Memória da Literatura Infato-Juvenil
Depoimento de Marina Colasanti
Entrevistado por Thiago Majolo
São Paulo, 30 de setembro de 2008.
Museu da Pessoa
Entrevista MLIJ_HV028
Transcrito por Thiago Belotto
Revisado por Fernanda Regina
P/1 - Então Marina, a gente começa sempre perguntando o nome completo, local e a data de nascimento.
R – O nome completo de casada ou o nome completo de solteira?
P/1 – Os dois.
R – Meu nome é Marina Colasanti. Acrescentaram o Sant´Anna, do Affonso, o meu marido. Lugar de nascimento Asmara, capital da Eritréia, na época, Asmara da Abissínia, em 26 de setembro de 1937.
P/1 – Conta um pouquinho o nome dos seus pais e o que eles fazem...
R – Minha mãe, Eliza Del Bono Colasanti, sempre chamada de Zeta, faleceu aos 40 anos. A família toda já tinha morrido, as duas irmãs, os pais, morreu todo mundo muito cedo. Minha mãe de Parma, Itália, cidade linda... Meu pai, Manfredo Colasanti de Roma, ator no final da vida, antes fez várias coisas. Trabalhava basicamente na Confederação das Indústrias, Itália, e fez algumas guerras. E depois, por contato com o meu irmão ator, Arduíno Colasanti, tornou-se ator e foi ator até morrer com 82 anos. Trabalhou em novela, trabalhou muito em cinema, fez até teatro.
P/1 – E os avós?
R – Os avós da minha mãe eu não sei... Porque um morreu de gripe espanhola, todos morreram muito cedo. Eu sei que tinham uma olaria grande, eram pessoas de classe média abastada. E a família do meu pai, é uma família interessante. Meu avô, Arduíno Colasanti, crítico de arte, historiador da arte, autor de vários livros sobre arte, especializado no Quatrocentto, na região de Marche na Itália. Foi diretor das Belas Artes na Itália, o que equivalia a qualquer coisa como ser Ministro da Cultura, porque na Itália as artes são muito importantes. Um homem muito interessante, com vários irmãos, um dos quais a irmã mais jovem Gabriella Besanzoni, depois Gabriela Besanzoni Lage,...
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Depoimento de Marina Colasanti
Entrevistado por Thiago Majolo
São Paulo, 30 de setembro de 2008.
Museu da Pessoa
Entrevista MLIJ_HV028
Transcrito por Thiago Belotto
Revisado por Fernanda Regina
P/1 - Então Marina, a gente começa sempre perguntando o nome completo, local e a data de nascimento.
R – O nome completo de casada ou o nome completo de solteira?
P/1 – Os dois.
R – Meu nome é Marina Colasanti. Acrescentaram o Sant´Anna, do Affonso, o meu marido. Lugar de nascimento Asmara, capital da Eritréia, na época, Asmara da Abissínia, em 26 de setembro de 1937.
P/1 – Conta um pouquinho o nome dos seus pais e o que eles fazem...
R – Minha mãe, Eliza Del Bono Colasanti, sempre chamada de Zeta, faleceu aos 40 anos. A família toda já tinha morrido, as duas irmãs, os pais, morreu todo mundo muito cedo. Minha mãe de Parma, Itália, cidade linda... Meu pai, Manfredo Colasanti de Roma, ator no final da vida, antes fez várias coisas. Trabalhava basicamente na Confederação das Indústrias, Itália, e fez algumas guerras. E depois, por contato com o meu irmão ator, Arduíno Colasanti, tornou-se ator e foi ator até morrer com 82 anos. Trabalhou em novela, trabalhou muito em cinema, fez até teatro.
P/1 – E os avós?
R – Os avós da minha mãe eu não sei... Porque um morreu de gripe espanhola, todos morreram muito cedo. Eu sei que tinham uma olaria grande, eram pessoas de classe média abastada. E a família do meu pai, é uma família interessante. Meu avô, Arduíno Colasanti, crítico de arte, historiador da arte, autor de vários livros sobre arte, especializado no Quatrocentto, na região de Marche na Itália. Foi diretor das Belas Artes na Itália, o que equivalia a qualquer coisa como ser Ministro da Cultura, porque na Itália as artes são muito importantes. Um homem muito interessante, com vários irmãos, um dos quais a irmã mais jovem Gabriella Besanzoni, depois Gabriela Besanzoni Lage, razão da gente estar no Brasil. Cantora lírica, que casou-se no Brasil já no final da sua carreira, praticamente encerrou a sua carreira com o casamento. Casou-se com Henrique Lage, um homem maravilhoso, brasileiro, uma beleza de pessoa. E meu pai e meu avô vieram para o casamento em 25, porque o meu avô era padrinho do casamento. E foi aí que meu pai se apaixonou pelo Brasil e foi por isso que depois do fim da Guerra nós viemos para cá, porque meu pai já conhecia. Só que ele conhecia outro Brasil, o Brasil de 25, e era o Brasil de 46 quando ele voltou, em 48 quando eu cheguei. Era outro país. De qualquer maneira ela já tinha uma parte da família aqui, uma vivência aqui, quis vir.
P/1 – Conta um pouco dessa infância, primeira infância, o que você lembra dela?
R – Olha a primeira infância, uma parte sempre muito deambulatória, porque eu fui já no ventre, minha mão foi grávida, da Itália pra África. Nós fomos pra África porque o meu pai tinha feito as Guerras de Conquista, que era como a Itália chamava as Guerras Coloniais. A primeira vez foi convocado, a segunda foi como voluntário. E apaixonou-se pela África, e quis ficar, então pediu transferência das Confederações Industriais, pediu transferência pra África. Primeiro ficou sediado em Asmara, a colônia, naquela época Abissínia, era a Etiópia - a Eritréia e a Somália. Quer dizer, não sei se a Somália fazia parte da Abissínia agora exatamente, porém eram as três grandes colônias italianas... lindas! Ficamos em Asmara eu não sei exatamente a data porque a minha família não era de grandes registros. Deve ter sido um ano e meio, qualquer coisa assim, e nos mudamos para Trípoli na Líbia, que também era colônia italiana, chamada então Trípoli-Itália. E ficamos em Trípoli até pouco depois de estourar a Guerra. A Itália declarou guerra em 39, eu nasci em 37. Imagino que no final de 39, início de 40 tenhamos regressado a Itália. Minha mãe e as duas crianças, porque meu pai ainda ficou com a casa toda montada durante certo tempo, até ficar muito perigoso e ele então ir para a Itália, perdendo tudo que havia na casa, naturalmente. Na Itália, nós moramos um tempo em Roma, nasceu um terceiro irmão e começamos a viajar, e viajamos durante os cinco anos da guerra. Em parte porque meu pai era transferido, eventualmente nós tínhamos que mudar de cidade porque a Guerra vinha avançando na Sicília e a Guerra vinha chegando pelo sul, a presença dos aliados. E nós íamos mudando para o norte. Meu pai era fascista, então a gente ficava com a Itália, e nós terminamos a guerra no Norte da Itália. No finalzinho, nós ficamos até o fim. Em 48 viemos para o Brasil. Meu irmão menor morreu muito cedo, era uma criança down, tinha Síndrome de Down. Morreu com um ano e meio dois anos creio eu. Então, éramos o meu irmão e eu, muito juntos, muito unidos e muito sozinhos, nesse périplo.
P/1 – Primeiro eu gostaria que você contasse o nome desse seu irmão e assim, um pouco dessas relações, dessa vida errante, assim, um pouco dessas relações, você e ele, você e seu pai, você e sua mãe. Nessa visão de menina ainda, como era isso?
R – O meu pai foi na minha infância uma figura muito curiosa pra mim, porque ele nunca estava, ele era uma figura muito ausente. Depois há um período, quando estávamos em Trípoli, em que minha mãe pegou meu irmão e foi pra Itália fazer uma viajem em Trípoli, não sei se o meu pai tinha aprontado alguma, ou se ela ficou com saudade da Itália. Eu sei que ela pegou o meu irmão, que é um ano mais velho e foi pra Itália e eu fiquei sozinha em Trípoli, com o meu pai e com a babá. Então, aí tivemos um período de convivência, de alguns meses... Longo! Porque era de navio, aquelas coisas. Depois, meu pai ficou na África e nós fomos para a Itália. Então meu pai era uma figura que estava tomando conta da África, que estava tomando conta da nossa casa e que algum dia chegaria. Não tomou conta de nada na verdade, foi tudo para o espaço, mas a gente ouvia as notícias no rádio da Guerra na África. Na África a guerra foi pesada. A gente ouvia os ingleses se aproximando de Trípoli e, inclusive, nós ouvíamos a rádio inimiga também, ouvíamos escondidos. Era proibido ouvir rádio Londres, mas a gente ouvia, claro, pra saber os fatos. Então o meu pai era uma ausência. Quando ele veio para a Itália, ele continuou sendo uma ausência com eventuais momentos de presença. Eu sei que um dia eu acordei ele estava ao pé da cama, com a minha mãe conversando e esperando que a gente acordasse. “Ó, chegou o pai”, nem lembrava a cara dele mais, fazia tempo que eu não via. Porque eventualmente ele morava em outra cidade, por questões de trabalho. Me lembro que ouve um período que ele comprou uma bicicleta de alumínio, belíssima! Os italianos são os reis da bicicleta. E vinha nos ver de bicicleta porque ele estava morando em outra cidade, então de vez em quando aparecia esse pai de bicicleta. Depois, quando ele veio para o Brasil, ele ficou dois anos aqui e nós lá. Então o meu pai só é uma presença que existe bem tardiamente. Antes ele era uma presença eventual. Eu tinha maravilhosas governantas, que tomavam conta da gente, porque era assim que se fazia. Tinha governanta que falava francês e essas coisas. Mãe era uma figura presente, importante, mas não era aquela mãe de ficar sacudindo filho como se sacode garrafa com excessivo gás pra tirar. Então era outra coisa, outro tipo de mãe. Moramos em casas, moramos em hotéis em várias ocasiões, adorávamos morar em hotel. Era muito bom. Gosto de hotel até hoje. Moramos em casas alugadas. As casas estão muito presente na minha literatura, volta e meia aparece essas casas estranhas. Moramos numa casa no final da Guerra, no meio de um parque enorme, uma casa muito grande, belíssima. Moramos de toda a maneira. Era curioso essa coisa de mudar sempre. Eu acho que ficou porque se me deixar fixa em uma cidade mais de um ano, eu começo a sonhar que eu estou viajando, porque a minha cabeça não tolera ficar parada, eu tenho que viajar. O meu avô morreu antes de eu nascer, só viu nascer o meu irmão. Avó só tinha uma, minha avó paterna, que era uma pessoa curiosa, uma pessoa muito prendada, a quem eu devo certas doçuras do feminino. Aprendi a cozinhar, sou uma exímia cozinheira, aprendi a costurar - ela me ensinou a costurar, eu sei costurar, eu posso fazer a minha roupa. Eu sempre tenho um trabalho nas mãos. Isso tudo eu aprendi com a minha avó, que era uma mulher sofisticada, chique, usava muito bem chapéu e luvas e botava jasmins na caixa de pó de arroz para ficar mais perfumada. E me ensinou a passar blush - naquela época não se chamava blush - na ponta da orelha porque depois põe a pérola e fica mais bonito, fica mais feminino, como o lóbulo rosado. Era uma avó muito curiosa, foi muito boa a minha vó.E um irmão do meu pai, único filho desse casal. Porque eram dois irmãos, também tem um que morreu que eu nunca conheci. Que também foi uma pessoa de importância na minha vida porque eu morei dois anos com a minha avó e meu tio, antes de vir para o Brasil, dois anos entre o fim da Guerra e vir para o Brasil. E ele era cenógrafo e figurinista, diretor de arte de cinema, e foi muito encantador acompanhar o trabalho, porque o ateliê dele era em casa, um daqueles apartamentos antigos, em Roma. Bonito... Em Roma histórica, nós sempre moramos em Roma histórica. Cheio de obras de arte, tinha uma biblioteca esplendorosa e vinha desenhista desenhar os figurinos, o desenhista dos cenários fazer as maquetes, desenhar os cenários e eu debruçada na prancheta. Era muito alimentício, se eu posso usar essa palavra... A família era essa! Esse tio, eu tive convivência no fim da Guerra. Durante a Guerra praticamente não nos vimos. Eu só lembro uma vez ele estar com a gente num dos tanto hotéis que vivemos e eu lembro dele sentado na cama tirando as bandagens da perna. Não era ferida, o uniforme tinha umas bandagens. Olha como o tempo mudou. Umas bandagens cáqui, que a perna era toda enfaixada nessas bandagens de proteção.
