Projeto SOS Mata Atlântica 18 Anos
Depoimento de Elci Maria dos Santos
Entrevistada por Rodrigo Godoy
São Paulo, 10/12/2004
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: SOS_HV003
Transcrito por Viviane Fuentes
Revisado por Luiza Gallo Favareto
P/1 – Boa tarde, Elci. Obrigado por ter vindo. Para começar, eu queria que você dissesse seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Meu nome completo é Elci Maria Camargo Santos. Meu local de nascimento é São Paulo, capital; minha data é dia 26 de janeiro de 1963.
P/1 – Qual o nome dos seus pais?
R – Meu pai é Disrael Camargo Santos e minha mãe é Elzivonete Camargo Santos.
P/1 – O que eles fazem?
R – Os dois são advogados, na verdade meu pai era fiscal da Receita, e minha mãe advogada de escritório.
P/1 – Eles são da onde, seus pais?
R – Meu pai é do Paraná, de Clevelândia, e minha mãe de São Paulo, paulistana.
P/1 – E sua infância você passou em qual cidade?
R – Passei parte em Lorena, eu nasci em Lorena, fui registrada em São Paulo por uma questão de competição por irmão, para não ser chamada de caipira pela família, meu pai resolveu me registrar aqui e vivi até os três anos em Lorena e depois vim para São Paulo, já mocinha.
P/1 – Você tem alguma lembrança de Lorena, desse período que você morou lá?
R – Tenho muitas lembranças, lembranças bem antigas. Eu devia ter um ou dois anos que eu cantava na janela, me lembro da minha irmã tocando piano e eu cantando, me lembro de passear, os vizinhos da frente da nossa casa tinha uma fazenda e eles chegavam e sabiam que eu adorava passear de carro, aí ele me punha no carro, só para entrar na casa, eu me lembro dessas coisas, me lembro deu no clube, na água.
P/1 – Tem bastante lembrança.
R – Muito, muito.
P/1 – E você tem irmãos, não é?
R – Tenho duas irmãs.
P/1 – Três mulheres, no caso.
R – Três mulheres. Só que a primeira filha do meu pai é do primeiro...
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Depoimento de Elci Maria dos Santos
Entrevistada por Rodrigo Godoy
São Paulo, 10/12/2004
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: SOS_HV003
Transcrito por Viviane Fuentes
Revisado por Luiza Gallo Favareto
P/1 – Boa tarde, Elci. Obrigado por ter vindo. Para começar, eu queria que você dissesse seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Meu nome completo é Elci Maria Camargo Santos. Meu local de nascimento é São Paulo, capital; minha data é dia 26 de janeiro de 1963.
P/1 – Qual o nome dos seus pais?
R – Meu pai é Disrael Camargo Santos e minha mãe é Elzivonete Camargo Santos.
P/1 – O que eles fazem?
R – Os dois são advogados, na verdade meu pai era fiscal da Receita, e minha mãe advogada de escritório.
P/1 – Eles são da onde, seus pais?
R – Meu pai é do Paraná, de Clevelândia, e minha mãe de São Paulo, paulistana.
P/1 – E sua infância você passou em qual cidade?
R – Passei parte em Lorena, eu nasci em Lorena, fui registrada em São Paulo por uma questão de competição por irmão, para não ser chamada de caipira pela família, meu pai resolveu me registrar aqui e vivi até os três anos em Lorena e depois vim para São Paulo, já mocinha.
P/1 – Você tem alguma lembrança de Lorena, desse período que você morou lá?
R – Tenho muitas lembranças, lembranças bem antigas. Eu devia ter um ou dois anos que eu cantava na janela, me lembro da minha irmã tocando piano e eu cantando, me lembro de passear, os vizinhos da frente da nossa casa tinha uma fazenda e eles chegavam e sabiam que eu adorava passear de carro, aí ele me punha no carro, só para entrar na casa, eu me lembro dessas coisas, me lembro deu no clube, na água.
P/1 – Tem bastante lembrança.
R – Muito, muito.
P/1 – E você tem irmãos, não é?
R – Tenho duas irmãs.
