Projeto: Diversidade e Inclusão no Mercado Financeiro - Banco Pan
Entrevista de Alexon Fernandes
Entrevistado por Bruna Oliveira
São Paulo, 09/08/2022
Entrevista n.º: PCSH_HV1230
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Bruna Oliveira
P/1 – Alexon, pra começar eu gostaria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R – Alexon Justino Fernandes, nascido em 29 de junho de 1973, no Rio de Janeiro.
P/1 - E quais os nomes dos seus pais?
R – Meu pai se chama Daniel Fernandes e minha mãe se chamava Eunice Justino Fernandes.
P/1 – E o que eles faziam?
R – Meu pai, à época, era já um comerciante. Meu pai é comerciante até hoje, aos 81 anos. Uma história bem bacana, do meu pai. Dava uma outra entrevista. E a minha mãe era dona de casa. Eu sou filho de um comerciante em início de carreira e de uma dona de casa.
P/1 – E como você os descreveria?
R – Vamos lá! A minha mãe era uma mulher com uma personalidade muito forte, muito inteligente, muito sagaz, muito teimosa, amorosa ao mesmo tempo, dona de tiradas inesquecíveis, que até hoje a gente cita, depois de tanto tempo da morte dela. É uma pessoa que deixou um legado muito bacana para mim e para minha irmã, para as netas que ela não conheceu. Uma cozinheira de ‘mão cheia’, era impressionante. Muito cuidadosa com os filhos, atenciosa, extremamente zelosa, ao ponto até da gente falar, em alguns momentos: “Mãe, não, chega”. Adolescente, começa a crescer e tudo, quer mais autonomia, mas era uma pessoa que no dia, no momento do enterro dela, eu disse assim: “Acho que a melhor coisa que a minha mãe fez na vida foi ser mãe”. Teve uma dedicação visceral pelos filhos e de alguma forma manteve a família ‘de pé’, mesmo depois da morte dela. É muito interessante. Já meu pai é uma ‘figura’. Meu pai é um dos ‘caras’... é a minha maior referência em termos de trabalho,...
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Entrevista de Alexon Fernandes
Entrevistado por Bruna Oliveira
São Paulo, 09/08/2022
Entrevista n.º: PCSH_HV1230
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Bruna Oliveira
P/1 – Alexon, pra começar eu gostaria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R – Alexon Justino Fernandes, nascido em 29 de junho de 1973, no Rio de Janeiro.
P/1 - E quais os nomes dos seus pais?
R – Meu pai se chama Daniel Fernandes e minha mãe se chamava Eunice Justino Fernandes.
P/1 – E o que eles faziam?
R – Meu pai, à época, era já um comerciante. Meu pai é comerciante até hoje, aos 81 anos. Uma história bem bacana, do meu pai. Dava uma outra entrevista. E a minha mãe era dona de casa. Eu sou filho de um comerciante em início de carreira e de uma dona de casa.
P/1 – E como você os descreveria?
R – Vamos lá! A minha mãe era uma mulher com uma personalidade muito forte, muito inteligente, muito sagaz, muito teimosa, amorosa ao mesmo tempo, dona de tiradas inesquecíveis, que até hoje a gente cita, depois de tanto tempo da morte dela. É uma pessoa que deixou um legado muito bacana para mim e para minha irmã, para as netas que ela não conheceu. Uma cozinheira de ‘mão cheia’, era impressionante. Muito cuidadosa com os filhos, atenciosa, extremamente zelosa, ao ponto até da gente falar, em alguns momentos: “Mãe, não, chega”. Adolescente, começa a crescer e tudo, quer mais autonomia, mas era uma pessoa que no dia, no momento do enterro dela, eu disse assim: “Acho que a melhor coisa que a minha mãe fez na vida foi ser mãe”. Teve uma dedicação visceral pelos filhos e de alguma forma manteve a família ‘de pé’, mesmo depois da morte dela. É muito interessante. Já meu pai é uma ‘figura’. Meu pai é um dos ‘caras’... é a minha maior referência em termos de trabalho, honestidade, cuidado com os filhos, cuidado com a família. Meu pai é um ‘cara’ muito, assim, da brincadeira, um sujeito ‘leve’, exemplo de leveza, pra mim. E um exemplo de pai. Eu costumo dizer que, se eu for, para minha filha, o pai que ele é e tem sido para mim, até hoje, eu estou com a ‘vida ganha’ porque é, realmente, uma pessoa que eu admiro demais e é um grande exemplo para mim. É um ‘cara’ que veio pro Rio de Janeiro analfabeto, nos anos 1960, muito jovem, começou a trabalhar, trabalhou como contínuo, faxineiro, aí foi pra antiga Companhia Telefônica nacional, foi demitido recém-casado e aí decidiu abrir o próprio negócio, empreender e até hoje trabalha, cheio de clientes, a vida ativa. Se formou em Direito aos setenta anos. Então, vários pontinhos de lição que ele tem: empreender, insistir, não desistir dos sonhos, a idade é muito relativa para quando você quer realizar sonhos, tudo e tal. São essas as pessoas que são a minha matriz de vida.
P/1 – Você sabe como eles se conheceram?
R – Sei. (risos) A história contada pela minha mãe é que eles se conheceram num culto de praça. Sabe esses cultos da Igreja Batista, que faziam antigamente, na praça, se não me engano, General Osório ou na Nossa Senhora da Paz. São duas praças muito próximas ali, em Ipanema e a Igreja Batista em Ipanema estava fazendo um culto na praça e eles se conheceram naquilo, meu pai deu um folheto pra minha mãe e eles começaram a conversar, mas o namoro veio muito tempo depois. Mas eles se conheceram nessa situação, segundo a história da minha mãe. (risos)
P/1 – E você chegou a conhecer os seus avós? De onde eles eram?
R – Eu conheci os meus avós paternos. Assim como meu pai, eles eram do interior de Macaé. Então, para quem conhece o interior do Rio de Janeiro, Macaé era uma região de cana de açúcar, extrativista de cana de açúcar e era aquela vida rural, pessoas descendentes de pessoas escravizadas, uma vida muito simples, muito ‘dura’, de muita dificuldade e que expulsa as pessoas do campo. Faz com que, por exemplo, meu pai e os meus tios todos viessem pro Rio de Janeiro. Meu pai foi o primeiro a vir e meus tios também vieram pro Rio de Janeiro, para a Baixada Fluminense, para justamente tentar algo melhor. Eu conheci meus avós, meu avô morreu com 96 anos. A minha avó morreu mais jovem, ou menos idosa, 75, 76, se não me engano. Mas meu avô ficou muito tempo ainda e com muita história pra contar, muita coisa que a gente ouvia. Meu pai até hoje conta histórias dos dois juntos, histórias do meu avô. Já os meus avós maternos já eram falecidos quando minha mãe se casou e, também, é um pouco da história do Brasil, já em Minas Gerais. O meu avô materno, filho de pessoas escravizadas, que viveram a escravidão ainda, depois virou um colono, meeiro, na zona da mata, em Minas Gerais, plantando café. Então, a gente via dois ciclos ali, muito marcantes da história do Brasil, da escravidão: ciclo da cana de açúcar e o do café. A minha família é o resultado desses dois ciclos, sobreviventes de dois ciclos muito duros para pessoas negras, no Brasil. E ele se casou com a filha de imigrantes italianos e teve também que abdicar de um monte de coisa, porque a família não aceitava, ela se casar com um homem negro. Essa é a minha história. Então, (risos) eu sou fruto de envolvimentos muito marcantes na história do nosso país. Envolvendo preconceito, racismo, escravidão, a vinda de colonos europeus, na tentativa de embranquecimento da sociedade brasileira, do povo brasileiro. Como você está vendo, não deu certo. (risos) E é isso, essa é a história dos meus avós.
P/1 – Tem alguma história que seu pai conta, ou que você viveu com os seus avós e que você queira trazer?
R – Sim. Principalmente com... eu só tenho, na verdade, marcante, com meus avós paternos. Eu via pouco os meus avós, porque eles continuaram morando lá no interior, em Macaé, na época. A gente fala em Macaé hoje, fala num grande polo de petróleo, mas isso é uma coisa recente. Na minha infância eu ia muito, com meu pai. Eu não via tanto, não era uma coisa que eu via tanto, mas eu ia muito com ele e era muito engraçado, porque tinha uma situação: a minha avó tinha uma coisa de um pudor enorme com dinheiro. Então, tinha aquela coisa de avó dar dinheiro para o neto, ela sempre dava o dinheiro, assim, escondidinho. E era sempre o último ato dela antes de eu voltar pra casa, porque era uma coisa, um pudor muito grande essa coisa do dinheiro, falar de dinheiro. E uma coisa que, sempre quando ela ia preparar alguma coisa, as galinhas estavam lá, então a galinha que se comia no almoço era a galinha que ela matava horas antes. E era uma coisa que me fascinava, que enquanto criança, pra chegar perto de uma galinha, eu corria, ficava cansado, não conseguia, elas fugiam. A minha avó conseguia pegar a galinha, aquele processo todo ali, ela andava, nunca vi a minha avó correr atrás de uma galinha. Minha avó tinha uma coisa com pães, ela adorava pães. Então, meu pai sempre levava um pão diferente pra ela, aquela coisa toda. Me chamava a atenção a forma física da minha avó, era uma mulher musculosa, muito forte, as pernas roliças, os braços musculosos e tudo, uma fala muito baixa, ela falava baixinho e tudo. Uma mulher sofrida, muito sofrida, mas era de uma energia muito grande e ela não tinha o dedo anelar da mão direita. É, da mão esquerda. Ela não tinha, ela tinha metade, decepada numa moenda. E essa história foi na minha casa, já. Aqui no Rio, a minha irmã mais nova, três anos e meio: “Vovó, eu vou pintar a sua unha”. Aí pegou, foi pintando, foi pintando, minha avó calada. Quando chegou no dito dedo sem unha, obviamente, a minha irmã não tinha notado ainda essa falta do dedo da minha avó. E ela deu um berro: “Mãe, está faltando uma unha na minha avó”. (risos) Foram as poucas vezes que eu vi minha avó dando uma gargalhada, que ela achou aquilo muito engraçado e tal. Com o meu avô, muitas histórias. O meu avô era o homem das histórias, contava coisas que tinha feito, que tinha deixado de fazer e tudo, mas uma vez que eu achei que foi muito engraçado, foi quando... eu aprendi a dirigir muito novo, com quatorze anos. E uma vez a gente foi para a casa dos meus avós e, na hora de ir embora, o meu pai falou assim: “Vai lá e manobra o carro, para gente poder ‘botar’ as coisas”. Era uma perua, então deixei a porta de trás aberta, para ir colocando as coisas. Quando meu avô me viu dirigindo, a frase, a gente até hoje brinca com isso, que é assim: o nome do meu pai é Daniel e ele chamava meu pai de Danié, aí ele vira: “Danié, esse menino já ‘direge’”. (risos) Até hoje, em algum momento, a gente lembra disso, eu e minha irmã, porque a gente riu muito daquilo tudo e, também, era uma coisa que me chamava muito a atenção no meu avô, duas: essa força física dele, um homem muito forte. Tem uma foto aqui, eu gosto demais dessa foto, que estão meus avós, a minha mãe, a gente pequenininho, assim, alguns dos meus tios, a maioria dos meus tios estão nessa foto e meu avô e minha avó estão lá nessa foto, meu avô um homem muito forte, e o chapéu. Meu avô sempre estava de chapéu. Chapéu, pra ele, era um lugar e isso sempre foi muito interessante pra mim, porque na cidade ninguém usa chapéu. E eu lembro do meu pai, às vezes, parar para comprar um chapéu pro meu avô, levar, dar de presente. É interessante.
P/1 – Eu ia perguntar qual o nome da sua irmã e como era a relação de vocês, quando vocês eram menores.
R – A minha irmã se chama Aline. A nossa relação é uma história. É curioso, porque a minha irmã é muito diferente de mim, em termos de personalidade e tudo, muito. Visão de mundo. Mas quando a gente é criança, é criança. Então, não tem essa construção. Ela nasceu na véspera de Natal, então já foi um problema pra mim, porque imagina na década de 1970, que você não sabia se vinha menino ou menina, a expectativa que eu tinha era de um menino, que os meus amigos tinham irmãos. E eu queria um irmão também, para brincar comigo, essa coisa toda. Eu pedi um irmão. Não pedi uma irmã. Mas a minha mãe falava: “Pode vir uma menina. E se for uma menina?” Aí eu escolhi o nome do menino. Eu sou de uma época que todos os irmãos começam com a mesma letra. Anos 1970 era A pra todo mundo. E eu falei: “Eu quero que seja Alan o nome do meu irmão”. Aí ela falou: “Bom, mas e o nome Aline?” Não: “E se for menina?” “Não sei, vou escolher”. E à época tinha uma propaganda na televisão, que tinha uma música francesa chamada Aline e que o ‘cara’ cantava, tal, essa música. Um dia desses eu mandei pra ela: “Aí, ó, Aline” e ele falava, lá: “Aline”. Aí eu virei pra minha mãe e falei: “Se tiver uma irmã, pode ser Aline?” Ela disse o seguinte: “Vamos tentar. Pode ser”. Por quê? Duas coisas: a minha mãe tinha a intenção de chamar a minha irmã de Alice, em homenagem a uma tia minha que tinha falecido, que era a irmã mais próxima dela. Então, ela tinha uma relação muito próxima com os sobrinhos e tudo. Ela tinha essa intenção. Ao mesmo tempo, Aline era o nome da filha falecida de um casal amigo da família, nossos amigos próximos, gente que a gente gosta muito. Então, essa criança, Aline, era um pouco mais velha que eu, tinha morrido, era a filha mais nova de uma família de três filhas. Ela: “Vou conversar lá com o pessoal, então”. Ela foi e conversou com esse casal, eles adoraram a ideia, são super carinhosos com a minha irmã, até hoje, são próximos e sempre que podem conversam, se encontram. É uma família muito querida pra gente. Tá, valeu, foi Aline, mas só que Aline nasceu na véspera do Natal e uma criança quer passar o Natal com os pais. E foi muito curioso porque, num primeiro momento, eu tive muito ciúme da minha irmã. Muito, mesmo. As pessoas iam à minha casa... primeiro: já não passei o Natal com a minha mãe. Segundo: quando chegou, não era um menino, era uma menina, aí teve uma decepção. A expectativa... e eu tinha muito ciúmes dela, então eu voltei a querer... eu dei muito trabalho pra quem estava na casa. Minha mãe contava e meu pai confirma isso, que eu dei trabalho para todo mundo. As pessoas que foram para lá ajudar, eu dei muito trabalho. Eu voltei a usar mamadeira durante um tempo, aí desisti, porque dava muito trabalho, voltei a chupar chupeta. Foi super complicado. Aí eu falei assim, eu não vou culpar os meus pais, não dá, porque naquela época não existia o conhecimento que a gente tem, de psicologia infantil, fazer o mais velho se sentir parte naquele processo, não tem nada disso. Nada disso. Mas conforme a nossa relação foi se construindo, eu passei a ser o irmão cuidadoso. Ela falava: “Você era muito bom pra mim, quando a gente era criança. Agora você ‘não está nem aí’ pra mim”. (risos) Então, eu passei a ser aquele irmão cuidadoso, paciente, aquela coisa toda. A relação sempre foi muito boa, até a gente começar a se distanciar, não de presença, mas de visão de mundo. Então, de vez em quando a gente tem uns ‘arranca rabos’ normais, de irmão, mas nunca um deixou o outro ‘na mão’, quando a coisa é muito séria. A gente está sempre tentando se falar, temos alguns interlocutores. Quando está muito sumida, eu sei dela pela minha companheira, pelo meu pai, eu tenho uma rotina com meu pai, que é bem interessante, a gente sempre tenta, pelo menos, uma vez por semana, sentar para tomar um café, ‘trocar uma ideia’, a gente se fala todo dia, seja por mensagem de whatsapp, seja por telefone. Mas eu tenho uma relação muito bacana com a minha sobrinha, que é o xodó da família. Então, a relação é muito boa, apesar da gente ser muito diferente um do outro, mas muito diferente. (risos)
P/1 – Eu ia perguntar se você sabe por que você chama Alexon.
R – Olha, segundo meu pai, meu pai viu... não era pra ser esse nome, não, mas o meu pai viu, gostou, foi lá e “vai ser Alexon”. Pronto. Aí a minha busca, durante muito tempo, é ver se tinha xará, alguma coisa, entender o significado do meu nome. Aí, nessa, eu descobri xarás por aí, não conheço nenhum pessoalmente: “Prazer, xará, como vai?” Com a grafia igual, essa coisa toda, mas eu já descobri algumas coisas: em Rio das Ostras, tem uma rua que tem um Alexon, lá. Se é nome de rua, espero que não tenha feito algo... porque, no Brasil, ser nome de rua é uma coisa sui generis. (risos) Então, a gente espera que não tenha sido nada que desabone. Aí, em 2007, no Pan, um medalhista brasileiro no salto com vara se chamava Alexon também. Eu ficava irritadíssimo, porque o narrador dizia errado o nome: “Alexon”. ‘Cara’, não é Alexon. Eu ficava desesperado. Eu já sei que o ‘cara’ tem o meu nome, eu vou mutar a televisão. (risos) Mas depois eu vi, parece que tem algumas pessoas. Alguém na Universidade de Pernambuco, que tem uma produção intelectual bem interessante. E por último descobri que Alexon era uma marca de roupas, acho que de uma rede de lojas, roupas femininas, na Inglaterra. Falei: “Pô, então só coisas boas”. Descobri também que tem uma rua, uma avenida, um boulevard, sei lá, em algum lugar do mundo, ali, com esse nome e está bom, a gente vai convivendo. Uma vez me disseram que o primeiro axé de alguém é seu nome. Eu achei isso muito interessante. Eu acho que meu axé é um tanto quanto intrigante, mas é o meu, então vamos em frente. (risos)
P/1 – Alexon, você lembra da casa que você passou a infância? Como é que ela era?
