lá.
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R – Ela deixava os quatro, que eram cinco comigo, mas ela deixava os quatro e eu ia com ela.
P/1 – Eles eram bem pequenos então?
R – Pequenos.
Quando meu pai foi embora tinha um que se sentava e o outro que já tava andando.
P/1 – E a senhora seguia pra pedreira e ficava até que horas lá com a sua mãe?
R – Quando era 10:40, mais ou menos, ela: “Minha filha, eu já vou” “Mãe, vá que eu vou jajá”.
Eu sempre ficava pra fazer a ruma de metralha, pra quando ela chegar de tarde já estava feito.
Eu nunca ia-me embora mais a minha mãe.
Ela me chamava: “Não, mãe, vá andando que eu vou atrás”, porque eu queria deixar.
Porque quando o pessoal saía pra almoçar, aí já tinha aquilo de tarde desocupado pra mim juntar as metralhas, sem me preocupar se alguma coisa ia bater em mim.
Porque eles quebravam com uma marreta grande, um marrão, aí voava muita ferpa de pedra que ia longe.
Entonces, eles não estando lá, eu já ajuntava aquilo ali mais despreocupada, que não ia bater em mim nada.
E a minha mãe ia embora e eu ficava juntando as metralhas.
P/1 – E era muita gente que trabalhava lá?
R – Era muita gente.
Muita gente.
Era o meio de sobrevivência de muitos pais de família aqui dentro dessa.
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P/1 – Aí a senhora ficava sozinha na pedreira juntando as pedras quando eles iam almoçar?
R – Não, tinham outras, várias crianças que trabalhavam também ajudando as mães, porque não só era eu uma filha que não tinha pai.
Tinha outras também que não tinha e a mãe sobrevivia daquilo ali e as filhas também ajudavam.
Então, são coisas que aconteciam muito, não sei porque, acho que é devido ao sacrifício de sobrevivência que os pais abandonavam os filhos.
P/1 – E a senhora ia comer quanto, na hora do almoço?
R – Quando eu chegava em casa, eu nem chegava nem em casa logo, eu ia direto pra lagoa.
Tomava banho, ia direto pra casa, tomava banho com vestido, com tudo, não tirava roupa.
P/1 – Era muito longe da pedreira?
R – Era não, a minha casa ficava na beira da lagoa, era bem pertinho.
P/1 – E a pedreira era perto da lagoa?
R – E a pedreira que nós trabalhava era essa aqui, era mais longe.
P/1 – Era quanto tempo, mais ou menos, de caminhada?
R – Hum.
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Que eu só andava correndo mesmo naquele tempo, eu não lembro se eu andei algum dia.
Andava correndo, correndo e cantando (risos).
P/1 – O que a senhora cantava?
R – Eu sei lá! (risos) Aí, quando eu chegava em casa, a minha mãe já tinha botado a minha comida, já tava lá esperando, eu comia.
P/1 – O que a senhora comia?
R – Eu só “trocia” o vestido assim, ó.
Quando eu saía de dentro d’água eu pegava o vestido, tirava o vestido e “trocia”, e vestia de novo.
Aí chegava em casa, eu comia, ficava por ali um pouquinho, bebia água e voltava pra trás de novo.
Eu fui uma criança que brinquei de noite quando dava tempo.
Quando minha mãe saía comigo de noite, às vezes, ela botava os meninos pra dormir, aí dizia: “Minha filha, vamos lá na casa da dona Chiquinha?”.
Nós ia lá na casa dela e lá tinha um menino e uma menina, aí nós brincava de noite.
Às vezes, eu levava minhas bonecas de sabugo, que as boneca, primeiro, a gente fazia de sabugo.
É.
Às vezes, minha mãe costurava um pedacinho de pano e eu enchia com folha, aí fazia uma boneca.
Uma boneca era de pano (riso).
Ela enrolava uma cabeça, a bichinha tão feinha, mas era boneca, ela fazia de qualquer maneira aquilo ali pra gente brincar.
P/1 – A senhora brincava à noite, então.
R – É, nós ia pra lá.
Porque antigamente os filhos também não escutavam conversa dos pais, eles iam conversar e a gente ia brincar.
Aí a gente brincava com boneca de sabugo, as panelinhas eram delas, às vezes, a gente fazia inté guisado lá de noite, botava um pouquinho de alguma coisa pra cozinhar, pra gente brincar de noite.
E lá na casa dela não faltava, pois os pais dela pedia esmola, e não faltava as coisas.
P/1 – E onde eles pediam esmola?
R – Em Caucaia, no Capuã, no Genipabu, todo canto eles andavam.
E era assim porque antigamente quando a pessoa ficava velha, se não pedisse esmola pra comer morria de fome, morria de fome.
E aí foi isso, a minha criancice foi mais de trabalhar.
Agora tem uma história da minha vida que eu sinto falta.
P/1 – Ah, é? Conta pra gente.
R – De primeiro tinha umas ameixeiras, onde ficava um barranco lá em cima, juntava água assim debaixo.
Hoje em dia esse barranco não existe mais, não existe mais.
Porque não existe mais a mata, não existe mais as ameixeiras, o pessoal cavou, ficou só a lagoinha das orelhas de burro, mas bem pequenininha.
O resto encheu tudo de orelha de burro, é um pauzinho que nasce, que tem as oreinhas assim, pra cima, direitinho umas oreias.
Aí a gente apelidou ela por Lagoinha das Orelhas de Burro.
Mas de primeiro tinha tanto pássaro aqui! Muito passarinho, também uma mata grossa.
E a mata grossa.
E a gente ia pra lá.
Era como se a gente ali de baixo não desse, não corresse perigo pra eles, como na verdade não corria, não, que ninguém tinha coragem de sair matando passarinho E a gente brincava lá na sombra, era uma sombra, cantarola de pássaro que estralava.
E, às vezes, eu fico lembrando daquilo ali.
Muitas coisas (suspiro, emocionada), que se foi na criancice da gente.
P/1 – Do que a senhora sente falta, dona Raimundinha?
R – Do que a gente sente falta, essa é uma.
Da falta da participação da gente com a natureza, que hoje, como você vê, mata, ninguém tem mata.
Animal você só vê cantar só assim, preso na gaiola.
Antigamente passava uma multidão de periquito aí, hoje a gente vê um periquitinho assim, preso nas gaiolas.
Essas poucas coisas boas que a gente tinha e não tem mais.
Hoje em dia a gente ficou de um jeito que a gente não tinha mais onde plantar, e quando uma pessoa plantava perdia a metade das coisas que plantava pro posseiro.
Cada tempo que passava as coisas ficavam mais difíceis, que eles já queriam renda até da mandioca.
Hoje é diferente.
Nós melhoramos muito de vida, começou a nossa luta, apesar de estar com 30 anos que a gente tá nessa luta, três décadas nessa luta, atrás da demarcação da nossa terra e até hoje ainda não saiu.
Muitas pessoas se juntavam fazendo as reuniões, embaixo dos pés de pau.
Quando foi em 83, no dia seis de fevereiro de 83, foi que se tornaram as reuniões.
Mas vamos voltar à história de minha vida.
Quando eu cresci, com 16 anos, eu tomei conta da minha casa, do meu marido.
P/1 – Como a senhora conheceu o marido da senhora?
R – Foi num aniversário.
P/1 – De quem?
R – De uma meninazinha que morava lá no centro dessa mata, acolá.
Essa mata onde hoje é área de plantio.
Tinha umas casinhas lá, que hoje em dia só tem os cantos, as taperas.
Elas moravam lá e eu fui pra esse aniversário, ela me chamou, eu fui.
Aí lá eu conheci ele, nesse aniversário.
Comecemo a namorar e me juntei com ele porque eu não tinha idade de casar, nesse tempo o pessoal era muito rígido, criança não podia casar, porque com 16 anos a gente ainda era criança e não tinha como nós casar.
Nós juntemos, eu engravidei da minha primeira menina, se juntamos em 61.
Em 61 eu tomei conta da minha casa, em 62 minha filha nasceu.
Eu me juntei no final do ano, em agosto, já tava grávida.
Ela nasceu em dezembro e.
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P/1 – Dona Raimundinha, a senhora estava comentando de quando a senhora conheceu o marido da senhora.
R – Foi num aniversário.
Eu fui convidada pro aniversário, pra ajudar a fazer algumas coisas, licor por exemplo, que ela não sabia fazer e eu sabia.
P/1 – Não sabia fazer o quê?
R – Licor.
P/1 – Que licor a senhora fazia?
R – De hortelã, de café, tangerina, tudo eu sabia fazer.
P/1 – Como a senhora fazia esse licor?
R – A gente coloca a casca da tangerina no álcool, bota o açúcar pra cozinhar no café, aí quando tá grosso a gente tira e bota um pouco de álcool dentro, pra ficar o sabor da tangerina.
Conforme seja o jeito que você quiser, se quiser forte, basta mais álcool, se quiser menor forte, menos álcool.
P/1 – A senhora aprendeu a fazer o licor com quem?
R – A minha mãe que fazia.
P/1 – Ela sempre fez?
R – Ela fazia quando os meninos completavam ano, às vezes, ela fazia um licorzinho, um pouquinho.
E fazia munguzá, os aniversários de antigamente eram assim.
Com aluá.
Ela torrava milho (pausa).
Ela fazia, torrava o milho, quebrava ele no pilão, pra ficar mais ou menos em banda, não era pra ficar xerém, era só pra ficar quebrado.
Colocava dentro d’água, aí botava cravo, erva-doce, gengibre.
Amarrava a panela por três dias.
Depois tirava, coava, adoçava, pronto, o aluá tava feito.
P/1 – A senhora gostava de aluá?
R – Gostava de aluá de milho, eu não gostava muito de aluá de pão que era muito azedo.
E gostava também do aluá só de cravo e gengibre, e erva-doce.
P/1 – Aí você foi ajudar lá.
R – Fui ajudar a fazer o licor.
Ela comprou álcool, botou as tangerinas de molho, eu fui fazer o licor.
E também fazer um coquetel de frutas.
P/1 – Como a senhora fazia esse coquetel?
R – Cortava a fruta bem miudinha, bem miudinha mesmo, aí botava, conforme fosse as pessoas que fossem pra beber aquele coquetel.
Mas esse coquetel eu não aprendi com a minha mãe, aprendi na casa de uma pessoa que eu fui trabalhar, passar uns dias lá mais ela enquanto ela tava de resguardo.
Aí, quando o menino dela completou um ano ela mandou me chamar para eu ir participar do aniversário; só que eles tinham mais condições e eram compradas muitas coisas, como maçã e outras muitas frutas.
Lá também a gente fez do mesmo jeito, eu mandei ela comprar maçã, laranja, pra fazer um coquetel.
E nós fizemos esse coquetel de fruta natural.
E era gostoso.
E lá também eles bebiam muitas bebidas, eu mandei ela comprar um litro de conhaque pra botar dentro, pra ficar um sabor mais gostoso porque o conhaque tem um sabor diferente.
Aí foi muito bom o coquetel dela, todo mundo deu valor por causa do conhaque que estava dentro (risos).
P/1 – A senhora misturava frutas e o conhaque no coquetel?
R – É, no coquetel.
Porque era só pra adulto, criança não ia beber daquilo ali porque era coisa pra adulto.
P/1 – E tinha música também nessa festa que a senhora foi onde conheceu o marido da senhora?
R – Tinha.
Um bazar.
Antigamente chamava bazar porque era de rádio.
Nesse tempo já tinha os bazar de rádio.
Porque na minha mocidade nós dançava muuuito, muuuito, mas diz aí como era.
Era lata de querosene, era três colher batendo uma na outra, reco-reco, nem violão não tinha, nem nada, era berimbau.
Berimbau, as latas e três colher batendo.
Aí inventaram um pandeiro de Tampa Azul, que as negada chamava.
Vocês ouviram falar da Antiga Colonial.
Que era uma cachaça? Tinha numas garrafas que as negada chamava Tampa Azul.
Aí eles batiam as tampas pra fazer os pandeiros nas latas de doce, arrumava aquelas latas de doce, redonda assim, aí fazia aqueles pandeiro.
Minha filha, a gente fazia muitas festa.
P/1 – A senhora tocava também?
R – Pandeiro.
A gente passava a noite dançando, se fosse possível, amanhecia o dia e ninguém via nem ai e nem ui.
Hoje em dia o pessoal vai rezar um terço nas casas, o pessoal entra pra matar os outros com faca na mão, a coisa hoje em dia mudou, viu? Mudou muito.