P/1 – Três mulheres, no caso.
R – Três mulheres. Só que a primeira filha do meu pai é do primeiro casamento e tenho a minha irmã mesmo de sangue, do segundo casamento.
P/1 – Que é mais nova ou mais velha?
R – É mais velha. A primeira tem vinte anos a mais que eu, a do meio, que seria minha irmã mesmo, tem dez anos a mais que eu, e eu que sou a raspa do tacho.
P/1 – As três são advogadas ou só você que saiu advogada?
R – Não. A mais velha é psicóloga, a segunda é advogada e eu sou advogada também.
P/1 – São advogados, a maioria.
R – A maioria é advogada, é o genético, nasce na família já com essa genética.
P/1 – Qual o nome das suas irmãs?
R – Luisa Maria - a mais velha - e Eldis Camargo também.
P/1 – Como que era, já desde cedo, ter contato com os pais advogados, afinal é a carreira que você seguiu também, você tinha noção do que era, quando você era criança, de ver seus pais serem advogados...
R – Tinha.
P/1 – Qual era essa visão?
R – Na verdade a família, desde o meu tataravô, todos são ligados à área de direito, da parte do meu pai, da parte da minha mãe, não. Mas a parte do meu pai, bastante. Eu lembro na época da ditadura, 66, 67, eu já lembro das discussões em casa com a família sobre justiça, injustiça, muito arraigada a questão do que é justo do que é injusta, nunca assim falando o que era certo ou errado, o justo e injusto, essa era a uma temática que sempre e vinha. Meu pai teve uma história ótima, eu e minha irmã, a gente sempre foi muito queixo duro, de questionar, e o meu pai era bem mais velho quando eu nasci, tinha quarenta anos quase, então ele era um homem já maduro, e a gente questionando ele, e um dia minha irmã chegou e falou: “Eu sei tudo e não preciso mais de informação nenhuma porque eu sou uma pessoa que conheço as coisas.” Meu pai falou: “É, você conhece? Então está bom, vai para debaixo da mesa, eu vou dar três toques, e você sai depois dos três toques que eu der na mesa.” Aí minha irmã foi para debaixo da mesa, meu pai deu dois toques e falou: “O terceiro eu só dou amanhã.” Então ele ensinou a gente a sempre perceber qual eram as intenções e como você tinha que se portar em relação às intenções, porque, às vezes, você acha que é uma coisa muito fácil e na verdade não é, e essa coisa da justiça, do que é certo e errado no sentido mesmo ético, eu tenho um pouco de preocupação de falar “ética”, mas mesmo assim, do que é justo com as pessoas do que não é justo com as pessoas, o que é importante, os valores, isso sempre foi uma temática dentro do direito.
P/1 – Sempre esteve presente na sua casa também.
R – Por exemplo, alguém ia casar e a gente sabia que aquela pessoa já tinha sido desvirginada por alguém, meu pai falava assim: “Existe uma legislação que quando a mulher não é virgem, pode ser anulado o casamento.” E a discussão é que não era justo, meu pai também concordava sempre essas temáticas polêmicas que eram discutidas em casa, depois do almoço era muito isso.
P/1 – Era discutido por toda família?
R – Era muito dinâmico isso, porque vinham os amigos do meu pai, minha mãe e meu pai tinham sempre muito essas discussões, não tinham posicionamentos políticos arraigados de centro ou de esquerda, não, mas eram pessoas que discutiam os fatos com a gente.
P/1 – Em Lorena, você ficou até os três anos...
R – Até os três anos.
P/1 – Depois...
R – Vim para São Paulo, fui morar na Vila Mariana em frente a minha avó e das minhas tias.
P/1 – Dessa época que você tem mais lembranças? Como foi sua infância em São Paulo? Como era a Vila Mariana?
R – A Vila Mariana era bárbara porque a gente brincava na rua, a gente tinha toda uma vida muito livre, mas tinha essa questão de eu ser muito mais nova que todo mundo, então eu sempre fui para a turma dos mais velhos. Minha irmã só podia sair se levava junto, então eu tenho grandes memórias musicais, de lembrar de movimentos musicais, isso deve ser 68, 69, de tocar violão, sarau que faziam, e da minha idade mesmo muito jogo de bola, de andar de bicicleta na rua e a Vila Mariana era um bairro que todo mundo estudava no mesmo lugar, todo mundo era próximo, de alguma maneira todo mundo estava próximo.