P/1 - Como que era pra uma criança imaginar o que contavam da guerra, imaginar que tava vivendo uma guerra, como que era pra sua cabeça isso? De criança?
R – A guerra, quando a gente está nela, não é nada parecido com o que você pensa. Tem até uma conferência que eu fiz sobre isso que se chama “Lendo na casa da guerra”. Porque quando você está na guerra, ela é uma normalidade, sobretudo se você nasceu nela. Eu praticamente nasci na guerra, a partir do momento que eu tenho memória do final de Trípoli, antes dos quatro anos. Eu lembro do avião que a gente saiu de Trípoli. Nós viemos de avião, sempre fomos modernos... Mas a minha memória verdadeira começa e já é guerra! Então a guerra é uma forma de normalidade. A guerra não é caótica, ela simplesmente muda os códigos, altera os códigos, estabelece-se outros códigos. Então na guerra, as janelas tem que ter cortinas, algumas são pintadas de azul-marinho; na guerra, depois das oito horas você tem que fechar todas as janelas porque não pode passar luz; na guerra tem comida que tem, tem que comida que não tem, enfim... Mas a guerra cria os seus próprios códigos, as suas próprias estruturas. Inclusive, o perigo faz parte da guerra. Por exemplo, eu agora moro na guerra, ninguém chama a guerra, mas eu moro na guerra, você mora na guerra. Nas grandes cidades brasileiras moramos em guerra, se você vai para uma cidade da provance, se eles souberem o que acontece aqui, eles vão ficar horrorizados, “Como é que você aguenta viver em guerra?” Mas a gente cria os códigos: depois dessa tal hora eu não passo nessa tal rua, depois dessa tal hora eu vou de táxi em algum lugar, a guerra é a mesma coisa... Eu não vivi horrores maiores... Eu tinha medo, eu era a única pessoa que tinha medo na minha família. Meu irmão, se tinha, ele evidentemente não demonstrava e debochava muito dos meus, o que me deixava mais sozinha, que era como se não fosse para ter medo. Eu tinha medo em algumas ocasiões. Por exemplo, quando moramos em Commo - é uma cidade grande, a beira de um lago - já era adiantada a guerra, os últimos dois anos, quando soava o alarme antiaéreo meu pai vinha me buscar de motocicleta no colégio. Foi o único ano que eu estudei em colégio regular, todo o meu ensino foi feito de outra maneira, no primário. Hoje em dia chamado básico, acho pouco para o que é, enfim são parentes. Ele vinha me buscar de motocicleta, então eu ficava torcendo para ter alarme antiaéreo, para ele vir me buscar de motocicleta, porque eu achava o máximo andar de motocicleta. Isso só acontecia quando tinha alarme. Só que alarme significava bombardeio e nós nunca fomos para abrigo. Meu pai dizia que para morrer é melhor morrer como gente do que como rato, e que se fosse para abrigo corria sério risco de morrer como rato, e que então nós não iríamos para o abrigo. Nunca fui num abrigo.Não tinha medo. Mas eu vi um bombardeio na casa seguinte e vi uma casa toda pegando fogo, a 5 km, 10 talvez da minha casa. Via aquelas labaredas. Daí eu tinha medo. Esse foi o período que eu tive medo nessa casa. Bombardeio: você está na sua casa e de repente ouve aquele ronco, olha pra cima e são os aviões, você tá vendo na sua cabeça. Você olha para cima a bomba tá caindo na sua cabeça. Claro que ela não vai cair na sua cabeça, porque tem inércia, tem não sei o que, não sei o que, ela vai sair pra lá. Mas até você ter certeza de que isto vai acontecer, quando você tem seis anos, sete, é um pouco complicado, você acha que ela vai cair na sua cabeça. Mas talvez não fosse pior do que a gente vive hoje.
P/1 - E amigos?
R – Eu tive tantos amigos! Maravilhosos! Primeiro o meu irmão, que foi um amigo múltiplo, porque ele era o meu ídolo. Mais velho, que sempre tudo o que ele dizia era mais certo do que o que eu falasse. Ele me deixou essa certeza muito nítida desde o início “Você é burra e eu sou o inteligente, você é fraca e eu sou o forte, você cala a boca se não eu te dou uma porrada!”. Mas a parte isso, nós nos amávamos. E ele desempenhava vários papéis, inclusive nós tínhamos um casal de amigos imaginários, com os quais a gente brincava, porque nós éramos sozinhos.
E depois, nós líamos sem parar. Sabe o que é sem parar? Ler, ler, ler, ler, os dois últimos anos e tal da guerra foi quando a gente mais leu. E como nós devoramos livros. E, portanto não havia solidão nenhuma, por quando você está lendo... E depois nós brincávamos com Sancho, Dom Quixote, os heróis do Salgari,... Tudo, nós tivemos muita companhia, os livros nos fizeram imensa companhia. E quando a Guerra acabou nós nos mudamos para uma cidade bem pequena, uma cidade na costa adriática, onde a gente tinha estado antes da guerra, porque era a região a qual o meu avô era especialista, era região preferida dele em termos de arte, do século XV. Então já era um lugar de veraneio do meu avô e da minha avó, portanto do meu pai, e passou a ser nosso. Depois da Guerra, em vez de ir pra Roma que estava muito conflagrada, nós fizemos um pit stop nessa cidade, durante um tempo. Nessa cidade então nós tínhamos muitos amigos, tivemos uma tribo de índios pele vermelha, meu irmão evidentemente era o grande chefe, Olho de Águia. Foi o diário, olha o diário. Eu era a irmã do chefe, e eu tinha um nome maravilhoso que até hoje eu cultivo, que se chama Sole Ridente, e nos divertíamos muito.
P/1 – Esses livros, eram livros da família, eram livros da biblioteca, eram livros de escola?
R – Nós não íamos em escola, nós estudamos de outra maneira. Os livros eram comprados, nós chegávamos numa cidade, nós comprávamos um monte de livro pra gente. Quase que a totalidade do meu estudo, menos esse tal ano que eu estudei em Commo, com as ursulinas, eu estudei e meu irmão também na casa das professoras. Porque paramos em muitas cidades pequenas. Então nas cidades pequenas, a escola eventualmente não estava funcionando, porque eram requisitadas para ser Quartel Genral, porque a escola na Itália não é feita como no Brasil, que alguém pega uma casa, depois compra do vizinho, fazem... Não é uma coisa adaptada, era um prédio construído há vários séculos para serem escolas, por tanto grandes, com ambientes amplos, o que os tornava ideais para serem QGs. Então eles eram muito requisitados pela guerra e a escola deixava de funcionar regularmente, ou então a gente chegava no meio do ano e não podia se inscrever na escola regular. O fato é que as professoras transformavam a sua casa em escola. E era uma maneira de estudar muito deliciosa, porque era na casa delas. Uma mesa grande, redonda muitas vezes, ou comprida, com várias crianças e cada uma num ano diferente. Não eram todas da mesma idade. Tinha umas que estavam no primeiro ano, outras no terceiro. Quando eu fui alfabetizada, eu fui alfabetizada porque eu fui levar o meu irmão. Eu tinha que esperar um ano, mas eu fui só levar ele pra ver como é que era e eu fiquei tão encantada, chorei tanto, que a professora disse “Bom, então hoje ela fica”. Botou uma porção de almofadas na cadeira porque eu era baixinha, e eu sentei ali. Eu brinco e digo que estou até agora sentada ali, porque eu nunca mais deixei de estar escrevendo e aprendendo a escrever. Então a gente aprendia assim, nós estudamos desta maneira.
P/1 – Você tem alguma lembrança do primeiro livro?
R – Não tenho, porque eu não tenho lembrança de ausência de livro. Eu sou de uma cultura leitora. Um país... Mais do que um país, a Europa. A Europa é leitora, a Itália é um país leitor, então uma casa sem livro pra mim é inconcebível. Eu nunca ganhei um primeiro livro, os livros estavam ao meu redor sempre. Quando eu não sabia ler, a minha mãe lia pra mim. Então depois é que eu aprendi a ler. É um contínuo. Não tem um momento que o livro entra, o livro sempre esteve.
P/1 – Mas há alguns livros, algumas histórias que te contavam, alguns livros que depois você foi ler que te marcaram muito, que conturbou a sua cabeça de criança...