R – Sim. A maior parte da minha infância eu passei em um apartamento de um condomínio da Cohab, no Engenho da Rainha, no Rio de Janeiro. É um bairro, ali, perto de Inhaúma, Pilares, fica ali, naquela região. E era um apartamento de dois quartos, com uma sala ampla, os quartos amplos, naquela época em que pobre morava em condomínios que eram amplos. Era um quinto andar, um apartamento com escada e me chamava muito a atenção a relação com os vizinhos. Era uma relação de ‘porta aberta’. As casas, os apartamentos, pelo menos naquele andar, ficavam de porta aberta. O apartamento de frente... nesse edifício tinha uma família que estava em alguns apartamentos ali e nesse apartamento de frente morava uma parte da família, que é a parte que tinha as crianças e era muito interessante, as crianças da minha idade, então a gente brincava muito. Eram dois primos, Robson e Renata. E depois eles tiveram um irmão, porque eles são um pouquinho mais novos que a minha irmã, já estão adultos também, e eu não tenho mais contato com eles, mas isso, para mim, é muito marcante, essa coisa da brincadeira ali, com eles e essa coisa da rua, bicicleta, jogar bola. Eu sempre joguei bola muito mal, apesar de ser um apaixonado por futebol, mas essa coisa da brincadeira, da inocência, da primeira escola. Eu estudava numa escola, a primeira eu fui porque a minha mãe não tinha mais como me segurar dentro de casa. Era uma época que não existia essa coisa, esse programinha: você vai pra creche, pré-escola. Não tinha isso. Me colocaram lá no maternal, uma coisa assim, porque ela não conseguia dar conta de mim e da minha irmã, muito pequena. Eu ‘aprontava’ muito. Foi uma fase muito difícil pra minha mãe. E aí me colocou nessa escola e foi muito difícil também pra eu me adaptar, eu chorava muito, não tinha telefone, aí tinha que alguém da escola ir lá na minha casa, falar com a minha mãe: “Vai lá buscar, porque não está tendo como” e aí a minha mãe, via de regra, ia lá me buscar, até que eu comecei a me adaptar à escola, mas eu lembro dessa. Depois eu fui para escola pública, municipal, Liberato Bittencourt, que eu fiz da primeira até a quarta série, mas eu lembro a casa, era assim... minha mãe era muito cuidadosa com a casa, era uma casa que tinha tudo: a estante, a mesa de jantar, sofá, muito bem mobiliada, tudo muito arrumadinho. A minha lembrança é sempre daquela casa anos 1970, psicodélica, cheia daquelas coisas, muita informação em casa. Essa era a minha casa. Minha mãe gostava muito de foto, retrato, então era uma expectativa, viagem para revelar as fotos, não tinha essa coisa de celular, que você fazia e a foto estava boa, na hora. Então, a casa era muito assim. Eu lembro dos quadros, a minha mãe gostava de quadros. Então, são muito presentes essas coisas, pra mim. O azulejo do banheiro fazia aquela curvinha, assim. E tinha aquela cânula, aquela coisinha bonitinha e tal. Eu me lembro muito dessas coisas da minha infância, da minha casa da infância. Aí depois eu me mudei pra Abolição, porque os meus pais entenderam que precisavam de um lugar em que a gente crescesse e não tivesse que pegar dois ônibus pra muitos lugares, o Abolição já era um lugar onde passava muita coisa. Abolição é um bairro que é perto de Engenho da Rainha, relativamente perto, é bem perto, dá para ir a pé de um para o outro, mas é um lugar em que passava mais ônibus, tinha mais coisa para se fazer perto, então foi uma decisão deles. Foi onde eu fiquei, até me casar. Depois de me separar, eu voltei pra Abolição, depois saí de novo e assim vai. Mas a infância, essa coisa da infância, a primeira infância foi nesse bairro, Engenho da Rainha.
P/1 – Eu ia perguntar como era o bairro, você se lembra? E como era o Rio, também.
R – Muito diferente do que é hoje. Tem muito tempo que eu não vou lá, mas eu sei que infelizmente o Rio de Janeiro teve um processo... hoje, a gente está falando em 2022, 57% do território do Rio de Janeiro é tomado por facções criminosas. Isso é muito triste. Lá não é diferente. Imagina, naquela época era o começo de muita gente e, até mesmo, o ápice de muitas pessoas, que conseguiam, efetivamente, comprar a sua casa própria. Todo mundo lá, pelo menos eu lembro, naquele prédio, era proprietário do seu imóvel. E isso, imagina, a classe trabalhadora, nos anos 1970, negros em sua maioria, tendo esse privilégio de ter um imóvel próprio. O bairro era basicamente permeado daqueles prediozinhos da Cohab, de cinco andares, escadinhas, dois blocos e tudo, então o bairro todo era tomado por aquilo. Tinha também uma parte de casas, tinha a rua da feira, que era uma coisa assim: ir à feira sábado com meu pai era um evento pra mim, uma criança ir à feira, ver aquelas coisas todas, aquele peixinho vendido em sacos, pintinhos. Aquela coisa do escolher a fruta e o legume, a verdura e tal. Meu pai era um ‘cara’ de rotina, então ele tinha essa coisa de ir à feira. A minha mãe tinha [a rotina] do mercado, uma vez por mês, fazia compra de mês. Então, eu ia com ela, aquela coisa toda. O que me chamava atenção nessa rua, nesse bairro, é que do meu apartamento eu ouvia o sino da igreja. Então, tinha duas coisas que sempre me chamavam muito a atenção. Uma: o sino da igreja, uma igrejinha onde ficou lá o maternal que eu fiz, era uma igreja católica. Tocava o sino, com um alto-falante que tinha, que saía uma caixa, com músicas religiosas. Isso está na minha mente até hoje. As casas eram muito interessantes, tinham alguns portugueses nesse bairro. Então, as casas desses portugueses eram daquele jeitão: muito azulejada. Os portugueses com essa tradição, dos azulejos. E tinham três coisas que me marcam muito: era o barbeiro, que eu lembro o nome dele até, Gerson, que cortava o meu cabelo. Lembro da padaria do ‘seu’ Abílio, que era um português também e do açougue do ‘seu’ Antônio, também português. Eles quase dividiam parede, eram muito próximos, um do outro. E eu não sei se alguém ainda lembra disso, que os açougues tinham desenho de bois e vacas, de frango, galinha, porco. Ele tinha desenhos nas paredes, que eram feitos e tinha uma assinatura lá, da pessoa que fazia, de vez em quando o desenho apagava, alguém ia lá e retocava. Coisas que eu lembro. Eu ia comprar o pão, o leite, aquele leite da CCPL, que era um saquinho, assim. Então, tinha que ter um cuidado. Era uma missão. Quando eu fui designado para ir à padaria comprar pão e leite, eu falei: “Acho que eu estou crescendo, que minha mãe deixou eu trazer o leite. Aquele saco, se cair no chão, perdeu o leite. Eu devo estar evoluindo”. (risos) Era uma coisa da infância, de andar pelo bairro, de ir ao mercado com a minha mãe, andar de bicicleta por ali. Quando eu ganhei bicicleta, eram coisas que me chamavam muito a atenção nesse bairro, que era tranquilo e com o tempo ele foi ficando mais violento, mais complicado para quem estava começando a crescer, andar sozinho, querer sair à noite, com os amigos. E aí meus pais decidiram fazer um esforço, para se mudar. Foi isso.
P/1 – Nessa época você era pequeno, mas você já tinha uma ideia do que iria querer fazer, quando crescesse? Você tinha sonhos, como era?
R – Sonhos, assim, toda criança tem, né? Eu acho que uma coisa que é um fator importantíssimo da minha história: como eu nasci. Eu nasci nos anos 1970, nasci em 1973, pelas mãos de um médico negro. Eu estou dizendo isso pra você não é porque me contaram, é porque até quatro, cinco anos atrás, eu convivi com esse médico. Ele é a segunda referência masculina mais importante da minha vida, o Doutor Oscar Ribeiro da Silva. Esse homem, esse médico negro foi o homem que fez o parto que eu nasci, o parto que minha irmã nasceu, o parto de outros tantos amigos nossos naquela época, porque ele era o médico na Igreja Batista e a minha família tinha esse convívio. Era o obstetra, ginecologista da minha mãe e um homem de uma inteligência rara, de uma perspicácia, de uma leitura do mundo, de uma rapidez de raciocínio incrível e foi esse homem que fez parte da minha infância. E outros homens negros que estavam ascendendo, conquistando, empreendendo, terminando suas faculdades em várias áreas, campos de conhecimento e eu vendo isso tudo. O pastor da igreja que eu congregava com a minha família era um homem negro, é um homem negro, está vivo ainda, com seus oitenta anos, quase, ou por volta disso, hoje mora nos Estados Unidos, pastor Daniel Paixão. Foram exemplos, acho que isso foi o grande formatador da minha mente. Homens como eu, pessoas como eu podem, sim, chegar em lugares de destaque, de privilégio, daqueles lugares que são relegados a um setor muito específico, a um grupo muito específico da sociedade e que os outros grupos têm que ir pela base da exceção. Então, quando eu era criança, eles não eram exceção, eles eram a regra. Você entende como isso muda o jeito de uma criança crescer, ver o mundo? Eu sou um privilegiado, por isso. Então, eu quis ser de tudo: astronauta, lixeiro. Nos anos 1970, 1980, o caminhão de lixo tinha... a compactação dele dava por uma rotação, era uma coisa que ia pressionando, mas ia fazendo uma rotação e os lixeiros tinham aqueles latões de lixo, eles andavam com aquele latão, assim, fazendo malabarismo, um negócio impressionante e eu achava aquilo lindo. (risos) Eu falei: “Mãe, eu quero fazer isso, quando eu crescer, quero ser lixeiro, gari”. Ela achou aquilo tudo muito engraçado e tudo, mas eu já quis ser astronauta, missionário, médico foi muito pouco tempo, mas eu sabia internamente que o que eu me propusesse a fazer, seria possível, por quê? Porque eu via pessoas como eu sendo, está entendendo? Isso mudou muito a maneira de ver a vida. Mas eu sempre tive sonhos. Eu vou falar um negócio assim: eu sempre tive sonhos que qualquer criança branca, de classe média, teria. Isso faz toda a diferença. A capacidade de sonhar, quando você tem um entorno que é a materialização do sonho. Você precisa ver o seu sonho. Não adianta eu sonhar com uma coisa que... a não ser que eu seja um visionário: estou sonhando com uma coisa que ninguém está vendo. Tudo bem, mas a gente sabe que a maioria das pessoas não funciona dessa forma. Ela precisa ver que é possível. Uma coisa é ultrapassar aquilo que é possível, outra coisa é você ver o que é possível e eu posso chegar, porque o fulano de tal, que é igual a mim, que parece comigo, tem a mesma pele que a minha, chegou. Então, é só ir atrás desse caminho, que já foi trilhado. Eu tive essa sorte.
P/1 – Alexon, quais são as memórias mais marcantes do seu tempo de escola?
R – (risos) A primeira série foi muito marcante pra mim, porque não era pra eu estar lá. Eu era muito novo, tinha cinco anos. Então, na primeira série, cinco anos e de novo a minha mãe estava com problemas: “Caramba, ele já fez tudo que tinha que fazer no maternal. Ele precisa aprender a ler...”. Eu já sabia ler algumas coisinhas, fazia umas continhas, lá, mas: “Ele precisa evoluir”. Aí a vizinha daquele apartamento da frente era uma professora da escola pública e falou assim: “Põe ele como ouvinte, lá. Eu converso com a diretora, o leva como ouvinte”. Aí fui. Minha mãe comprou o uniforme. Eu gostava muito daquela coisa do uniforme novo. Minha mãe costurava muito bem, o bolsinho da escola, com o brasão e o nome da escola e uniforme. E aí a professora me deu uma prova para fazer e eu tirei uma nota muito boa, aí chamaram a minha mãe na escola: “Olha, aqui estão as provas dele. E aí, o que faz?” A minha mãe, sabiamente, falou: “Segue, deixa seguir”. A primeira série foi muito legal pra mim, porque era aprender o novo. Eu tinha a cartilha da Mônica. Olha aí! Na primeira série, eu tinha cinco anos de idade e lembro disso. Eu tinha a cartilha da Mônica, lá, com os personagens e tudo e a professora, a Tia ngela, e ngela é o nome da minha filha. Não tem a ver, é uma coincidência, mas quando veio a sugestão... o nome da minha filha também é uma outra história, que a gente pode contar pra frente, mas quando veio eu fiquei feliz, porque me lembrou automaticamente a minha primeira professora na escola, mesmo. E foi um momento... aí eu comemorava aniversário na escola, era um universo bacana aquela coisa dos professores, chamar de ‘tia’ e cada ‘tia’ tinha um jeito diferente de dar aula. Foi uma lembrança muito bacana. Da primeira à quarta série eu tenho muito carinho nas minhas memórias, as minhas memórias são muito carinhosas com toda aquela dinâmica, de ir para a escola, de fazer a prova, fazer aqueles trabalhos em cartolina e levar, a pesquisa, escrever as coisas no papel almaço. Então, foi todo um processo de pesquisa, de recortar figura, fazer entrevista com as pessoas e conhecer lugar, museu, foi um momento muito feliz da minha vida na escola, essa primeira fase do ensino. Muito feliz, mesmo.
P/1 – E como que você ia pra escola?
R – Eu ia a pé. Era perto. Tinha aquela coisa: tinha mãe que levava todo mundo, a outra mãe que trazia todo mundo. Tinha muito disso. Mas eu ia a pé. Era um caminho bacana fazer. Alguém sempre me levava. Aí teve uma história muito interessante, que a minha mãe era bem brava e tinha uma época que eu estava estudando de manhã cedo e meu pai me levava, antes de ir para o trabalho. Teve uma vez que eu fui apostar corrida com os meninos na escola, antes da entrada, eu caí, rasguei a calça no joelho e falei pro meu pai: “Pai, caí, rasguei a calça”. Ele: “Ih, rapaz!” Ficou por isso mesmo. Eu voltei pra casa, (risos) minha mãe viu aquele rombo. Na verdade, é, eu voltei pra casa, alguém foi buscar, alguma vizinha, ela viu aquele rombo e me perguntou: “Onde é que você arrumou esse rombo na calça?” A minha mãe sempre foi muito, quase ‘psica’ com limpeza, com a higiene dos filhos, então ela jamais admitiria que o filho, saído de casa de banho tomado, ia ficar correndo antes da aula começar, entrar na sala de aula suado! Ela não ia. Aí eu falei assim: “Eu briguei com fulano de tal” e o primeiro nome que me veio à cabeça foi de um garoto que ninguém ia brigar com ele. Aí minha mãe começou: “‘Cara’, você brigou na escola com fulaninho de tal, que é um garoto...”, ela me ‘desceu a lenha’, apanhei da minha mãe, porque tinha brigado na escola, com o menino lá, que era ‘gente boa’ à beça. Anos 1970, não tinha telefone em casa. Eu fui ter telefone em casa com nove anos de idade. Eu estou falando, sei lá, dos meus sete anos de idade. Tomei uma surra. À noite, meu pai chega com um pacotinho, ela abre aquele pacote, uma calça nova. “Como é que você sabe que o Alexon brigou, rasgou a calça e trouxe uma calça nova pra ele?” “Porque eu vi quando ele caiu, ele estava correndo”. Quase que apanhei de novo, porque menti pra minha mãe. (risos) Aí só lição: não mente, não adianta arrumar uma desculpa, conta a história que tem que ser e pronto, vamos ver o que vai acontecer, mas mentir para mãe e pai não vai dar certo. É melhor desistir. Uma hora eles vão descobrir. Então, é uma história que eu não esqueço do ‘raio’ da calça, por causa da corrida, que eu quase eu apanhei duas vezes. (risos)
P/1 – Alexon, e como seguiu a sua formação, na escola?