P/1 – Não era muito diferente do que você tinha em Lorena?
R – Não. Pra mim não foi um choque tão grande, para minha irmã sim porque ela já estava numa idade mais de adolescente e tal. Eu não, eu fiz muita amizade e aprendi muito ali, mas depois de uns três anos nós mudamos para a Aclimação, aí na Aclimação sim, eu fui para um colégio de freiras, aí minha vida já foi bem diferente.
P/1 – Você foi para a Aclimação com quantos anos mais ou menos?
R – Eu fui com sete anos, minha mãe nasceu na Aclimação e sempre quis voltar para morar lá.
P/1 – Você disse que estudou em colégio de freiras, como era estudar em colégio de freiras?
R – A gente estava até brincando essa semana porque tinha algumas temáticas, sexo, drogas e rock’n’roll, tinha um monte de coisa, mas tinha uma coisa que as madres falavam assim: “Quando você sentir que algum rapaz quer se aproximar de você, grite: alto lá, sou um soldado de Deus.” (risos) Então a gente quando saia na noite, eu ainda continuo com amigas da mesma época, a gente brinca assim, na hora que o cara chegar: “Alto lá, lembre-se, sou um soldado de Deus.” Mas eram freiras muito modernas para a época, apesar dessa questão sexual era algo que, aos sete nem tanto, mas quando você começa a amadurecer, num colégio só de mulheres, de freira, só para mulher mesmo, mas era gostoso porque elas tinham uma visão social muito forte. As freiras com quem eu estudei foram bem responsáveis pela minha formação social, que colaborou com o que eu já tinha em casa, na questão da justiça social, aí sim a coisa começou a formar minha consciência social com esse agregado. Tinha uma freira muito importante, Freira Ana Luisa que, naquela época, eles tinham um jornal chamado O São Paulo, que o Leonardo Boff também colaborava, tinha uma série de pessoas que colaboravam. E eu lembro do jornal com páginas e páginas em branco porque não podiam ser publicadas, os artigos, então eu tenho uma formação com as freiras muito legal, de religiosidade, de acreditar, não num Deus único, mas na bondade do ser humano, de trabalhar para o coletivo, elas sempre foram dessa maneira, me formaram muito bem nisso, teatro, música, a área cultural desse colégio era muito forte.
P/1 – Se deu em meados da década de setenta?
R – Eu estudei lá de setenta a 75? Eu saí em 77 do colégio, porque o colégio fechou, era um colégio pequeno... Era grande, mas assim, a procura por outros colégios de outras temáticas da classe média foi para o Objetivo, outros colégios, e o próprio colégio Santa Dorotéia acabou sendo um colégio que não tinha mais alunos, aí eles venderam para o Objetivo, o prédio, ali da Vergueiro, aí ficou lá, mas minhas melhores formações e informações eu tive nessa época, dos doze até os quatorze anos foi muito forte.
P/1 – Quais são as suas memórias de ser uma adolescente no pico do regime militar?