R – Os contos de fada, seguramente, porque hoje em dia eu já posso dizer que tenho uma obra... Quer dizer, eu detesto esta palavra, pode parecer muita pretensiosa, mas eu quero dizer que eu tenho um corpus em contos de fada já consistente. E são raros os autores que trabalham com contos de fada hoje em dia, é complicado trabalhar com contos de fada. Porque é confundido com literatura infantil, tem uma série de percalços. É claro que isso me vem de uma paixão. Toda a minha primeira infância, eu fui orientada com contos de fada, eu tenho até hoje uma peça, que é uma peça de museu, uma coleção de Pinóquio gravado em discos, que eu ganhei quando tinha seis anos, seis pra sete anos. São 18 discos de papelão, eram feitos de papelão para criança não se machucar. Estão dentro de uma caixa e cada disco vem dentro de uma capa que abre, vem dois discos, porque você abria e botava em pé e aquilo era uma espécie de um cenário, pra você ouvir vendo mais ou menos a cena onde a coisa se passava. Eu tenho isso guardado até hoje, eu não sei como isso atravessou tanta guerra, tanta mudança, tanto desfazer-se, porque na guerra você se desfaz de tudo, você viaja com as malas, as roupas do corpo e acabou-se, o resto tudo vai ficando para trás. Não sei como isso sobreviveu, porque isso é anterior ao fim da guerra, ganhei quando estava em Commo. Então, os contos de fada seguramente, e depois há uma coleção que foi muito marcante, pra mim e pro meu irmão. Essa coleção se chamava La Scala D´oro. Era uma coleção de clássicos adaptados para jovem. Eu sei hoje porque o meu irmão se lembrava disso, eu tinha até esquecido, ou nunca tinha reparado. Eles eram para crianças de 13 anos para cima, e nós éramos muito menores, sete e oito, porque o meu irmão é um ano mais velho. Meus pais desconheceram essa diferença de idade, graças a Deus! Porque eu já disse não era um casal parental, muito careta, muito regular. E nos deram os livros desta coleção. Isso para mim foi uma epifania como leitora. Porque foi nesse período que a gente lia sem parar em Commo e na cidade seguinte. Lemos Ilíada, a Odisséia, Orlando, o furioso, as Lendas Arthurianas, Dom Quixote, Viagens de Gulliver, Robson Crusoé... Olha, nós líamos a literatura universal, os grandes livros da literatura universal. Claro, não lemos Madame Bovary, mas nós lemos os livros fundadores, e isso ficou no nosso imaginário. Lemos os mitos gregos, lembro que um dos livros era sobre os mitos gregos. Nós ficamos siderados, meu irmão quando era criança, no ano seguinte ou dois anos depois, quando ele desenhava - fazia aqueles desenhinhos de criança em beira de caderno - desenhava sempre guerreiros gregos com aquele elmo com crina de cavalo, aquele escudo redondo, Aquiles, Agamenon. Quando eu fui na Grécia, uns dez anos atrás com o Affonso, que eu fui ver o palácio dos leões a máscara de Arameno, poxa, era o meu íntimo. Isso deixa uma marca indelével. Deixa talvez no inconsciente essa sensação de porta de entrada para compreensão do mundo. Não é outro mundo, é outra maneira de entrar.
P/1 – Marina, o seu irmão, como é o nome desse seu irmão? Você ainda não falou o nome desse irmão esse que era mais... Não o que faleceu o outro... Como era o nome dele?
R – Arduíno foi ator. Meu irmão era um homem deslumbrante, de fato deslumbrante. Não sou eu que digo. Eu também estou dizendo, mas ele foi reconhecidamente um belo da sua geração. Um homem inteligente, um homem macio, um homem de alma macia, ator. Fez todos os filmes do Nelson Pereira dos Santos, O Justiceiro, Como Era Gostoso o Meu Francês. Mas ele é um homem do mar, ele é um golfinho, ele tem qualquer relação estranha com a água de sal... Ver o meu irmão nadar, hoje em dia não vejo mais, mas ver o meu irmão nadar era um espetáculo muito especial. E eu nadei muito com ele, nós nadávamos juntos, ele me levava. Nós fomos mergulhar em Lages, dentro do mar, costões, íamos mergulhar no largo da Barra da Tijuca, quando a Barra da Tijuca não tinha estradas, não tinha construção, não tinha nada, era um deserto. E nós íamos mergulhar num navio afundado que havia lá, era um pesqueiro. Mas a relação dele com o mar era muito especial, tanto que ele é mergulhador profissional. Ele trabalhou na Petrobrás em conservação de estruturas metálicas, um técnico em conservação, mergulho de alta profundidade. Ele é uma pessoa muito especial o meu irmão.
P/1 – Marina tinha, ou você se lembra de algum sonho de infância? Mesmo os mais malucos como toda a criança tem?
R – Durante muitos anos, muitos anos, muitos anos, eu achei que fazer projetos era uma coisa muito arriscada, que eles não se concretizariam, que a vida não permitia ninguém fazer projeto. Eu não vivi a infância num período de projetos. O projeto era a sobrevivência. Na guerra, o grande projeto é a sobrevivência. E o projeto quando a guerra acabar “Haverá um momento que a guerra irá acabar!” Acho que em Tróia também diziam isso, “A guerra vai acabar, um dia acaba... Quando a guerra acabar farão coisas, mas até lá você adia os projetos”. Quando eu era bem pequena eu queria ser enfermeira da Cruz Vermelha, claro, é um projeto que se faz na guerra, era o papel heróico que estava reservado às mulheres. Os homens queriam posar de perfil ao vento, os heróis... O único heroísmo permitido às mulheres era ser enfermeira da Cruz Vermelha, Florence Nightingale modernizada, era isso. Depois, quis ser atriz, como projeto mais adulto. Quando eu vim pro Brasil, eu queria ser atriz, eu me preparei para ser atriz, o que é muito engraçado porque meu pai virou ator, meu irmão ator e minha filha mais jovem agora é atriz. Eu me preparei para ser atriz. Houve um momento que meus pais se separaram e eu voltei com a minha mãe para a Itália e a minha mãe ia me inscrever na escola de arte dramática, estava tudo pronto para isso. Verificou-se que ela estava com câncer e o projeto de arte dramática foi pro espaço porque a minha mãe queria voltar para o Brasil e ficar com o meu pai. Eu cheguei a fazer um curso de teatro rápido com o Celli, Adolfo Celli, fui colega do Thiré, no curso do Celli. Mas depois eu pensei o que seria a vida de ator no Brasil naquela época. Era uma coisa muito exclusivamente noturna, de poucas possibilidades. Aí mudei. Também que eu muito cedo começasse a desenhar, me encantei com arte, comecei a estudar pintura. Quando eu fui com a minha mãe pra Itália, que eu ia fazer arte dramática, eu já pintava, já tinha estudado pintura. Então a segunda opção: eu fui para a escola de Belas Artes, para ser artista plástica.
P/1 – Eu vou voltar só um pouquinho, para perguntar sobre o momento da vinda para o Brasil... Como é esse comunicado que vocês viriam para o Brasil? Como é a escolha da cidade? Como é essa vinda mesmo, esse barco...? Enfim conta um pouquinho desse momento para gente...
R – A escolha da cidade, óbvia, porque o meu pai tinha vivido aqui. Quando ele tinha vinte e poucos anos ele viveu um ano aqui, no Rio de Janeiro, que era onde vivia a minha tia. Naquela época, ela morava na ilha, que pertencia ao meu tio Henrique. A família Lage era dona de três ilhas na Baía de Guanabara. Uma era estaleiro, outra era a ilha das residências e a outra era onde ele ia fazer uma indústria de aeronáutica. E depois ele construiu para ela a mansão do Parque Lage. Então quando o meu pai morou aqui, ele morou na ilha do Vianna, e quando nós viemos, já fomos durante um ano morar no Parque Lage. Depois saímos, depois voltamos, enfim... Que hoje é uma escola de arte, hoje pertence ao Estado. Meu pai saiu no primeiro navio que saiu da Itália para o Brasil, vieram dormindo em redes. Em 46 ele saiu. Ele saiu porque ele era fascista e ele considerou que tinha perdido a Guerra. Eu digo ele era fascista, mas veja bem, a gente quando fala há certo maniqueísmo na vida, todos nós temos. A gente quando diz que uma pessoa é de direita, fica logo com chifres, horrenda. Meu pai era uma pessoa de direita, ele era fascista, eu suspeito que mais pelo prazer da aventura, na verdade. Ele era uma pessoa do século XIX, mais do que do século XX. Ele adorava ir pra guerra, gostava de aventuras, gostava de mulheres, gostava de álcool, não estava muito interessado em ideologias, na verdade. Mas, de qualquer maneira, ele não quis ficar na Itália, então veio embora para o Brasil. Então desde aquele momento nós soubemos que viríamos ao Brasil, porque foi uma decisão. Só que para fazer o documento de quatro pessoas porque nisso havia se agregado a nós uma prima que ficou órfã, pai e mãe morreram, sobrinha da minha mãe. E minha mãe então, assumiu essa menina. E éramos quatro: nós três mais a minha mãe. Cada um nascido num lugar. E fazer os documentos foi uma coisa muito complicada. Eu sei que no final das contas nós demoramos dois anos para vir para o Brasil, mas sempre soubemos durante esses dois anos que viríamos ao Brasil. Minha avó também conhecia o Brasil, tinha estado aqui várias vezes, porque o meu avô além de ter vindo para o casamento, ele veio fazer conferências, ele veio assumir uma cátedra em Buenos Aires, então ele veio várias vezes ao Brasil. A minha me contava como era o Brasil. Não era como nada daquilo que ela me contava, porque ela tinha visto muitos anos antes. Então a primeira visão do país aonde eu viria também foi equivocada, porque poucos meses antes de vir, passou na Itália o famoso filme do Walt Disney, que na Itália se chamava Saludos Amigo, então eu vi o Brasil, e não vi nada. Eu vi um filme de Disney que não chegava a ser o Brasil. Então eu vim para um Brasil absolutamente fantasioso, mas eu sabia que eu ia mudar de maneira definitiva. Viemos de avião, Costelation. Acho que era um dia, uma noite, um dia, uma noite e manhã, era o período de vôo. Parava em Lisboa, parava em Dakar, parava em Recife, parava, parava, parava... Nós saímos de Roma, ainda era aeroporto militar, ainda era o aeroporto da guerra, pista de ferro, chapas de ferro. São chapas grandes de ferro, vão botando e fazem a pista, sem ter que asfaltar... Vomitei de Lisboa até aqui, cheguei aqui um trapo e me deram de comer mamão. Quase morri, detestei mamão, porque eu achei que era melão e era mamão. Mas eu tenho muita clara a sensação da primeira noite no Rio de Janeiro, a casa. O Parque Lage é no meio daquele Parque Mata Atlântica. Naquela época era silencioso, a Rua Jardim Botânico era uma rua decente, não era aquele caos barulhento que é hoje. Janela aberta, aquela noite estrelada, verão, nós estávamos chegando de final de inverno, era março. Final de inverno na Europa ainda é frio, eu de sainha de lã, suéter. E aquela coisa ainda bêbada de avião, pensei “Cheguei!” e aqueles barulhos de noite tropical, aqueles perfumes tropicais, um outro cheiro, um outro tudo, bonito, foi bonito chegar. E depois da primeira noite, uma entrada no Brasil muito especial. Porque a casa era um reduto italiano, no sentido que o meu tio Henrique havia contratado uma parte de uma tripulação de um navio que no início da Guerra ficou preso na Ilha das Flores, um navio de Trieste. E que pegaram a tripulação toda, botaram na Ilha das Flores e ficaram prisioneiros. Então meu tio, até para tirar eles da ilha, para que eles ficassem livres, contratou para serem empregados domésticos na casa. Então, os empregados grande parte eram italianas, cozinheiro, mordomos, camareiras, todo mundo falava italiano. Os tios todos falavam italiano, é uma casa gigantesca. Então na casa, além da tia Gabriela, morava naquele momento uma irmã dela que já morreu, que ia e vinha da Itália, vinha visitá-la; morava um primo com a mulher e um filho e morava uma outra prima com marido e dois filhos. Então, a casa, às cinco da tarde começa a chegar os amigos, e a casa era um pouco um reduto italiano, onde a gente falava italiano. Era tranquilo, onde estávamos num jardim imenso que era só para nós, só para mim e meu irmão, Tarzan e Jane, soltos na selva! Brincamos loucamente nesse jardim, esse Parque enorme! Nossos pais uns delirantes, porque nos largavam soltos. Nós podíamos ter morrido umas quatrocentas vezes no mesmo bosque, só iriam saber quando o urubu fosse nos comer. Soltos, subindo em árvore, nos metíamos por dentro da selva, aquilo era uma selva mesmo e a gente metido ali dentro. E meus pais contrataram um professor de português que vinha nos dar aula naquele salão imenso, todo de mármore, umas mesas venezianas, cheio de aplique, mesas trabalhadíssimas, tudo desconfortável. O velhinho nos dando aula e nos contando quando ele ia pra escola nos ombros do escravo. Imagina para duas crianças italianas do século XX falar com alguém que ia para a escola nos ombros do escravo... Ele já era velhinho. E assim fomos entrando no Brasil...