R – Aí, depois, os meus pais me colocaram numa escola particular, que eu estudei durante um tempo. Eu fiz o ginásio, olha que loucura! Eu fiz em duas escolas particulares. Uma já na Abolição e outra no Méier, uma rede de escolas que, em pouco tempo foi vendida, era o Colégio Martins, que preparava para aqueles concursos de nível de segundo grau, aquelas escolas militares, técnicas e aí eu fiz o concurso para o Cefet, escola técnica federal. Centro Federal de Educação Tecnológica do Rio de Janeiro. E aí eu fiz o segundo grau técnico. Quatro anos, Técnico em Edificações, que foi uma abertura pro mundo. Primeiro que ficava ali, no bairro do Maracanã, em frente ao Maracanã, mesmo. Então, essa coisa de ser um lugar central, ter gente do Rio de Janeiro inteiro: da zona sul, norte, que vinha da Baixada, de Niterói e todo mundo ali, para estudar. Não usava uniforme, era um negócio diferente, pra mim. Tinha o jaleco que você tinha que usar para as aulas de laboratório, mas era livre, você podia ir com a roupa que quisesse e aí foi também uma lição: separar o que é roupa de ir para a escola, que não é uniforme, mas também não é aquela roupa que você vai... é a roupa ‘de bater’. Você vai para a escola, com aquela calça mais ‘pra bater’, mesmo, tênis não é o bacana, aquele que você ganhou no aniversário, não é nada disso. Então, são essas coisas. E aquela disciplina, porque a escola ficava aberta o tempo inteiro, você podia sair e entrar a hora que quisesse, então tudo isso tinha a ver com disciplina, com amadurecimento. Então, quatro anos muito ricos também, que eu fiz amizades que eu tenho contato com gente até hoje. Foi a primeira vez que eu fui trabalhar, estágio, aquela coisa e foi um choque cultural: fui trabalhar numa obra, com gente, numa construção de um prédio residencial, dez andares, financiado pela Caixa. Aí eu fui ter contato com o pessoal da construção civil, com os operários. Cada história de vida, choque de realidade, foi quando eu entrava em casa e olhava: “‘Cara’, eu sou muito feliz, eu tenho muita coisa, sou muito privilegiado. A minha família, os meus pais me proporcionam muitas coisas, eu tenho que ser um ‘cara’ muito grato”, porque foi um choque muito grande. Eu costumo dizer o seguinte: que eu fui entender a negritude... ou melhor, a condição do negro brasileiro fazendo como se eu tivesse uma caixa de um quebra-cabeça que a vida tivesse me dando, eu fui: ‘Ah, essa peça aqui encaixa aqui, essa aqui, aqui e aqui e aqui’. Eu nunca entendia, por exemplo, porque eu era proibido pela minha mãe de comer na rua. Proibido. Comer na rua. Eu nunca fui ao shopping de chinelo. Entendeu? São coisas assim, que a gente vai construindo e a gente não sabe o porquê. Aí, depois: “É por isso, é por aquilo” e tudo. Aí você veja: eu venho de uma formação em que eu vejo homens negros numa situação completamente diferente. Aí, em paralelo, eu começo a ver homens negros, uma dura realidade da masculinidade negra no Brasil, trabalhando, no trabalho, em ocupações subalternas, uma baixíssima formação, consequentemente uma baixíssima remuneração, tendo muito poucos marcos pra garantir o que a gente chama de masculinidade, fui entender também a complexidade da masculinidade negra, mas isso eu fui entender na vida adulta, ‘encaixando aquelas peças’: por que fulano se comportava daquela maneira? Por que fulano de tal fazia isso em determinados momentos? Por que ele era mais agressivo em determinadas situações e tão assustado em determinadas outras situações? A maturidade me deu esse entendimento, mas o meu primeiro choque com isso foi justamente na adolescência, quando eu fui trabalhar como estagiário numa obra e foi muito interessante pra mim. Foi aquilo de olhar assim: “‘Cara’, mesmo sendo um cara preto, eu estou numa situação muito diferente da maioria dos homens pretos. Meu pai está numa situação completamente diferente da maioria dos homens da idade dele”. E eu nem sei se ele tinha ou tem esse entendimento, mas o primeiro choque, para mim, foi ali, aos 16, 17 anos, 17 para 18 isso, quando eu estava terminando o Cefet, tinha que estagiar o dia inteiro numa obra. Foi ali o primeiro grande choque.
P/1 – Você falou que gosta bastante de futebol e como era lá na frente do Maracanã, para que time você torce?
R – Bem, eu sou flamenguista e o Flamengo veio muito cedo pra mim, por causa de três pessoas: um daqueles vizinhos ali do apartamento da frente, que era fanático e eu o achava muito ‘descolado’, um cara muito engraçado; a minha mãe... a primeira Libertadores que o Flamengo conquistou, lá em 1981, eu assisti todos os jogos ao lado da minha mãe. Então, o Flamengo veio muito por causa da minha mãe e por causa de um tio, irmã da minha mãe também, eu gostava muito dele, que era [torcedor do] Flamengo e tal. A primeira vez que eu fui ao Maracanã foi meu pai que me levou, meu pai não gosta nada de futebol, (risos) foi um sacrifício pra ele. Sabe aquela coisa? O que vai ficar da infância, não o que o meu pai me deu, mas os sacrifícios que eu o vi fazendo por mim. É que meu pai não gosta de futebol, ele me levou no Maracanã muitas vezes e eu lembro da primeira vez que eu entrei no Maracanã, aquela imensidão verde. Imagina um garoto de nove anos entrando no Maracanã. E o Maracanã, quando eu tinha nove anos, a gente está falando não é esse Maracanã com os lugarzinhos, as cadeirinhas, era um negócio gigantesco, a geral, eu assisti jogo na Geral. A última vez que eu fui ao Maracanã, fui com a minha filha do lado, sentada, tomando açaí. Era um negócio de dizer: “Minha filha, você está vendo essa parte aqui tudo? Isso aqui era uma Geral, a gente ficava abaixo do nível do campo e a gente assistia jogo ali, às vezes, o ‘cara’ pedia: “Pô, me dá um dinheiro, para ‘inteirar’ aqui”, para poder entrar no Maracanã e ver o jogo. E o futebol sempre foi uma coisa muito presente. Tem coisas que são desde sempre na minha vida: futebol e a música. Então, em vários aspectos. Futebol, por aquilo de tentar jogar futebol com meus amigos, crianças, me machucar muito, quebrar dedo do pé e tudo, jogando mal, mas nunca deixei de jogar. Hoje eu brinco: se eu dependesse de futebol para fazer amizade, eu estava ‘ferrado’, nas ‘peladas’, mas o futebol também é um ponto de encontro com outros amigos. Essa coisa de ir pro Maracanã, meu melhor amigo é o ‘cara’ com quem eu mais fui ao Maracanã, a vida inteira. A gente já viu, já sofreu muito no Maracanã, mas já foi muito feliz no Maracanã. E tem disso, ultimamente. E aí essa coisa do futebol, de entender escalação, esquema tático, os movimentos do futebol, como era o futebol antigamente, como é hoje, eu adoro isso, adoro, adoro, adoro, adoro, adoro. E o Flamengo, ‘cara’, eu só não tenho a tatuagem do Flamengo, porque eu não sei, acho que um dia ainda vou fazer uma pequenininha, em algum lugar. Vou fazer. Porque o Flamengo também me define, sabe? E eu tenho, mas não compro as camisas do jogo, eu só compro as camisas retrô. Eu tenho uma camisa que é autografada pelo Zico, que é um patrimônio, isso eu tenho que passar pra minha filha, que também é Flamengo e que adora ir ao Maracanã. Então, o futebol é um ponto de encontro pra mim. Futebol acho que é o fenômeno social mais importante do Brasil, sem dúvida alguma e eu sou uma vítima desse fenômeno. (risos)
P/1 – Alexon, e o que você gostava de fazer pra se divertir, durante a adolescência?
R – Eu fui um adolescente muito esquisito. (risos) Eu vou explicar pra você o seguinte: quando eu tinha doze anos eu fui a um congresso de adolescentes batistas e nesse congresso, pela primeira vez, eu vi um ‘cara’ tocando bateria. Ah, eu fiquei alucinado. Voltei pra casa dizendo pro meu pai que eu queria uma bateria. E para convencer meu pai da bateria? Foi um trabalho. A pessoa que convenceu meu pai - aí, num primeiro momento, ele falou: “Olha, eu vou deixar você ter aula de bateria. Se for uma coisa...”. Aí eu tive aula, comecei a ter aula. Aí o professor chamou meu pai em um canto e fala: “‘Cara, ele precisa de uma bateria. Ele ‘estacionou’, precisa praticar em casa”. Aí foi muito difícil pro meu pai aceitar isso - foi, de novo, lembra daquela família que eu falei, que tinha... então, a mãe daquela família, Tia Carmelita, chamou meu pai: “‘Cara’, (risos) faz isso”. Convenceu, ‘trocou uma ideia’ com ele, convenceu. Aí ele comprou a minha primeira bateria. E aí, quando eu tinha mais ou menos ainda uns doze, treze anos, os filhos daquele médico lá me mostraram alguns discos de jazz, eu fiquei enlouquecido. Então, na minha adolescência eu ouvia muita música, jazz. Eu me divertia muito indo a show de música instrumental. Olha que loucura! O garoto novinho indo pra show de música instrumental e eles me levavam, essa galera me pegava pela mão, parava o carro na frente da minha casa: “Vamos embora”. E a minha mãe confiava neles, então era ótimo. Eu tocava com eles, muitos deles são músicos, desses amigos mais velhos, tocavam na igreja, toquei em bar, em um monte de coisa, na adolescência. Mas eu também gostava de ir às festinhas, o pessoal da igreja levava para o cinema, e se apaixona pela garota que ‘não está nem aí’ pra você. Aí você ouve uma música triste do Renato Russo. (risos) Sabe essas coisas assim? Era. Mas, ao mesmo tempo, eu estava descobrindo também o jazz americano. Miles Davis, eu sou apaixonado. Pra mim, é o meu artista que me faz transcender. Todos os movimentos. John Coltrane, Sonny Rollins, Pat Metheny, o guitarrista. E já estou com o ingresso comprado desde antes da pandemia e ele não veio no show. Acho que esse ano vai ter, mas está lá, estou esperando. E a música negra americana, a música negra brasileira: Gilberto Gil, Djavan. Uma coisa é assim: Milton Nascimento, Gilberto Gil, Djavan, eram os homens negros aparecendo com beleza, suavidade, doçura. É muito importante e foi muito importante para minha formação, na adolescência, ver esses caras na televisão, falando em português, filhos dessa terra aqui, com uma masculinidade negra alternativa. Eu quero dizer alternativa pelo seguinte: eles mostravam um lugar, como diz Fanon: “Um homem negro não é um homem” e por que ele faz essa provocação? A masculinidade universal foi estabelecida como uma masculinidade branca. E quando você tem homens negros trazendo a masculinidade negra, que não é a da violência imposta, porque ser negro não é ser violento, ser negro é ser negro, ponto. Esse lugar que não é destituído da humanidade, um lugar em que a humanidade está ali, sendo expressada ou expressa, melhor dizendo, da melhor maneira, de uma maneira sofisticada, inteligente, doce, criativa, mas ao mesmo tempo muito forte, cheia de energia, isso pra mim é essencial até hoje. Então, tem algumas coisas que eu vi, que eu fui apresentado na minha adolescência, esses todos que eu citei, Earth, Wind & Fire, porra, ‘cara’, aqueles ‘caras’ todos com as roupas extravagantes, aquela coisa toda, ‘cara’, parece _____ aqui, sabe, mas com uma música cheia de energia, cheia de potência. Stevie Wonder. A minha adolescência e a minha vida adulta, até hoje, é tomada por esses homens e mulheres também, mas a música foi muito importante, foi um lugar que eu achei pra mim, na adolescência, que era um lugar de encontro. O adolescente, acho que a maior dificuldade é um lugar de encontro. Pra mim, foi a música. Foi um negócio tão importante pra mim, foi vivido com tanta intensidade que depois, quando eu desisti de executar a música, pra mim é tranquilo, as pessoas me perguntam: “Você não sente falta?” Não, eu não sinto falta de tocar. Eu toquei muito tempo. Eu estudei, me dediquei. Aí, gente, acabou. Eu costumo, a figura que eu gosto de usar é aquela do Forrest Gump, que ele corre, corre, corre, corre, corre o país inteiro, faz um monte de coisa por conta da corrida, aí quando acaba: “É, gente, acabou. Está bom, eu vou fazer outra coisa. Vocês, voltem para casa de vocês”. (risos) A música, para mim, o exercício da música, para mim, foi muito isso: um lugar de encontro, de autoconhecimento, de amadurecimento, autoestima. Aquela timidez natural da adolescência eu podia, ali, de alguma forma, extravasar. E é isso. Fiz amigos para vida toda, gente que eu conheci tocando, que continua lá, tocando e eu vou lá assistir. Entendeu? Eu sou muito feliz por ter tido essa oportunidade, agradeço demais aos meus pais, que acreditaram, mas vivi, foi muito bom, acabou. E a música, agora, é o meu invólucro. Onde eu estou eu faço a maior parte do tempo da vida ouvindo música. E como diz a minha filha: “Você ouve muita gente morta, pai”. Eu falei: “Pois é. Eles estão vivos aí, na música” (risos) e é isso. Michael Jackson, James Brown, Prince. Eu tenho uma polêmica, porque eu acho que o Prince é maior do que Michael Jackson, mas ninguém está preparado para essa discussão, mas eu amo os dois. (risos)
P/1 – E logo depois que você saiu - você foi para o início da sua vida adulta - do Cefet, estava estagiando e daí, como foi? Começou a trabalhar, ou você foi direto para faculdade? Como foi esse processo?
R – Aí o pacto com o ‘seu’ Daniel Fernandes foi: “Pai, eu preciso fazer o pré-vestibular, porque eu não vou conseguir passar pra uma universidade pública”, ele falou: “Eu prefiro pagar o pré-vestibular do que a universidade, não tenho dinheiro pra pagar universidade para você, nem para sua irmã”. Aí eu fiz pré-vestibular e fui pra UFF e ‘cara’, de novo: eu sou um ‘cara’ privilegiado, minha família ‘segurou muito a minha onda’ e aí então eu entrei na universidade, que também foi um choque pra mim. Tanto choque positivo, quanto negativo. O positivo está muito atrelado a isso, de novo: um novo momento, conhecer outras pessoas. O choque não é só financeiro, econômico, porque eu achava que eu estava ali, no meio. Tinha gente que tinha muita dificuldade, que abandonou, porque não tinha como ‘segurar a onda’ de ficar o dia todo numa faculdade e tinha gente que tinha muito mais ‘grana’ que eu, família com muito mais possibilidade econômica do que a minha e eu transitando ali, naquele circuito todo. E foi quando eu conheci, comecei a detectar o racismo institucional, porque assim: eu não via demonstrações racistas acintosas, de colegas, mas eu via de alguns professores e da instituição. Quando você olha e fala: “ ‘Cara’, não tem ninguém aqui. Tem aquele lá, aquele outro”. É um ‘deserto’ da diversidade. Pelo menos, você fazer faculdade nos anos 1990, era isso, sem a menor sombra de dúvida. Mas foi um momento precioso da minha vida, fiz amigos pra vida toda também, nesse contexto, gente queridíssima. É isso: amigos. Aprendi muito, demais, sou muito grato à universidade, sempre que posso tenho contato com a universidade, que eu digo a Escola de Engenharia da Universidade Federal Fluminense, porque foi lá a plataforma de conhecimento que me proporcionou estar onde eu estou, entendeu?
P/1 – E o que te levou a cursar Engenharia, nessa época?
R – Fazer Engenharia foi quase que uma ‘onda’, porque o pessoal que fazia Engenharia no Cefet, Construção Civil, escola técnica, são seis cursos técnicos no Cefet. Eram, na época. Mas o pessoal lá de Construção Civil, via de regra, ou ia para Engenharia Civil ou para estradas. Desculpa, para Arquitetura. O curso de Construção Civil no Cefet era dividido, não sei como é, em duas linhas: a construção, edificações e estrada. Essa ‘galera’, independente de fazer Edificações ou estrada, iam fazer Arquitetura ou Engenharia Civil depois. Eu falei: “Eu quero fazer Engenharia, mas eu quero achar uma engenharia que não seja civil”, porque a Engenharia Civil, a Construção Civil no Brasil estava num momento muito difícil, no final dos anos 1980. Então, a gente olhava aquilo com certa desconfiança. E aí eu falei: “Eu quero Engenharia, porque eu entendo que é uma carreira que te ‘abre portas’ em vários outros segmentos. O ‘cara’ que é engenheiro vai trabalhar - eu pelo menos acho assim – em qualquer lugar. Porque a gente tem, lá, uma série de disciplinas que conseguem te dar uma visão ampliada do mundo. Se você quiser, também tem isso. Se você tiver uma bola, você pode furar a bola. Aí foi quando veio o boom da Engenharia de Produção, no Brasil. Aí eu comecei a ler sobre Engenharia de Produção. Falei: “É isso que eu quero”, porque a Engenharia de Produção continua sendo Engenharia - por mais piadinhas que façam, que o pessoal da produção chama de engenheiro de obras prontas – mas é uma Engenharia que aponta pro futuro, porque são os métodos, os processos produtivos. Em qualquer coisa você tem um processo produtivo. Essa nossa entrevista vai ser, no final, o produto final, já diz: produto. Ela vem de um processo produtivo. Entender esses processos, saber mapeá-los e melhorá-los, eu adoro esse negócio. É isso aí que eu vou fazer. E foi assim que eu parei na Engenharia de Produção. E eu tive um surto no meio da faculdade, porque eu amo carros, acho carro um ‘negócio do caramba’. Os politicamente correto aí, antipoluição, eu também sou antipoluição, eu acho que o que polui não é o carro, é o carro mal cuidado, é outra discussão, que a gente está na moda dos carros elétricos e eu queria entender o que vão fazer com o processo produtivo das células elétricas, de bateria, como vão fazer depois o descarte. A chance de poluir muito mais do que um carro moderno, que você recicla 80% dele e 70% do carro elétrico são as baterias que você não sabe o que fazer com elas, depois. Aí é ‘papo’ de engenheiro, né? Mas são questionamentos que ninguém ainda respondeu, então eu ainda prefiro o carro de combustão interna e você escolhe que tipo de combustível você quer usar: de fonte renovável, se os carros têm tecnologia para poder, cada vez, despejar menos CO 2. Então, se transportes elétricos devem ser de massa, coletivos. Então, assim: o que você vai fazer com todas essas opções que você tem? E aí, em determinado momento, eu achei: “Eu vou fazer Engenharia Mecânica”. Saí da engenharia do caminhozinho, de produção e fui fazer as matérias de Mecânica, achei um ‘saco’, falei: “Vou voltar pra Engenharia de Produção”. Aí voltei e aí foi só alegria. E é isso. (risos)
P/1 – E você fez algum estágio, nessa época? Como estava a parte de trabalho?