As coisas lá de fora quando afeta lá dentro da área da gente.
P/1 – A senhora lembra das músicas que vocês cantavam nessa época?
R – Deixa eu ver se eu me lembro.
Não me lembro não, deixa eu ver.
As músicas de forró de antigamente, as negadas o negócio era forró.
Vê se eu me lembro.
É porque eu ando com a minha memória muito ruim, agora eu tô com um problema de esquecimento.
Eu digo que eu estou começando com mal de Alzheimer, minha menina diz que não é, mas a minha mãe morreu de mal de Alzheimer.
P/1 – Foi?
R – Eu acho que eu tô indo na mesma carreira, tô me esquecendo demais das coisas.
P/1 – Mas a senhora tá lembrando muita coisa agora.
R – Tô me esquecendo demais das coisas.
Mas é mais fácil lembrar das coisas que eu passei do que do hoje, do agora.
Eu coloco uma coisa aqui, quando eu chego lá na cozinha eu não sei onde deixei, não sei como é esse negócio aí.
P/1 – E dona Raimundinha, a senhora conheceu o marido da senhora nessa festa então.
R – Foi.
P/1 – A senhora já conhecia ele?
R – Eu via ele de passagem, mas eu não tinha aquilo de conversar com ele, nem nada não.
Lá eu conheci ele, dancei mais ele.
Aí comecemo a namorar e estamo namorando até hoje.
P/1 – Vocês dançaram forró?
R – Dancemo.
Dancemo forró.
E nesse tempo lá já era rádio, tá lá um radiozinho pra tocar.
O rádio conversava mais do que tocava, mas mesmo assim (risos), a gente dançava.
E vivi mais ele esses anos todinhos, já completemo 50 anos que vivemos, de convivência na nossa vida.
P/1 – E dona Raimundinha, quando vocês foram morar juntos, vocês foram morar onde?
R – Ói, a primeira casa que nós moramos foi onde tem uma cerâmica, quando vocês vieram pra cá passaram numa cerâmica, não?
P/1 – Eu não lembro.
R – Vocês vieram pra essa estrada de dentro, porque é na outra estrada.
Onde é a cerâmica, a nossa casa era lá.
P/1 – E essa casa, como vocês conseguiram?
R – Óia, essa casa era da minha mãe.
E a outra casinha que eu morava era uma casinha de taipa, pequenininha, quando nós tomemo conta da nossa casa nós fomos pra lá.
Aí, mesmo na cerâmica ali, no morro da cerâmica.
Quando minha mãe foi-se embora pro Capuã, que a filha dela tinha comprado um terreno lá com uma casa, aí: “Mãe, a mãe vai-se embora pra lá”, a mãe já tava ficando mais idosa e lá ao menos era mais perto dos transportes pra mãe ir pro médico, essas coisas assim.
Tudo era difícil pra gente.
Aí ela foi-se embora pro Capuã, aí disse: “Minha filha, agora você me dê a sua casinha ali pra mim derrubar pra tirar a telha pra eu aumentar a minha no Capuã, e você fica com a minha, que é de tijolo, e eu derrubo a sua”.
E eu fui pra dela, que era de tijolo, e dei a minha que era de taipa pra ela derrubar pra tirar a telha.
P/1 – Mas a sua mãe então tinha duas casas lá na lagoa.
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R – Não, foi quando nós se mudamos de lá, quando nós se mudamos de lá da beira da lagoa, nós viemos morar na casa ali que a minha mãe, quando ela casou, aí a vida dela já melhorou muito.
Aí um senhor ia embora da casa, foi e vendeu a casa pra ele, pro meu padrasto.
Vendeu não, assim, um pegue pra não dar dado, aí foi assim.
Aí fomos embora pra lá, então, essa casinha era da minha mãe.
Aí, mudemo pra lá.
P/1 – Essa casa da cerâmica foi a casa que ela passou a morar depois que ela casou?
R – Foi.
Em 60 ela se mudou-se pra lá, na era de 60.
P/1 – Depois que a senhora se casou ela mudou pra outro lugar e a senhora foi morar nessa casa?
R – Foi, foi.
Quando foi em 61 eu me juntei, fui morar nessa casinha de taipa, aí a filha dela comprou uma casa no Capuã, ela foi, trocou a casa dela com a minha, que era pra derrubar a minha que era de taipa e eu ia ficar na dela que era de tijolo.
P/1 – Quando você fala “filha dela” era irmã da senhora?
R – É, minha irmã.
Maria do Carmo.
P/1 – E como foi morar nessa casa já com o marido da senhora.
A senhora já estava grávida?
R – Era, já tinha minha menina.
P/1 – Já tinha a menina.
Como que foi, a senhora lembra o primeiro dia? Quando a senhora foi pra essa casa?
R – Me lembro.
P/1 – E como foi?
R – Era assim, muito esquisito.
Porque apesar da minha casa ser uma casa de taipa, o quarto dela era muito grande, mas tinha quarto.
E quando nós se mudemo pra casa da minha mãe, ela não tinha quarto, ela tinha uma sala, um compartimento que era direto, mas não tinha parede, e uma cozinhazinha muito pequena.
Eu estranhei muito isso aí, porque a minha casa não tinha quarto.
E minha casa não tinha uma cozinha grande e a cozinha da outra casa era grande.
Ela tinha uma sala, quarto e cozinha, lá na minha casinha de taipa; só que a minha cozinha era grande e o quarto também.
P/1 – Agora essa casinha de taipa da senhora foi a primeira casa de vocês então, que vocês moraram, a senhora e o marido da senhora.
R – Primeira.
P/1 – E essa casinha de taipa ficava onde?
R – Ficava lá onde é o morro da cerâmica.
P/1 – Então, ficava já próximo dessa casa nova.
R – Era.
É porque a Lagoa dos Tapeba, ela fica próxima.
P/1 – E quem construiu essa casa de taipa, a primeira casa pra senhora?
R – Quem construiu foi o marido de uma comadre minha.
Ela foi embora, aí a minha mãe se mudou-se da beira da lagoa pra lá.
E a minha casinha de taipa era da minha comadre, aí ela foi embora e me deu a casa dela pra mim morar.
Porque ela não ia derrubar, ela ia embora, mas ia deixar a casa em pé.
P/1 – Na segunda casa da senhora com o marido da senhora e da filhinha.
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R – Foi aí onde eu achei estranho porque eu já morava lá, estava bem uns dois ou três anos, aí me mudei pra lá, pra outra casa, achei estranho devido ao quarto, que não tinha quarto.
P/1 – E vocês dormiam em rede?
R – É, dormia em rede.
P/1 – Dona Raimundinha, a senhora estava contando da segunda casa que a senhora morou com o marido da senhora e com a filha.
Qual é o nome da primeira filha da senhora?
R – Vanda.
P/1 – Vanda.
E quando a senhora se casou a senhora trabalhava em alguma coisa?
R – Quando eu me casei, eu tomava conta da minha mãe.
Aí já virou tudo ao contrário, no lugar de eu ir ajudar ela, trabalhar pra sobreviver, a minha outra irmã, que é mais nova do que eu, foi trabalhar em casa de família pra me dar de vestir, de calçar, pra eu não sair de casa pra cuidar da nossa mãe.
Ela não era uma mulher doente, ela era uma mulher sadia, mas ela achava que o trabalho de casa já tava muito cansativo pra ela, aí ela preferia ir trabalhar e eu ficar em casa cuidando da minha mãe.
P/1 – Os outros irmãos da senhora, eles moravam também com a mãe da senhora?
R – Moravam.
Meus dois irmãos moravam com ela.
P/1 – Eles eram menores?
R – Eram.
O Zé Maria e o Zé Mariano.
Aí eles começaram a trabalhar também.
P/1 – Trabalhar em quê?
R – Trabalhar na pedreira.
Meu irmão mais velho era furador de fogo, furava fogo e o outro quebrava as pedras.
Com 17 anos ele já trabalhava na pedreira e com 18 ele foi embora pra Manaus.
P/1 – Ele foi pra Manaus pra trabalhar em quê?
R – Pra trabalhar numa firma conhecida como Queiroz Galvão, ele foi embora pra trabalhar nessa firma.
P/1 – Vocês perderam contato com ele?
R – Perdemos contato com ele por 13 anos.
Minha mãe já muito doente, a gente já tinha apelado pra tudo pra encontrar ele, ninguém encontrava.
Aí, nós pedimos a ajuda pro Gugu pra encontrar ele.
Aí ele encontrou ele no Rio de Janeiro.
P/1 – E veio a televisão então?
R – Não, ninguém pediu televisão, não, queria só que encontrasse ele e desse o endereço da minha mãe, passasse pra ele o endereço da minha mãe.
Porque se ele ainda tivesse interesse de ver a nossa mãe viva, ele viria, eu ligava dando o telefone, dando tudo.
Coração dos outros é terra que ninguém anda.
Nós demos esse endereço todinho, quando foi no mesmo mês ele veio em casa, quando a nossa mãe já tava doente.
P/1 – Como foi essa história do Gugu?
R – Foi a minha sobrinha que tinha internet, aí foi, mandou, sei lá como se chama aí.
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P/1 – Entrou em contato com o programa.
R – Sim.
Ela fez isso e deu certo, eles encontraram meu irmão, que há 13 anos ninguém tinha notícia.
Ele entrou em contato e veio em casa.
P/1 – Vocês chegaram a ir ao Rio de Janeiro?
R – Não.
Nós só pedimos essa ajuda a eles.
P/1 – Dona Raimundinha, o irmão da senhora foi trabalhar na seringa?
R – Não.
Ele trabalhava como operador de máquina na Queiroz Galvão.
P/1 – E dona Raimundinha, quando a senhora teve a filha da senhora, a senhora a teve em casa?
R – Tive em casa.
P/1 – E veio alguma parteira fazer o parto?
R – Tinha uma parteira aqui.
P/1 – Qual era o nome dessa parteira?
R – Era Raimunda.
P/1 – Raimunda também?
R – Era.
Ela era uma velhinha, ela não era daqui, ela veio pra cá.
Quando abriu esse trabalho de pedra, na pedreira, veio muita gente de fora pra trabalhar.
E o povo dela foi um dos que veio.
Ela era parteira, era conhecida como “Mãezinha” e pegou várias crianças nesse lugar, nos “arrebalde”.
Conhecida como “Mãezinha”, ela era a mãezinha de muita gente aqui.
Ela pegou parece que foi oito filhos meus, ela pegou a Vanda, o Antonio, Francisco, Marcos, João Carlos.
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deixa eu ver, já foram cinco.
Foi mais que ela pegou.
Foi a Vanda, Tonho, o Tela, a Sílvia, o Marcos, o Joãozinho e.
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ainda tem outro, ah, um aborto que eu tive de seis mês, sete.
Sete filhos.
P/1 – Mas os filhos que a senhora teve e que cresceram foram?
R – Os filhos que eu tive com a parteira.
P/1 – Foram sete?
R – Eu tive com ela, sete.
P/1 – No total a senhora teve sete filhos?
R – Tive 16.
P/1 – Dezesseis? Os outros com quem a senhora teve?
R – Quando chegou nesse último menino que ela pegou, ela disse: “Comadre, se você tiver outro filho você vai ter que ir pra maternidade.
Porque seus partos estão ficando muito perigoso, muito perigoso, então, você tem que ir pra maternidade”.
P/1 – E o que seria um parto perigoso?
R – É placenta que não saía, essas coisas assim.
Aí eu comecei a ir pra maternidade.
P/1 – Aí a senhora teve o restante lá, na maternidade.
R – Foi, o restante dos meus filhos eu tive lá
P/1 – Qual maternidade? Foi aqui em Caucaia?
R – Doutor Paulo Sarasate, Caucaia.
P/1 – E dona Raimundinha, quando a senhora ficava grávida e tinha os partos em casa, a senhora lembra mais ou menos como que era, a senhora tinha que tomar algum chá antes?
R – Tomava muita coisa.
Quando passava por nove mês de grávida a gente tomava gergelim, bastante gergelim com hortelã.
P/1 – Era o quê, um chá?
R – Pisava o gergelim, fazia bastante gergelim, pisava uma colher de gergelim toda noite, fazia o chá de hortelã, tirava e bebia.
P/1 – Mas isso era quando a senhora já começava a sentir as dores?
R – Passava por nove meses.
P/1 – Mas a senhora tomava todo dia.
R – Toda noite.
P/1 – Toda noite?
R – Toda noite.