P/1 – E como que era o contato com a língua portuguesa?
R – Através deste professor e através de história em quadrinho, nós aprendemos muito português com história em quadrinho. Porque um desses primos que morava na casa, tinha um problema de coluna e naquela época não se operava coluna no Brasil, ou pelo menos não se operava bem. Então ele ficava deitado, porque o problema de coluna dava dor numa perna. Ele passava os dias deitados enquanto esperava ser operado nos Estados Unidos. Então como se aborrecia e ficava numa camona de casal, ele mandava o motorista da casa comprar todas as revistas de quadrinhos da banca, botava meu irmão deitado de um lado e eu deitada do outro, e ficava lendo e traduzindo para nós as histórias em quadrinhos. Era a maneira que ele tinha de se distrair e assim nós aprendemos português. Uma maneira insólita eu diria, mas foi muito divertido, porque foi indolor.
P/1 – Mas não era uma coisa difícil então, era uma coisa que ia como uma brincadeira a língua?
R – Eu não lembro de nenhuma dificuldade, eu não lembro nem de nenhum esforço, não lembro de sacrifício, não lembro de nada disso. Mas eu devo dizer a você, que também para mim, eu aprendi todas as línguas assim, sem sofrimento, sem esforço e sem sacrifício. Para mim as línguas são fáceis, eu tenho uma facilidade pata línguas. Não é nenhuma virtude minha pessoal, é cerebral, não sei. Então muito fácil aprender português. O problema é que aprendemos tão bem, que ficamos irados com o que se fala hoje no Brasil. Meu irmão e eu ficamos histéricos. Affonso diz que eu sou copidesque do mundo, porque não se usa crase, porque vocês não respeitam as concordâncias, as regências, eu digo “Vocês não gostam da língua de vocês! Vocês estropiam tudo!” Porque a gente se apaixonou pela língua, nos apropriamos da língua.
P/1 – E como foram os primeiros relacionamentos de amigos aqui, criar um vínculo... Fora familiar, mas esse vínculo mais escola, como é que é? Teve um momento que saíram mais da família para uma coisa mais...?
R – Certa demora. Primeiro, quando fomos ao colégio, fomos para colégios diferentes, não sei porque, mas meu pai que escolheu os colégios. Na verdade não era a pessoa mais indicada, porque ele era uma pessoa muito aérea, mas ele escolheu para mim o Liceu Francês e para o meu irmão o Anglo-Americano. Não sei porque também ele não me colocou no Anglo-Americano, ou não colocou o meu irmão no Liceu Francês. Mas no Liceu Francês, ele não me botou no lado francês, o que teria feito de mim uma francófona plena. Infelizmente ele me colou no lado português, porque ele considerou justamente que eu vinha pro Brasil e tinha que ser brasileira. Tanto que nós nunca frequentamos colônias, nós nunca andamos em ambientes de emigrados, nunca! Botou-me em um colégio franco-brasileiro porque era um bom colégio, que naquela época era fundido com o Liceu Francês, ficava no mesmo prédio. Aí eu fiz amizades no colégio, mas não grandes amizades, mesmo porque era toda gente que morava em Laranjeiras, colégio Laranjeiras, e eu morava no Jardim Botânico. Era um colégio grandemente da colônia judaica, porque a Hebraica era em Laranjeiras . Eu fiz colegas de colégio, mas não fiz nenhuma amizade. Depois, quando nós saímos do Parque Lage, do Parque Lage, também veio dos Estados Unidos uma prima que veio morar no Leblon. Nós nos mudamos para o Leblon, para o prédio da tia Gabriela, que era dela, e onde morava já outro primo, esse da prima dos Estados Unidos, a filha dele. E aí fiz os primeiros amigos. Uma amizade, que é meu amigo até hoje, Tomasz Barciński. Eu o cito, porque ele se transformou em tradutor, tornou-se depois de aposentado, hoje ele é o maior tradutor de literatura polonesa no Brasil, traduzindo todas as obras importantes do português para o brasileiro. Foi o meu primeiro amigo, meu e do meu irmão no Brasil, porque morávamos no mesmo bairro. Aí começamos a fazer alguns amigos. As amizades mesmo eu fiz mais tarde, quando moramos no Leblon. Aí fiz mais amigos no Leblon, fizemos um grupo de amizades. Depois voltamos, eu voltei para a Itália, tive uma temporada, quando eu ia fazer arte dramática; e depois voltamos para o Brasil, voltamos a morar no Parque e começamos a fazer amigos de praia. Então eu fiz as minhas amizades, que são as minhas amizades até hoje. Aos quinze anos nós estabelecemos amizades que duram até hoje, de praia, do Arpoador. A partir dali virei uma pessoa de Ipanema, mesmo não morando em Ipanema. E depois quando eu saí do Parque Lage, eu fui morar em Ipanema, mas mantendo essas mesmas amizades. Fui fazer o clássico no colégio Marly Souza, que era o colégio das pessoas como Roberto Menescal, uma porção de gente. Fomos colegas todos do Marly Souza, naquela época.
P/1 – A praia então, vira uma constante então, da sua vida?
R – Ah sim! A praia foi uma constante da minha vida. A partir dos quinze anos, dos quinze até entrar no jornal, eu fui uma pessoa de praia. Fizemos os primeiros biquínis, ninguém usava biquínis. Nem duas peças se usava. Começamos com duas peças, depois evoluímos para o biquíni.
P/1 – E esses outros amigos? Quer dizer, amigos de outro universo, os livros, os autores brasileiros, como é esse primeiro contato? Como é quando você começa a ler português e os autores brasileiros propriamente ditos?
R- Uma decepção foi o clássico, porque na Itália, quem tem cabeça - hoje não sei - mas naquela época ia para o clássico. Quem era bobinho ia para o científico. O clássico é que era o estudo difícil, e você estudava muito grego e muito latim e estudava os clássicos. Então eu fui para o clássico! Aqui o clássico era uma porcaria absoluta, eu atravessei o clássico sem estudar Os Lusíadas. Como você faz o clássico e não estuda a obra mais importante da língua? Não sei, aconteceu isso. Álvares de Azevedo só. Não se estudava literatura, essa que é a verdade. Não li poetas brasileiros, nada, foi uma frustração terrível para mim, porque eu fui preparada para o meu mergulho intelectual e a piscina estava vazia! Isso foi o que aconteceu. Então, o meu contato com os autores brasileiros se fez de duas maneiras: um professor avisou - não meu professor, um professor do científico, que é para onde iam as pessoas de cabeça no Brasil -, avisou que estavam distribuindo de graça uns livrinhos, no Museu da Educação, no Ministério da Educação. Naquela época o Rio era capital. Então, nós fomos correndo para o centro da cidade buscar o livrinho do Manuel Bandeira e aí eu mergulhei em Manuel Bandeira. Uma ediçãozinha, uma gracinha, eu tenho até hoje. Drummond eu achei empilhado numa pilha de livros lá em casa no Parque Lage, vi aquele livro “O que é isso ?” Comecei a ler e poxa, conheci Drummond. A paixão da nossa juventude foi Clarice, descoberta na revista Senhor, nem sabíamos que era um gênio. Nós comprávamos, rachávamos o custo, eu e meu irmão, da revista Senhor. E uma vez eu lia antes e a outra vez ele lia antes. Era rachado e a grande razão pra nós comprarmos era Clarice, nós nos deslumbramos com Clarice, uma paixão desde o início. Eu entrei por essa porta na literatura brasileira, então eu tenho grandes falhas, tenho buracos enormes na literatura brasileira porque eu entrei de viés, fui ler os modernos e a maioria dos clássicos ficaram. Eu, por exemplo, só fui ler Monteiro Lobato, quando eu já estava para lá, quando já estava no Jornal do Brasil.
P/1 – Então, conta um pouquinho, fazendo esse salto agora para esse momento que você vai estudar artes, vai fazer Belas Artes, não é isso? Conta um pouquinho... A escolha você contou, conta um pouquinho desse momento, da faculdade...
R – Arte é uma coisa linda. Se não fosse pelos artistas vivos, seria uma maravilha você viver em arte, artes plásticas. Se não fosse pelos artistas vivos, porque aí é a canalhice de qualquer profissão, a mesma luta pela sobrevivência, o mesmo jogo pesado que tem em qualquer profissão. Também não vamos idealizar. Você está mergulhado em arte, livros de arte folheados nas bibliotecas, nas livrarias, que eles eram caríssimos. O Brasil tinha muita pouca coisa, aí eu comprava aquelas edições baratinhas, porque eu tinha na cabeça a coleção de livros de arte do meu avô, a biblioteca do meu avô, que era uma biblioteca esplendorosa. Eu sonhava que viesse para mim e não veio. Era muito bom, porque eu tinha estudado artes desde os quinze anos e aí entrar na faculdade, ficar fazendo isso o dia inteiro, aula de desenho, aula de escultura, aula de modelagem, aula de modelo vivo, aula de sei lá, muito bom! Eu namorava naquele momento um rapaz. Ele também era de uma família de artista, que morava no antigo ateliê dos pais, então era todo um clima muito bom. Era bonito e a faculdade era linda, era na Araújo Porto Alegre onde agora é a Funarte, nos corredores de onde agora é o museu de Belas Artes. Ali era a minha escola, a minha universidade. Eu andava naqueles corredores dia e noite. Era muito bonito, foi muito bom, o centro da cidade era ótimo naquela época.