R – Fiz. Aí eu fiz um estágio. Eu tinha uma matéria chamada Estudos do Desenvolvimento do Tempo. Não sei se você já ouviu falar nessa disciplina, mas provavelmente, nem todo mundo que vai ouvir essa nossa história, nossa conversa aqui, já ouviu. Estudos do Desenvolvimento do Tempo eu costumo usar o filme do Chaplin, lá, todo mundo fazendo uma partezinha de alguma coisa, de um processo. Então, você estuda todos os processos produtivos, corta todas as fases desse processo em pequenas partes, tenta entender essas partes, melhorá-las, ou até tirar, se for necessário, para que aquele processo como um todo se torne mais eficiente. Entendeu? É isso. Os movimentos e tempo. Então, você tem movimentos e tempos quando você se arruma para ir trabalhar: Marquei de encontrar algum amigo, para tomar um chopp. Então, o que eu tenho que fazer? Eu vou lá, escolho uma roupa, separo a roupa, tomo um banho e tal, escovo os dentes, saio de casa, fecho a casa, todo esse processo até chegar no seu amigo tem lá várias fases. O que eu posso fazer, para ser mais eficiente? Levar menos tempo e chegar mais arrumado, sei lá. Chegar sem pressa. Tudo isso. É um exemplo. A vida toda está cheia de movimentos e tempos. Nós somos movimentos e tempos. E tinha um trabalho nessa disciplina que eu tinha que ir para algum lugar que tivesse um processo produtivo e eu tinha que estudar esse processo e propor melhoria. Maravilha! Fui pra uma fábrica de bolsas aqui no Rio de Janeiro, tinha uma grande amiga minha que trabalhava lá, eu falei: “Pô, preciso fazer um trabalho para a faculdade, deixa eu ir lá. Trabalho de grupo, mas eu controlo o pessoal, a gente não vai atrapalhar, a gente só quer...” “Não, claro, pode, eu vou falar lá com o diretor”. Beleza. Aí: “Não, vamos sim, tal, beleza”. Aí deixaram, a gente marcou uma entrevista que a primeira fase era apresentação da empresa, entrevista com o diretor responsável pela produção, aquela coisa toda, beleza. Fomos lá, aí quando a gente se apresentou, falou o nome do professor, o diretor falou assim: “Para, esse ‘cara’ foi meu estagiário. Manda um abraço pra ele”. (risos) Foi assim. Aí eu cheguei na apresentação, a gente: “Olha, a gente vai fazer no lugar tal, a pessoa lá...”, aí o professor: “O quê?” “É, ele mandou um abraço pra você, inclusive” “Ele foi meu chefe”. Aí as coisas começaram a se ‘azeitar’, o trabalho foi ótimo, a gente apresentou lá para eles, depois e aí me ofereceram uma vaga de estágio. Eu fiquei assim: “‘Cara’, claro, eu preciso trabalhar”. (risos) E aí eu fui estagiário, nessa fábrica, um bom tempo. E aí, quando foi no finalzinho de 1999, eu falei: “ ‘Cara’, eu queria fazer estágio em alguma outra área e tudo”. Foi quando ‘pintou’ uma oportunidade de fazer um estágio numa grande empresa de telemarketing que tinha aqui no Rio de Janeiro, na área de Qualidade. Puxa, e eu estava estudando coisas de Qualidade no finalzinho, ‘casava’ muito. Aí eu fui pra essa empresa também, trabalhar na área de Qualidade. Foi quando eu aprendi muito sobre processo de certificação ISO, aquela coisa de escrever procedimento, fazer auditoria interna, tudo isso aprendi nessa época. Foi ótimo o aprendizado e... olha isso! Lá eu conheci a estagiária que, vinte anos depois, se tornou a minha companheira. É, a gente se conheceu, se viu, era muito amiguinha minha, legalzinha, coleguinha, naquela época, depois a gente não se viu mais, só num intervalo, treze anos depois. Treze anos? Não, seis anos depois. Depois ficamos um tempão sem se ver. E aí, quando encontrou, ‘borboletas voaram nos estômagos’. (risos) Mas digamos que a segunda metade da faculdade, em diante, eu me ‘virava’. O que aconteceu foi o seguinte: uma fábrica de bolsas, então eles tinham lá uma loja de fábrica. Aí eu perguntei: “Como faz pra vender essas bolsas aí?” Aí: “Não, você pode pegar em consignação e vender”. ‘Cara’, falei: “Opa!” Aí eu chegava com o carro do meu pai lá, abria a mala e ‘botava’ um monte de coisa em consignação. Aí era muito engraçado, porque eu saía em um monte de salão, vendendo bolsa; escritórios que as minhas colegas de faculdade faziam estágio, nas empresas; dentro da faculdade. Eu vendi bolsa para muita gente, mala executiva, bolsa de viagem, mochila, eu vendia de tudo. Carteira, tudo que você imaginar, de couro, que a fábrica fazia e eram de coleções antigas, eu vendia a um precinho bacana para todo mundo. Eu ‘fazia mais dinheiro’ que o estágio mesmo, entendeu? E fui me ‘virando’, fui fazendo coisa, fui vivendo a vida. Foi assim.
P/1 – E daí, quando você saiu da faculdade, como é que foi o seu primeiro emprego, de fato? Como foi esse processo? Me conta um pouco como foi essa trajetória.
R – Eu me formei em 2000. É, foi bem tarde, já, porque teve Cefet, pré-vestibular depois, isso tudo foi atrasando, mas terminei em 2000. Quando foi outubro de 2000... não, quando foi agosto de 2000, a minha chefe falou assim pra mim: “Eu quero te efetivar. O que você acha da ideia?” Eu falei: “Eu acho ótima, mas não posso” “Por que você não pode?” Eu falei: “Olha, eu preciso terminar a minha faculdade e, no próximo período, eu vou pegar tudo que falta e vou terminar. Quando acabar o período, eu já vou ter fechado tudo, a gente conversa de novo”. Ela: “Tá bom, beleza”. Quando foi em setembro a empresa foi vendida. É isso? Setembro? Não. Julho, quando foi em agosto a empresa foi vendida. Quando foi outubro, eles mandaram todos os estagiários embora. Tem até uma história curiosa, porque a Marcele, que é a minha companheira, era estagiária do RH e ela ficou sabendo disso depois de mim e eu fui falar com ela como se ela já soubesse. E ela dependia muito daquela ‘grana’. Muito. Ela ficou desesperada. Eu não sabia desse detalhe. Mas ela conseguiu ficar lá durante mais um tempo, fazendo trabalhos como ‘freela’, lá. E aí eu pensei: “Caramba, eu estava com a ‘faca e o queijo na mão’ lá atrás, esperei e em dois, três meses a situação mudou completamente. E agora? Foi quando veio a oportunidade, por intermédio de um colega de faculdade, que já tinha se formado, de participar de um processo seletivo pro Banco Itaú, eles estavam selecionando trainees, pro segmento Personnalité. Só que naquela época o Personnalité não era nada. Eles estavam formando gente, porque o Itaú estava entrando nesse segmento e estava ali, construindo. Tinham comprado o Banco Francês e Brasileiro e estavam ali, trabalhando aquela carteira de clientes do Banco Francês e Brasileiro e queriam captar clientes desse mercado, que eles chamavam, à época, de nível marketing, dessa ‘galera’ que tem uma renda um pouco melhor, bem melhor, inclusive, que a média da população brasileira, mas ainda não é o mercado Private. É aquele pessoal ali. E aí eles estavam formando turmas de trainees, programas de trainees bacana, seis meses em São Paulo, o treinamento e eu fiz o processo seletivo e entrei. Foi aí. Eu saí da faculdade já empregado. Foi um processo ‘duro’, em várias fases e tudo. E aí, de novo: o único preto do negócio, aquela coisa toda, mas foi o que me deu: “Caramba, saí da faculdade empregado. Pô, glória a Deus!” E aí a gente pôde pensar para o futuro. Foi assim, esse processo. Eu não saí da faculdade e fui pra aquela coisa: “Caramba!” Porque foi uma dificuldade muito grande para eu conseguir o estágio. É uma coisa que precisa se ressaltar. Em muitos momentos eu me vi mais preparado do que os concorrentes, mas essa coisa: ser negro, morar no subúrbio e tudo me tirou de muitas oportunidades. Eu tenho plena certeza disso. Não adianta me dizer: ‘Não, o que é isso, Alexon, não”, que foi, a gente sabe que isso acontece até hoje. Eu não sou consultor de Diversidade e Inclusão à toa. Eu sou fruto da minha história. E eu não digo isso com nenhum rancor, com raiva, com nada, mas é uma constatação de: “Poxa, o mercado, se ‘fecha porta’ hoje, imagina como era há vinte, trinta anos!” Os processos seletivos que você se via numa situação: “‘Cara’, pô, por que eu não entrei?” e você não tinha uma resposta que fosse: “Não entrei por isso, por isso, por isso”, então a gente já percebia que as coisas não estavam nada legais para o nosso lado, não eram nada legais. E eu consegui entrar numa das maiores instituições financeiras do país, num processo seletivo que foi ‘duríssimo’, no finalzinho da faculdade, já com carteira assinada, todos os direitos, bônus, poxa, foi uma alegria, né? Pra família. E é bem interessante, porque a minha mãe tinha morrido em 1999, a família ainda estava muito desgastada, muito combalida e aí veio uma sucessão de acontecimentos bacanas, que foi eu terminar a faculdade, eu consegui esse emprego bacana e tudo, então aqui, a casa, ficou alegrinha. Não foi só conseguir um emprego antes de terminar a faculdade e poder seguir, foi também essa coisa do: “Puxa, ‘cara’, nossa vida está ‘andando’, coisas boas estão acontecendo”.
P/1 – E como foi esse momento meio agridoce, de ter perdido a sua mãe e ter conseguido entrar de trainee, no Itaú? Como é que foi esse momento?
R – É, primeiro a gente precisa falar da morte da minha mãe. ‘Cara’, a minha mãe morreu dois dias antes do meu aniversário. Minha mãe saiu de casa num sábado, dia 26, pela manhã, para fazer uma cirurgia, uma histerectomia. Já tinha sessenta anos, 62 anos, ia fazer 62 anos. Então, aqueles problemas de aderência e tudo e essa cirurgia gerou um trombo na região do endométrio. E quando tiraram a sonda dela, no domingo, ela levantou e se sentiu muito mal. Ou seja, o trombo subiu e foi para o pulmão, fez uma embolia pulmonar e morreu. Foi muito doloroso. Eu e meu pai estávamos no hospital. Foi um negócio de dez minutos. É muito rápido. Foi muito rápido. E a neta da pintora desse quadro aqui estava comigo lá, era minha namorada à época, a mãe dela também estava, mas foi pavoroso para todos nós, foi muito triste. A minha irmã sofreu demais, porque minha irmã era muuuuito apegada à minha mãe. Para a gente foi muito ‘duro’ seguir. O ano de 1999 foi, enquanto família, o pior ano de nossas vidas, porque foi um ano de muito sofrimento, porque a gente nunca quer a morte de ninguém, principalmente de uma pessoa querida. E quando é de repente, inesperado, é uma coisa muito louca. Minha mãe falou assim: “Eu vou fazer a cirurgia, a recuperação é rápida. Se tudo correr bem, daqui a dois dias eu estou de volta e ainda vou fazer um bolo para o seu aniversário”. Ainda falou assim. “Está maluca, mãe? Fazer bolo para o meu aniversário! Vai ter que ficar na cama, quieta. Nada de bolo, não” “Não, é coisa ‘mole’”. E ela falando isso durante a semana toda e fazendo comida. Tinha um freezer na casa, ela encheu aquele freezer de comida, a gente ficou quase um mês comendo comida da minha mãe, depois dela morta. Foi um negócio muito ‘duro’ pra gente. Eu tinha uma dificuldade muito grande de ficar sozinho em casa. Cada um sofreu de um jeito. A minha dificuldade era assim: tinha dias que eu voltava da faculdade e só tinha ela em casa. Eu não voltava da faculdade, simples assim, eu ficava ‘fazendo hora’ na rua, até saber que tinha gente em casa, para eu chegar em casa e ter gente. Até que teve um dia que eu ‘desabei’. Talvez, acho, que nem minha família sabe disso: teve um dia, uma sexta-feira à tarde, eu cheguei aqui, não tinha ninguém em casa e eu sempre chegava, eu sabia onde ela estava, ela sempre estava na cozinha, ali, terminando alguma coisa: “No final de semana eu quero ficar de bobeira” e era aquele momento, ali. Era um momentinho que eu tinha com ela. Uma hora, meia horinha, que aí depois chegava minha irmã, meu pai e foi isso. Foi muito ‘duro’ pra gente, pros meus amigos, pra família, essa família estendida que a gente chama. Para a igreja. A minha mãe morreu num domingo, dia de culto e a igreja estava cheia e a anunciaram a morte dela do púlpito. Foi um negócio assim... porque as primeiras pessoas que nós ligamos foram pessoas que estariam, estavam na igreja e muita gente recebeu a ligação na igreja. E anunciou, falou lá para o pastor, o pastor anunciou de púlpito. Foi uma comoção. Então, foi muito triste pra gente, muito mesmo. Foi assim: imagina uma mesa, alguém vai e arranca uma ‘perna’ da mesa, só que eu aprendi lá na matemática, álgebra, que três pontos são os que formam o plano. E eu, particularmente, me agarrei muito nisso, que ainda tem meu pai e minha irmã. Então, a gente precisa ficar junto e a gente ficou junto, mas tem uma coisa, eu fico até muito emocionado porque, se tem uma coisa que a gente conseguiu foi subsistir a isso tudo, foi resistir. A gente agradece muito a Deus e aos amigos, às pessoas próximas, mas os três ali, a gente ainda é muito unido, a gente se quer muito um ao outro, mas foi muito ‘duro’ pra gente. Foi muito ‘duro’. (choro) Eu lembro, eu fazia de tudo pra tentar dar uma normalidade para a vida. Na minha primeira tentativa eu me dei muito mal, que foi no dia do meu aniversário, eu levantei, me arrumei e fui pra faculdade. Meu pai falou: “O que é isso, ‘cara’? Não faça isso com você ""Não, eu vou, pai, eu preciso seguir”. Aí cheguei na faculdade, sentei e cinco minutos, ‘caí no choro’, não aguentei e vim embora, mas a gente conseguiu. É uma coisa assim que... tem que seguir. Aí, no ano seguinte, 2000, as coisas começaram a acontecer. Essa coisa do: “Caramba, a gente está ‘andando’, a vida está ‘andando’. Tem noite, mas tem dia também”.
P/1 – Alexon, me conta um pouco como foi esse trainee e como seguiu a sua trajetória profissional. Pode contar.