R –Tinham várias vertentes. Eu passei por várias fases, tinha uma fase de não estar nem aí, de ter preocupação bem adolescente mesmo, egocêntrica, roupa, moda. Mas tinha uma conotação de responsabilidade social, essa coisa das irmãs levarem a gente para conhecer certos núcleos de famílias carentes, ou mesmo assim, alguns amigos mais velhos, porque nessa condição ainda permaneceu alguns amigos mais velhos, e eu via que estavam mais preocupados, meu pai muito preocupado com a situação e sempre poupando a gente, não deixando a gente muito exposta, minha irmã talvez um pouco mais, eu, nesse ínterim, entre ir para um colégio de freiras e chegar em São Paulo, eu estudei antes no Mackenzie, eu fiz o jardim e o pré e o primeiro ano de escola no Mackenzie e foi justamente naquela guerra da USP e o Mackenzie, que teve na [Rua] Maria Antônia, então eu tenho uma lembrança bem grande disso, de eu sair no colo de um policial que estava vestido de azul, com aquele escudo, para passar no meio, porque as crianças ficavam ali na Itambé e o problema estava acontecendo ali na Maria Antônia, então eles tinham que evacuar as crianças, tinham que tirar as crianças dali, e meu pai do outro lado da Consolação, esperando a gente, nervoso porque não sabia onde a gente estava, e eu lembro disso, do barulho, lembro da minha irmã chegando sem brinco, lembro deu sair no colo de um policial, entrar num carro, devia ser um ônibus, e encontrando meu pai e minha mãe do outro lado da Consolação, e ficar cinco dias sem aula. Então eu não tinha a dimensão, mesmo depois do pique dessa revolução, eu não tinha a dimensão do que era, eu fui descobrindo essa dimensão a partir do que eu fui me integrando nas realidades de outras pessoas, porque de certa maneira eu era muito protegida, família de classe média paulistana, meu pai que segurava e minha mãe também, eles talvez sofreram mais, agora pensando assim quando eu converso com a minha mãe, meu pai tinha muita preocupação de ter algum problema, porque era uma autoridade, minha mãe também, por ser advogada, mas sempre seguraram a onda de não espalhar o terror, mas também cuidar da gente.
P/1 – Sempre teve um meio termo ali... Bom, mas aí, você, adolescente, fez o colegial, como foi a escolha da sua carreira? Foi natural ou foi algo que...
R – Foi bem louco, porque eu saí do colégio de freiras com essa formação bastante forte na área social, com muitos livros, muita coisa que eu gostava de fazer, e achando que poderia até ser direito, mas não estava muito acreditando naquilo, aí eu achei que medicina era a minha, então eu fui fazer biológicas, entrei no Colégio Anglo Latino, fui fazer biológicas, um sistema totalmente diferente do colégio que eu estudava, aquilo me deixava um pouco angustiada, dali um ano aí não aguentei o esquema do Anglo Latino, fui para o Objetivo, que é era um colégio mais liberado, na época era assim o Objetivo era lugar de maconheiro, então meu pai falava assim: “Se eu for me preocupar que meus filhos vão ser maconheiros porque estudam num colégio, eu estou ferrado.” Mas aí eu fui para o Objetivo na área de biológica, aí prestei para medicina, segundo colegial eu prestei de brincadeira, no terceiro colegial eu prestei medicina na PUC e na USP, e Direito, por insistência da família: “Não, ela tem jeitinho de advogada.” Prestei no Mackenzie e na FMU e entrei na primeira fase, e aquilo me preocupou, eu achei que não estava preparada para aquilo, e saiu meu nome, tinha a primeira e segunda opção, eu entrei na segunda opção, em enfermagem padrão em Ribeirão Preto, e em Direito no Mackenzie e na FMU, na PUC eu não entrei em nenhum dos dois. Aí eu tinha que escolher mesmo. Nessa época minha mãe e meu pai conversaram comigo: “Faz o seguinte, se você gostar do Direito, você fica com no Direito, se você não gostar, você volta para Medicina, mas tenta Direito, minha filha, eu ainda por cima te dou um carro, uma viagem em julho (risos) e você fica à vontade.” Aí eu falei: “É, acho que vale a pena. Ir para Ribeirão, longe de pai e mãe, eu não estou a fim. Vou ganhar carro, vou ganhar isso, vou ganhar aquilo. Ah, vou ficar aqui!” Aí resolvi fazer Direito. Nesse primeiro ano de Direito meu pai ficou muito doente, aí eu resolvi ficar em São Paulo mesmo, ficar por aqui. Mas essa formação biológica foi muito importante para mim porque em todos os momentos da minha vida, eu sempre utilizei essa formação, hoje muito mais do que antigamente, eu consigo falar a linguagem, porque eu tive essa formação também.
P/1 – E você fez Direito onde aqui?