P/1 – E tinha essa afeição por Caterina Baratelli?
R – Caterina Baratelli foi antes, Caterina Baratelli foi uma pessoa muito interessante! Ela era uma mulher de altíssima burguesia, muito bem educada, muito bem nascida, chiquérrima, o ateliê dela. Ela tinha trazido os móveis da Itália, espelhos venezianos, consoles do século XVIII, chiquérrimo o ateliê dela. Minúsculo, uma cobertura em Ipanema. Era uma cobertura pequena, era muito bom. Eu saía às duas da tarde do Parque Lage, pegava ônibus, e ficava lá até as quatro, cinco, até a luz acabar. Era ótimo, eu amava! Depois fui para a faculdade, e quando acabei a faculdade comecei a fazer gravura em metal. Aí eu estudava na escolinha de artes do Augusto Rodrigues, tinha um ateliê de gravura em metal. E Orlando Rodrigues era o meu professor, grande gravador. Eu ia para lá e ficava o dia inteiro, era um paraíso! Era uma felicidade sem igual! Porque você fica fora do mundo, você acorda e só pensa em ir para o ateliê e fica esse tempo todo só armando na sua cabeça espaços, preparando na sua cabeça o que vai gravar. Aí você vai para o ateliê e é um universo aparte do mundo. Você com os seus colegas, aquele cheiro da tinta, do óleo de linhaça que derrete a tinta... E fica ali o dia inteiro, até escurecer. Escureceu?Acabou? Vamos fechar o ateliê, cinco horas, seis horas, sete horas, vamos fechar o ateliê. Aí eu saía, a cidade deserta, eu atravessava a cidade. Imagina hoje em dia, já tinham me assaltado duzentas vezes. Eu saia e atravessava aquelas colunas do Ministério... Era perto do aeroporto o ateliê. Eu atravessava aquelas colunas do Ministério da Educação, passava por ali para pegar meu ônibus e voltar para casa. Ai que felicidade! Morava em Ipanema já... Era muito bom! As mãos todas ruídas de ácido, mas era uma alegria! Comecei a trabalhar com isso, fazer exposições, entrar nos salões, ganhar uns premiozinhos. Aí que eu comecei a descobrir o lado ruim da questão. Havia uma rivalidade. A turma que gravava no Museu de Arte Moderna era contra a turma que gravava não sei aonde... Eu nunca fui de turma, eu não sou andorinha, não ando em bando. Eu nunca tive partido, odeio vida de clube, eu sou uma sozinha! Fiz feminismo sozinha! Não é que eu não goste de pensar coletivo. O pensamento coletivo é necessário, mas eu não sou uma pessoa de bloco, portanto essas questões para mim eram simplesmente desagradáveis. E aí aquele tititi, “O prêmio desse ano já está decidido, quem vai ganhar é fulano”, antes do salão abrir todo mundo sabia quem ia ganhar e ganhava mesmo. Sempre foi assim. Mas essa era a parte desagradável, então você se inscrevia no salão porque tinha que ir, de repente seu professor dizia “Você tá pronto para entrar, você tem que começar!”, e você começava. Depois não te devolviam o trabalho, o trabalho não voltava, aquelas coisas... Mas começava, era bom. Mas a coisa melhor não é entrar no salão, bota a chapa na prensa, bota o papel molhado em cima, bota o feltro e roda a prensa, era manual, aí você levanta o feltro, aí você pega a pontinha do papel e vai levantando devagar, igual jogador de poker quando abre a carta, fica chorando quando levanta a carta, você fica chorando “Que essa cópia seja boa!”, aí você olha e os colegas olham, todo mundo a palpitar. “Aqui falta um pouco disto, vou polir ali, vou por um pouco mais de preto aqui”... Aí você volta a trabalhar na chapa, você fica semanas em cima de uma chapa de metal. É uma entrega, é uma coisa tão bonita, eu lamentei não poder ficar com isso. Mas abri mão, abri mão até certo ponto porque eu queria ganhar a vida, queria ser independente e isso iria demorar muito, ia levar muitos anos. Meu pai não se incomodava de me sustentar, não, eu é que me incomodava, eu queria a minha independência então, fui trabalhar em jornal em 62.
P/1 – Conta como é esse sofrimento de largar, ir para o jornal, conta um pouco como que é isso...
R – Não me dei conta de sofrimento, porque o jornal é um pique, é uma emoção muito grande. Eu fui para o jornal porque amigos meus acharam que eu tinha talento para escrever. Os amigos foram Yllen Kerr, que era jornalista do jornal do Brasil, já faleceu; e Millôr Fernandes, que eu namorava naquela época. E o Yllen então, me levou para o jornal “Não, vamos levar a Marina”, nós éramos muito amigos, estávamos sempre os três muito juntos. E “Vamos levar a Marina para o jornal, a Marina escreve bem!”. E lá fui eu para o jornal, para o segundo caderno do Jornal do Brasil, que foi uma felicidade, porque era um lugar maravilhoso para se trabalhar, o melhor que poderia ter acontecido para mim, porque era o grande jornal. O Globo era o jornal careta, conservador, as coisas aconteciam, se acontecesse no Jornal do Brasil, aconteciam para o Brasil. Então eu tive a sorte e fui logo para o Segundo Caderno, eu fui para ser repórter. E fiquei repórter sei lá, dois meses, não mais que isso. Porque aí eu fui para a redação, por causa do texto. Era uma coisa, não havia mulheres redatoras naquela época, mulher copy não, só mulher repórter. Foi muito bom, aprendi tudo, fiz básico, mestrado, doutorado, doutoramento, pós-doutoramento, só na redação, aprendi tudo na redação. Foram anos muito bons, muito emocionantes, muito dentro da coisa, dentro da cidade. A gente era dono da cidade, sempre antenados, inventávamos página, página de verão, página daquilo. Porque eu tinha texto e logo me puseram para escrever crônica, e a partir de escrever crônica eu comecei a escrever para mim. Foi uma decorrência natural, não tive que fazer grandes saltos, entendeu? Comecei a escrever para mim e pronto. Pronto nada. O livro ficou cinco anos na gaveta, sem editor.
P/1 – Esse talento que os seus amigos enxergaram na escrita, que eles liam anterior ao jornal que chamava a atenção? Se sempre escreveu? Conta um pouquinho essa trajetória de escrita, que eles foram lendo, crônica, o que você fazia antes?
R – Cartas de quando eu viajava. Eu acho que eles viram mais do que o texto, eles viram uma formação invulgar, porque para uma jovem brasileira daquele momento. Eu tinha outra formação, já tinha uma maletinha mais bem formada de conhecimento, de livro, de um olhar ligado em arte, de um olhar ligado em teatro, um olhar ligado em literatura, e o Caderno B era isso. Foi o conjunto que eles viram, tanto que eu fui para a reportagem, não fui para a redação, e naquela época repórter não escrevia. Quem escrevia era o redator, era o copy. Acho que foi isso que eles viram. Naquela época ia para jornal, quem tivesse talento, imaginação, porque não havia Faculdade de Comunicação. Faculdade de comunicação é posterior, eu acho... Quem estava na redação naquela época? Nelson Pereira dos Santos, Tite de Lemos, Luiz Carlos Maciel, o João Antônio foi meu redator, Roberto Dummont foi meu redator, Fernando Gabeira foi meu redator, do caderno B; digo meu porque eu chefiava. Enfim, outro tipo de população no jornal. Foi por isso que eu fui para o jornal e no jornal porque eu sabia desenhar, porque eu queria aumentar o meu salário, eu fazia ilustrações, eu ilustrava para o B. Durante muito tempo eu fiz colunas de moda para ilustrar, com ilustrações de moda, para aumentar a minha rendazinha no fim do mês. Eu fiz tudo no jornal: fui colunista, fui ilustradora, fui chefe de redação, fui secretária, fui pauteira, fui tudo. E aí saí de casa, fui morar sozinha. Fui morar sozinha antes de entrar para o jornal, alguns meses antes, por isso que eu tinha que ter um emprego.
P/1 – E nessa época do jornal foi também o Brasil da ditadura como que foi conviver?
R – Isso foi posterior um pouco, eu fiquei onze anos no Jornal do Brasil, era mais adiante. A gente assistiu coisas na janela... O jornal era na Rio Branco, as passeatas na Rio Branco, os cavalos, o rapaz morto na Rio Branco, a gente viu pela janela. Chegou uma hora que proibiram a gente de ficar na varanda. Tinha um avarandado, era um prédio antigo. Era obrigatório ficar de janela fechada. Então a gente punha durex, porque o vidro era esmerilhado, para dar transparência ao vidro a gente punha durex e fazia umas seteiras, umas flechas, para poder ver o que acontecia na rua. Aí começou. O Gabeira trabalhava na pesquisa, era o chefe do departamento de pesquisa, então era um movimento estranho naquela pesquisa. Gente que vinha, e aí o Gabeira sumiu, entrou na clandestinidade. Conheci Affonso na redação. Fui ao jornal no dia que o jornal foi invadido pelas tropas. Eu sai de manhã cedo, fui dormir na casa de uma amiga - o marido até um amigo da aviação, uma linda figura, mas era um homem conservador - ele meteu um macacão de vôo e saiu... Eu peguei o meu revólver, eu tinha uma Bereta, 22 que o meu pai tinha me dado. Peguei minha beretinha, botei na bolsa e fui para o jornal. Cheguei ao jornal e avisei Carlos Lemos, que era secretário de redação “Estou aqui, eu vim armada!”. Ele achou ridículo possivelmente, “Passa a arma para cá, deixa de bobagem!” e ficamos na redação, a portaria do jornal com sacos de areia, os milicos atrás dos sacos de areia. E ficamos na redação, e aí a Condessa desceu - a Condessa era uma grande pessoa, eu gostava muito da Condessa Pereira Carneiro - desceu com suas eternas pernas, toda vestida de preto, elegante. Veio agradecer “O jornal está bem, agradeço a solidariedade de vocês”. Porque nós fomos proteger o jornal. “Quero agradecer a solidariedade de vocês, o jornal está bem, o jornal continua, vocês voltem amanhã para a redação” e aí nós fomos. E aí começou que a gente fazia jornal, e no aquário, que antes era a sala do Dimas, que era o editor chefe, no aquário, numa parte do aquário, ficava a mesa da censura, os censores ali e a gente fazendo jornal... Mas fizemos!
P/1 – Então conta um pouquinho do lado alegre dessa época, que é conhecer o Affonso, conta um pouquinho dessa história...