R – O processo trainee começou aqui no Rio de Janeiro, com as fases, lá, seletivas, eu perdi a conta, foram incontáveis fases, mas no final foram escolhidas doze pessoas. Acho que eram, não mais do que isso, aqui no Rio de Janeiro, que iam formar uma turma de trainees, com os que foram selecionados em São Paulo. Foi um processo muito interessante, porque primeiro que eu fui para São Paulo, eu podia voltar a cada quinze dias e era interessante, porque ia ser a primeira vez que eu ia ficar longe do meu pai e da minha irmã, depois da morte da minha mãe. Isso já tinha um ano e meio, mas a gente ainda estava ali. Beleza, foi a primeira e pra mim foi um pouco... esse afastamento foi um ‘refresco’, mas não: “Não aguento meu pai e minha irmã”. Não é isso. ‘Cara’, eu vou estar em um outro ambiente, vendo novas coisas, sem ter a necessidade de voltar pra mesma casa que minha mãe morava e a gente ainda estava se adaptando àquela rotina de: “E aí, como é que faz, sem ela?” Porque a presença da minha mãe é um negócio que até hoje tem, assim, sabe? De vez em quando a gente tem que... ‘cara’, mas já foi, né? Deixa ir. Até para as coisas funcionarem bem. Então, foi muito interessante. E São Paulo se apresentou uma São Paulo diferente pra mim, porque uma coisa é você ir como turista, outra coisa é você ir trabalhar. Eu ficava ali na Avenida Paulista. Tem um apart-hotel. Não é apart-hotel, é um hotel, mas que tinha lá um sistema de flat, chamado Wall Street Paulista. Você deve saber muito bem. Fica ali perto do Masp, na Rua Itapeva, se não me engano. E eu dividia o quarto com outro trainee. Era assim: dividíamos em duplas os quartos. Tanto os trainees, quanto as trainees. E esse ‘cara’ se tornou um amigo, um ‘cara’ querido pra caramba. E os ‘caras’ ali eram muito engraçados. A gente se fala até hoje. Aquele grupinho, os trainees, os ‘caras’. Eu não sei das moças, hoje senhoras, quase cinquentenárias, quanto eu. (risos) Mas isso é muito interessante, porque a gente firmou amizade ali, se ajudava, era engraçado. E nós, cariocas, não conhecíamos a cidade, aí tinha que pegar metrô, porque o nosso treinamento ficava ali, perto da Bolsa, num prédio antigo, ali, que eu não sei se era do Itaú ou do Francês e Brasileiro, mas ficava ali pertinho, no Centro Velho de São Paulo, aquela parte ali onde tem a Bovespa e tudo. Aí tinha que pegar um metrô, fazer uma baldeação numa outra estação e ir para lá. Todo dia isso, a gente vai aprendendo, vai entendendo uma São Paulo diferente. São Paulo, São Paulo mesmo. E pra mim foi muito interessante. E aí saber onde tem a coisa que é mais barata, onde o ‘cara’ vende uma pizza que é melhor. Aí eu fui entender que tem pizza em São Paulo que não tem queijo. Aqui todas as pizzas do Rio de Janeiro têm queijo. (risos) Aí foi um momento de muito aprendizado, conhecer gente nova e essa coisa de procedimentos bancários, entender como funciona uma instituição gigantesca como o Itaú, a quantidade de gente que emprega, que está ali, fazendo um montão de coisas. E, assim, a coisa que mais me marcou foi: o brasileiro precisa, de uma vez por todas, eliminar da sua mente, da sua subjetividade, o ‘complexo de vira-lata’, porque um país que tem uma instituição, empresa como o Itaú... eu não vou falar de outros bancos, mas devem ser tão incipientes, em termos de procedimentos, de entrega de serviço, de capacidade e desenvolvimento de produtos e serviços, de talento, que a gente não deve ter em lugar nenhum do mundo. Não deve. O brasileiro tem que começar a olhar para si com orgulho das coisas que cria aqui dentro, das coisas que faz aqui dentro. Não é desmerecer o que vem de fora, mas é merecer, dar mérito o que é feito aqui dentro, sabe? Em termos de tecnologia, de gente pensando coisas interessantes, produtos interessantes. O próprio processo de formação de pessoas, de talentos. Gente, o Brasil é tão capaz quanto qualquer outro lugar do mundo. O brasileiro precisa ter mais orgulho das coisas que são feitas aqui dentro. Engraçado que eu precisei ir para o mercado bancário, para poder entender isso com tanta evidência na minha frente, assim. Talvez seja a lição mais bacana que eu trouxe pra vida: ‘cara’, eu conheci o Itaú, uma partezinha do Itaú, por dentro, já me deu motivo de ser orgulhoso das coisas que o Brasil faz aqui, em termos de entregas de produtos, serviços e sistema bancário. Eu não estou aqui discutindo outras coisas que se discute, sobre modelos financeiros e bancários. Não estou discutindo isso. Estou discutindo a qualidade com que as coisas são feitas dentro de uma instituição brasileira. O Itaú é um banco que se internacionalizou, mas é um banco, como outros tantos, que tem no Brasil. Eu acho que é uma coisa que o mercado bancário, o mercado financeiro brasileiro tem que ser aplaudido, porque os procedimentos, como as coisas são desenvolvidas dentro pelas pessoas, pelos brasileiros, é algo excepcional. E aí voltei pro Rio de Janeiro no finalzinho... em definitivo, porque era assim: você passava um tempo em treinamento e vinha para o Rio, passava um tempo em treinamento e vinha para o Rio tentar se ambientar, se amoldar ali ao dia a dia de um banco, mesmo: ligar para cliente, resolver problema, captar investimento, trazer o ‘cara’ que tem uma conta no concorrente, pra ‘dentro’ e tudo e beleza, eu comecei com essa rotina. Mas em determinado momento eu fiquei assim: “‘Cara’, é isso mesmo que eu quero, trabalhar em banco? Eu acho que não. Não é isso que eu quero, não” e comecei a olhar e recém-formado, naquela época, ainda deve ser assim, é igual um bando de suricatos: um levanta o negócio, todos levantam juntos e começam a olhar. Foi quando eu recebi um e-mail. A gente tinha uma lista de e-mails, nós estamos falando de 2001. Então, não existia whatsapp, grupo de whatsapp, nem rede social existia. A gente tinha uma lista de e-mails e as pessoas ficavam colocando coisas interessantes naqueles e-mails lá e mandavam para as pessoas. Surgiu a possibilidade de um processo seletivo para Repsol, a petroleira espanhola, que à época se chamava Repsol YPF, que tinha comprado a YPF, a petroleira argentina e estava chegando na América do Sul com tudo e tinha lá um processo seletivo, para Analista de Planejamento e Gestão Júnior. Era essa a vaga. Falei: “Vou participar desse processo, vamos ver o que Deus quer”. Eu entrei, fiz todo o processo lá, entrei na Repsol YPF, que foi também a minha grande escola profissional. Eu trabalhei em outros lugares, tanto na iniciativa privada, quanto na administração pública, mas ali foi a escola. Por quê? Porque, diferentemente do setor que eu estava, no banco, eu não via a empresa toda. A Repsol tinha um tamanho... ela não era pequena, mas também não era grande demais, ao ponto de você não ver tudo que podia acontecer ali dentro. Eu entrei nesse momento na Repsol. Então, ela já tinha uma história no Brasil, mas estava vindo gente da Espanha, da Argentina, do Peru, de tudo que é ‘canto’, pro Brasil, pra trabalhar e desenvolver o projeto da Repsol no Brasil, os projetos da Repsol no Brasil. E foi ótimo, porque eu entrei numa área em que eu via a empresa pelos números. A área de Planejamento e Controle de Gestão era uma área que cuidava de todo planejamento e depois fazia todo o controle da execução daquele planejamento, em todas as áreas da empresa, todas as linhas de negócio e tudo. Era muito bacana. E eu fui também, porque lá atrás, aquela coisa de ser estagiário da área de Qualidade, a Repsol estava no seu processo de certificação aqui no Brasil, então o fato de eu entender do processo de certificação, ISO e tal, me ajudou, foi um diferencial e eu, lá também, era multiplicador interno, fui auditor interno, no processo de certificação da Repsol. Foi ótimo pra mim, também e aí acaba que eu também conheço outras áreas da empresa, ali, conversando com as pessoas, vendo procedimentos e tudo. Maravilha! E a equipe era muito legal, a chefe que eu tinha era uma pessoa muito bacana e tudo, aí depois ela foi morar na Austrália, recebeu uma proposta pra Austrália. A pessoa que ficou no lugar dela está na empresa até hoje, está na Repsol até hoje, só que agora é gerente de RH. E você vê como as carreiras fazem essas transições: uma pessoa que era da área de planejamento foi para RH e está lá há um tempão, super bem-sucedida. E aí eu conheci muita gente também, que fiz amizade, que eu tenho contato até hoje, tenho parcerias profissionais até hoje e foi muito bacana, porque aí, em determinado momento, eu falei: “Bom, quero agora ir pra uma linha de negócios”. Teve a oportunidade de eu ir pra distribuidora. E trabalhei em dois momentos, três momentos, na distribuidora. No primeiro momento eu trabalhei como uma espécie de back office da área comercial, a venda de varejo, os postos de combustível. E aí eu peguei todo aquele conhecimento já acumulado e tentei estruturar algumas coisas, eu era o ‘cara’ do ‘desenrolo’, que ‘desenrolava’ as coisas, pra força de vendas, que era voltada, não está dentro da empresa, está nos clientes, então era o ‘cara’ que fazia a ‘ponte’ com o resto da empresa. Fui esse ‘cara’. E aí teve uma reestruturação na Repsol, que a minha função acabou, acabaram com a minha função. Eu fiquei desesperado, mas eu não podia demonstrar o desespero, porque senão isso podia (risos) ‘depor contra mim’, diante de uma ‘galera’ nova que estava chegando. Diretor novo, que trouxe pra lá pessoas que ele achava que deveria trazer e tudo. Foi quando a Repsol decidiu fazer uma decoração na sua rede de postos e eu fui escalado para fazer o trabalho aqui no Rio de Janeiro. Na verdade, eu fui promovido, porque aí eu fui como representante comercial e àquela época representante comercial ganhava um carro, aumento de salário, tinha lá uns 30% de periculosidade, porque ia para posto de gasolina, um monte de coisa. Quando eu vi, estava com um upgrade na minha carreira, com um projeto dificílimo, que é você chegar pra uma parte da rede de postos e falar: “Olha, a Repsol não quer mais você. Eu sei que você também não quer a Repsol, mas...” é igual namoro: tu está a fim de terminar e vem o ‘cara’ e termina contigo. Aí: “Pô, mas era isso que eu queria, eu já vim aqui falando um monte de coisa e tudo, nem deu tempo de eu ‘lavar minha roupa"'. E era mais ou menos isso. Em algumas situações era ótimo, porque era isso, muito como fim de relacionamento mesmo. Em algumas situações: “Também estou vendo que não é, não está legal pra mim em algumas partes, então vamos encerrar o nosso relacionamento comercial aqui, está ótimo, cada um segue seu caminho”. Outros eram um pouco mais complicados porque queriam, de alguma forma, ter algum tipo de compensação pelo fim do contrato e tinha casos que ali só mesmo contencioso jurídico. Não tinha jeito. Então, eu fui fazendo, esse trabalho durou mais ou menos um ano e meio. Nesse ínterim, a mãe da minha filha fica grávida. O meu primeiro casamento. Minha filha nasceu e eu nessa correria toda, deu tudo certo. Depois eu fiquei como um representante comercial mesmo, cuidando da rede, já com mais dois ‘caras’, aqui no Rio de Janeiro, não era um projeto específico, mais e aí a Repsol mandou embora uma ‘cacetada’ de gente, porque ela já estava num momento de desinvestimento aqui no Brasil e nessa eu fui. Eu não esperava. Eu sabia que algo ia acontecer, mas eu não esperava que aconteceria comigo. Mas tudo bem, a Repsol foi super bacana com essa ‘galera’ que ela mandou embora. Eu sou muito grato à empresa que eu trabalhei, mesmo ela me mandando embora, porque eles foram muito cuidadosos comigo, numa série de coisas. Então, sabe aquele negócio assim: minha história é igual a bateria lá, acabou minha história aqui, está tudo bem, vamos em frente. Eu aproveitei pra fazer uma cirurgia grande, que eu precisava fazer. Aí, quando eu me recuperei, eu recebi um convite pra trabalhar em São Paulo, numa distribuidora. Fui para São Paulo. Quando eu cheguei em São Paulo, a coisa ficou completamente diferente, mudou muito o planejado lá, a pessoa que me levou pra lá ficou extremamente desprestigiada naquele ambiente e eu me vi sozinho, mas não totalmente. Por quê? Nesse processo aqui da Repsol, aqui no Rio de Janeiro, ela contratou muita gente em outros lugares do Brasil, em especial um ‘cara’ que tinha que fazer a mesma coisa que eu estava fazendo, no interior de São Paulo. E pela complexidade da atividade eu o ajudei muito, porque eu já estava fazendo, então eu ajudava: “’Cara’, faz assim, vai por ali, faz assim, faz ‘assado’” e ele, dessa vez, me ajudou, porque ele era um gerente com muita moral dentro dessa empresa e ele falou: “Esse ‘cara’ aqui é excepcional”. A frase que ele usou é a seguinte: “Eu dou um ‘cheque em branco’ pra ele. Não manda esse ‘cara’ embora. Vocês estão mandando o outro lá, que ele trouxe pra cá, embora, mas esse aqui eu garanto”. Ele falou assim. E aí me chamaram pra conversar. Foi quando eu pude me apresentar pros donos da empresa: “Eu sou isso, aquilo, faço assim, fiz ‘assado’, minha história é essa, minhas entregas profissionais foram essas” “Puxa, então a gente tem um projeto pra você”. Eu falo: “É, tem?” “Tem. Esse projeto é o seguinte: a gente quer que você...”... aí junta tudo: essa empresa tinha uma usina de biodiesel e aí a cadeia de biodiesel naquela época era deficitária, porque você tinha que vender pra um cliente só, que era a Petrobras, num leilão, o biodiesel, a um preço que era, sei lá, de uma latinha de óleo diesel e tinha que vender o biodiesel. Aquele óleo passar por todo um processo, depois aquilo virar biodiesel e vender ao mesmo preço que uma latinha de óleo. Não faz sentido. E aí, o que se faz? Vai atrás da cadeia. O que eu posso baratear, nas fases anteriores, para eu chegar competitivo nesse ponto aqui, do leilão? E eles tinham feito um contrato com uma fábrica, uma usina de moagem de caroço de algodão, numa cidade aí do interior de São Paulo, chamada Rancharia. Aí você imagina um ‘carioca da gema’ tendo que ir pra uma cidade de vinte mil habitantes, lá no interior de São Paulo, longe pra caramba de casa, da minha filha, mas eu fui, fiquei de fevereiro de 2008 até outubro de 2008 nessa. Eu pegava dois aviões e um carro pra chegar, para ir e pra voltar. Era assim. Foi um momento muito difícil pra mim, por uma série de coisas. Um momento bem difícil. Mas de muito aprendizado. Eu aprendi sobre a cadeia de biodiesel; agronegócio; energias alternativas; sobre o interior de São Paulo, sobre as pessoas, como é o interior de São Paulo; caos aéreo, (risos) porque naquela época aprendi o que é perder voo; não ver coisas importantes de filho. A minha filha tinha dois anos, na época. Então, isso foi assim: festinha de Dia dos Pais na escola eu não poder estar. Isso foi muito complicado. Sobrecarregou muito a mãe da minha filha e é uma coisa que eu reconheço que poderia ter sido feito diferente, mas foi também um momento em que eu amadureci muito, tipo: “ ‘Cara, o que eu quero pra minha vida?” Aí voltei pro Rio, tive uma tentativa frustrada de ser headhunter. Deu muito errado. E aí eu fiquei seis meses desempregado. Eu quase enlouqueci, por uma série de razões. O casamento já estava em crise. Foi quando me veio uma proposta, que aí a gente vai fazer um outro ponto de inflexão na minha vida, que foi a proposta pra eu ‘tocar’ um projeto dentro do governo do estado do Rio de Janeiro, coisa que eu jamais imaginei fazer na minha vida, trabalhar na administração pública. Acabou que eu fiquei dez anos trabalhando na administração pública. A princípio esse projeto ia durar nove meses. Então, eu ia lá, era um projeto bastante ambicioso, que era a identificação biométrica de todas as pessoas que estavam na folha de pagamento do estado do Rio de Janeiro. Em 2009 era por volta de quatrocentas e cinquenta mil pessoas. Os servidores ativos, inativos e os pensionistas. Sendo que inativos e pensionistas não eram só do Poder Executivo do estado, era também do Poder Legislativo e do Poder Judiciário. Então, acaba que era um projeto que ia ‘conversar’ com as três instâncias do Poder Público dentro do estado do Rio de Janeiro, os três poderes, em todos os municípios do Rio de Janeiro. Era um projeto muito complexo que, no final, depois de todo mundo identificado, ia começar a distribuição de uma carteirinha funcional inteligente, que vinha com um chipzinho, aí as aplicações do governo: controle de acesso, de presença, validação de movimentação de funcionário, RH, então eram nove meses, que se tornaram quatro anos, mas que foram quatro anos riquíssimos, não de dinheiro, porque pô, funcionário público no Rio de Janeiro, ganha mal. Mas de aprendizado. Como eu aprendi, também! Aprendi sobre administração pública, fiz uma pós-graduação em Gestão Pública, aprendi muito sobre como funcionam as coisas dentro do estado, o que são os projetos estruturantes, porque o Rio de Janeiro está na situação que está, porque