E era assim, os remédios das grávidas era gergelim, sempre gergelim, tá no acero dos roçados, no acero o gergelim sobrevive.
E a gente fazia muitas coisas.
A gente tinha também a, como é, meu Deus, o nome agora? A gente planta ela, que tem que ser muito bem escondido.
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que quando a gente tem neném, que a gente fica sentindo dor, aí a mãe da gente fazia pra gente.
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P/1 – Mas era antes.
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R – É depois que os neném nasce.
P/1 – Depois que o neném nasce?
R – É, que dá dor.
Aí a gente vai e faz o chá, mas agora me esqueci o nome dela.
Uma plantinha miudinha, que as negada gosta de matar, ela é bem pra pegar quebrante (risos).
P/1 – Ah, é?
R – É.
Ela é muito “vexida” pra pegar quebrante.
P/1 – E dona Raimundinha, quando chegava a parteira o pessoal fala muito aqui que elas se chamavam de cachimbeiras.
R – Eram as cachimbeiras mesmo.
P/1 – Aí ela vem com um cachimbo pra senhora? Quando a senhora tava sentindo a dor.
R – A cachimbeira que pegava meus filhos, ela fumava cachimbo.
P/1 – Ela fumava cachimbo?
R – Ela fumava cachimbo.
Mas sempre, ela não.
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Cachimbeira não se separa do cachimbo dela, não se separa.
P/1 – Dona Raimundinha, quando a senhora estava pra parir, a senhora tinha a criança em pé ou deitada?
R – Bom, teve criança minha que eu tive deitada, teve criança minha que eu tive sentada em um banquinho que a gente tinha, mas eu tive minhas crianças mais deitada do que em pé.
E também tive filho sozinha.
P/1 – E como era ter filho sozinha?
R – Eu tive uma menina que nasceu sozinha, a Sílvia.
Porque meu velho foi chamar a parteira, quando chegou lá ela demorou porque tinha costume dos meus meninos custar a nascer.
Quando chegou lá ela demorou, quando chegou em casa já tinha nascido.
P/1 – E a senhora teve onde? Deitada?
R – Deitada.
P/1 – E quando a senhora deitava era onde? Era no chão?
R – Na rede.
Só que quando ela nasceu eu vi que ela não tava respirando, eu peguei e virei ela ao contrário, ela nasceu de bruços.
Porque ela tinha nascido de bruços.
Aí eu fui e desvirei ela.
Quando ela chegou, só fez cortar o “imbigo” dela.
P/1 – E a senhora tomava alguma coisa logo depois que a senhora tinha neném?
R – Tomava.
P/1 – O que a senhora tomava?
R – A gente tomava chá de ameixa com óleo de ricino, pra que se tivesse ficado algum resto, alguma coisa, sair e não ficar dentro da gente.
Aroeira, minha filha, o chá da aroeira.
P/1 – O chá de aroeira.
R – É.
A gente tanto usava pra se lavar, tomar meu banho, como usava pra beber pra modo de limpar por dentro.
P/1 – E a senhora dava algum banho na criança, um primeiro banho com alguma erva?
R – Não, a gente banhava no alguidar de barro, coisa dos mais velhos que a gente tem que banhar em alguidar de barro.
Porque a gente vem do barro, diz eles.
A gente vinha do barro, tinha que banhar, sempre a gente comprava aqueles alguidar grande pra banhar as crianças.
Aí, era de acordo com o que a gente quisesse que os filhos da gente fosse, a gente botava uma casquinha de pau dentro.
Aí, eu sempre gostei de botar a casca da jurema dentro da água, que era pra eles terem o poder da cura.
Apesar que tem um hoje, eu nunca gostei, assim, de dizer assim: “Eu sou uma curandeira”.
Eu rezo contra espinhela caída, eu rezo de quebrante, eu sei tomar sangue de palavra, mas eu sempre acho que quem pode tudo é Deus.
P/1 – Como é tomar sangue de palavra?
R – Coloca a mão em cima, o dedo, se for pequeno coloca o dedo, se for grande coloca a mão, aí reza.
Reza e.
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P/1 – E qual é a reza que a senhora faz?
R – “É sangue vá pras suas veia, assim como foi o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, que correu pela rua de Jordão”.
Aí tem as palavras que se diz, que a força da reza se vai-se buscar no coração.
Aí essa eu não posso lhe dizer, porque se eu lhe disser, acabou a reza, não serve mais pra nada.
Porque eu não tô mais com ela, e sim com você.
Que é a força da reza.
P/1 – A senhora aprendeu com alguém?
R – Foi, com um velho.
P/1 – Quem era esse velho?
R – Era o seu João do Couro Grosso, um velho muito velho, que morava aqui.
Ele não morreu aqui, ele foi embora pro Tagima.
Quando chegou lá ele comeu uma coalhada e depois de um pouco de tempo ele comeu manga, aí ele morreu.
Deu um negócio nele e ele morreu.
Eu acho que não se deu muito bem a manga com a coalhada.
Um negócio aí de uma coalhada com manga.
Essa reza foi ele que me ensinou.
Ele disse que já tava velho, ia me ensinar a reza de tomar sangue de palavra.
E me ensinou.
Ele disse que eu fosse buscar a força dentro do meu coração.
Aí eu fui buscar a força no meu coração mesmo.
P/1 – A senhora já tinha os filhos da senhora?
R – Já.
Já tinha bem uns.
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tinha o Tela, a Vanda, a Sílvia.
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era só eles mesmo que eu tinha quando ele foi embora daqui.
Ele me ensinou isso aí.
Eu sempre tinha dúvida de rezar, inté que uma neta minha cortou um pé, levou um corte muito grande com a casca de uruá, ou foi uma casca de uruá ou foi um pedaço de vidro dentro d’água, na lama.
Aí o sangue chega a fazer fiapo, que tinha cortado a veia no pé dela.
Eu: “Meu Deus, hoje pela primeira vez eu vou rezar uma reza que alguém me ensinou.
E que a força da reza tá dentro do meu coração, eu hei de arrancar ela de dentro pra fora”.
Comecei a rezar, rezei, rezei, rezei, rezei, aí quando tirei a mão de cima, aí pronto, o sangue tinha parado.
Desse dia em diante eu fiquei acreditando que realmente a reza que ele me ensinou valia pra alguma coisa.
É capaz de salvar uma vida.
P/1 – A senhora salvou outras vidas?
R – Sim, aí outras pessoas já se cortaram e eu também já rezei.
Foram costurar o buraco, mas já não ia mais botando tanto sangue.
E assim é a vida, eu vou vivendo minha vida.
Já rezei também em criança.
Criança que depois a mãe dele ficou dizendo que reza, que o filho dela nunca, nunca tinha querido ninguém, até o pai dele ele não queria, e eu amarrei à força.
P/1 – Chorava?
R – É, chorava.
Ele era do Rio de Janeiro, a mãe dele veio pros Pau-branco, pra festa, aí.
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P/1 – Dona Raimundinha, a senhora estava falando das pessoas que a senhora, de alguma forma, curou.
R – Sim.
Um nenénzinho que a mulher chegou, andaram perguntando quem era que sabia rezar e o pessoal indicou a nossa oca e ela foi lá.
Nós estávamos na festa de Pau-branco e ela: “Dona Raimundinha, reza o meu neném que ele adoeceu dentro do avião, ia vomitando e obrando, eu já levei pro médico, já dei remédio, já dei soro e ele não melhorou.
E ele não consegue dormir”.
Eu fui e levei ele pra debaixo de um pé de manjerioba-do-pará que tinha na beira da Lagoa do Tapeba.
Cacei que ficasse a sombra dele, aí botei ele debaixo do pé de manjerioba, rezei nele com a folha da manjerioba, que era a altura dele.
Ele ficava em pé de baixo e encostava a cabeça na folha, em cima.
Rezei nele, rezei, rezei, rezei, pedi ajuda aos espíritos da mata, que era lá onde nós estava, na mata.
E quando eu tirei ele lá debaixo, ele foi diretamente pro meu braço e me abraçava assim, como se ele me conhecesse há muito tempo, a criança.
Tivemos toda aquela parceria de espiritualidade, a minha com a dele.
E quando nós saímos de lá, a mãe dele foi, chamou ele, ele não queria sair do meu braço, não.
Ela disse: “Meu Deus, meu Deus, meu filho”, até pra ir pro pai dele era um sacrifício.
Ele ficou como outro, era assim, como se a mentalidade da criança tivesse mudado, que a mãe dele estranhando como ele tava agindo.
E o pai dele, quando ele viu o pai dele, uma alegria medonha.
Aí o pai dele dizendo que pela primeira vez tinha visto a qualidade de, como é que se diz? De carinho que o filho dele tava botando pra fora dele, com a pessoa dele, que ele não tinha aquele carinho com o pai dele, como se ele não gostasse do pai dele, só da mãe dele que ele gostasse e nem tanto.
Era como se alguém estivesse empatando dele fazer aquilo ali.
E simplesmente aquele alguém ficou debaixo daquele pé de planta ali e deixou que ele saísse de lá sozinho.
Porque aquela frieza dele, ele era frio, o menino era frio.
Quando eu peguei nele eu vi que aquela frieza não era do corpo dele e sim uma sombra de alguma coisa que tivesse ali, encostada a ele.
E era tanto que eu pedi ajuda aos espíritos da mata, pra que ele fizesse parte também daquilo ali, se transformasse em alguém, num espírito de bondade, que Deus perdoasse os erros dele na Terra e ele fosse viver a vida dele na eternidade, ou nas aves, nas plantas, como ele quisesse.
Fiz aquela oração todinha e ele ficou bom, o menino ficou bom.
A doença dele não era doença, doença, e sim doença espiritual.
E quando a mãe dele foi embora, ela foi na minha oca atrás de me dar dinheiro e eu digo: “Não, a palavra de Deus ninguém vende, nem ninguém troca.
A palavra de Deus vem do coração, ninguém pode vender, nem trocar”.
Aí ela me agradeceu muito, graças a Deus, eu nunca rezei a ninguém pra mim ganhar dinheiro porque a palavra de Deus não se vende, nem se troca.
E eu quero que Deus me dê muita sabedoria, não tire a sabedoria que eu tenho, e sim me dê mais, para que eu possa ajudar quem precisa.
P/1 – A senhora lembra de mais outro caso que a senhora conseguiu curar, ou tirar esse espírito de sombra?
R – Não.
Eu rezo muito as pessoas aqui, também da dona Dorinha ali, já é uma senhora que trabalha muito.
Ela chegou aqui me pedindo ajuda, que ela não tava podendo nem respirar direito, com a dor nos peito dela.
E a dor já tava, é como se tivesse entrando aqui e saindo nas costas dela.
Eu digo: “Dorinha, eu sei o que tu tem.
Tu não tem espinhela caída, eu vou medir a sua espinhela, mas eu sei que não é espinhela caída”.
Fui, medi a espinhela dela, não era.
Medi as arca, não era as arca.
Porque a espinhela a gente mede no dedo mindinho pra esse ossinho, as arca daqui pro “imbigo”.
P/1 – O que é espinhela caída?
R – Não tem o ossinho que a gente tem aqui, no encontro assim da gente? Não tem esse ossinho? Pois é, desse ossinho aqui ele vai entrar nas costas da gente, da pá, é o encontro da pá.
Aí é ele, quando sai do canto, que dá dor e cai.
Às vezes, você levanta um peso grande demais, ele vai sair do canto, aí você fica sem poder respirar demais com esse ossinho aqui porque tem saído do local onde ele é encaixado.
P/1 – A espinhela caída, então, você não consegue levantar.
R – É.
Aí a gente reza e com a reza a gente coloca no canto.
Eu disse a ela: “Dorinha, você não tá com as arca caída.
Eu sei que você é uma mulher já idosa, você faz o que não é pra fazer, levanta muito peso que não é pra você fazer, mas você tá com dor de “ventrosidade””.
P/1 – Tá com o quê?
R – Dor de “ventrosidade”.
P/1 – O que é?
R – É as dor do corpo da gente que se junta tudo nas costas, toda a coisa do corpo da gente vai pras costas.
Aí a gente vai, é conhecido como dor de “ventrosidade”.
P/1 – E o que ela tinha?
R – Aí eu fui e rezei nela pra dor de “ventosidade”.
Rezei, falei: “Dorinha, quando for amanhã tu vai.
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” “Faz é dias que eu ando com isso” “Mulher, pois quando for amanhã tu vem”, que já era de tarde.