R – Eu conheci o Affonso duas vezes. A primeira vez eu conheci Affonso quando ele trabalhava para o Gabeira, porque eles são amigos de Juiz de Fora, eles são de lá. E quando Affonso foi pro Rio, já formado, já professor, foi trabalhar com Gabeira no departamento de pesquisa. E aí eu conheci porque ia cobrar matérias dele. Ele me olhava um pouco assim e eu olhava um pouco assim de cima, “Vim buscar minha matéria”. Eu já era poderosa! Depois ele foi embora para um período de nove meses, em uma bolsa nos Estados Unidos, em Iowa, e ele me deixou o livro dele de poesia e eu deixei o meu primeiro livro, que já havia sido publicado, e entreguei a ele. Acho que aí nos conhecemos. Eu não fazia muita fé, não. Ele era bem sedutor, mas eu pensei, “Ai, meu Deus, jornalista, poeta e de esquerda, isso vai ser um porre, isso vai ser um desastre!”. Não aguento mais este gênero! Ipanema inteira era toda jornalista, de esquerda e poeta. Eu era muito exigente em poesia, muito exigente. Porque eu lia poetas italianos, franceses... Qualquer poeta não ia servir para mim, não. Se ele fosse qualquer poeta não ia dar. Aí, fui ler, ele era poeta, ele era poeta. Aí eu fique “Poxa!”, ele estava em Iowa. Aí, quando ele voltou, ele já não era do jornal. Ele veio visitar o Dimas. Affonso é uma pessoa muito cordial, muito amigo dos amigos, tem muita urbanidade, acho que é da formação protestante, que é muito voltada para o outro. E, no dia em que ele veio, nós nos encontramos no elevador. Ele só veio cumprimentar o Dimas, e aí fomos tomar café. Pronto, até hoje estamos casados! Aí o Dimas pediu para ele voltar, se ele não queria ficar no copy. Aí ele ficou como copy ao mesmo tempo em que lecionava. Ele já era PhD, tinha feito a tese dele sobre Drummond, ele trabalhava já na PUC e vinha à noite fazer o copy. E a gente se cruzava porque eu era encarregada do fechamento do Zózimo, o Zózimo era eu quem fechava. Então, todo mundo ia embora e eu ficava esperando o Zózimo, que sempre se atrasava, felizmente, porque aí eu encontrava o Affonso, que chegava. Então, a gente começou a se cortejar e depois o Gabeira foi preso e nós nos encontrávamos para conversar sobre Gabeira. Ele ia me levar à ilha para eu visitar o Gabeira, quando ele fosse. Depois ele não foi, Gabeira saiu da ilha e, mas aí conversa vai, conversa vem, casamos.
P/1 – Então, Marina, conta um pouquinho para a gente dessa época, no jornal você escreve já alguma coisa, deixava na gaveta? Que coisas eram essas?
R – Eu não sou uma pessoa que escreva coisas de gaveta, também não pinto coisas de gaveta. Eu faço as coisas com um objetivo. Eu faço sempre organizadamente, dentro de um projeto, como parte de um projeto. Isso é absolutamente... A palavra não é “intuitivo”... É a minha maneira de me organizar na vida, é a minha maneira de agir. Então, não é que eu tenha começado a escrever uma crônica hoje, um texto amanhã, aí, eu juntei e fiz um livro. Eu sentei e disse “Agora vou fazer um livro!”. As crônicas porque eu era contratada para fazer crônica, mas o livro, eu sentei e determinei, “Eu vou fazer um livro,” e eu decidi qual seria a estrutura do livro. De alguma maneira: eu sou uma pessoa que age dentro de estruturas. Eu não gosto de pertencer a instituições, eu não me agrego a um grupo, a uma geração, a um partido. Eu crio estruturas para mim, para organizar o meu fazer. É provável que seja isso. Eu determinei que eu ia fazer um livro já sobre solidão e que ele ia ter uma estrutura - ninguém nunca percebeu isso, que ele tem esta estrutura. Uma estrutura até muito sofisticada, sei hoje, na época eu não sabia que era uma estrutura sofisticada. Um capítulo seria de cunho memorialista, um capítulo seria do presente e a outra do passado. Os capítulos do passado andariam em ordem cronológica e os capítulos do presente funcionariam como um flash, porque o que eu queria fazer era um livro que dissesse da solidão do ser humano. O ser humano é um ser solitário e eu queria fazer um livro que dissesse isso. Você lendo possivelmente, não percebe que há uma estrutura desse ordem, mas você vê que eu já escrevi organizadamente e eu sempre trabalho assim, eu não faço coisas que eu ponho na gaveta e depois junto. Só poesia, porque poesia você não pode sentar e dizer “Agora eu vou fazer um livro de poesia” e em dois meses acabou o livro de poesia. Não! Eu não sei como os outros trabalham, mas eu levo anos num livro de poesias. Por quê? Polimento, bota daqui, tira daqui, então, é uma coisa cumulativa. Mesmo assim pode ser temático, já que esse livro que sai o ano que vem, que já tá com editor, é temático, e o segundo livro também é um livro temático, também gosto de trabalhar com livro temático. Eu sempre trabalhei assim, mesmo pintura, porque quando eu voltei a pintar, eu voltei a pintar porque eu ia pintar! Fazer exposição, vender quadro e foi o que eu fiz! Enquanto eu tive quem cuidasse dessa parte: vender quadros, organizar exposição. Quando eu não tive mais essa pessoa, parei de pintar. Eu não vou pintar quadro para juntar em casa, eu não faço nada para juntar. Eu faço roupa para usar. Minha cabeça funciona assim... Bom, o primeiro livro se chama Eu sozinha. Década de 60... Minha filha nasceu em 65, ela devia ter uns dois, três, pouco mais anos quando eu lancei o livro.
P/1 – Como começa esse seu olhar, preocupado e atento para a literatura infanto-juvenil, que também está surgindo nessa época no Brasil?
R – Eu não tinha um olhar atento para a literatura infanto-juvenil, não estava nem aí para a literatura infanto juvenil. Mesmo hoje, eu trabalho pouco para a literatura infanto juvenil na verdade. Porque os contos de fada na minha cabeça, não são para infanto juvenil. Então, eu não tenho muitos livros infanto juvenis e alguns livros que não são contos de fada, que são livros separados, também são grandes contos de fada, eventualmente. Eu comecei com Uma ideia toda azul, mas exatamente com o conto Sete anos e mais sete, por pura casualidade. Porque durante a ditadura, Ana Arruda era editora do caderno I do Jornal do Brasil, suplemento infantil. E a Ana Arruda, hoje Ana Arruda Calado, estava envolvida e foi presa. E aí o Dimas me pediu para substituir a Ana. Eu achei que seria antiético fazer qualquer modificação no caderno dela, porque eu só estava esperando que ela saísse do cárcere. Então, evidente que isso cria problemas editoriais, porque eu não quis chamar colaboradores outros, eu tentei me adequar ao jeito dela de trabalhar. E um dia tinha um buraco e não tinha nada para botar no buraco e eu pensei que eu iria para casa com aquela autossuficiência juvenil, típica da idade, eu pensei “Não tem o menor problema. Eu vou para casa, vou pegar um conto clássico, vou escrever de outra maneira, trocando fim com meio, meio com princípio e tal e mando para os leitores, as crianças. Um conto bem conhecido, mando elas arrumarem, as professoras vão gostar muito disso e a ilustração eu mesma faço, pronto, ta resolvido o problema!”. E assim foi. Eu fui para casa, eu me sentei para escrever, naquela época era máquina de escrever, sentei com a minha Olivetti e porque eu estava muito livre e solta reescrevendo um conto, eu escolhi A Bela Adormecida, e quando eu vi eu tinha escrito outro conto que se chama Sete anos e mais sete. E aí eu fiquei absolutamente boquiaberta, eu fiquei impactadíssima, porque eu não sabia como isso tinha acontecido, mas eu sabia que nunca mais eu ia sair dali. Eu pensei “Eu entrei na caverna de Ali Babá”, só que eu não sei o abracadabra como foi. Eu entrei! Sem querer entrei. Mas aí eu quero mais, quero ficar! E aí comecei a escrever o livro, aí feito imediatamente este conto. Eu acho que eu não lembro, eu nem ilustrei. Acho que ele era maior que o espaço, eu não sei, não me lembro de ter ilustrado. Eu não tenho essa edição, pena. Devia ter... Eu não sabia que isso era uma coisa fundadora para mim. Aí imediatamente, decidi “Então, eu vou fazer um livro”. Aí eu comecei a trabalhar a minha cabeça, para tentar voltar aonde eu tinha estado, e comecei a escrever a Uma ideia toda azul. E eu me lembro muito claramente que eu comecei a escrever e eu disse “Marina, você é muito louca! Eles não vão gostar disso, ninguém vai querer isso! Ninguém vai querer editar, vão dizer que isso é conto de fada, que isso é coisa de criancinha, que isso já era, que isso é muito derramado e ninguém vai querer, ninguém vai querer. Você é muito doida, pára com isso!” Eu conversando comigo, eu digo “Paro nada, paro nada, não tô nem aí para o que os outros pensam! Isso é o que eu tenho que fazer!”. E Affonso, já éramos casados, e naquele tempo trabalhávamos lado a lado em casa, ainda não tínhamos construído os nossos escritórios respectivos e Affonso “Vai fundo! Vai nessa!” E de fato, porque era a época do realismo na literatura, era época do O menino e o pinto do menino, aqueles livros realistas em Minas do Wander Piroli, e ninguém queria saber. De fato, o livro ficou cinco anos sem editor, ninguém queria editar. Me diziam tudo “Ah não, isso é alienante!” “Ah, Deus me livre!”, ele ficou cinco anos na gaveta. Aí, quando consegui editor, que era a editora a Nórdica, eu não tinha pensado em ilustrar. Eu sou uma pessoa modesta, não parece, mas eu sou uma pessoa de índole muito modesta. Não pensei que eu tivesse direito de ilustrar. E os ilustradores que ele me ofereciam, eu olhava e achava tudo ruim. Porque na minha cabeça só quem pode ilustrar meus contos e até hoje, além de mim, só quem pode ilustrar meus contos é o Grassmann, maravilhoso gravador! Eu disse a ele, porque a gravura do Grassmann é a alma gêmea com os meus textos. Mas não havia essa possibilidade e nem foi ventilada e o Affonso me disse “Eu não estou entendendo porque que você está tão atrapalhada com essa questão. Porque que você não ilustra?”. “Ah! Ovo de Colombo! Ah! Posso ilustrar?”, “Ah, tá maluca?”Ilustra você!”, aí eu comecei a ilustrar. Então eu fiz a outra descoberta, que eu seria a minha ilustradora. Ainda fraquejei e dois livros eu deixei que fosse outro ilustrador. E a partir dos dois livros eu disse “Não, só eu ilustro esses contos!”. Mesmo as edições estrangeiras, no geral sou eu. Espanha não fui, e eu acho que sai agora a nova edição espanhola, também não vai ser. Mas, na Europa é outro assunto, porque eles façam como queiram, mas no Brasil sou eu.
P/1 – Essa é uma questão que a gente sempre faz que é essa relação do ilustrador com o autor, não sei o seu caso, como é essa relação sua com você mesmo? Por que são dois diálogos diferentes, né?