poderia estar melhor e não está, uma série de coisas. Aprendi muito. Mas tudo tem seu tempo também e aí foi quando eu recebi uma proposta, era a moda no Brasil os Jogos Olímpicos e Copa do Mundo e a prefeitura do Rio de Janeiro criou uma empresa de proposta específica, que era Empresa Olímpica Municipal, que tinha data pra acabar, que era o dia 31 de dezembro de 2016. Missão dessa empresa: ‘tocar’ os projetos na prefeitura pros Jogos Olímpicos, que são o esforço de todos os entes federativos, então do governo federal, estadual e municipal. No que tange ao esforço do governo municipal, a prefeitura decidiu criar uma empresa que fosse um escritório de projeto, para ‘tocar’ todos esses projetos. E aí eu fui pra área de projetos novamente. Na verdade, eu não saí da área de projetos. Só que antes eu era o ‘cara’ que ‘tocava’ o projeto, dessa vez eu era o ‘cara’ que analisava os projetos. Tinha uma equipe lá de pessoas, que faziam ali não vou dizer o controle, mas o acompanhamento desses projetos, visando a obediência no cronograma, porque Olimpíada é aquilo: você não adia uma Olimpíada. Se ela diz que vai começar no dia, sei lá, 10 de agosto, ela vai começar no dia 10 de agosto. Não tem jeito. Então, foi também muito bacana, porque eu conheci a Prefeitura do Rio de Janeiro. Aí de novo eu vou voltar na questão do ‘vira-lata’, só que eu vou fazer aí uma emulação, sampler para a administração pública brasileira: o brasileiro precisa olhar melhor para os seus servidores públicos. Durante um tempo muito grande, a gente está vivendo esse tempo, inclusive, existe um desenho, uma caricatura do serviço público, do servidor público, principalmente, que é, como eu disse, uma caricatura. Existe muita gente competente, que pensa serviço público de qualidade para as pessoas, que pensa as cidades e estados de uma maneira bastante positiva, que só quer oportunidade de poder entregar isso. A Empresa Olímpica Municipal, o esforço olímpico do Rio de Janeiro mostrou muito dessa ‘galera’. E eu aqui não estou discutindo se vale a pena ou não ter olimpíada na sua cidade. Eu estou dizendo o seguinte: quando essas pessoas estão motivadas para um esforço, quando elas sabem que aquilo que elas estão fazendo vai ter uma entrega, essas pessoas se tornam o que há de melhor dentro do funcionalismo público brasileiro. Porque, na verdade, elas são também o que havia de melhor no funcionalismo público do Rio de Janeiro. Então, eu conheci muita gente muito bacana, muito inteligente, muito preparada, muito capaz e direcionada para entrega. O serviço público brasileiro é uma _______, é uma questão que é muito interessante da gente pensar, porque tem gente boa, competente, que precisa ser valorizada, ter treinamento, preparação contínua e perspectiva de entrega. As pessoas querem entregar serviços públicos. Fica aqui a minha homenagem aos servidores públicos com quem eu trabalhei. Quando foi no finalzinho de 2014 eu recebi uma proposta pra voltar pro governo do estado e aí, talvez, começar um outro ponto de inflexão na minha vida, que foi um dos mais importantes na minha trajetória, que foi o seguinte: o convite foi para eu ocupar o cargo de Coordenador Geral de um programa chamado, o nome técnico dele, Programa de Inclusão Social e Produtiva de Jovens no estado do Rio de Janeiro. Nome fantasia: Programa Caminho Melhor Jovem. E o que consistia esse programa? Era resultado de uma parceria entre o governo do estado do Rio de Janeiro e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, o BID. O BID fez um empréstimo de 60 milhões de dólares para o governo do estado e o governo do estado daria contrapartidas no valor de 25 milhões de dólares. Então, estamos falando de um montante de 85 milhões de dólares para aplicação nesse programa, que tinha três ‘patas’, vamos dizer assim. A primeira era o atendimento individual aos jovens nas favelas do Rio de Janeiro, que tinham as UPPs. Os motivos pelos quais foram escolhidas as UPPs não quero questionar. A política das UPPs eu também não quero questionar, mas o objetivo desse programa era espetacular: você fazer um atendimento individual ou individualizado com aquele jovem, na busca da construção com aquele jovem, de um plano de autonomia. O que era esse plano de autonomia? Um plano com metas de curto, médio e longo prazo, para que ele saísse daquela situação A e fosse para uma situação B, obviamente melhor do aquela situação. Então, se o objetivo do jovem era: “Eu quero ingressar na universidade, mas hoje eu não tenho, nem comecei o ensino médio”, então é óbvio que a gente não ia acompanhar o jovem até ele entrar na universidade, mas a gente podia, no tempo de atendimento dele, um ano, um ano e meio, encaminhá-lo, para que ele, por exemplo, chegasse no meio do ensino médio, ou estivesse no ensino médio. Em paralelo, nós tínhamos uma outra ‘pata’ ali, que era oferta de atividades que ‘conversassem’ com esse plano de autonomia: fruição, cursos com possibilidade de aprendizado profissionalizante, financiamento de projetos que ele pudesse desenvolver para sua comunidade. E uma terceira ‘pata’ era a formação de profissionais especializados nesse tipo de tecnologia social. Todo mundo ganhava. Quando eu cheguei nesse projeto ele já tinha dois anos, quase, de execução, de contrato, mas uma execução baixíssima. Não passava dos dois dígitos. Tanto financeira, quanto de atividade. E a minha missão era, nos próximos dois anos, fazer com que esse projeto ‘andasse’ - esse programa, na verdade, que era uma carteira de projetos - ao ponto de sentar-se novamente com o BID e fazer um shift desses dois anos que não tiveram nada, passar pra frente e terminar esse contrato. E a missão foi cumprida, a ‘trancos e barrancos’. Foi quando eu cheguei num dos maiores aprendizados, de como é difícil um homem negro estar numa posição de poder, porque era uma posição de muito poder. A gente está falando de muito dinheiro. A gente está falando de um orçamento maior do que de muitas secretarias do Rio de Janeiro. Era um projeto que, no seu ápice, empregou trezentas pessoas. É um projeto que dá exposição, se você quiser, inclusive política. É um projeto que está gastando dinheiro com gente preta, de favela e isso incomoda, você gastar muito dinheiro com gente preta, de favela, mas que não seja pintando quadra, ‘botando’ um refletor na quadra e inaugurar quadra que já tem 15 anos. Tentar buscar alguma coisa que tenha valor agregado para aquelas pessoas. Que faça com que eles, primeiro: entendam que eles são capazes e potentes para desenvolverem suas vidas com a sua plenitude e, por conta disso, você cria um outro tipo de mentalidade. Quando um jovem negro entende que ele tem possibilidade, que ele pode ter oportunidade e que isso está aqui, à disposição dele, ele começa a ver o mundo de uma outra forma, ele começa a questionar a sociedade de uma outra forma. Aí eu vou te dar dois exemplos, duas histórias muito marcantes, de como eu tinha que lidar com essas situações. A primeira delas foi assim, me veio a seguinte sugestão: “Vamos fazer um curso de cabeleireiro pras jovens, nas favelas”. Aí eu falei: “Não, eu sou contra” “Poxa, mas tem aquela empresa de cosméticos que está disposta a fazer o curso pra gente. Se eu conversar com eles, eles...” “Não, mas você não consegue um curso de finanças aplicadas ao negócio? Porque a tecnologia elas já têm, já dominam. Sempre alguma favela está cheia de gente fazendo cabelo do outro, tem salõezinhos lá, tem uma ‘galera’ que está trabalhando. Eles não precisam aprender a cortar cabelo, fazer tranças. Não precisa vir ninguém de fora. O que precisa de fora é o seguinte: como você mantém o seu negócio saudável e, a partir de um negócio saudável, se expande. Você gera receita, emprego, melhoria de vida não só pra você, mas para uma ‘galera’ enorme. Isso é mudar a realidade” “Pô, cara, você também complica as coisas!” Esse é um exemplo. O outro exemplo, e até mais chocante, foi que dentro de uma sala de um órgão público nos foi proposto a aplicação daquela cápsula de gel hormônio para as jovens do programa e: “Essas meninas de favela ‘transam’ muito. A gente não pode proibir ninguém de ‘transar’, mas a gente pode impedir de engravidar”. Isso uma profissional de Saúde falando. Então, a gente vê como o racismo estrutural funciona. E a minha resposta pra ela foi: “A senhora tem filha?” “Tenho” “Quantos anos têm as suas filhas?” Ela falou, estava mais ou menos na idade, eu falei: “As suas filhas devem ‘transar’ pra caramba também, né? A senhora já enfiou um negócio desse nelas? Ou a senhora tentou com elas e falou: ‘Filhinhas, se você não fizer assim, se você não cuidar, se você não tiver nenhum tipo de educação sexual, nenhum tipo de proteção, não é só a questão de engravidez não planejada, mas é também relacionado a questões de saúde, das doenças...’, aquilo que a gente já sabe, eu tive que falar. “Pois é, por que a senhora não me propõe o mesmo que a senhora faz com as suas filhas, com aquelas meninas negras da favela? É porque elas são negras de favela, eu sei, mas elas são tão humanas e tão cheias de expectativas como as suas filhas” e tive que encerrar a reunião, porque é esse tipo de coisa que acontece, sabe? Tem de tudo. Mas foi um programa muito bonito, conheci gente espetacular, eu tive acesso a uma realidade que aí eu volto a dizer: eu venho de um ‘ponto muito fora da curva’, que é o ponto que, desde criança, eu fui apresentado a possibilidades e aí eu me vejo em um lugar onde as pessoas não têm possibilidades, ou têm muito poucas possibilidades. E é um choque, mas eu sou tão negro quanto eles, entendeu? Isso, pra muitos, pode ser a razão de afastamento, de não entendimento enquanto homem negro brasileiro, com todas as consequências que o racismo estrutural nos traz, mas por ele ser estrutural, eu vejo, eu sinto, eu sou vitimado, não vitimizado, mas vitimado pelo racismo, de formas diferentes. Se o racismo se apresenta para essas pessoas, tirando as possibilidades delas, pra mim ele se apresentava com pessoas, através das possibilidades e oportunidades que eu tinha. Então, se o racismo faz com que um jovem dentro da sua casa tome uma bala perdida, na favela, comigo é gente me sabotando o tempo inteiro, como dizendo: “Esse lugar não é seu. Esse lugar do gestor, do formulador, do ‘cara’ que tem poder de mandar embora, de contratar, de assinar o relatório, ou de impedir alguma coisa de ‘andar’ ou não, não pode ser seu”. E se você chegar pra elas e perguntar: “Você fez isso ou está fazendo isso porque você é racista, ou por causa do racismo estrutural?” todas elas negarão. Por quê? Porque o racismo se apresenta em todos os espaços da sociedade. Eu acho que é importante esse tipo de alerta, de fala, por quê? Porque não interessa o lugar onde nós estamos, ou estivermos, o racismo se apresentará para nós seja lá onde estiver. Ele vai se apresentar para o jovem pobre, para a jovem negra e pobre, no momento em que ela for entrar numa portaria; no momento que a escola for ruim e ela não tiver possibilidade de ter um bom desempenho no Enem; no momento em que a polícia trata completamente diferente um jovem negro de um jovem branco, mesmo os dois sendo de classe média e estarem andando pela mesma rua, no mesmo horário, ele vai se apresentar também pra um ‘cara’ que está numa posição de direção, de liderança, de privilégio, queiram chamar como quiserem. Isso vai acontecer de uma forma muito contundente e, às vezes, até mais, porque naquele lugar existem mais pontos de contato, de sabotagem. O ‘cara’ pode sabotar a sua fala, o seu e-mail, atrasar o processo, recortar uma fala sua e tirar de contexto e espalhar aquilo. Pode se fazer, inclusive já aconteceu comigo: tinha uma ‘galera’ que tinha uma desconfiança tão grande no que eu estava fazendo, que achavam que eu estava escondendo informações, que se fez passar por minha secretária, para marcar uma reunião com uma interface minha e, chegando nessa reunião, a pessoa diria: “Eu estou aqui representando o Alexon, ele não pôde vir, mas ele me deu ‘carta branca’ para tratar o assunto com você”. Chegou um momento em que eu... eu sempre fui um ‘cara’ que nunca deleguei muito essas pequenas coisas. Então, se eu tenho que marcar uma reunião, eu não vou pedir pra uma secretária marcar, eu mandava um whatsapp e marcava. Já tinha whatsapp, naquela época, então eu mandava e marcava e está tudo certo, porque eu acho tão simples marcar uma reunião: “‘Cara’, vamos nos sentar, para resolver a coisa tal”, do que pedir uma secretária pra falar com outra secretária, não. Eu, pelo menos, não funciono assim. É capaz de eu ligar pra secretária do ‘cara’, então, se ele faz essa questão, eu ligo pra secretária dele, mas uma coisa, pra mim, que é tão natural, sempre foi. E aí a pessoa achou aquilo estranho: “O Alexon nunca ligou pra mim... nunca mandou ninguém marcar nada pra ele”. Aí a pessoa ligou: “Não, ‘cara’, desconsidera, não fui eu. Isso aí foi um ‘trote’’. Então, existem muitas maneiras de sabotar a pessoa: são as falas, as piadas. Eu tenho várias histórias pra contar, de coisas que são ditas em reunião, como se não tivesse uma pessoa negra ali. Uma vez eu estava numa reunião que a gente tinha um momento crucial. Isso em outro projeto. Sabe aquele momento assim? A gente está passando, terminando uma fase, vai passar pra outra, mas se essa aqui não for bem encerrada, a gente vai ter que lidar com outro tipo de problemas, na próxima fase. O ‘cara’ chamou esse monte de problemas na próxima fase assim: “Vamos tomar cuidado, senão nasce um filho preto e ninguém vai querer ser pai”. Eu falei: “Mas eu sou um filho preto, (risos) que história é essa?” “Não, eu falei brincando”. Eu falei: “Não, você não falou brincando. Você falou o que o seu coração está cheio” “Desculpa” “Pois é, ‘cara’, você tem que tomar cuidado com as suas falas”. Isso é uma coisa que é muito presente nesses ambientes corporativos em que vai sendo embranquecido, então esse tipo de fala se torna tão natural que quando vem alguém que não é tão embranquecido quanto, o comportamento continua. É muito grave esse tipo de atitude, porque assim: primeiro que traz aquela sensação de que: “O que tem?” E a consequência disso é que: um, a pessoa não se sente confortável com aquilo. Ela não se sentindo confortável, ela acha que não é parte daquilo. Se ela não é parte daquilo, ela vai se introjetando, introjetando, introjetando e daqui a pouco ela não está performando da maneira que gostaria ou deveria, porque ela está tímida, ela não quer falar, ela não se sente prestigiada, ou respeitada naquele ambiente, pronto, acabou. Você está aí, minando a carreira de uma pessoa negra. É muito perigoso esse tipo de situação. E foram coisas que eu vivi na minha vida. Mas, ao mesmo tempo, a beleza daquele programa, pra mim, era poder proporcionar, com o meu trabalho, da equipe que eu coordenava, tinha gente espetacular lá, uma nova leitura do que é a política pública pra juventude negra, nesse país. É possível fazer uma política pública de qualidade pra jovens negros, no Brasil, em pleno século XXI. Dá pra fazer. Existem recursos, pessoas, ideias, propostas que são muito, muito bacanas. Dá pra fazer. A beleza era essa. A pena foi que o Rio de Janeiro entrou naquela confusão toda de calamidade financeira e tudo e a gente perdeu o projeto, mesmo com o BID querendo continuar, mas era uma questão que dependia do governo federal para dar o aval e naquela situação toda, a gente não teve como conseguir. Agora, enquanto Alexon Justino Fernandes, foi um grande aprendizado sobre racismo estrutural, como ele opera, em suas várias instâncias, tanto na base da estrutura social, quanto nos lugares mais altos e isso me perpassando o tempo todo. Inclusive ao ponto de eu chegar e passar por muitos momentos da famosa crise do impostor: “Será que eu estou no lugar certo? Será que eu sou capaz de fazer isso tudo? Será que eu vou assumir algo que é muito maior que eu?” São coisas que passam pela vida de qualquer pessoa negra, que se vê numa situação de poder, porque são tantos ataques, de tantas formas, dos sutis até os mais frontais, que você: “Não é isso, está certo, eu estou entendendo tudo errado, não era nem pra estar aqui”, quando, na verdade, era sim pra você estar lá, quiçá até em lugares mais altos, mas é assim. O racismo estrutural se apresentou pra mim de várias formas. Foi uma leitura que eu tive, a possibilidade de uma leitura muito ampla, de como funciona o racismo estrutural no Brasil.
P/1 – Alexon, eu acho que o que eu queria perguntar pra você nesse momento tem muito a ver com o trabalho que você estava desenvolvendo um pouco antes da pandemia e eu queria saber como foi essa transição para consultoria e como você começou a lidar com o tema da diversidade e inclusão dentro do mercado de trabalho, já fazendo esse trabalho antes, de uma outra forma, na administração pública.