R – Mackenzie, porque eu prestei e passei, ninguém acreditou que eu entrei, quando eu disse que entrei, quando cheguei na casa da minha mãe, ela disse: “Não é possível, ela não entrou.” E eu caí um dia antes e todo mundo achando que eu tinha caído e por isso que eu tinha entrado (risos), porque eu tinha batido a cabeça e ficado inteligente, aí entrei no Mackenzie em oitenta, 81 que eu entrei no Mackenzie, e voltei às minhas origens, porque na verdade o jardim e pré eu fiz Mackenzie, então foi muito louco acabar onde eu tinha começado.
P/1 – Anos depois retornar para o mesmo colégio, no caso, faculdade... E como foi o curso de Direito?
R – Era um curso maravilhoso, hoje eu lembro assim, dando aula, percebendo, foi um curso de formação, eu tive professores que eu nunca vou esquecer. Mas a gente não dava a devida importância para aquilo que existia naquele momento, quer dizer, eram professores super bem formados, eu tive aula com gente da melhor qualidade e que isso também é uma coisa muito louca, porque forma os seus conceitos. Apesar do Mackenzie ser naquela época, principalmente, uma faculdade que tinha a tendência de direita, os professores do curso de Direito eram professores ecléticos, eles abriam muito a discussão, apesar de ser difícil. A minha classe era uma classe que vinha desse movimento de classe média, que estava discutindo algum modo de vida, tinha sido um pouco hippie, um pouco yuppie, um pouco cada coisa e veio para discutir isso, então foi um momento, na faculdade, muito importante, um momento muito interessante. Acho que foi um momento em que eu aprendi a falar, a me comportar como advogada que hoje é muito difícil, a profissão caiu, tem menos crédito, e naquele tempo não, ainda havia essa tradicionalidade gostosa, não aquela coisa curtida de tradicionalidade preconceituosa, mas era uma tradicionalidade que somos operadores de direito, somos operadores da justiça, não era para ser advogado para ser rico, era para ser operador de justiça, era uma coisa que me interessava bastante.
P/1 – Você tem alguma lembrança marcante dessa tua época de estudante de Direito?
R – Várias. A gente tinha um movimento porque, além de ser de Direito, o Mackenzie era muito machista e a gente formou um partido que chamava Livremente, só de mulheres dentro da faculdade de Direito. E foi o primeiro partido, e nós ganhamos, na faculdade de Direito, foi uma coisa bem interessante, porque tinha o MAR, que era o Movimento Acadêmico Renovador e o PAR, que era de direita. O Livremente veio como uma nova teoria de mulheres no poder, e foi muito legal porque a gente aprendeu a ter… Tinha um preconceito de mulheres que dominava, as mulheres não poderiam ser boas advogadas, não poderiam ser boas políticas, e a gente conseguiu formar uma classe de meninas que, até hoje, a gente é muito amigas, muitas delas foram trabalhar na área política, e somos amigas, e formou lá, e com o apoio dos meninos também, porque o partido não era só de mulheres, eram de homens também que acreditavam nisso. A questão das grandes revoluções dentro do Mackenzie. Teve a Noite do Beijo, não sei se você lembra dessa Noite do Beijo. Era proibido beijar dentro do Mackenzie, então adultos, com mais de dezoito anos, a gente não podia namorar dentro do Mackenzie. Um amigo nosso foi quase suspenso do curso porque deu um beijo na namorada, aí o pessoal da Arquitetura junto com o Direito resolveram fazer a Noite do Beijo, então dentro dos DAs a segurança não entrava, então dentro do DA da Arquitetura, nós fechamos o DA e fizemos a Noite do Beijo, todo mundo podia beijar todo mundo lá dentro (risos). E fora a parte mesmo política, que aí sim começou o processo de abertura, era um processo complicado, porque eu tenho amigos meus que eram bem de esquerda, do PC, do PC do B, já fazendo mobilização para a abertura, de pichações, de apanhar de DCE, do CCC, de eleições, a gente ter que sentar em cima de urna para não melar. Mas assim, era algo bem pesado, não era fácil não, era um peso grande. Mas aí, nesse período também, meu pai ficou muito doente, eu tive que me afastar um pouco da questão estudantil, mas não deixei de dar apoio. Meus amigos continuaram, e eu continuei junto com eles até a abertura, porque meu pai morreu no dia do Tancredo, da abertura, isso em abril, eu estava em luto, então eu não acompanhei, mas o pessoal foi para a festa e aproveitou bastante. Desde fugir de polícia... Antes disso, a gente tinha, eu tenho até hoje, o barulho da polícia, eu escuto. Sabe aquele barulho que a PE faz quando chega? Aquilo para mim, até hoje, eu ouço aquilo e me ligo, porque lembro daquilo e lembro da gente na Praça da Sé, perto da catedral, e ter que entrar dentro dos confessionários da catedral. Porque não matavam mais, davam porrada, enchiam o saco da mulherada, então a gente queria evitar, não tinha necessidade. E outra coisa, se eu fosse presa pela polícia política, eu acho que eu ia ser morta pela família inteira, então eu não queria muito isso, eu queria mais era estar lá para colaborar com eles. Parte dos meus amigos foi para o movimento político mesmo e estão aí até hoje, mas parte não, parte foi porque acreditava naquilo.