R – É uma relação complexa, às vezes eu tenho impressão que os editores preferem que fosse outro ilustrador. Nem todos os editores sabem que é melhor quando o ilustrado é o autor, valoriza o produto. Os editores às vezes tem pressa, às vezes querem uma coisa mais popular. De qualquer maneira a minha relação comigo é ótima, sofrida, muito sofrida, porque entre ilustrar e escrever tem um espaço muito grande, corre um período de tempo muito grande. Talvez se eu fizesse as coisas junto seria mais fluído, mas você entrega o livro e o livro só vai bater na sua mão muitos meses depois. E você tem que procurar outra porta de entrada porque é uma mudança muito grande de ferramenta não manual, mental. Você tem que mudar o código, o código é outro. Você tem a visualização quando você é o autor, você tem o todo daquela história, que não está no texto, mas que eu tenho! Quando eu ilustrei Ana Z, onde vai você?, eu sei a cara da Ana, eu sei a idade que ela tem, eu desenhei a cara de Ana, eu tenho o rosto de Ana desenhado, mas o leitor não sabe. Eu quando estou escrevendo, eu vejo rigorosamente tudo, tenho o círculo completo, mesmo atrás de mim, e eu escolho o que é essencial mostrar. Mas eu tenho todo. Quando eu vou ilustrar, aí é outro código completamente, porque não é a realidade. Porque para mim, enquanto eu estou escrevendo, aquilo é a realidade. Se eu estou escrevendo o dragão, aquele dragão é real. Por que não é real? Quando eu vou desenhar é outra realidade, é uma questão gráfica, são espaços, eu não estou lidando com representações. Eu não tenho que contar uma história, eu não tenho mais que contar uma história, esse é o ponto chave. A tentação é contar história, a tentação sempre é você estar contando a história “E ai o dragão comeu o carneiro” você bota um carneiro, um dragão. Não, não! Não pode ser isso. Às vezes você cai em tentação e faz isso, mas não é para ser. São elementos, é isso que é a dificuldade. Quais elementos? Estou enferrujada, porque como eu não faço para engavetar, não é que eu fique desenhando, “Estou à toa desenhando”, nunca estou à toa, para começar, e eu só desenho quando tenho que fazer. Então eu começo sempre enferrujada, e aí vão aquecendo os motores e aí quando eu estou ótima, é hora de parar.
P/1 – Então, conta um pouquinho da repercussão, depois de cinco anos, engavetado, depois de cinco anos com o pessoal falando que talvez não desse certo como é que é que depois que sai o livro da “Ideia toda Azul”, como que repercute?
R – Eu estava no supermercado fazendo compras e Affonso saiu de casa e veio me encontrar no supermercado para me dizer que eu tinha ganhado o prêmio da APCA. Eu também não tinha dinheiro naquela época, estava dura, não tinha dinheiro para vir a São Paulo buscar o prêmio pagar hotel, etc e tal, disse “Não posso! Não vou!”. Aí a Fanny Abramovich ficou com o prêmio até agora, disse “Não te entrego, não te entrego!” e nunca me entregou o prêmio, tá com ela, mas ganhei o prêmio da APCA. Aí foi muito bom, muito bom! Mas você sabe, os contos de fada são de corrida longa, porque só os adultos da área sabem que isso é um produto para adulto. As pessoas fora da área e Affonso me dizia e me diz ”Não fale em contos de fada.”, eu agora vou fazer uma palestra abertura do Festival da Areia perto de João Pessoa, lá no interior. E eu vou fazer uma palestra, escolhi fazer uma palestra sobre os contos maravilhosos, Affonso me disse “Não põe conto de fada no título!”. Porque há um preconceito terrível, terrível, terrível. Você jamais ouvirá eu me gabar a qualidade da minha poesia e dos meus contos adultos. Mas os contos de fada são outra coisa, porque eles nascem tão do profundo, do inconsciente, que é como se tivessem sido dados de presente. Então eu me permito dizer isso: eu sei que eu tenho produto especial, um produto literário precioso e eu vejo ele sempre confinado num universo menor. Eu não consigo abrir. É uma luta de cão! Eu sofro por eles, não é por mim, é por eles. Eu digo “Vocês não merecem meus lindos!”. É corrida longa, muito demorada. Hoje eu já tenho quantos livros? Hoje eu já tenho quase que já 70, 80 contos. Não só reescrituras. É uma quantidade... O Andersen acho que deve ter 120, mas mais são reescrituras. Não tô fazendo pouco do Andersen, pelo amor de Deus! É pra dizer que eu tenho uma quantidade, um corpus grande hoje em dia. Mas você vê, eu publiquei o 23 histórias de um viajante, que eu fiz questão que ele fosse uma edição para público adulto, pra ir para as livrarias, porque se não os livros não vão para as livrarias, os livros vão direto para a escola. Aí eu pedi para o editor “Pelo amor de Deus, faz isso por mim!”, eu achei que ele ia perder dinheiro e ele também achou, ele estava certo que ia perder dinheiro. Não perdeu. Mas silêncio tumular, nenhuma linha em lugar nenhum, é um livro que não existe. Então, eu sei que a penetração deles é na Universidade. É muito na Universidade. Mas, eles são produto do meu coração.
P/1 – Falar desses produtos do coração, desses filhos... É horrível, o que eu vou fazer é muito ruim, ta? Eu me culpo já de antemão, mas como é que a gente não vai ter tempo de falar de todos... Algum que na hora tenha dado mais prazer, ou que depois repercutiram, não sei algum que seja especial... Conta algumas histórias para a gente, só para a gente conseguir marcar alguns títulos, alguns livros...
R – Sempre um período especial quando eu estou escrevendo um livro de contos de fada. Quando eu não estou, eu fico morta de medo de que eu nunca mais vou conseguir escrever. Porque não é uma coisa que você ta passeando na Avenida Ipiranga e o conto te cai no colo. Tem que criar um clima, uma série de circunstâncias, você tem que se propor a ir. Então é um período muito emocionado quando eu estou escrevendo os contos de fada. Não tenho um conto ou um livro o 23 histórias de um viajante, por exemplo, é um livro muito importante para mim, porque eu determinei que eu faria uma coisa que é muito difícil de fazer, que é a estrutura clássica. E queria fazer um livro com moldura! O conto moldura, contendo os outros contos, porque essa é a estrutura fundadora dos contos de fada, a estrutura do Mil e uma noites.. Então, eu queria fazer como homenagem e como inserção. Eu não estou escrevendo continhos, meu propósito é outro, era uma proposta pretensiosa e difícil. Então, nesse sentido, é um livro importante para mim, porque é um livro de afirmação do meu fazer. É um livro de muita alegria, porque eu consegui um produto livro, é tão raro no Brasil a gente conseguir um produto livro perfeito! O editor me deu tudo que eu queria. Eu queria cor, ele me deu a cor, eu escolhi a cor, ele deixou. Eu sei que ele ficou muito assustado quando eu cheguei na editora com aquelas ilustraçõezinhas em preto e branco. Feito umas gravurinhas, mas era isso que eu queria. Ele me deixou fazer aquele espaço em branco, editor tem pavor de espaço em branco. Eu falei capitular vermelho, ele me deu. Então o livro ficou um produto livro impecável! Isso é uma alegria para um autor. A ideia toda Azul, porque é o livro fundador, aonde eu entrei nessa coisa. Os outros foram um prazer por si. Lógico o Longe como o meu querer, eu ganhei um prêmio, ele saiu primeiro em espanhol do que em português. Essas coisas que são boas. E os contos viajam, uma coisa, uma alegria, são os contadores de histórias. Os contadores todos são meus contadores, é muito bonito isso, eu curto muito. Fora daqui, fora do Brasil, na América Latina, na África, muito bom. É uma alegria. Os contos tem que nascer de emoções, eu não os questiono, eu não os desmonto, eu não faço interpretações A minha profissão é interpretar texto alheio, ler o intertexto, ler por trás das palavras, é isso que eu sei fazer. Imagina que eu não poderia? Mas eu não encosto nos meus contos de fada e quando eu recebo tese sobre os contos de fada, eu aviso a pessoa “Olha, eu sinto muito, mas eu não vou comentar a sua tese”. Porque eu leio assim de passagem, se não me perturba, me atrapalha depois para escrever, não posso. Eles nascem de emoções, às vezes de coisas muito pequenas, às vezes de uma palavra, às vezes de um som. Sei lá, Entre Leão e Unicórnio é a soma de duas coisas diferentes. Um dia acordando com o Affonso e contando a ele “Não imagina eu tive um sonho, uma loucura, assim, assim, assim...”. E aí ele rindo, e aí eu falei “Muito estranho ser casado com essa mulher, que te acorda cheia de sonhos com seres maravilhosos! Era um sonho cheio de pássaros, enche a tua cama de pássaros e abelhas e tal”. Aí ele riu eu disse “Faz um conto!”, aí ele fez de brincadeira. Aí eu estava lendo um livro, acho que do Bacelar, era um ensaio e havia a citação de um mito e o mito dizia... Não sei é um mito ou uma frase bíblica, já não sei... Mas eu estava lendo com relação a mitos e a frase diz “Quando o leão chegar, pega a espada e corta-lhe as patas!” Eu fiquei muito emocionada com essa frase, mas muito emocionada com essa frase, achei uma frase lindíssima! Mas não me pergunte o porquê, uma vez que eu também não me pergunto por quê. Aí eu anoto, e boto numa caixa e esqueço. Aí quando eu decido que vou fazer um livro, aí eu pego a caixa e começo a fiar, começo a andar envolta daquilo, interrogo para ver o que me traz e Entre Leão e Unicórnio tem um leão. “Quando o leão vier, pega a espada e corta-lhe as patas” e tem um sonho que alimenta o sonho dela, que alimenta ele. Eu fiz a fusão das duas coisas. Eu sonho com o conto. Como um colar, por exemplo, que é um conto que eu conto muito, eu gosto de contar. Ele também é uma soma, um período que havia muitos pombos na minha casa, muitos pombos. Porque eu moro numa cobertura e naquele momento minhas filhas eram pequenas e tinham o viveiro com o periquito, porque tem sempre uma madrinha que dá um casal de periquitos. E os periquitos fazem periquitinhos e aí um morre, compra dois e tal. Viveiro de periquitos, alpiste no chão, pombos no terraço... Então os pombos vinham almoçar, vinham jantar, uma revoada de pombos na minha casa. E eu usava muito pérolas, pérolas herdadas da minha avó. Eu com as pérolas no pescoço, pérolas herdadas da minha tia Gabriela, cantora. Eu com as pérolas no pescoço e eu olhando no espelho do carro, viajando no reflexo da pérola e a minha emoção com aquele reflexo em cima da pele. E eu pensando, “Eu tenho que fazer qualquer coisa...”. Pronto! Aí, soma as pérolas com os pombos, o inconsciente vai e faz a fusão e assim nascem os contos.