R – Pois é, por isso que eu falo que ali foi o momento da ‘troca de chave’ mesmo porque, se eu não fizer nada diante disso tudo que eu estou vendo, pra mim e até profissionalmente, no futuro, com tudo isso que eu estou aprendendo, vai ser um grande desperdício. O meu grande impulsionador naquele momento foi o desperdício, não posso desperdiçar essa chance, toda essa gama de conhecimento que eu estou recebendo aqui, muita informação. Eu preciso, em algum momento, estruturar isso e, a partir disso estruturado, trabalhar com isso. Já saí disso, com isso muito... e foi finalzinho de 2017. Então, foi bem antes da pandemia. E comecei a estudar, a ler, muito timidamente, porque uma coisa que ainda é muito incidente no Brasil é uma emenda de diversidade, equidade e inclusão. Ainda é muito incipiente. Hoje, se eu conversar com você, eu sei obviamente muito mais do que eu sabia há dois, três anos. Cinco anos atrás estamos falando. ‘Cara’, o tempo passa rápido! Tem que parar com esse negócio de dois, três anos, que já estamos em cinco. E eu sei muito mais, eu tenho muito mais fontes, eu tenho isso tudo muito mais arrumado mentalmente, no discurso, mais ações, nos projetos, entendeu? Mas lá atrás eu sabia de alguns autores, algumas coisas e tudo. Então, foi meio que, primeiro, um processo de ‘garimpo’, mesmo: “Como isso não tem, não está ainda tão estruturado, seja na Academia... o avanço, nos últimos anos, é absurdo, em termos de gerações de conhecimento sobre diversidade e inclusão da Academia brasileira é um negócio espetacular. Mas, ainda assim, pra quem está lá, muito ‘enfiado’ no mercado, era muito difícil, então eu lia alguma coisa, buscava alguma coisa. Quando foi em 2019, eu decidi: “Eu vou ser consultor”. Eu tinha o seguinte planejamento: “Eu vou ser consultor, trabalhar com projetos nas empresas, de gestão nas empresas”. Eu procurava principalmente empresas que, pra mim, seriam o ideal. Procurava, quando eu digo, é assim, o pensamento lá atrás: as empresas que tivessem projetos na administração pública, porque eu entendo que eu poderia fazer bem essa ‘ponte’, porque conheço os dois lados e tudo, então seria o ganho, um diferencial pra mim. E eu fui nessa linha. Maravilha! E aí eu queria isso, pra depois fazer essa - em paralelo estudar a Diversidade – transição e seguir. Aí veio um negócio chamado pandemia de Covid 19. Para tudo, as coisas começaram a ficar ‘emboladas’, profissionalmente as coisas não aconteceram do jeito que eu gostaria e aí eu me vi sem trabalho, desempregado, com algum dinheiro pra ‘tocar’ pra frente e tudo. Se é que a gente tem algum ponto positivo da pandemia, foi que com as restrições de circulação, nós gastamos muito mais dinheiro... mais, não, muito menos dinheiro, desculpa, com transporte, gasolina de carro, passou a maior parte do tempo em casa, você compra suas coisas e você mesmo faz, que é muito mais barato e é uma coisa que eu gosto de fazer. Tudo isso eu aproveitei a meu favor, para poder ter algum dinheiro, pra frente. Eu falei: “Vou estudar. É agora. O tempo está aí, a oportunidade também, então vamos usar isso da melhor forma. E foi quando eu decidi mesmo assim: aquela transição vai ser uma disrupção. Foi o que eu fiz, eu falei: “‘Cara’, muda as ‘casas’ rapidamente”. Na verdade, eu precisava do convencimento de algumas pessoas. Eu ainda estava meio ressabiado, quando no espaço de uma semana - e nada é por acaso – duas pessoas que não se conhecem falaram exatamente a mesma coisa pra mim. Na verdade, foram três pessoas que não se conhecem, falaram no espaço de oito dias, a mesma coisa pra mim: “Alexon, você é a pessoa que eu conheço que melhor pode fazer essa interlocução, porque, um: você tem um histórico profissional robusto; dois: você é um homem negro, que passou por todas essas coisas que você está discutindo; e três: você é um estudioso, é um ‘cara’ que vai atrás da informação. Não dá pra pegar isso tudo, guardar numa gaveta e deixar lá”. As pessoas, cada uma a seu modo, falou isso. Então, os sinais já estavam dados. Eu falei: “Quer saber de uma coisa?” Quando a última pessoa falou pra mim eu cheguei em casa e comecei a estudar. Foi assim: “‘Cara’, toma, é isso”. Comecei a estudar. Foi imediato. Comecei a falar do tema nas redes sociais, a discutir, a trazer esse assunto pra mim. Aí teve uma interrupção, que foi: eu peguei Covid, fiquei deitadinho, bem mal e até me recuperar e tudo, mas aí quando ‘já posso, vamos retomar o projeto’. E no meio da pandemia as coisas foram acontecendo. Aí vieram os convites, pra poder falar, pra desenvolver pequenos projetos, as coisas foram acontecendo. Aí tive a oportunidade de falar sobre diversidade na Semana de Engenharia da UFF, que pra mim foi um orgulho assim: “Caramba, eu estou voltando na escola que me formou, pra falar de um tema pelo qual eu sou apaixonado”. Foi um presente poder falar sobre isso, para aqueles alunos, porque é uma coisa impressionante, as universidades ainda estão muito despreparadas para lidar com a diversidade, principalmente nesses cursos considerados de elite, que são os cursos de Engenharia, de Medicina, Odontologia, Economia, que são essas profissões consideradas de elite. Existe um esforço maior para que as pessoas estejam lá. Arquitetura. Então, é porque tem todo um dispêndio durante a trajetória do curso e nem todo mundo consegue arcar e foi um prazer muito grande poder falar. E aí agora é isso: não tem um dia em que eu não toque no assunto, que eu não estude o assunto, que eu não fale no assunto. E essa é a minha história. Tem outras coisas que você pode me perguntar. A melhor parte da minha história tem dezesseis anos, que é a minha filha. Eu não posso falar de mim sem falar da minha filha. Minha filha tem dezesseis anos e o maior presente que um homem pode ter é a paternidade, porque na paternidade nós temos a oportunidade de ensinar, mas ainda mais de aprender. Principalmente quando se é pai de uma menina, gênero diferente, uma maneira de ver o mundo diferente, uma maneira de reagir aos estímulos diferente, uma maneira de caminhar diferente. A gente aprende muito com isso. Demais. Eu sou um pai muito grato pela filha que eu tenho, muito mesmo. O nome dela é ngela, aí eu vou te explicar a história do nome: quando a gente começou, eu e a mãe dela, a pensar em nomes, a gente tinha um monte, alguns critérios. O primeiro era que fosse um nome que não gerasse apelidinho bobo. O segundo é o que eu achei mais interessante: que em qualquer língua aquele nome pudesse ser falado, senão igual, mas de maneira semelhante. Engraçado que, pra nome de homem, a gente tinha um monte de possibilidades. Tá, mas e se for menina? Aí a gente ficou aquilo assim, ela virou e falou assim: “Eu gosto de ngela” “Eu também. Então, tá, se for menina vai ser ngela”. Acabou. Não teve outra possibilidade, sem ser ngela. Aí depois eu fui refletindo sobre a escolha, falei: “Caramba, ngela é o nome da minha primeira professora, lá da primeira série. Não foi a primeira professora, mas foi a professora que me colocou no caminho da alfabetização e tal”. Caramba, essa coisa toda e tal. É isso. Aí, quando nasceu, foi uma alegria. Ela tem dezesseis anos agora, a coisa mais linda da minha vida e, ‘cara’, eu sou muito apaixonado por ela. É isso. Adolescência, eu estou vendo a adolescência, sabe? É diferente, porque eu vivi a adolescência, mas eu não vi a adolescência, agora eu estou vendo a adolescência, muito perto. E cada encontro é uma coisa diferente, uma história diferente, percepção diferente. E as angústias dos adolescentes. Tem que ter muita paciência com essa ‘galera’, porque o adolescente sofre, ‘cara’. Não é fácil ser adolescente. Em qualquer cultura, em qualquer condição. Seja financeira, cultural, país, raça. O ser adolescente é complicado em qualquer circunstância, porque é um desencontro, um meio de caminho super importante, que precisa ser bem vivido, para que aquilo não se torne uma tragédia na vida adulta. (risos) É isso. E, poxa, pai de adolescente. (risos)
P/1 – Alexon, e o que a paternidade mudou na sua vida?
R – Eu não sou tão impulsivo. A paternidade me trouxe um senso de observação ao meu pai, maior, porque a diferença de idade da minha filha pra mim é a mesma que eu tenho pro meu pai. Então, quando a minha filha me olha, ela está vendo meu pai no passado, talvez. Ela está tendo uma visão parecida com a que eu tinha do meu pai, na adolescência. Na adolescência, eu convivi muito pouco com meu pai, por conta que a gente conversou muito pouco. E não foi porque meu pai foi um pai ausente. Pelo contrário, já falei aqui o quanto eu admiro meu pai e o quanto ele é um cara presente, que ele é um cara muito presente na minha vida, na vida da minha irmã e na vida das netas, na vida da nora. É um cara que é espetacular, mas eu acho que eu tenho mais facilidade pra chamar pra conversa uma adolescente, do que meu pai teria. A minha irmã, uma vez, falou assim: “Pai, você não sabe o que é ser pai de adolescente, porque a gente foi muito tranquilo” e é verdade. Não que minha filha seja uma ‘espoleta’, um ‘furacão’. Não é isso, mas ela é uma adolescente que é muito mais evidente nela todos os conflitos da adolescência. Muito mais. E aí eu tenho oportunidade de ser pai de adolescente. E eu chamo mais. E outra coisa: a gente não tinha, sei lá, antigamente, um aparelhinho na palma da mão, que te dava uma abertura pro mundo e essa abertura são várias ‘portas’ pro mundo e algumas ‘portas’ vão levar pra lugares que não têm nada a ver. E quando volta desse lugar, quer falar com você: “Pai, porque eu vi isso, aquilo. O que você acha daquilo? O que você acha disso?” E eu tenho que estar aberto pra falar, pra ouvir, uma nova interpretação de tudo aquilo que eu já tinha interpretado antes e agora vem uma nova leitura disso e essa é a leitura daqui pra frente, porque ela, em tese, têm mais longevidade que eu. Então, por isso que eu falo: é aprendizado. Eu estou o tempo inteiro aprendendo alguma coisa nova com a minha filha. O tempo todo. E, às vezes, eu tenho que ‘engolir seco’ e falar: “Pô, não é que ela tem razão? É mesmo, é isso aí. Vamos embora!” E pra mim está sendo isso. É muito intenso e passa mais rápido do que a gente imagina. É isso. Eu a lembro com onze anos: “Pai, agora eu sou uma pré-adolescente”, sentada no banco de trás do carro, porque ainda não tinha altura - uns dez anos – para vir na frente, falar assim: “Pai, eu te falei que agora eu sou uma pré-adolescente?” Falei: “É, estou sabendo”. Eu lembro onde foi isso, onde eu estava com ela, ela me falando isso. Pum, ela já está falando de coisas pra frente.
P/1 – Alexon, me conta como funciona agora o seu trabalho como consultor, principalmente nas empresas. Como funciona?
R – Vamos lá! O meu trabalho como consultor tem dois aspectos aí: o primeiro deles é a questão da sensibilização e da educação. Não existe projeto de diversidade sem haver antes, durante e depois, uma educação pra diversidade, que seja antirracista, anti machista, anti homofóbica, anti capacicista. A gente precisa... antimilitarista...ter um educação constante, então nesse primeiro perfil, digamos assim, primeiro lado, é da educação. Aí você vai falar de palestras, mentorias e eu trabalho com todas essas frentes. A outra frente é, efetivamente, a aplicação de projetos para Diversidade. Os dois juntos eu costumo dizer que é a jornada para Diversidade, porque tanto educação, quanto projeto são vivos, assuntos que não se esgotam. Por quê? A diversidade é tão rica quanto a humanidade. Todos nós somos atravessados por questões de Diversidade, porque eu, enquanto homem hetero negro também preciso ter uma educação pra diversidade, pra lidar com quem não é homem hetero cis e negro. Eu preciso. Da mesma forma que todos os outros grupos precisam ter educação para diversidade, para lidar com quem é parecido comigo. E isso não se esgota. E a gente não está nem no ponto zero, está no ponto menos muita coisa. Então, ela é constante. E os projetos, aí é uma coisa mais ‘dura’, vamos dizer assim, ou mais sólida, mais palpável, que são as metas, os indicadores, que é efetivamente a aplicação de um projeto para que aquela realidade em termos de diversidade, equidade e inclusão mude dentro da empresa. Então, o meu trabalho, com as empresas, têm essas duas facetas, que trabalham em conjunto.
P/1 – Eu queria que você falasse um pouco sobre qual é a importância pra você da Diversidade, da Inclusão e principalmente da Equidade, que é uma palavra que aparece bastante nos seus trabalhos e traz uma perspectiva a mais, do que só a Diversidade e Inclusão.
R – É. Vamos lá! Diversidade é você estar num... eu gosto muito, eu falo isso sempre, uma frase da Vernã Myers, que fala que ‘Diversidade é convidar pra festa e Inclusão é chamar para dançar’. Aí eu costumo dizer que a Equidade é você também ‘escolher a música e o cardápio da festa’, porque são duas coisas que são relações de poder e que definem, efetivamente, se a festa é boa. Imagina você ir numa festa que a música é ruim, ou que a comida é ruim, o salgadinho vem frio, a cerveja vem quente. Aquele espumante que você tem uma expectativa de ser aquela bebida refrescante vem quente, parece um xarope. Então, são três coisas na festa que são muito perceptíveis pra gente. ‘Trocando em miúdos’, a diversidade é você ‘botar’ em um ambiente pessoas com perspectivas diferentes, histórias diferentes. Então, por exemplo: eu já falei aqui em futebol, o Maracanã é diverso pra caramba, tem gente de todas as classes sociais ali, se bem que ultimamente está difícil, o ingresso está caro. Mas você tem gente de tudo que é religião, das orientações sexuais mais variadas, dos gostos mais variados, histórias e perspectivas de vida, históricos de vida mais variados. Maravilha! Você tem, assim, um ambiente diverso. A inclusão é quando você usa essa diversidade em prol daquela organização e das pessoas. É quando as pessoas se sentem parte daquilo. É o ‘chamar para dançar’. Dão sugestões, têm voz, participam, se sentem ali, naquele lugar, não são meras espectadoras dos acontecimentos. Por isso que tem empresa que é diversa, mas não é inclusiva. Você vai olhar assim: “Não, no meu quadro aqui eu tenho 50% de negros e tal”. Mas onde esses negros estão? Todos no ‘chão de fábrica’. Todos os trabalhos com pouquíssimo valor agregado. Nenhum deles dá sequer uma sugestão. Eles só ‘batem o martelo’. E não estou desmerecendo quem ‘bate o martelo’, mas não é só ‘bater o martelo’. Tem mais coisas pra cima. E, às vezes, aquela pessoa que está ‘batendo o martelo’, sabe que tem uma maneira diferente de ‘bater o martelo’ e nem isso ela pode sugerir. Não é verdade? Então, quando a gente fala de diversidade e equidade, a gente está falando disso, daquelas pessoas estarem em um ambiente e fazerem parte. Então, se ela está num ambiente e não faz parte, o que a gente tem é só a diversidade, não tem inclusão. Inclusão é sentir parte. Já a dinâmica da equidade tem a ver com relação de poder. É a tomada de decisão. É escolher a música. Não tem aquele ditado que ‘quem paga a banda, que escolhe a música’? Exatamente. É uma relação de poder. Então, por isso que tem empresas que são diversas, inclusivas, porém não são equânimes. E por que elas não são equânimes? Porque a relação de poder, a tomada de decisão não é partilhada pelos grupos que são minorizados. E por isso esses grupos são minorizados. Eles não são representados nas esferas mais altas, de acordo com a distribuição dessas pessoas naquela sociedade. E a gente pode falar, a gente está falando só de raça? Não. Olha ali. Se você fechar o olho, eu falar pra você: “CEO, você vai pensar numa mulher?” Não vai, né? Você vai pensar em um homem branco, alto, com nome curtinho, porque agora CEOs nos Estados Unidos todos eles têm nome Nick, Duck, Jack, tudo assim. (risos) Então, você vai pensar nessas coisas, porque está tão enraizado na nossa sociedade, é estrutural mesmo, que faz com que as empresas não sejam equânimes, porque equidade tem a ver com relação de poder. Então, se lá nas tomadas de decisão, se vão julgar os salários mais altos... os projetos de diversidade têm três fatores que são muito importantes, que um deles é o fator econômico, que é justamente isso: como está a distribuição da geração de riqueza que o seu negócio faz? Porque eu estou gerando riqueza, se eu pago salário eu estou gerando renda. Se essa companhia, essa organização está gerando riqueza, renda, as rendas mais altas estão nos cargos mais altos. E como é que está essa distribuição aí? Como é que está isso? Como é que está esse balanço aí entre mulheres, pessoas negras, sejam homens e mulheres, pessoas LGBTQIA+, indígenas, pessoas com deficiências, pessoas com idade acima de sessenta anos, como está isso aí? Aí, na hora que você vai com a lupa para olhar, fazer um diagnóstico, ihhhhh gente, está distorcido isso aqui, como a gente vai fazer? Por quê? Isso tem a ver com equidade. Perpassando esses três conceitos têm uma coisa aí que você vai entender, que é o sentido de pertencimento. Se eu estou numa festa, sentado e ninguém me chama para dançar, eu só estou ali e pronto: “Fulano não se entrosou. Vai embora pra casa mais cedo” “Já chegou, meu filho?” “A festa estava ruim, não dancei com ninguém. Ninguém me chamou para...”. Questão de pertencimento. Você tem que se sentir pertencente àquela organização. Recentemente eu fiz um post falando disso, mostrando que, quando você tem sentido de pertencimento, as pessoas performam melhor, se sentem mais seguras de dar sugestão, de inovar, de errar. Quando você está na sua casa, com a sua família, se você erra, ninguém te manda embora. Quando é uma família, legal. Você não lavou a louça, você quebrou um prato. Pronto, está expulso de casa. Isso não existe. A gente dá uma bronca: “Pô, fulano, presta atenção”. Outra coisa. Mas você não vai mandar embora, porque na sua casa você tem a sensação de pertencimento. Se alguma coisa acontece com você, você continua parte daquilo. Guardadas as devidas proporções, numa empresa, numa organização, você também precisa ter esse sentimento de pertencimento, para poder arriscar, talvez com aquela ideia que você tem a dar, a empresa vai sair de um patamar e vai para outro. As empresas que investem em diversidade acho que estão mais propensas a conseguir maior participação de mercado, expandir os mercados que já têm e criar e conseguir um faturamento maior, só com produtos de inovação. Porque é isso, as pessoas estão sugerindo. Então, o sentido de pertencimento vai perpassar esses três conceitos. Na verdade, é o ‘telhadinho’ ali, da coisa.