Quando foi de manhã, eu digo: “Tu vem no nascer do sol”, pra eu rezar no nascer do sol.
Ela veio bem cedinho, quando o sol tava saindo eu rezei, pedi: “Quando o sol tiver se pondo tu vem que é pra eu fechar a cura”.
Quando ela veio no pôr do sol, aí ela: “Raimundinha, eu já to boazinha, graças a Deus”, eu digo: “O resto vai embora agora com o pôr do sol”.
Rezei nela de novo, aí ela ficou boa, graças a Deus, porque ela tava muito doente, a pobre.
Está vendo aí a festa?
P/1 – E dona Raimundinha, quando a senhora reza, a senhora utiliza algum tipo de erva?
R – Olhe, quando eu rezo que tem manjerioba perto, eu rezo.
Onde tem pinhão perto eu rezo.
E quando não tem é só minhas mãos, mesmo.
P/1 – A senhora vai pra perto da planta, então.
R – Eu levo as folhas pra rezar, as folhas, quando eu vou rezar do quebrante.
P/1 – A senhora pega as folhas.
R – A folha verde pra rezar de quebrante.
Uso folha da manjerioba, do pinhão-roxo, para eu rezar quebrante.
P/1 – O que é o quebrante?
R – É mau-olhado que as pessoas botam.
Não tem aquelas pessoas que, às vezes, não podem nem pegar numa planta que mata? É gente que tem os olho ruim, bota quebrante nas crianças.
P/1 – E tem alguma coisa que a gente pode fazer pra se proteger desse mau-olhado?
R – Tem.
As crianças da gente quando é pequena, a gente pega cera de abelha, troça assim no dedo pra ficar bem pequenininha, aí coloca mesmo nesse encaixezinho do pescoço, da cabeça com o pescoço, a cera da abelha é encaixada ali.
Faz uma mãozinha de chifre, meus meninos tudinho tinha, aí a gente vai passando, passando pra um, passando pra outro, uma mãozinha feita de chifre de boi.
Coloca dependurado na mão ou no pescoço.
P/1 – Uma mãozinha de chifre?
R – Uma mãozinha de chifre, chifre de boi.
Aí é pra modo de não pegar quebrante, pra evitar de pegar quebrante.
E a pessoa vestir uma coisa avessa sua.
Pra não pegar más palavras, algo assim, a gente deve sempre andar com uma roupa.
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quando você sabe que tem um inimigo que tem mau coração, porque tem muita gente que tem mau coração e deseja o mal ao próximo.
Você veste uma roupa no avesso praquilo ali não lhe pegar.
É uma potreção que a gente usa.
P/1 – Eu não entendi, dona Raimundinha.
É usar roupa?
R – Roupa ao avesso, uma calcinha, um sutiã.
P/1 – Ah, uma roupa do lado contrário.
R – É, do lado ao contrário.
P/1 – É bom pra quando vai encontrar a pessoa que não gosta de você, pra se proteger.
R – Ou quando joga uma praga que você não merece ganhar aquilo ali.
Porque tem muita gente que abre a boca pra dizer muita coisa besta, palavras que ofendem muito, mais do que você levar um tapa, se você não puder se defender você leva.
Eu preferia que fosse assim, que desse um tapa, se eu não pudesse me defender levava ela, do que praga que você não vê, que ficar rogando praga nas suas costas, lhe desejando o mal.
Muitas vezes a pessoa fica derrubada e divide muitas más palavras com a pessoa.
P/1 – Então é só usar uma peça do lado do avesso.
R – É.
Por isso que meu urubu tá dependurado ali na minha porta.
P/1 – O que tá pendurado?
R – Urubu (risos).
P/1 – Ah, seria pra proteger, então? A senhora que fez aquele urubu?
R – Não.
Eu mandei fazer.
P/1 – Então ter um urubu dentro de casa também.
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R – Não entra coisa ruim.
P/1 – A senhora tem mais alguma coisa em casa que a senhora usa pra se proteger?
R – Não, não, não, só tem ele mesmo.
P/1 – Só o urubu.
R – E imagem tem ela, Nossa Senhora do Desterro.
A mãe do desterro não é a mãe de Deus? É a nossa mãe e protege a gente das coisas ruins.
P/1 – Eu vi aquele quadro também, é um bispo que está ali?
R – É Dom Aloísio Lorscheider.
Foi o bispo que deu a mão ao índio, foi ele que descobriu onde estava a documentação de várias famílias indígenas.
P/1 – E como começou, dona Raimundinha, essa busca pela história do povo de vocês?
R – Olhe, antigamente o nosso povo mais velho, eles tinham muito medo de falar.
Não dizia que era índio, que na verdade Caucaia era uma tribo indígena.
Foi tirado o nosso povo de lá todinho, os nossos mais velhos, e botaram pra cá, pra uma aldeia Nossa Senhora dos Prazeres, como era chamada.
Os posseios se apossaram e tomaram tudinho do índio.
Muitos estão na beira do rio Ceará, ou na beira do Trilho ali, e daí por diante, era tudo espalhado assim.
Ficou tudo sem as casinhas deles.
Eles se apossaram da aldeia Nossa Senhora dos Prazeres.
Aí ficou ruim pra nós.
Como os mais novos sabiam que os mais velhos tinham a Tapeira do Rei e Ferreira Vei, que era ali, dentro da área de plantio.
Tinha tapera da finada Brasa, que era uma índia antiga.
Tinha tapera da finada Rosa, que era uma índia antiga e da Maria Grande, antiga também, chamava ela porque ela era muito alta, então, chamavam ela Maria Grande.
E tinha as taperas dos mais velhos tudinho espalhado por ali.
Só que a gente sabia que era deles aquilo ali, a gente sabia que aqui era uma aldeia.
P/1 – A senhora sabia desde pequena.
R – É.
Sabia que os posseiros eram quem tinham se apossado daqui.
E começou-se a fazer reuniões, fazendo reunião, fazendo reunião, ainda na era de 70.
P/1 – Dona Raimunda, a senhora pode continuar.
R – Aí a gente fazia.
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eu não, porque nessa época eu não, tinha muita gente que fazia reuniões pra conversar debaixo dos pés de pau, essas coisas assim.
Aí foi juntando mais e foi juntando.
Já tinha gente daqui da Lagoa, gente lá da Ponte, já tinha gente do Trilho, ia se juntando e conversando, só ficava ali, as conversas não saíam dali.
E saía assim, pra ir atrás de ajuda, de alguma coisa, nesse tempo o pessoal era muito necessitado mesmo, ainda hoje tem gente que ainda é, e vivia assim.
Quando foi, dom Aloísio Lorscheider começou a descobrir os índios, aí começou a.
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quando foi no dia seis de fevereiro de 83 foi a primeira reunião com Dom Aloísio Lorscheider, no dia seis de fevereiro de 83.
De lá pra cá foi aquela, quando foi um dia o Dourado perguntou se não tinha como tirar essas reuniões debaixo dos paus pra botar pro mundo.
Disseram que sim, tinha, estavam esperando que alguém fizesse isso, pedisse pra fazer isso e não eles terem a iniciativa de fazer.
Encheram os carros tudo de gente, foi tudo pra matriz de.
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nós não fomos lá, fomos pra matriz, pra Igreja da Sé.
P/1 – Onde?
R – Em Fortaleza.
A Igreja da Sé de lado assim tinha uns quartos com muito computador, muita coisa.
Aí foram tudo, botaram tudo os computador, as coisas dos índios.
E daí por diante pronto, daí as nossas reuniões começou a ter ata, aí formaram as Associação dos Índios Tapeba de Caucaia.
Comecei a crescer.
Aí, a minha menina começou dando aula debaixo de um pé de pau, a ensinar, e eu comecei a me envolver com a escola.
P/1 – E o que a senhora fazia com a escola?
R – Atrás de ajuda pra papel.
Porque nesse tempo as crianças.
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aqui não tinha trabalho não, gente, não tinha trabalho.
A gente não tinha mais mata, ninguém tinha mais nada, não tinha mais nada.
Os pais que trabalhavam nas pedreira tudo bem, aí começou uma cerâmica; a cerâmica era pouca gente que trabalhava, não era muita gente.
Muitos pais eram desempregado, ficou os pais tudo desempregado, tudo vivendo de uma planta que plantavam por aí em algum canto, era uma sobrevivência muito difícil.
E a coisa ficou feia.
P/1 – Por quê?
R – Porque não tinha trabalho pro povo, não tinha trabalho.
P/1 – Mas depois que vocês começaram a se organizar mudou?
R – Nós começamo a se organizar.
Veio essa cerâmica pra aí, fizeram outra cerâmica grande, aí já foi melhorando mais, porque já tinha mais trabalho pro povo.
Porque quando terminava a limpa de roçado ia trabalhar onde? Não tinha onde trabalhar.
Porque quando tinha os roçados, aí uns trocava dias, outros pagava pra limpar e a vida era essa, era muito ruim, muito ruim mesmo porque ninguém tinha sobrevivência.
P/1 – A senhora lembra quem eram os donos dessa cerâmica?
R – Quem era não, quem é.
O Antônio Ribeiro Martins é o dono da cerâmica.
As pessoas que pagava pras pessoa limpar era o Alfredo Miranda, que era posseiro de terra, e pagava dois dias e ficava com três, trabalha cinco dias, ele pagava dois e ficava com três.
Já imaginou.
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P/1 – E esse dinheiro dava pra fazer o quê?
R – Era escravidão, não era? Quando ele recebia aquele dinheiro, os pai de família recebia, comprava um quilo de feijão, um quilo de farinha, um pacotinho de café, um açúcar e pronto, acabou-se o dinheiro.
Era muito, muito, muito difícil a vida.
Quando eu entrei na luta também pela demarcação das terras.
E a gente andava, a gente andava, a gente viajava e a gente passava fome nos cantos porque ninguém tinha ajuda de ninguém pra viajar.
Quando a gente arranjava era as passagens, passagem x.
Aí vamos comer banana com casca e tudo pra não morrer de fome nos caminhos.
P/1 – Mas vocês viajavam pra onde?
R – Pra Brasília e pra onde fosse que fosse.
P/1 – A senhora já foi pra Brasília?
R – Eu fui em Brasília, fui pra São Paulo, já fui pra Recife, Pernambuco, eu já viajei pra muitos cantos.
P/1 – E a senhora viajava pra quê?
R – Tudo era sobre demarcação das terras.
Uma foi a minha viagem pra Recife e de lá pra São Paulo foi documentação do direito do índio, pra botar no documento o direito do índio, que não tinha, tinha pessoas especiais.
Sabe os filhos de coronel que ainda quer pisar a gente? Que ainda tem gente assim.
Tinha um filho de um coronel lá, calçado com uma botona de couro de jacaré, tudo pra frente, rico.
Aí, quando foi na hora de falar a gente falou: “E não já tem povos especiais?”, eu digo: “Meu filho, nós não somos povos especiais, nós somos pessoas da terra.
Quando vocês chegaram aqui nós já existia, nossos antepassados já existiam aqui na terra.
Nós fomos os primeiros sobreviventes a pisar nesta terra” “Mas são pessoas especiais, não precisa de botar uma.
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”, aí eu digo: “Pessoas especiais são os ciganos, são os negros, que eles não pediram pra vir pra cá e trouxeram, mas nós, índios, não somos pessoa especial, não.
Nós quer o direito a nossa terra pra nós sobreviver em cima dela sem ser preciso estar mendigando nada de ninguém”.
Eu fui, eu disse a ele: “Olhe, você é filho de coronel, não é? Calçado aí nas suas lindas botas de couro de jacaré, matando os pobres dos brutos pra fazer sapato, mas no meu pescoço você não vai pisar não.
Foi-se o tempo que os coronel pisavam nos pescoços dos índios e fazia eles de escravo, mas hoje eu não lhe dou esse direito, eu não lhe dou esse direito.
E eu quero nosso direito botado aí no papel, porque foi pra isso que eu saí da minha casa pra passar uma semana aqui, foi buscar os nossos direitos e eu quero botado aí nesse papel.
Pode até ele não valer nada, pode até não valer nada, porque sempre que a gente faz, todo sacrifício que a gente faz engaveta e lá fica, mas eu quero botado aí”.
Foi quando ele murchou.
Mas ainda hoje em dia tem isso.
P/1 – Dona Raimundinha, a senhora estava contando das pessoas aqui que antigamente moravam aqui e que eram Tapebas.
A senhora estava falando das casas, que eram espalhadas.
R – Era.