P/1 – Aí você começou a entrar no mercado profissional?
R – Um pouco antes disso, eu comecei uma fase, porque eu tive várias fases. Quando meu pai faleceu, um pouco antes dele falecer, eu fui ser voluntária da APAE, Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais, porque eu achava assim, dentro da área de Direito eu gostava muito das questões de minoria, achava que existiam poucas legislações para minoria. E eu tinha uma amiga que tinha um irmão que tinha Síndrome de Down e aquilo me chamou a atenção, aí eu falei: “Vou conhecer a história porque eu acho que era legal trabalhar como legislação ou proteção a minorias como excepcionais.” E fui lá para um chamado o Clube da Gaivota, era voluntária. Então eu levava as crianças para passear por São Paulo, eu tinha carro, então eu punha a criançada, eu articulava, levava um monte, todos mais velhos, não eram crianças, em torno de mais de vinte anos, mas se comportavam como criança, e aí a gente passeava para caramba por São Paulo. Aí eu comecei a levar eles para conhecer parques, comecei a levar para conhecer Parque do Jaraguá, eu tinha quatro que eram muito bonitinhos, inclusive um, que era totalmente careca que levou muito eletrochoque, porque a síndrome, às vezes, de ficar bravo, levava eletrochoque. Chamava Carlinhos, ele adorava meu cabelo e queria uma peruca. Daí eu levei eles, eram quatro, para passear comigo no Parque do Jaraguá, e eles começaram a notar que as coisas estavam feias, eu era mais nova que eles, e eles: “Tia, tia, olha aquela árvore morrendo.” Aquilo começou a me despertar para um outro fato, quer dizer, eu não tinha ideia toda desse coletivo, de florestas e tal. E eles começaram a pôr isso em mim, aí quando eu saí da faculdade, eu saí sem saber muito o que eu ia fazer. Fui para um escritório, lógico, no período de faculdade eu fui fazer estágio no Ministério Público de São Paulo. Primeiro foi na área de Acidente de Trabalho, que eu tenho ótimas histórias, tem uma história ótima, e depois eu fui para o Criminal, e fui fazendo isso, era voluntária da APAE e trabalhava. E aí foi conjugando fatos de saber que eu tinha que ir para alguma área que a minha lógica fizesse sentido, que eu entendesse o que estava acontecendo. Mas aí eu casei também, quer dizer, saí da faculdade, estava no escritório, a primeira vez que eu fui pegar um caso, como um advogado daqueles que está lá esperando algum cliente chegar, todo mundo ocupado, e você lá. Aí chega a faxineira para varrer o escritório: “Doutora, a senhora está trabalhando aqui?” “Estou.” “Sabe eu estou com problema...”Um conselho a todos que vão ser advogados, que estão se formando: nunca vá no papo de faxineira (risos)... “O que aconteceu?! “Não, doutora, é que meu filho está preso, foi solto dia 31 e preso dia três de janeiro.” “Por quê?”.