P/1 – Alexon, vamos pensar desde o começo da sua trajetória profissional, do comecinho lá, que você foi trainee do Itaú, até agora, como consultor e são dois momentos completamente diferentes, das instituições financeiras. Eu queria que você falasse quais são as mudanças que você acompanha, sendo consultor agora, daquela época, nas instituições financeiras, em questão de diversidade e inclusão. Não só de pessoas negras, mas mulheres, de PcDs, de pessoas LGBTQIA+.
R – Vamos lá! Eu não posso falar da minha percepção sem falar da curva tecnológica que o setor bancário, financeiro teve. É um negócio absurdo, gente! Se a gente fizer aí o recorte dos últimos vinte anos, é uma coisa descomunal. O nível de tecnologia empregado no setor financeiro e bancário, em específico e aí a gente tem duas coisas, que precisam ser muito bem avaliadas. A primeira delas é que, quando você tem um emprego muito grande de tecnologia, a tendência é que aquele trabalho que é do tête-à-tête ir diminuindo, então a gente vê aí muitas agências fechando, a gente teve um impulsionamento, por causa da pandemia, muita gente ficou sem ir às agências e aí teve esse redesenho. A gente teve aí uma mudança nesse perfil do atendimento individual, ele ficou muito reduzido e as pessoas estão buscando aí as ferramentas tecnológicas. Então, era muito mais fácil ver funcionário de banco negro numa agência, do que nas camadas superiores daquela organização. Ok. E nas agências que ainda têm, eu ainda vejo muito menos, mas muito mais do que via antes. Muito menos proporcionalmente ao balanço racial brasileiro, mas muito mais do que eu via antigamente. A linguagem visual dos bancos é mais convidativa para as pessoas negras. Então, se você olhar... quando eu fiz lá o programa de trainee, era inimaginável um banco ‘botar’ lá um garoto jovem de terno e gravata, negro, sorridente, dizendo: “O Itaú quer trabalhar com você”. Isso não existia. Isso, hoje, a gente vê. Muito pouco, mas vê. Pode melhorar? Muito. A questão da comunicação com o público que você quer atrair para conseguir trabalho, tem muitos ‘passos para serem andados’, mas isso já melhorou, as pessoas usam a figura da pessoa negra como alguém que: um, é possível trabalhar lá, é alguém que está pensando na sua educação financeira, no seu futuro, em realização de sonhos. Isso eu acho muito bom. Mudou muito daquele tempo pra cá. Eu tenho visto nas redes, conheço pessoas que estão progredindo dentro das estruturas dessas instituições, sejam bancárias, sejam financeiras stricto sensu. Ou melhor, lato sensu. E aí eu fico feliz com isso, porque: há muito a se fazer? Há. Eu adoraria, um dia, ver um presidente do Pan, do Itaú, de qualquer outro banco, desses que a gente sabe que é banco, porque aparece o nome banco, falam: Pô, é banco. Pan é Pan, queria que o presidente fosse negro. Digo assim: ou a presidenta. Fosse um negro ou uma negra. Eu adoraria ver isso. Aí, sim, eu estou vendo mudanças. Mas assim, não só ele, para depois não ter outro, que tivesse uma constância, que fosse comum ter executivos da alta gestão do banco negros e negras. Porque os números dizem que as mulheres negras são 0,4% dos cargos executivos no Brasil. 0,4%. A gente está falando de 27% da população. 27%, 0,4%, é uma diferença absurda. Então, na hora que a gente começar a ver isso com mais frequência, aí sim tem uma mudança, mas existe mudança, sim. Existe possibilidades. Os bancos têm feito processos seletivos específicos. Eu não posso dizer como que depois que a pessoa entra lá dentro, quanto a trajetória desses profissionais, como é, como a empresa está lidando com isso, porque também tem uma questão dos ambientes corporativos acolhedores para ter isso, que a gente já falou sobre pertencimento, aí a pessoa ‘deslancha’ lá. Não sei como está sendo. Mas já existem. Os bancos falam isso. Que bom! Aí o outro lado desse avanço tecnológico, que eu acho que tem que ser o nosso direcionador, porque nós vivemos numa sociedade capitalista, que se mantém por causa dos avanços tecnológicos. Então, o avanço tecnológico aqui trouxe uma nova demanda, que é uma demanda de gente que trabalha com tecnologia, que precisa entender o seu cliente, entender o mercado. Então, nós vemos aí uma oportunidade pra profissionais negros na tecnologia, que é absurda. Mas essa oportunidade precisa ser disponibilizada. Não existe oportunidade se não há disponibilização. O que eu quero dizer com isso é o seguinte: as empresas de tecnologia, o mercado de tecnologia brasileiro e os bancos hoje são empresas de tecnologia, queiram eles ou não, ou de emprego passivo de tecnologia, tem uma necessidade de aproximadamente oitocentos mil profissionais pros próximos três, quatro anos. Esse é um número absurdo! Quantas cidades têm oitocentos mil habitantes no Brasil? São poucas. Então, você está falando de uma grande cidade. Está falando de algumas cidades, inclusive, maiores do que algumas capitais no Brasil. Essa é a demanda pros próximos três, quatro anos. A formação anual de profissionais de tecnologia corresponde a um terço dessa demanda. Se não abrir pra diversidade, pra formação de profissionais negros, não atende. Você está entendendo? Então, aqui, essa mudança gera oportunidade quase que obrigatória e aqui fica um aviso, um alerta aos gestores de bancos, de empresas de tecnologia: invistam em diversidade, porque senão seus negócios podem se tornar insustentáveis em bem pouco tempo, porque tem uma outra coisa: os algoritmos são frutos de quem os constrói. Se eu só tiver um perfil de profissional construindo algoritmos, esse perfil vai levar para os algoritmos, bancários, inclusive, todos os seus preconceitos, vieses e tudo o mais. Se eu não tenho profissionais de origens, histórias, entendimentos, visões de mundo diferentes, experiências diferentes, eu vou fazer algoritmos, construir algoritmos pros meus aplicativos de banco, de investimento, de crédito, que vão repetir todos aqueles vieses que esse grupo aqui traz, formatadinho, igualzinho. Vide aí os problemas que nós temos com o racismo algoritmo. Vide aí recentemente um influencer negro que tentou fazer o reconhecimento facial, pra poder abrir uma conta num banco digital e a tendência dos bancos são todos se tornarem mais ou menos digital, mas serão digitais, todos, no reconhecimento facial ele não conseguia passar daquela fase. Eu sou o reflexo das minhas internalizações. E tudo que eu fizer vai ser produto do que eu sou. Você está entendendo? Tudo que eu fizer é produto do que eu sou, do que eu penso, do que eu ajo, do que eu construo e construí durante a vida. E fui construído, sou fruto de construção também. É meio filosófico esse ‘papo’, mas tem um sentido prático muito grande, então eu vejo aqui esse momento, 2022, uma oportunidade enorme pros bancos fazerem Diversidade em prol do próprio bem, não só do negócio, mas principalmente da sociedade. Porque, como é que eu vou ter um negócio que não ‘conversa’ com a sociedade, que não reflete? Isso já deu certo durante muito tempo, mas até por conta do avanço tecnológico, da internet e tudo, já está pra lá de questionado e questionável. Então, eu vejo que houve uma evolução muito grande, mas muito orientado por essa ‘locomotiva’ da tecnologia, a gente não pode deixar de falar de tecnologia, não pode falar de avanço social, do balanço racial nas empresas, sem falar do avanço tecnológico. Não tem como.
P/1 – Alexon, a gente está quase chegando ao fim. Antes de ir direto para as perguntas mais conclusivas, eu queria perguntar pra você, qual o nome da sua companheira, se você quiser dizer e como foi esse reencontro com ela.
R – (risos) O nome dela é Marcele e foi um encontro muito inusitado. Em 30 de maio de 2019. Eu só sei disso porque ela me falou, porque eu não lembrava, aí um dia desses ela estava falando, foi no dia 30 de maio, algo assim. Eu estava tomando uma cerveja com um colega de trabalho, dentro de uma... aqui no Rio de Janeiro tem um edifício garagem, Menezes Cortes, fica ali no Centro da cidade. Super tradicional e nessa pandemia o segundo piso ali ‘bombava’, tinha um monte de barzinho, um monte de coisa e tal e tinha uma casa de cerveja artesanal que tinha um nome engraçado, acho que era Cervejaria da Perua, uma coisa assim e vendia umas cervejas bacanas e um dia eu estava meio aperreado e aí esse ‘cara’: “Vamos ali tomar uma cerveja diferente?” Eu falei: “Vamos”. Aí estou sentado com ele e nisso o meu telefone toca, era uma amiga me ligando de Salvador e aí eu saí - era muito pequenininho o lugar - para falar com ela. “‘Cara’, dá licença”. Peguei o telefone e saí, para falar. Nessa que eu saio, me passa a Marcele. Eu estagiei com a Marcele em 2000, acabou o estágio, eu não vi mais a Marcele. Encontrei com a Marcele um mês depois da minha filha nascida, em 2006 e falei com ela: “‘Cara’, minha filha nasceu”. Ela falou: “Pô, eu tenho um filho de um ano. Que barato!” O sinal abriu. Muito aquela coisa do samba da música do Paulinho da Viola, lá: “Meu amigo o sinal vai abrir, vai abrir”, tal, aquela coisa. Sinal Fechado o nome da música. Lindíssima, recomendo. E nunca mais vi. Aí ela passou que nem uma ‘bala’, ela anda rápido demais, entendeu? É isso. Se a gente for passear, ela anda rápido. E aí eu fui atrás e chamei. Ela: “Caramba!” ‘Batemos papo’, trocamos telefone e tá. Mas uma coisa me chamou atenção no papo: ela falou que estava saindo com um ‘cara’ e que o ‘cara’ não estava levando muito a sério: “Ele não está me levando muito a sério” e aquilo ficou na minha cabeça, falei: “Caramba, como é que alguém não leva essa mulher a sério?” (risos) Ficou, assim. Deixei pra lá. ‘Conversa vai, conversa vem’, negócio de telefone, rede social e tal, aí teve um dia que eu mudei o registro: “Vou fazer um teste aqui”. Aí veio na coisa e ficou aquela troca de mensagens, ela viajou, voltou, mas antes a gente se encontrou e foi terrível, ela morre de rir, só ‘paguei mico’ aquele dia, foi horrível, mas aí ela viajou, voltou, mas nessas viagens a gente conversou muito e quando voltou nós nos encontramos e desde então a gente não se largou mais. Foi assim. E é muito bom ser amado por quem você ama. É a única coisa que eu tenho pra dizer. Se não vai ser outro dia, só pra falar nisso. Mas é muito bom. Ainda mais numa fase da maturidade da vida e tal, que a visão de mundo é parecida, a visão das coisas, as experiências são parecidas. Então, assim: ‘cara’, ter filho adolescente ela tem um também, então a gente sabe o que acontece, entende, se apoia um no outro, a gente é muito parceiro, muito companheiro. Ela é a pessoa que mais me apoia na vida, está comigo pra o que der e vier e eu também estou com ela pro que der e vier. E é ótimo. É isso. Eu sou apaixonado por ela. E ela diz que é por mim também e é, eu me sinto assim, apaixonante (risos) por ela. (risos)
P/1 – E quais são os seus maiores sonhos, hoje?
R – São poder levar, através do meu trabalho, de forma consistente, Diversidade e Inclusão para as organizações, sejam elas públicas ou privadas. Eu não faço distinção, porque os problemas do racismo estrutural no Brasil, se são estruturais, vão estar tanto na iniciativa privada, quanto na administração pública. Então, as organizações privadas ou públicas, se eu puder levar, através do meu trabalho, mais diversidade, mais equidade, mais inclusão, eu estou realizando um sonho. É o que eu amo fazer. Meu outro sonho: fazer um tour pela África, conhecer os países da África, o lugar de onde eu vim porque, se eu chegar pra uma pessoa ascendência europeia, ela sabe exatamente a vila que o avô saiu. Nós, negros brasileiros, não temos esse privilégio. Então, nós temos algumas suspeitas. Conhecer a África é saber que em algum momento eu vou pisar no mesmo solo que os meus antepassados pisaram. E pisaram não num caminho de escravidão, mas numa vivência de liberdade, de vida plena. E tem outros lugares que eu quero conhecer, acho a Espanha maravilhosa, adoraria conhecer, está no radar. Eu quero ver a minha filha, meu sonho é ver minha filha, minha sobrinha se tornarem mulheres incríveis, com toda potencialidade que cada uma delas tem, mulheres plenas. É isso que eu quero. Realizando as coisas que desejarem, construindo as coisas que quiserem construir. São esses os meus sonhos. Eu não quero mudar o mundo, eu quero poder ajudar a mudar o mundo à minha volta. É isso. Deixar alguma coisa melhor pra frente.
P/1 – A gente tem mais só três perguntas. Agora eu queria saber qual o legado que você deixa para o futuro.
R – É eu tentar passar o legado que me deixaram: que pessoas negras podem ser o que elas sonharem ser. Mesmo que o sonho seja, a princípio: “O que é isso? Uma loucura, um devaneio, mas é possível”. Só o fato de acreditar nisso já muda muita coisa. Você pode não chegar naquele ponto, mas você pode caminhar, ir a lugares bem distantes do ponto em que você está agora. Essa mobilidade, essa possibilidade de mobilidade, se eu conseguir, de alguma forma, fazer com que as pessoas acreditem, da mesma forma que fizeram comigo, porque isso não começou agora, isso vem de trás. A gente nunca começa um caminho. A gente continua um caminho. Se eu puder, pra frente, ver pessoas continuando esse caminho que está sendo trilhado, eu acho que é o grande legado que eu vou deixar.
P/1 – Alexon, eu queria saber se tem alguma coisa que eu não te perguntei sobre a sua história, se você gostaria de acrescentar alguma coisa, ou deixar alguma mensagem, esse momento é seu.
R – Eu vou começar com uma explicação, primeiro, sobre aquela xilogravura ali. É a ngela Davis, a grande intelectual negra americana. Eu achei por acaso essa xilogravura, em Montevidéu, num passeio que eu estava fazendo e aí estava lá, eu falei: “Eu não posso voltar pra casa (risos) sem isso”. E está aqui, eu guardo com o maior carinho. Montevidéu é uma cidade linda. Acho que é a cidade, da América do Sul, que eu moraria, além do Rio de Janeiro e eu acho que eu achei um outro lugarzinho que eu amo muito, na América do Sul. Eu gostaria de dizer o seguinte: que eu faço parte de uma geração que foi muito pouco observada, a geração de negros que hoje estão chegando ali entre quarenta e cinquenta anos, mas ao mesmo tempo a gente, de alguma forma, tem trabalhado pra que a geração futura e as seguintes tenham muito mais possibilidade que a gente. Tem muita gente bacana falando sobre Diversidade, agindo na Diversidade, estudando a Diversidade nos centros acadêmicos e tudo, mas é importante a gente entender que nós vivemos no Brasil um momento muito delicado, em que pequenos, mas significativos progressos e conquistas podem ser capturados. E nós temos que ser muito atentos, muito vigilantes e muito atuantes, para que não só mantenhamos o que já conquistamos, mas que conquistemos mais. É isso. O que eu tenho pra dizer, se eu fosse deixar aqui o fechamento, seria: nós não podemos ‘abrir mão’ das conquistas que tivemos. Que, para muitos ou alguns pode parecer desnecessárias, injustas até, mas que enquanto sociedade e futuro dessa nação, são extremamente importantes. A nação brasileira, se quiser ter futuro, precisa ter Diversidade, Inclusão e Equidade como projeto nacional. A mensagem que eu tenho é que nós temos que ter diversidade, equidade e inclusão como projeto nacional. E quando eu falo de projeto nacional eu estou falando que não é só governo ‘botar’ lei, é governo fazer a lei ser aplicada, as empresas entenderem que elas também fazem parte da sociedade e promoverem também ações afirmativas. As instituições que não são empresas precisam também promover diversidade em seus quadros, ações e as pessoas, individualmente, precisam se educar para o futuro, o futuro é a diversidade. É isso que eu tenho pra dizer.
P/1 – E o que você achou de hoje, nessa tarde, contar a sua história de vida, suas memórias?
R – Eu achei um ‘barato’. É um presente de cinquenta anos antecipado, já que eu vou fazer cinquenta anos ano que vem e ainda falta. Eu fiz em junho, finalzinho de junho. Mas eu já estou aqui, tentando me preparar psicologicamente pra virar um ‘cinquentão’ (risos) e já ganhou um presente. É a primeira vez que eu tenho que falar, contar a história da minha vida. É, gostei. Que eu tenha mais oportunidades e que eu tenha ainda muita história para contar, para viver, no futuro e contar mais, no futuro, ainda. (risos)
[Fim da Entrevista]
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