Muitas pessoas, que nem os Ferreira que morava aí.
Eles não tinham nada de Guimarães, nada, nada.
Aí quando os veio morreram, era muita terra que ele tinha em mãos, aí ficou os filhos deles sem pai e sem mãe, foi o que fizeram.
O veio doutor Guimarães tomou conta dos meninos, aí deram nome a eles, deram o sobrenome Guimarães neles, que era pra poder se apossar da terra deles, que tinha aí, que o pai deles tinha em mãos.
Aí botaram esse sobrenome porque eles não tinham registro, não tinham nada, aí botaram esse Guimarães no meio.
São muitas coisas assim, muitas coincidências que as pessoas foram buscar, sobrenome que nem era da própria família.
Só que o menino mais velho, do Jorge Ferreira, veio, sabia que eles não eram Guimarães, e sim porque tinham registrado eles.
Tinham botado de Guimarães o nome deles.
P/1 – E eles eram Tapebas?
R – Tapebas.
P/1 – Os Ferreira.
R – Os Ferreira.
P/1 – Dona Raimundinha, a senhora lembra a primeira vez que a senhora começou a pensar, depois da senhora ter se unido com o Dom Aloísio Lorscheider, de que a senhora era realmente uma Tremembé, que a senhora falou que não era Tapeba, era Tremembé.
R – Porque alguém dizia que eu tinha chegado aqui criança, eu não era daqui.
A minha avó já tinha morrido e o meu pai era de Tururu e a minha mãe, ela dizia que era de Almofala.
E a minha tia que era mais velha do que ela: “Minha filha, quem dizia que era de Almofala era a mamãe, mas ela dizia que ela não era de Almofala, ela é dos Tremembé, dos Lima do Nascimento.
A nossa família é dos Lima do Nascimento, de Tremembé.
Os nossos antepassados é de lá.
Se você quiser saber se alguém da nossa família, dos mais antigos, ainda existe, procure lá nos Tremembé quem é Lima do Nascimento, porque se algum voltou pra trás”.
Minha vó dizia que a mãe dela tinha saído de lá fugida pra um lugar chamado Canto Escuro, uma mata chamada Canto Escuro, batizaram a mata por esse nome, fugindo dos carros que estavam levando as pessoas.
Levando as pessoas, ela não se referia a índio, mas sim à pessoa pra servir de escravo pros brancos.
Muitos fugiram e se esconderam na mata e sobreviveram.
Depois de muito tempo uns voltaram pra trás, pra sua terra, e outros seguiram em frente, como a nossa família seguiu em frente, meus bisavós seguiram em frente.
“Procure a nossa família dos Tremembés, que se ainda existir os Lima do Nascimento lá, são nossas raízes lá nos Tremembé”.
A minha madrinha, minha tia, irmã da minha mãe, a mais velha deles três.
Aí eu fui procurar minhas raízes, encontrei.
Os Lima do Nascimento no Tremembé de baixo, porque tem o Tremembé de cima e o Tremembé de baixo.
Eles são do Tremembé de baixo, os Lima do Nascimento.
Encontrei uma pessoa velha lá.
Nós saímos pros jogos indígenas, aí encontrei uma roda de, sabe que onde os veio estão a roda tá feita.
Aí tava aquela roda de pessoa, tava o cacique lá e tinha vários outros velhos de outros cantos, se juntaram tudo na roda, estavam conversando.
Eu cheguei, fiz uma pergunta: “Tem alguém dos Tremembé aqui?”, porque quando a gente quer saber da coisa tem que procurar os mais velhos, porque são eles quem sabe tudo.
Aí, eu pedi: “Tem alguém do Tremembé aqui?”, aí tinha um senhor assim: “Eu sou do Tremembé”, eu digo: “O senhor sabe me dizer se nos Tremembé ainda existe algum Lima do Nascimento?” “Pronto, eu.
Sou Lima do Nascimento”.
Um senhor já bem idoso, moreno, seu Zé Pedro.
Ele disse: “Eu sou Zé Pedro, sou um dos mais velhos da minha família e sou Lima do Nascimento.
Ainda carrego o sobrenome dos meus antepassados”, eu digo: “Pois era isso que eu queria saber, se ainda existia os Lima do Nascimento nos Tremembé, porque eu faço parte desse tronco aí, dos Lima do Nascimento dos Tremembé”.
Conversemo muito, eu fiquei de um dia viajar pra lá pra nós conversar e depois conversemos.
O povo dele, os avós dele são parentes da minha avó e descobri minhas raízes.
P/1 – Avó por parte de mãe.
R – Por parte de mãe.
P/1 – E onde esse senhor morava?
R – Se ele ainda não morreu, ele mora ainda nos Tremembé, mas fica na parte de baixo.
P/1 – Onde que fica os Tremembé?
R – Tem os Tremembé de cima e os Tremembé de baixo.
E parece que eles não se cheiram muito bem.
Eu senti assim.
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P/1 – Eles são Lima do Nascimento também?
R – Não, os outros lá eu não sei como é.
Tem uns que é Venâncio, que o cacique de lá é o cacique João Venâncio.
E parece que eles não se dão, não se cheiram muito bem não, por isso que fizeram separação, Tremembé de baixo e Tremembé de cima.
Eu não sei muito, porque eu não vivo lá, mas foi o que me deu a entender.
P/1 – Fica muito distante daqui?
R – Rapaz, fica meio longe.
P/1 – Fica a quanto tempo de viagem?
R – Longe (risos).
Eu acho que umas três horas, quatro horas de viagem.
É longe.
Fica perto de Sobral, fica no semi-árido, perto de Sobral.
P/1 – E dona Raimundinha, quando vocês começaram a fazer essa pesquisa, essa busca da história de vocês, a senhora é aquela que desde o início estava, ali a conversa com o Dom, a organização das viagens pra ir buscar esse reconhecimento por parte da Funai.
Como vocês começaram a se organizar? Como vocês decidiram ter um pajé, como vocês decidiram ter um cacique? A senhora lembra dessa história?
R – Eu lembro assim, quando a gente começou a fazer as reuniões, eu, minha pessoa, comecei a participar naquele tempo que rolava o negócio, só que era muito assim.
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o meu eu, aquele do meu eu.
Quando começou a se juntar gente de todo canto assim, de todas aldeias, por aldeia, chamava aquela pessoa, aí formamos liderança praquela pessoa se juntar pra ir buscar ajuda.
Aí uma se candidatou pra ser liderança, escolhida pelo povo: “Eu quero que Fulano vá ser liderança”, aí aquela pessoa ia ser liderança.
E foi assim que a gente foi se juntando.
Fizemos, formemo associação também do índios Tapeba de Caucaia.
Aí foi melhorando mais porque a gente já foi buscando ajuda, depois fomos correr atrás de uma Funai pra cá, aí veio o posto da Funai.
E depois veio essa, que veio pra aí.
E depois fomos lutar pela saúde, depois por uma escola índigena e de lá pra cá a gente só luta, luta, luta, que nós têm tudo é com muita luta, com muito sacríficio, devagarzinho, mas estamos indo buscar.
P/1 – Vocês tiveram ajuda da igreja pra se organizar?
R – É.
Mas o índio é assim.
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eu vejo assim, que quando uma pessoa tá querendo lhe dar a mão, pra nos ajudar, alguém bota pra acolá.
O Dom Aloísio Lorscheider era uma pessoa que ajudava muito, muito, muito os índios de todas as formas.
P/1 – Ele vinha aqui?
R – Vinha.
De todas as formas ele ajudava, na maneira do possível.
E a gente fazia reunião lá na Pastoral Indigenista, formaram uma pastoral indigenista lá dentro e a gente participava de reunião lá, às vezes, o dia todinho, tentando.
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em buscar as coisas, de ajuda, pros Tapeba, que eram pessoas muito necessitadas.
E foi assim a nossa luta.
P/1 – A senhora lembra do nome das pessoas lá da pastoral indigenista que ajudava vocês?
R – Lá dentro tinha uma pessoa que ajudava muito, muito mesmo, uma pena que Deus tirou ela, que era a finada Lourdes.
Ela era uma pessoa muito dedicada ao trabalho do índio.
Ainda hoje em dia ela faz falta, era uma pessoa muito querida no nosso povo.
P/1 – Ela era uma irmã?
R – Era não.
Eu não sei o que ela era lá dentro, mas ela era uma pessoa muito respeitosa, tanto pela gente, quanto lá pelo pessoal lá.
P/1 – E vocês tiveram ajuda de pessoas da universidade, de outras organizações?
R – A gente sempre se engaja com pessoas que muitas vezes procura a gente, a gente dá entrevista e as pessoas acaba, fica sempre tendo convivência com as pessoas.
Tanto que até faculdade já tá fazendo.
E é isso aí, essa ajuda da gente de todo jeito é assim, um pouquinho ali, um pouquinho aqui, onde nasce fé a gente pega.
Arranjei uma escola pra cá, pra Fortaleza e fomos brigar pela saúde também.
Já tem o posto de saúde aqui.
E brigamos por uma escola e já temo escola.
Tudo é uma luta.
Fizemo retomada de parte da nossa terra, como você vê.
Nós não tinha onde morar, hoje nós temos.
P/1 – Dona Raimundinha, a senhora estava falando como mudou aqui.
R – Sim.
Aqui mudou muito, tá mudando pra melhor.
Tem muitas coisas que a gente perdeu e faz muita falta, mas tem outras que chegou pra ajudar, como as coisas que a gente não tinha, que nós já perdemos e que pra voltar não volta mais, tenho certeza.
E também tem saúde, que tá muito difícil, mas a gente tem.
Com toda dificuldade, mas a gente tem, e estamos buscando meios dela melhorar porque ela não era assim e hoje está uma saúde que não tem remédio.
P/1 – Vocês têm médicos aqui?
R – Tem um médico clínico e nós queria uma pediatra, e estamos trabalhando, estamos lutando pra ver se a gente arranja uma pediatra.
E eu tenho fé em Deus que a gente vai conseguir.
P/1 – Dona Raimundinha, quando a gente tava começando lá no início, a senhora tinha morado com o seu marido lá perto da cerâmica.
E quando a senhora mudou pra cá? Foi antes de vocês se organizarem pra serem reconhecidos como povos indígenas ou foi depois? (pausa) Eu estava perguntando, quando a senhora mudou pra cá, pra essa casa, foi quando vocês já tinham se organizado pra serem reconhecidos como povos indígenas, como Tapebas, ou foi antes?
R – Depois, depois.
P/1 – E como foi isso?
R – Nós morava lá perto do muro da cerâmica, fizemos uma troca porque iam fazer outra cerâmica, queriam tirar a nossa casa de lá, mas iam dar outra casa a nós, nossa mesmo, do mesmo jeito que a outra era.
Se nós saísse de lá e quisesse derrubar podia derrubar.
Aí nós mudemos lá pra trás assim, fiquemo lá.
Só que lá era conhecido como a Casa 22, era muita gente numa casa só.
Aí, eu: “Minhas filhas, o pai de vocês”, que ele trabalha, queimador de forno, ele não dormia de noite, ele trabalhava de noite.
P/1 – O marido da senhora?
R – O meu marido.
E além disso ainda tinha o roçado que ele botava, ele nunca deixou de plantar esse roçado dele, nunca.
Mesmo ele trabalhando de noite, quando era o dia da folga dele, quando era no inverno.
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porque você sabe, planta de sequeira só tem uma época.
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Quando era dia da folga dele, no lugar dele dormir ele ia era pra dentro do roçado, carpinar.
E fiquemo lá nessa casa.
Aí eu digo: “Não, teu pai disse que vai fazer um quarto pra ele e vocês vão ficar aqui sozinhas, viu, porque eu vou morar mais o pai de vocês, eu não vou deixar ele fazer um quarto e ficar lá sozinho.
Porque eu ainda preciso do meu velho, senão ele vai morrer de fome”.
Porque a pessoa passa a noite trabalhando, chega, se deita no quarto, agarra num sono, se a gente não chamar pra comer alguma coisa, quando vai ver já tá debilitado, não tem mais força de nada.
Aí, ele veio pra cá, fazer esse quarto; o quarto se transformou-se nessa casinha, não é grande não, mas como só era nós três, eu e ele e um filho rapaz que trabalha no Trairi, dava muito bem pra nós.
Aí, tinha esse menino, mas o pai dele tinha levado pra lá, esse que chegou no carro aí, mas deixa que ele não me deixa de mão aí, não me deixa de mão.