“ Tráfico de droga.” Aí era dia dez de janeiro, e eu falei: “E aí?” “Eu não consigo vê-lo, ele está preso.” Aí eu falei: “Eu vou telefonar para o delegado e peço para ele permitir a visita da senhora.” Pego o telefone, telefono para o delegado, o delegado fala assim: “É a senhora a delegada do fulano?” Eu falei “Sou.” “Muito bem, eu quero cinco mil reais para liberar o cara.” Aquilo fez “tum”... Imagina dois anos de Ministério Público do Estado de SP, super bem informada, peguei e resolvi fazer o caminho direito, saí do escritório e falei: “Vou até o fórum.” Fui até o fórum, encontrei o promotor do caso e, por acaso, ele era muito meu amigo também, aí o Marcelo chegou e falou assim: “Por que você está preocupada com esse caso?” “Você quer saber a verdade?” “Quero.” “Eu telefonei para o cara, o cara pediu dinheiro.” “O quê!?” Aí me levou para o Guilherme Santana que era da corregedor da Polícia Civil, na época, fui para a corregedoria, aí pegaram em flagrante o delegado, enfim, cheguei no escritório, quase fui despedida (risos), porque quase pus todo o escritório em risco. Eu nunca mais pude atender, fiquei na pesquisa, aí casei e logo em seguida já fui morar um pouco fora.
P/1 – Você casou em que ano?
R – Casei em 1986.
P/1 – E aí você continuou em São Paulo?
R – Um tempo em São Paulo, mas logo o meu ex-marido recebeu uma proposta para ir para o interior, e a gente foi para o interior, eu já estava grávida, em 89 eu tive minha filha.
P/1 – Você só tem uma filha?
R – É, uma menininha, já é uma moça.
P/1 – Nesse período você parou de advogar?
R – Mais ou menos. Porque pau que nasce torto, não adianta que não rola. Nesse período, entre dois anos que minha filha nasceu, era complicado porque eu morava muito sozinha, meu ex-marido era diretor de uma multinacional, eu ficava muito sozinha e não dava tempo. Mas eu sempre procurei participar do coletivo, então eu formei uma associação no lugar onde eu morava e comecei a descobrir que tinha lá uma Associação de Meio Ambiente, que precisava de advogado. Aí comecei a me interessar e comecei a ser voluntária. Então eu ia uma vez por mês nessa Associação de Meio Ambiente e ficava lá, atendendo as pessoas, falando um pouco. Nisso começou o processo da Eco 92, e minha irmã já estava na área ambiental, ela é bem mais antiga que eu, e minha irmã começou a me passar texto para revisar, textos que ela fazia, aí eu comecei a trabalhar com questão de água. O primeiro consórcio foi o de Piracicaba, eu morava em Limeira, então eu tinha muito acesso ali, eu comecei a trabalhar sem saber o que eu estava fazendo direito, era muito nova, pré 92 tudo era possível. E quando veio 92, eu morava nos Estados Unidos, aí quando eu voltei em 93 as coisas já estavam diferentes. Aí eu comecei mesmo a assessorar as ONGs da região. Aí descobriram que tinha uma advogada que gostava de meio ambiente e podia dar uma ajudada, e as ONGs sempre tinham essa carência de questão jurídica, de informação jurídica, não tanto da legislação de meio ambiente, mas da formação, de como se comportar, obrigações, deveres, e aí eu comecei a trabalhar.
P/1 – Quais são essas ONGs do interior que você...
R – Tinham várias.
P/1 – Qual era a área de atuação?
R – Era área de água.
P/1 – Exclusivamente água?
R – Quase todas de água e educação ambiental, porque floresta mesmo não tinha muita preocupação, era mais água.
P/1 – Na verdade você sempre esteve muito envolvida em questões sociais?
R – Muito, muito, isso não sai...
P/1 – Aí você vislumbrou que, pelo que eu entendi, essa questão também do meio ambiente foi gradual, mas qual foi o momento em que você disse: “isso é o que eu vou fazer?”