P/1 – Tem outra estrutura, ele não é uma literatura infantil, mas também a criança vai se atrair por aquilo em algum momento da vida. Tem alguma estrutura a preservar? Ou ele é mais aberto? Conta um pouco da parte, não é teórica... Esse processo, esse... Ele tem estrutura? Ele não tem estrutura nenhuma? Ele é só emoção? Tem alguma coisa que define-o?
R – Os contos clássicos são um gênero literário, como você diz conto policial é um gênero literário. Então, os contos clássicos são fora do tempo e fora do espaço real, então, eles habitam no imaginário. E eles são textos com pluralidade de sentido e ele por terem pluralidade de sentido, eles tem que ser palatáveis para qualquer idade. É a característica do gênero que ele funcione para qualquer idade porque, ele tem que ter leituras possíveis e significados possíveis para qualquer idade. São contos de fundo mítico, são contos do inconsciente, são diálogos do inconsciente. É o inconsciente do autor que fala com o inconsciente do leitor e possivelmente é uma conexão com o inconsciente coletivo. Acho que eles nascem de uma conjunção, de um contato que se faz entre o inconsciente do autor com o inconsciente coletivo. Mas isso pode parecer muito pretensioso. Eu não fico “O inconsciente coletivo, onde estás?” Também não estou interessada em que as pessoas querem saber; também não estou interessada em que gênero, em que tipo de conto, em que faixa etária. Outro dia uma pessoa me escreveu “Que faixa etária?”, da Espanha, para um projeto, um livro que me pediram, que eu mandei “Que faixa etária?”, eu falei “Olha, não faz essa pergunta para mim não, eu não entendo de faixa etária não, entendo de pessoas”. Eu tenho que me colocar em estado de abertura emocional. Se eu pudesse ficar sozinha num monte, se eu pudesse... Me dá quatro meses de solidão de férias na casa da montanha, aí eu era feliz. Aí eu escrevia de montão! Difícil fazer contos de fada no meio da muvuca, muito difícil. A vida da gente é muito movimentada de mais.
P/1- E como que é a sua relação com os leitores? Os autores que fazem uma literatura mais infanto juvenil, eles tem muito contato com escolas, eles tem que ir à escola, no seu caso?
R – Eu fui um pouco as escolas no início, mas eu troco com o editor qualquer ida a escola por conversa com professores. Congresso, reuniões de professores, estudantes universitários. Universidades. Eu vou, viajo, ganho miséria, mas vou! Porque isso eu acho muito importante. O meu contato com os leitores, eventualmente é com criança, mas eu acho o contato com criança leitora, em geral, chatinho. Porque elas não vêm em estado bruto. Se elas viessem em estado bruto era uma maravilha, “O que você queria fazer se não fosse escritora?”, as perguntas são dez, são sempre as mesmas, feitas para mim ou para qualquer outro autor, porque são perguntas organizadas em sala de aula. Eu fico “Me pergunta se eu sei nadar! Pergunta-me se meu cachorro morde! Pergunta-me coisa que criança pergunta! Pergunta-me coisa que você queira saber!”. Eu acho muito desagradável. A criança te faz a pergunta, aí você começa a responder e ela vira e conversa a conversar com o outro, porque ela não está interessada na resposta, ela está interessada em fazer a pergunta que ela trouxe. Aí eu tenho que bancar a desagradável, eu paro e fico quieta e fico esperando para ver se ela se manca, ou então interrompo “Você não me fez uma pergunta? Eu estou respondendo a você. Se você queria conversar coma sua colega, não precisava me fazer pergunta nenhuma!” Mas isso é chato. Agora, eu adoro conversar com leitor adulto, ou então, hoje em dia, e isso é o bom de envelhecer, já tem adultos, já tem professores que vem me dizer “Ah, eu lia seu livro quando eu era criança, o livro tal”. Outro dia eu autografei um livro de uma moça que veio com um bebê no colo, e ela trouxe um livro que eu autografei para ela, quando ela veio no colo da mãe! Ela me trouxe o livro autografado para ela e disse para eu autografar o mesmo livro para o filho. Ela já tem filho. Isso é ótimo! E eu adoro contar histórias para adultos. Eu sempre que posso no final da conferência conto um conto. É muito bom! E eu tenho um retorno muito bonito da utilização dos contos. Com crianças, com adultos, com pessoas em risco, com pessoas com problemas mentais. A intensidade do conto, o diálogo que o conto estabelece com as pessoas, isso é muito bom, é muito comovedor. É porque com as crianças, se me deixasse sozinha com as crianças... Mas não, elas vêem institucionalizadas, elas vêem com a escola, vem com os professores. Às vezes é muito bom. Quando o professor é muito bom, pode ser bom, mas é raro. No geral, é um pouco perrengue. Não é culpa das crianças, é culpa da estrutura.
P/1 – Marina e um pouco dos prêmios, como que é? É importante para você? Esse reconhecimento ou é uma coisa que você não liga. Como que é ganhar um prêmio?
R – Os prêmios são coisas complexas Os prêmios bons são aqueles que você ganha quando as pessoas não sabem que você é o autor. Hoje em dia no Brasil eu já não concorro a prêmio a qual eu tenha que me inscrever, porque não faz mais sentido. Os prêmios da fundação é prêmio por livro editado e eu já sou hour concours, porque claro, já ganhei todos várias vezes então, o hour concurs é uma coisa ótima porque as pessoas estão te dando com alegria porque você não está tomado o lugar de ninguém. Eu mesmo ganhei esse ano, gostei, porque era um livro de poesia infantil, é um produto diferente. Eu só tinha um de poesia infantil muito antigo, então é um livro mais complexo, grande, trabalhei muito anos nele para fazer. Porque poesia infantil é completamente diferente de poesia adulta, no sentido que eu trabalho com rima, trabalho com métrica, porque eu quero uma musicalidade mais óbvia, digamos assim, se é que é essa palavra. Porque eu acho mais jocosa, porque para criança é melhor para a memorização, para a entrada dela no poema, é mais prazeroso, é mais divertido, a rima conduz a criança mais do que verso branco. Então, eu escolhi trabalhar com rima e com métrica, coisa que eu não faço em poesia adulta, e porque a minha temática não é exatamente uma temática infantil. Eu levei temas diversos. Você tem que fazer uma alternância entre uma temática bem lúdica para que seja mais evidentemente infantil e uns temas mais filosóficos, mais reflexivos que tenham a densidade que a poesia tem que ter. Porque se fizer só denso fica muito pesado para ela, se fizer só jocoso a mim não interessa. Não estou me referindo sói a literatura infantil, ou só literatura, quando se entra no terreno dos prêmios, se entra no jogo político. E a política literária é tão pesada e tão vil quanto qualquer política. São interesses fortes, são grupos, são jogos. Eu não gosto disso, eu não gosto de fazer política literária. Se eu gostasse de fazer política, eu ia fazer política. Política literária nunca me atraiu, eu fico no meu canto e não me exponho. Eu gosto de ficar sozinha, fazer o meu trabalho o melhor que eu posso e é isso só que me interessa. Se isso me der prêmios, eu fico muito feliz, porque os prêmios são bons, os prêmios são importantes. Agora, vale dizer também o seguinte, o Brasil aproveita muito mal os seus prêmios. O Brasil ainda não entendeu, que prêmio não é feito para botar um sorriso na cara do autor. O prêmio é feito para vender os livros em benefício do editor, o Brasil ainda não entendeu isso. Na Europa, os prêmios são muitos e são uma bola do mercado editorial, eles fazem faixas dos livros premiados. Faixa no livro! Vai nos Estados Unidos, os livros infantis premiados todos tem selo na capa, o selo dourado. Por quê? Porque o pai vai à livraria “O que eu vou comprar?”. A madrinha, a tia, a pessoa que quer comprar o livro não tem hesitação, tem estante escrito “Estante de livro premiado”, a pessoa vai de olhos vendados, pega qualquer um e paga no caixa. No Brasil, quando você ganha um prêmio e recebe um livro que foi premiado, você tem que fazer a caça à indicação do prêmio. Vai lá dentro e aí uma indicação, num corpo bem pequeno, nas páginas dos créditos, que só os profissionais lêem, porque o público leitor não abre nas páginas dos créditos. Lá está indicado que você ganhou um prêmio. Então, joga-se o prêmio fora. Ana Z, por exemplo, ganhou dois prêmios no ano, ganhou o Jabuti, e ganhou prêmio do ano, o que era uma coisa impensável ele ganhar livro do ano, porque era um livro infantil, mas ganhou. Alguma indicação na capa do livro de que ele havia ganhado esses prêmios? Nem pensar! Esse A espada e a rosa, ganhou dois prêmios no ano, os dois principais, Jabuti e FNLIJ. Alguma indicação na capa do livro? Nem pensar. Eu não sei, deve ser muito caro botar um selo, eu não sei o que é, mas desperdiçamos os prêmios. Agora, sempre é bom, é um reconhecimento.
P/1 –Marina, a última pergunta, de praxe do Museu. Qual foi a sua impressão de contar um pouco da sua história, lógico que não tudo, mas um pouco, uma narrativa escolhida pela gente aqui, para o Museu?
R – Eu gostaria que tivesse sido a primeira vez. Na minha idade, com a minha profissão, a gente já contou a vida da gente muitas vezes e ás vezes fica com medo até que perca um pouco o frescor. Mas isso é inevitável, qualquer pessoa conta a sua vida infinitas vezes. Mas espero que para as pessoas tenha o frescor de uma primeira vez, tenha a autenticidade de uma primeira narração de vida. Porque as coisas recuperam a sua autenticidade. Mas, não sei, foi essa a minha vida? Ou essa da minha vida é a parte que eu gravei? É a parte que eu pesquei? É a parte que me modificou? E o que foi a minha vida no espaço disso que eu contei? Que no final é o que me solicitam e o que mais aflora. Mas é como se fosse, sabe rio? Que tem pedra e eu vou pulando de pedra em pedra? Parece que eu pulei sempre sobre as mesmas pedras, mas tem um rio que está correndo no meio que tem muita densidade, que tem muitas coisas, que talvez sejam mais pessoais e a gente não conta, que talvez sejam menores e a gente quase que esquece. Mas a vida não é feita só dos pontos de destaque, é feita do conjunto. Então eu entrego uma parte da minha vida, como se estivesse entregando a vida e a vida não é isso, a vida é outra coisa. Mas, talvez a vida de um artista e a minha esperança na vida é fazer arte, ter feito arte, ser uma artista. Arte é o que me interessa, então talvez a essência da vida de um artista, esteja no seu trabalho. Então se eu não contei tudo, se eu não entreguei tudo, se eu deixei de lado coisas que talvez fossem mais importantes do que as que eu contei, a essência de mim, o sumo de mim, está nos meus contos, está na poesia, está muito nos contos de fada. Aonde eu não sei por que eu não os interpreto, mas eu sei que aonde você não pode falar depois, está qualquer coisa mais forte.
P/1 – Obrigado Marina. Obrigado mesmo!
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