P/1 – Dona Raimundinha, como é o nome do marido da senhora?
R – É João Camisiro.
P/1 – Como a senhora o chama?
R – Eu chamo de ‘meu veio’.
P/1 – O marido da senhora era queimador?
R – Era, ele queimava tijolo na cerâmica.
P/1 – E ele passava o dia inteiro trabalhando na cerâmica?
R – Era assim, eram três que queimavam o forno, quando era o dia dele, aí se fosse de dia, ou se fosse à noite, aí era assim, trabalhava 24 horas e folgava 48, parece que era, que eram três queimando.
Por isso que ele plantava o roçado dele, porque no dia das folgas dele ele tava limpando e nunca deixou de plantar o roçado dele.
P/1 – E vocês conseguiam sobreviver com o salário dele?
R – Conseguia.
P/1 – A senhora ficava em casa cuidando das crianças.
R – Era.
Logo quando ele começou na cerâmica eu trabalhava também.
P/1 – A senhora trabalhava com o quê?
R – Com telha.
Eu lanceava telha, tirando telha da máquina, eu trabalhava junto com ele na cerâmica.
Só não era de carteira assinada, essas coisas assim, que era serviço na mata assim, não tinha isso.
P/1 – A senhora trabalhou muito tempo com a cerâmica?
R – Eu trabalhei um bocado de tempo.
Trabalhei até o Eduardo nascer.
Quando o Eduardo nasceu e meus filhos começaram a trabalhar, meus filhos Antonio, Francisco e José, aí eles disseram: “Mãe, a mãe agora vai ter que sossegar em casa, pra cuidar da casa, cuidar da nossa roupa, nós já tamos rapaz, e nós vamos trabalhar, não tem precisão da senhora trabalhar.
Se nós vamos trabalhar, nós vamos ganhar dinheiro pra ajudar o nosso pai e a nossa mãe”.
E eu fiquei em casa, mas achava ruim porque eu tinha costume de trabalhar e ter meu próprio dinheiro.
P/1 – A senhora recebia alguma coisa então, na cerâmica.
R – Era pago.
Trabalhava por milheiro de telha.
P/1 – Dona Raimundinha, a senhora estava comentando que a senhora ganhava na cerâmica por milheiro.
R – Era.
Eu não me lembro agora quanto era um milheiro, mas faz muitos anos que eu trabalhei, muitos anos mesmo.
Foi na gravidez desse menino que eu saí da cerâmica e não fui mais trabalhar, do Eduardo, que é pai dessas meninas aí.
Está com muitos anos, mesmo.
P/1 – E a senhora parou de trabalhar pra fora.
R – Só fiquei em casa.
P/1 – A senhora estava contando também que o marido da senhora construiu aqui, essa casa.
R – Foi.
Aí a nossa casa era conhecida como a Casa 22, tinha muitos meninos.
A minha filha morava mais eu, a Sílvia, ela tinha três filhos; tinha a Vanda, que tinha dois, o Ednardo e o Chichico.
Já tinha os meus, que eu criava, tinha o Raul que eu criava, que tinha nove mês e tinha o Dudu que era menino ainda, rapazote.
O Ednardo era rapazote.
Era muito menino junto, muita coisa, fazendo muita zoada.
Que nem aqui, só tem essas três, e lá era muito.
E era conhecida como Casa 22, eram 22 pessoas que morava lá na casa.
Ele disse: “Minha velha, eu vou fazer um quarto, eu não aguento, eu to sem dormir, é muito ruim, esses meninos não deixam eu sossegado e eu quero dormir um pouco”.
Eu digo: “Meu veio, faça dois porque você faz uma sala pra dormir, faça um quarto que eu vou consigo”.
Ele veio, fez essa casinha.
P/1 – Esse terreno não tinha dono então?
R – Aqui foi uma retomada que nós tinha feito.
Tinha o posseiro, mas nós fizemo a retomada.
E reservemo a parte da escola, pra fazer a escola, e a área de plantio, ninguém mora na área de plantio, área de plantio é reservada.
E hoje nós estamos aqui.
Então melhorou um pouco na vida da gente, que a gente era muito, como é que se diz, muito humilhado, tinha só essa cerâmica de trabalho, o pessoal fazia o que queria.
E veio melhorar mais depois que o Dourado fez parte do sindicato dos trabalhador, que foi lá dentro conversar com ele, aí melhorou mais porque subiu o salário do pessoal, ficou pagando dignamente um salário mínimo, não é um salário.
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que o salário mínimo já é uma salário de fome, e pra quem não ganhava nem um salário mínimo, aí melhorou mais.
P/1 – O Dourado é Tapeba também.
R – É.
Aí nós viemos, fizemos nossa casinha e viemos pra cá.
Retomemo, tem a área de plantio lá, meu veio ainda planta ainda.
P/1 – Dona Raimundinha, e com as obras do Pecém houve alguma mudança aqui?
R – Não, pra nós não, mas pros outros índios sim.
E teve também um impacto porque tem esse caminho das água pra ir água pro Pecém, e ele passa dentro da nossa área.
Teve um impacto que até a gente fez um acordo aí pra modo de ajudar o pessoal lá do Trilho, que a água passava dentro da terra deles lá, dentro da aldeia deles lá.
A gente pediu uma ajuda pra eles lá, foi aceito e já passou.
Passou quase um ano parado, depois que ajeitaram tudinho, começaram, essa água, se não atravessou, tá perto.
P/1 – A senhora tem algum parente que trabalha nas obras?
R – Na obra de quê?
P/1 – Do Pecém.
R – Não.
P/1 – Ou no porto, na siderúrgica.
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R – Eu tenho dois sobrinhos que está trabalhando lá, no Pecém.
P/1 – A senhora lembra quando começou essa história dessas obras?
R – Não, não me lembro não, mas não faz muito tempo, não.
P/1 – E dona Raimundinha, vocês já sofreram algum preconceito aqui na região por serem indígenas?
R – Minha filha, agora é bom porque ninguém sofre preconceito, primeiro era muito preconceito.
Inté as crianças estudava fora, tinha preconceito.
A gente era chamado, era os come-carniça, os tapebanos, os come-carniça, era assim que a gente era visto.
De uns tempo pra cá a gente se reconheceu-se como Tapeba.
Nós somos Tapeba e não importa o que os outros pensam de nós, não se importa com isso, ninguém quer nem saber disso.
Muita gente que falava, que mangava, também é índio.
Só que como uma coisa que os pais nunca dizia pros filhos, as origens do seu povo, ficava aquele escondido ali.
Depois os mais novos foi quem se levantaram e tiveram coragem de enfrentar a luta.
Tinha mais nada com corta cabeça, corta língua, porque era isso que eles tinham medo, negócio de um corta cabeça e corta língua.
Porque era assim que as pessoas eram vista, eram judiado mesmo.
Só que eles não acordaram nunca pra vida que aquilo ali não podia mais acontecer, eles ficaram sempre guardando aquilo ali.
Depois foi que a gente foi descobrir mesmo a verdade, que muitas histórias que os mais velhos contavam dos povos era realmente a sua própria história.
Era sua própria história que eles contavam, e não a história de outra pessoa.
P/1 – Dona Raimundinha, a senhora já está transmitindo esse conhecimento que a senhora tem sobre as rezas, sobre as ervas, pra alguém, pra algum neto, ou pra algum filho ou filha?
R – Já.
Eu passo as coisas que eu sei pra duas netas, praquela que eu sei que mais tarde vale a pena ter passado pra elas aquilo que eu sei.
É a Nara e a Nágila.
P/1 – Elas têm quantos anos?
R – A Nágila tem 20 e a Nara tem 22.
P/1 – Elas já estão rezando com a senhora?
R – Não, mas eu estou passando pra elas tudo o que eu sei.
E eu disse a elas que quando eu morrer é elas que vão assumir o meu lugar.
E elas são muito.
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a Nara é muito envolvida nas coisas, Nágila também, muito envolvida nas coisas, está fazendo faculdade agora, ela vai fazer.
P/1 – Qual o curso que ela tá fazendo, a senhora sabe?
R – Ela vai fazer Pediatria.
P/1 – E dona Raimundinha, esse colar que a senhora está usando, quem é que fez?
R – Esse aqui fui eu que fiz.
P/1 – Então a senhora faz colares também?
R – Faço.
P/1 – O que mais que a senhora faz?
R – Faço colar, faço pulseira, faço cocar, faço tanga, faço bolsa.
P/1 – A senhora vende?
R – Vendo.
P/1 – Onde a senhora vende?
R – Minha filha, eu faço aqui e aqui mesmo eu vendo.
Porque eu não tenho tempo de fazer muito.
E eu faço o que eu faço, às vezes chega faculdade aí, levam; pessoal da aldeia também.
Também compra.
As escolas.
Porque é assim, foi passado na assembleia que professores indígenas não podem andar sem seu cocar, sem seu brinco, sem sua pulseira, dentro da sala de aula, ele tem que se vestir como tal.
Porque ninguém quer nenhuma criança perguntando, dando resposta ao professor, porque o professor vai dizer: “Você tem que usar o seu cocar, não se envergonhar de usar seu brinco, botar seu bracelete, botar sua tornozeleira, você não pode se envergonhar de usar isso aí”, porque é passado na sala de aula.
E se o professor, se o menino espiar pra cara do professor e disser assim: “Professor, o senhor manda nós fazer isso, por que o senhor não usa? O senhor também não é índio?”.
Aí não pode, professor deve se vestir pra dar aula, botar seu colar no pescoço, sua pulseira no braço, é um bracelete.
Pintar a perna, pintar um braço, não importa, é pintura do índio.
E as escolas têm comprado muito essas coisas de mim, esses adereços, porque o professor tem que usar.
Se ele tá passando a história do nosso povo pro aluno ele tem que usar, tem que usar.
Não usar só quando vai pra festa nos pau-branco, essas coisas assim, é ficar na sala de aula usando as coisas também.
P/1 – E dona Raimundinha, e as festas? Vocês têm festas?
R – Tem.
A gente tem Festa da Carnaúba, que é de 18 a 20.
P/1 – De qual mês?
R – De outubro.
Também tem a Caminhada do Índio que é no dia três de outubro, em Caucaia.
Essas duas festas que a gente tem, a da Caminhada do Índio, que sai da Caucaia, e a Festa da Carnaúba é a maior festa, que é de 18 a 20.
P/1 – Como é essa Festa da Carnaúba?
R – Ela é uma festa, feira cultural, tudo junto.
Porque tudo o que a gente faz a gente expõe nas ocas, bota tudo lá pro pessoal vir olhar, comprar, essas coisas assim.
A gente expõe tudo lá.
E vem gente de tudo quanto, como eu tava lhe dizendo, vem gente do Rio de Janeiro (risos), por incrível que pareça, viu? Vem gente de toda parte do mundo.
P/1 – Dona Raimundinha, a senhora lembra quando vocês decidiram fazer essa festa da Carnaúba?
R – Foi assim, lá nos Pau-branco morava uma índia velha, era a tapera de uma índia velha.
E o Pau-branco foi plantado por ela e ele se espalhou-se muito porque é semente que nasce e lá nasceu, fez uma coisa só de Pau-branco, uma nascida do puro Pau-branco.
Aí é conhecido como “Os Pau-branco da tia Maria”, que foi plantado por ela.
O pessoal tava cortando pra fazer carvão porque a única mata que existia era eles, cortaram toda a madeira e deixaram eles, os pau-branco.
Aí estavam tirando, cortando os pau pra fazer carvão.
Nós fumo lá e vimo, aí os meninos desmancharam a caieira e encheram d’água.
Aí disseram que daquele dia em diante ninguém cortava mais aquela mata ali.
Começaram a fazer vigília pra não cortar a mata dos pau-branco, e nem o que tivesse ao redor da lagoa.
Fizeram uma reunião pedindo ajuda pra não deixar ninguém cortar nada da beira da lagoa e não cortar mais nenhum pau-branco.
Aí pronto, todo mundo se envolveu na luta pela defesa do pau-branco.
Ficou, ficou, aí depois fizemos reunião, o que era carnaúba pro índio, porque a carnaúba foi muito plantada pelo índio.
Mesmo não sendo pra ele, era pro posseiro, mas ela foi plantada pelos índios.
Era nas carreiras de índio que plantava as carnaúba.
Plantava o feijão, o milho e plantava a carnaúba junto com o milho.
Uma cova e outra não, uma cova e outra não.
E a carnaúba é uma das planta mãe que a gente chama, mãe grande, porque além dela nos ajudar a dar comida, ela dá as nossas vestes, ela dava madeira pra nossa casa.
Hoje a gente usa madeira serrada, mas antigamente as madeira das nossas casa, tudo era de carnaúba.
Lascava as carnaúba pra fazer as ripa, pra ir ripar, fazia banco.
P/1 – A senhora pode continuar, a senhora estava comentando o que vocês faziam com a carnaúba.
R – Sim.
A carnaúba foi plantada muito pelo meu velho, pela irmã dele.
Eles plantaram muita carnaúba aqui nessa área.
Área do posseiro, que eles trabalhavam, criança eles trabalhavam pros posseiros e eles mandavam botar a carnaúba pra ser plantada numa cova e noutra não, do milho.
E foi assim que a carnaúba.
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porque não tinha carnaúba aqui, ela foi plantada.
De onde ela veio a semente eu não sei.
E depois disso foi uma coisa que foi plantada pela mão do índio, que é de uma grande ajuda porque ela veio pra nos ajudar mesmo, porque a gente usa a palha dela pra sobrevivência da pessoa, derruba; da própria palha se faz uma tanga, se tira a bucha pra fazer as tangas das meninas, e da palha faz a tanga dos homens, mais forte.
E fazia a casa, fazia cama de tala, a porta da casa, tudo era feito da carnaúba.
Banquinho pra se sentar.
Se sobrava um pedacinho de rolo de carnaúba era botado os pezinhos pra se sentar, o banquinho.
E a carnaúba é uma mãe, uma mãe grande mesmo porque ela nos ajudou muito.
E as crianças de primeiro chupava a fruta da carnaúba como um bombom.
E arranjemo um dia pra comemorar o dia da carnaúba, que é dia 20.
E é uma festa muito bonita.
P/1 – Como é essa festa?
R – Quando amanhece o dia se faz logo a abertura da festa da carnaúba, bota aquelas folhas ali ao redor, e a gente faz a abertura da festa com oração, com danças e veneramos a carnaúba como quem venera uma deusa, a nossa deusa da mata, mamãe grande.
E assim que ela é vista.
Aí tem a feira, têm as danças, arremeço de lança, corrida da tora, tem tudo o que o índio pode fazer ele faz naquele dia ali.
P/1 – Vocês têm alguma dança, dona Raimundinha?
R – Temos dança do Toré, é a dança sagrada do índio.
P/1 – Como é essa dança?
R – É com roda, formando uma roda.
Faz o centro, com os tambor, atabacas, e faz o círculo grande.
E ali que a gente dança.
P/1 – A senhora lembra da primeira vez que vocês decidiram construir a dança, refazer a dança?
R – Minha filha, foi um sucesso pra fazer essas músicas do Toré.
Eu tenho uma filha que ela tem uma cabecinha muito bem, tem o Weibe que também tem, tem uma neta que também tem, aí eles juntam pra formar as músicas dos índio.
E fizeram muitas músicas.
P/1 – A senhora sabe alguma música?
R – Na Lagoa dos Tapeba, na pesca do uruá.
E a mãe da Jurema que balança a aldeia.
P/1 – A senhora pode cantar pra gente?
R – Pera aí, deixa eu ver outra.
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(cantando) “Na Lagoa da Tapeba, na pesca do uruá, a pesca do uruá, na lagoa.
É dia, é dia, é dia, do povo comemorar, na pesca do uruá, na lagoa”.
Vou cantar só um pedaço (risos).
P/1 – Tem mais outra?
R – Pera aí, deixa eu ver uma curtinha (silêncio).
Estava na minha cabeça, estou esquecida.
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P/1 – Não tem problema, dona Raimundinha.
R – Sou esquecida demais pra lembrar dessas músicas.
E isso é porque eu só vivo cantando.
P/1 – A senhora participa da dança?
R – Participo, minha filha, eu sei balançar a maraca (risos).
P/1 – Vocês também tem maraca.
R – Tem.
P/1 – O que vocês utilizam pra dança?
R – Atabaca, que é um tambor grande assim, e as maraca.
Só essas duas coisas mesmo.
P/1 – E todo mundo canta?
R – Canta.
Na hora de cantar todo mundo canta.
P/1 – Vocês têm alguma roupa especial pra dançar?
R – Tem.
P/1 – Como é essa roupa?
R – Eu tenho que é de bucha de carnaúba, tem de estopa, eu visto por cima das minhas roupas.
A gente vai sair e a gente veste uma tanga de estopa.
Eu faço na máquina minha.
Primeiro ninguém tinha nada, a gente fazia era na mão mesmo, hoje a gente faz na máquina.
P/1 – A senhora faz na máquina?
R – É.
P/1 – E a senhora faz com.
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R – De estopa.
P/1 – Com estopa.
A senhora sabe costurar, então, dona Raimundinha?
R – Sei.
P/1 – Com quem a senhora aprendeu?
R – Com a minha mãe.
E o meu velho que me ensinou, sabe por quê? Porque primeiro eu: “Meu veio, eu vou aprender a costurar, mas eu quero que ocê me deixe eu descosturar a sua calça (risos) pra mim aprender a cortar”.
Aí, descosturei a calça dele, cortei um pedaço de papelão, molde da frente, cós, bolso, modelo de bolso, como era bolso, tudo isso eu fiz.
Depois fui tentar botar os pedaços no canto.
Conseguia botar os pedaços no canto.
E daí por diante.
Eu fui cortar a calça pra ele e ficou com a perna torta aqui.
Aí ele: “Deixa assim mesmo que é pra trabalhar”.
Ele me deu muita força para que eu aprendesse a cortar, porque costurar eu sabia, o meu negócio era cortar.
Aí fui indo, fui indo, até a costura da calça ficou de lado, mas pra isso ele vestiu umas três calças aleijadas, mas ele vestiu.
Então, isso indica que eu sei costurar porque ele me ajudou a aprender a cortar a roupa e costurar.
Aí, por aqui não tinha costureira, eu era costureira.
Hoje a pessoa compra tudo feito.
Muitas vezes eu elejo os defeitos que chegam nas roupas.
P/1- A senhora costura ainda?
R – Costuro.
P/1 – Além das roupas que a senhora faz pro ritual a senhora faz outras roupas?
R – Faço roupas.
E, às vezes, eu ganho as coisas, pedaços de pano, emendo, faço colcha de cama, lençol, essas coisas assim.
P/1 – E a senhora vende essas peças?
R – Não, é pra casa mesmo.
As colchas de cama, que a gente.
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Hoje em dia quase todos os meninos dormem em cama e tudo precisa de lençol, de colcha de cama.
Eu emendo, faço pras camas de casa mesmo.
P/1 – Dona Raimundinha, a senhora comentou da caminhada também, que vocês fazem em outubro.
R – Dia três de outubro, é.
A gente vai pra caminhada em Caucaia.
A gente anda Caucaia, sai da matriz, arrodeia o centro de Caucaia, se para o trânsito.
Nós caminha em Caucaia, nós para o trânsito de entrada na Caucaia e o trânsito de saída na Caucaia porque a gente vai por um lado e volta pelo outro.
Mas, graças a Deus, até hoje, toda a vida o pessoal nunca teve nada contra, a gente foi muito bem recebido na Caucaia, a gente é muito bem recebido.
Tem pessoas que batem até palma quando a gente vai passar.
É gente que entende a nossa luta, essas pessoas, é assim que a gente queria que os prefeitos e os governadores fossem, entendessem a nossa luta e demarcassem a nossa terra.
P/1 – Vocês tiveram algum problema pra ter esse reconhecimento como indígena aqui?
R – Olhe, quando nós se reconhecemos que nós era índio, aí é na base do não importa se você quer ou não, o que importa é que nós sabemos que nós somos.
Eu, minha pessoa, eu digo pros meus filhos: “Meus filhos, não importa o que os outros pensam de vocês, não importa.
Se você é branco ou preto, se você é roxo ou moreno, não importa.
O que importa é o que nós somos.
Não importa o que os outros digam ou o que os outros falem, não importa, não.
O que importa é você não se envergonhar do que você é, porque a coisa mais triste é nós termos vergonha de nós mesmos”.
É o que eu passo pros meus filhos, pros meus netos, na escola quando eu vou falar, eu digo pros alunos que ser índio é muito bonito, é maravilhoso, é bom, contanto que nós respeitemos nós mesmos, porque se nós não respeita nós mesmo, quem é que vai nos respeitar? Se nós próprio não se respeita? Entonce, é isso que eu passo pra eles.
Eles me fazem muitas perguntas das coisas mais antigas e eu respondo as perguntas.
Eles vêm fazer pesquisa comigo, às vezes, eu me sento lá naquele banco acolá e nós conversa, passando as histórias, e eu: “Meus filhos, registrem essas história, vocês registrem, vocês usem um caderno só pra vocês registrarem as histórias, que é pra vocês ficarem com elas guardadas, pra quando o professor pedir uma história do índio vocês terem, vocês já terem sua própria pesquisa, é só você procurar no caderno que você registrou a história que você vai encontrar”.
P/1 – E dona Raimundinha, quando a senhora começou a estudar? Por que a senhora não estudou quando era pequena?
R – Não estudei, não.
P/1 – Conta isso pra gente.
R – Não estudei.
Eu me criei, me cresci, eu dizia: “Meu Deus, eu queria um dia aprender a ler pra escrever uma carta, porque, meu Deus, é tão ruim uma pessoa não saber escrever nada.
É muito ruim”.
Quando eu era moça eu tinha vontade de escrever uma carta pro meu namorado, que primeiro não tinha telefone, não tinha nada, era carta mesmo.
Mas cadê que eu sabia escrever? Às vezes, eu mandava escrever, é uma coisa da gente que a gente dá, do que saber os outros vai fazer aquilo ali.
E eu tinha muita vontade de estudar.
Aí, chegou uma mulher que morava lá na cerâmica, a filha dela começou a ensinar.
Ela ensinava as pessoas de noite, as que trabalhava, e as crianças ela ensinava de dia.
Eu comecei a ir pra lá, estudar de noite.
Fiz o primeiro ano estudando lá, mais ela.
Ela casou-se e o marido dela não deixou mais ela ensinar, aí pronto, acabou ali.
Ficou.
Aí quando a minha filha começou a dar aula, que fizeram um galpão e começaram a dar aula à noite, como é que chama? Que ensina as pessoas mais adultas?
P/1 – Mobral?
R – Não era esse o nome.
P/1 – Ou era Escola de Jovens e Adultos, era o EJA?
R – É, o EJA.
Eu comecei a estudar de noite, aí estudei, estudei, estudei, fiz a quinta séria.
Quando chegou a quinta série começou a Matemática a mexer com meus miolos (risos), eu.
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P/1 – A senhora deixou de estudar.
R – Deixei de estudar (risos).
P/1 – E a senhora começou a escrever depois que a senhora aprendeu?
R – Eu aprendi a ler e aprendi a escrever.
P/1 – E a senhora começou a escrever?
R – Ainda hoje em dia eu escrevo.
E eu leio.
Eu adoro ler aqueles livros.
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P/1 – Quais livros?
R – Esses livros de história antiga, a formatura de Fortaleza, como começou Fortaleza, tudo isso eu gosto de ler.
Aí melhorou muito, graças a Deus, pra mim melhorou.
Eu aprendi a ler, a escrever e agradeço muito à nossa escola por isso.
P/1 – E dona Raimundinha, hoje o que a senhora faz? A senhora chegou a se aposentar?
R – Sou aposentada.
P/1 – A senhora vive dessa aposentadoria?
R – É, eu e meu velho.
P/1 – Vocês recebem algum tipo de benefício social do governo, bolsa-família?
R – Não, eu não recebo nada disso.
P/1 – As crianças que a senhora cuida, as meninas.
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R – Essas meninas, a mãe delas recebe.
É a mãe delas.
Pra elas, eu nunca recebi nenhuma calcinha, tudo é do meu bolso.
P/1 – Dona Raimundinha, mudou muito aqui a região depois das obras do Pecém?
R – Rapaz, mudou.
P/1 – O quê que mudou?
R – Porque qualquer coisa que acontece lá, na estrada, em qualquer canto, aqui dentro, aqui, essa estrada, fica lotada de carro pesado passando.
E é um perigo muito grande e constante porque a gente tem essas crianças que estudam na escola, que atravessa a estrada, pra nós mudou nisso aí, nessas obras do Pecém.
Coisas que pesa sobre nós também, não só com os índios de lá, dos Anacé, como pra nós também.
P/1 – O que pesa pra vocês?
R – Pesa esse movimento de máquina que passa dentro da nossa aldeia, que afeta a nossa aldeia.
P/1 – E dona Raimundinha, quando vocês tiveram essa terra aqui reconhecida, vocês têm a terra.
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aqui é uma terra demarcada?
R – Ela foi demarcada, ela foi.
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P/1 – Homologada?
R – Não, ela foi entrada na justiça e parou, aí ela voltou à estaca zero.
Porque na verdade é os políticos que são os posseios da nossa própria área, político, que nem o Zé Geraldo Arruda, Inês Arruda, são os políticos que exercem o poder lá dentro que são posseiros de grande área da nossa terra, de grande área.
P/1 – Vocês tiveram problema nesse processo de que essa terra tivesse esse reconhecimento como terra indígena? Vocês tiveram problemas?
R – Tivemos não, minha filha, o reconhecimento dela foi fácil demais.
Veio um, como é o nome que chama?
P/1 – Da Funai?
R – Não.
P/1 – Veio um técnico.
R – Não é técnico, não.
P/1 – Um antropólogo.
R – Antropólogo.
Veio um antropólogo de Brasília fazer esse trabalho aqui dentro.
Fez o reconhecimento da área toda.
Toda.
Porque não só os índios reconhecem que é uma área indígena, como muitas pessoas reconhecem que é uma área indígena.
Só que está em mão dos posseiros.
Ele fez todo um trabalho, levou, que foi assinada a demarcação da terra indígena, aí entraram na justiça.
Aí voltou de novo à estaca zero.
Tornou a vir fazer novos estudos, aí assinaram de novo, parou de novo.
Vieram fazer novos estudos, agora pararam de novo.
Estão atrás de rebolar o trabalho de demarcação de terra na mão dos deputados, o que tu acha uma coisa dessa? Aí os índios estão é frito, viu? E bem frito mesmo.
Porque esses advogados, tem um advogado aí, um senhor Genaro Dutra, parece que é assim o nome dele, que ele é advogado dos posseiros.
Minha filha, tem coisa errada nesse trabalho dele aí, que foi feito em 2012, a entrada na justiça que o cara deu em 2012.
Como é que o, foi feita em 2013 e como é que foi feito em 2012, tá lá no papel, no documento? Tu não acha que tem coisa errada, não? Minha pessoa, eu vi eles dizendo que ele andava de casa em casa.
Porque tem um senhor que ele foi na casa dele, que o posseiro dele, parte da terra fica na área indígena e a outra fica fora.
Aí ele foi na casa dele chamar ele pra entrar na justiça.
Ele disse: “Não, não vou.
Vou por quê?” “É porque o índio tá fazendo isso” “Não, eu não tenho problema com índio, a minha área fica uma parte dentro da terra do índio, o que é do índio é do índio, ninguém tira, e o que é meu é meu.
Ninguém tem desavença com índio”, ele é um senhor da polícia.
“Eu não tenho desavença com índio.
Eu entendo muito bem que a área do índio é a área dela e a minha é a minha.
Se eu comprei errado, comprei uma coisa que é do índio, entonce eu dei a parte dele e fiquei com a minha.
Eu vou entrar na justiça pra quê? Não vou, não”.
Então isso é coisa que ele andou de casa em casa procurando pessoas pra entrar na justiça, esse advogado, de casa em casa.
Entonce teve 40 contestações, coisa que nunca tinha acontecido.
E mais coisa grande, firmas, indústrias, coisas assim, que entraram.
P/1 – E quais firmas?
R – Que nem esse seu Lino da Silveira que é posseiro dessa nossa área aí de plantio.
O coronel Eulino da Silveira, um bichão grande aí.
P/1 – Dona Raimundinha, como a senhora imagina esse local daqui a 20 anos?
R – Como eu imagino? Eu imagino um posto médico que tenha condições de cuidar das nossas crianças, com equipamento pra não ser preciso jogar eles pra outros cantos e voltar sem fazer o que é pra fazer, porque é isso o que acontece com as nossas crianças, que nós temos clínico, nós não temos uma pediatra.
O clínico manda levar prum canto, a gente vai, quando chega lá não tem doutor, manda levar pra outro; quando chega lá não tem e volta pra casa.
Entonce é um empurra-empurra.
Eu espero que nós tenhamos uma saúde de verdade.
Eu, minha pessoa, espero que a gente tenha uma Funai que faça realmente o seu trabalho com o índio, que deem poder à Funai pra fazer alguma coisa.
Porque se você tem um órgão que cuida do índio, ele tem que ter poder pra defender, ele vai trabalhar em cima daquilo ali.
E espero que as nossas escolas cresçam cada vez mais, que a gente precisa que as nossas crianças estudem pra não estudar lá fora.
E espero que muitas coisas ruins que está lá fora não entre pra cá pra dentro.
P/1 – Isso seria um sonho da senhora, então?
R- É.
Esse é o meu desejo, que a nossa comunidade cresça cada dia mais e que as coisas ruins que tenham lá fora não venham pra cá, pra dentro.
Que é muito triste a gente ver o que está acontecendo lá fora, criança morrendo.
Aliás, nós vivemos num país sem lei, um país que não tem lei e não tem respeito.
Criança mata, usa droga, umas crianças com nove anos, com 13 anos, já tudo se drogando, tudo matando os outros.
E simplesmente não tem uma punição, simplesmente a criança mata e volta, rebolam ele na rua pra matar de novo.
Isso aí não é pra existir, tem que ter alguma coisa pra salvar as crianças disso aí, salvar eles da morte, porque estão matando demais as crianças.
Isso aí era o que os governantes devia se preocupar.
Não era isso aí que eles deviam se preocupar, com as crianças? Que daqui mais uns anos não tem mais velho, não.
Eles vão se livrar dos velhos, porque mais uns anos não tem mais velho pra aposentar, porque estão matando as crianças hoje, os velhos que têm vão morrer e mais tarde não tem velho.
E eu, minha pessoa, queria muuuito muuuito muuuito mesmo que esses governantes salvassem essas crianças, fizessem lei.
Fizessem lei, porque agora tem, não existe mais lei, existe é mordomia.
Inté ganhar dinheiro preso ganha, fazer o quê, se essa é a lei?
P/1 – E aqui na comunidade vocês têm problemas com a violência?
R – Não, você ver aqui é a coisa mais difícil do mundo é matarem uma pessoa aqui dentro.
É isso que eu estou lhe dizendo, que não venha pra cá, pra dentro, o que tem lá fora.
Não venha pra cá.
P/1 – Dona Raimundinha, o que a senhora sentiu contando a sua história?
R – Olhe, teve hora que eu quase desabei.
Teve hora que eu fiquei feliz de estar passando a minha história, que mais tarde ela sirva pra alguma coisa.
Foi assim que eu me senti na minha história.
Você sabe a gente se lembrar de coisas que aconteceu, tem muita gente que diz assim: “Eu não gosto de me lembrar do que eu passei, eu gosto de me lembrar pra frente”.
Eu digo: “Pois eu acho bom você crescer e olhar pra trás e não se envergonhar do que fez atrás.
É muito bom que você pense nisso, andar de cabeça erguida, sem se envergonhar de olhar pra trás”.
Porque tem muitas vezes que pra ser o que você é, muitas vezes pus em cima de muita gente, é capaz de roubar, é capaz de matar, isso é muito triste.
O meu eu saiu atropelando todo mundo, isso não é justo.
E nem é certo.
Eu, meu.
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No meu conhecimento de vida eu fui uma pessoa que lutei muito, batalhei muito, passei muita necessidade, mas não tenho vergonha de contar a história da minha vida pra ninguém.
Eu não me envergonho você sabe por quê? Porque no tempo que a gente não podia comer carne, não é vergonha, é a maneira de você viver, viver de pesca que nem eu cansei de pescar pra fazer o tempero da minha casa, não é trabalhar pra ajudar a minha mãe a criar meus irmãos.
Não é uma história de vida que eu espio pra trás eu me envergonho do que eu passei.
Eu não me envergonho do que eu passei.
E estou aqui pra orientar meus filhos, meus netos, aqueles que me procuram, e sempre dizer a eles que eles sempre devem andar de cabeça erguida, cansei de dizer aos meus filhos: “Meus filhos, ocês andem sempre por um caminho que ocês podem até tropeçar, mas se ocês cair tem alguém pra lhe dar a mão pra lhe levantar.
Não você cair e não achar quem alevante”.
E a gente tem que andar sempre de cabeça erguida.
P/1 – Tá certo.
Nós agradecemos pela história da senhora, muito obrigada.
P/1 – Conta essa história então pra gente.
R – Uma vez a minha mãe trabalhava na pedreira e nós cheguemo de tardezinha.
Ela botava feijão no fogo pra de manhã e de tarde.
Quando era de tarde que ela chegava ela fazia loco loco pra nós comer.
Loco loco é colocar farinha dentro do feijão, mexer, deixar ferver, tirar do fogo e aí pronto, a janta tá pronta, só o feijão e a farinha.
Ela botava nos prato e a gente comia.
Quando nós chegamo em casa o cachorro tinha virado a panela e tinha derramado o feijão.
Aí, lá em casa tinha um cajueirinho que ela tinha plantado, que era pequeno assim, eu olhei e ela tava lá no cajueirinho.
Eu vi que ela tava chorando, vi também que era porque ela tinha derramado a comida e ela não tinha o que dar de comer a nós de noite.
Peguei um anzol, desci, fui pro poço, e ela: “Minha filha, pra onde você vai a uma hora dessa? Já tá ficando escuro”.
Eu digo: “Mãe, eu volto já já”, e saí correndo com as minhoquinhas que eu arranquei debaixo do jirau, com a colher, minhoquinha só os fiapinhos.
Aí fui, quando cheguei lá no poço, só fui limpar assim, ao redor assim, tirar os aguapé e botei o anzol, era assim como se ele estivesse me esperando, sabe? Era só arrastar, uns carás desse tamanho assim.
Aí peguei seis, grande assim, caraçu.
Não era esses cará que tem hoje, que não sei de onde foi que veio esses cará, primeiro não tinha eles não.
Era uns caraçus grande assim, uns bichão bem bonito, umas caras bem grande.
Cheguei em casa com seis cará.
Aí: “Mamãe, trate esses carás e bote um aqui dentro da cuinha”, tinha uma cuinha comprida lá em casa, “que eu já vou já lá na dona Chiquinha”.
Dona Chiquinha era a velhinha que eu dizia que pedia esmola.
E que lá não faltava as coisas porque ela pedia.
Fui lá, quando cheguei lá, fui trocar o cará pela farinha.
Aí ela: “Minha filha, cadê a vasilha da farinha?” “Tá aí”.
Ela: “Ai meu Deus, minha filha, você inté na pedida é pobre”.
P/1 – O que ela falou?
R – “Você inté na pedida é pobre”.
Porque a cuinha era muito pequenininha, a cuinha que eu levei o cará desse tamanho assim, do tamanho do cará era a cuinha.
Aí ela disse que inté no pedido eu era pobre.
“Vá buscar o saquinho que você pesca com ele que eu.
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”, nós se juntava de noite que a minha mãe ia pra lá conversar e eu mais as meninas, netas dela, filhas da filha dela, ia tudo pescar, tinha saquinho.
Aí eu fui buscar e ela me deu mais ou menos uns dois litros de farinha no saco e eu fui-me embora.
Cheguei em casa minha mãe já tava fazendo a janta dos meus irmãos.
Isso aí e foi muitas e muitas coisas que eu fiz na minha vida.
P/1 – A mãe da senhora estava tentando ver se tinha alguma coisa em casa, então, pra fazer o.
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R – É porque era assim, o feijão tem que botar porque o feijão custa a cozinhar.
Ainda tinha feijão, só que naquela hora da noite não tinha mais como botar feijão no fogo pra dar de comer às crianças.
Aí eu fui pescar.
P/1 – Ela ficou feliz quando você trouxe os carás?
R – Ah, meu Deus do céu! Nós crescemos assim.
É tanto, é tanto que a minha mãe, quando ela pegou o mal de Alzheimer, ela não conhecia ninguém, mas ela me conhecia pelo cheiro.
Quando eu chegava lá, ela: “Quem é, quem é”, aí eu não dizia, me agarrava e deitava mais ela.
Deitava mais ela, abraçava ela, aí ela: “Hum, é minha fia”.
Ela me conhecia pelo cheiro.
P/1 – Tá certo.
Obrigada, dona Raimunda
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