R – Aí quando eu cheguei dos Estados Unidos e achava que eu tinha que fazer alguma coisa, que a minha filha já estava com quase cinco anos, eu já podia começar fazer alguma coisa. Nesse período, me separei. E fiquei um ano refletindo o que eu ia fazer, qual era a área que eu ia atuar. Minha irmã, já nessa área, falou: “Elci, é muito legal, é algo que a gente pode ter um conjunto de fatos legais para você pode trabalhar.” Eu sempre reticente, porque eu não sabia mesmo o que eu queria. Aí saí de Limeira e vim para São Paulo, cheguei para retomar minha vida. É meio complicado, mulher depois da separação com todo um... Não que foi dolorosa, muito pelo contrário, eu sou muito amiga do meu ex-marido, a gente tem uma relação maravilhosa... Mas era uma expectativa que não se completou e com uma responsabilidade de ter a filha junto, aí eu vim para São Paulo para procurar abrigo mesmo com a minha mãe, aí minha irmã escreveu uma frase pra mim de um rapaz: “Não pergunte por que os sinos dobram, os sinos dobram por você.” Aí eu estava mal, falei: “Não, eu vou procurar alguma coisa que eu gosto de fazer.” Aí eu fui com a minha irmã e comecei a ouvir o que é meio ambiente, e na PUC, em São Paulo, tinha a primeira turma de mestrado de Direito Ambiental, e minha irmã estava fazendo. Aí eu me inscrevi como ouvinte, e comecei a ver que fazia sentido, que era uma coisa que eu podia trabalhar, em vários modos, social, sócio-ambiental. Naquele tempo não tinha, era meio difícil o sócio e o ambiental ficarem juntos, fauna flora. Aí eu conheci, quer dizer, eu já tinha um conhecimento anterior, um advogado da SOS, que era o André Lima que hoje, eu até sou madrinha de casamento dele, e virou para mim e falou: “Elci, o que você está fazendo?” “Não estou fazendo nada, porque eu estou voltando para ver o que eu vou fazer, se eu vou ficar no Brasil, se eu vou para fora, sei lá, não sei o que eu vou fazer.” “Elci, vem para a SOS; eu estou saindo, eu estou indo para o ISA, eu preciso de uma pessoa como você, mobilizadora, que conhece as coisas.” Eu falei: “Imagina cara, você deve estar sonhando que eu vou pegar o departamento.” “Não, você e a Érica.” É a Érica Bechara. Eu falei: “Está bom.” Minha irmã: “Vai, vai!” Eu entrei na SOS, eu já sabia que eu gostava, mas o fato da chance chegar para mim e eu ter essa oportunidade de fazer algo que eu acreditava, conjuminou o momento psicológico, que dizer, eu me senti mais forte, com uma coisa que eu gostava de fazer que era questão de justiça, do coletivo, num lugar em que a ferramenta era muito forte. A SOS é um lugar onde você tem credibilidade, então eu fui formando isso. Foi o momento certo, quer dizer, não poderia ser antes nem poderia ser depois, era o momento exato.
P/1 – Qual foi o ano que aconteceu isso?
R – Foi de 96 para 97. Em 96 eu fiquei nesse período de ostracismo no pensamento, e em 97 eu vim já definitivamente para SP, já para a SOS.
P/1 – Em 97 você entrou, só que eu quero voltar um pouquinho antes, como você caracterizaria os movimentos ambientalistas na década de setenta e oitenta. Você ainda não estava envolvida, mas certamente você, sendo tão envolvida no social, você tinha algum contato. Como eram esses movimentos ambientalistas da década de setenta e oitenta?
R – Legal você perguntar isso, por que eram todos de protesto. Não tinha proposta, era protesto, “Hay, gobierno? Soy contra!” Era baleia que tinha que defender, era ave que tinha que defender, era um movimento considerado meio hippie, dos caras que fumam, dos caras que... Até agora você falando eu lembrei de uma coisa que meu pai falava assim: “Como que defende o meio ambiente e fuma?” Então era assim, era essa época, mas não existia uma integração, eles não chegavam a gente, a essa classe média. Era um grupo de pessoas que pensavam, mas não estavam ligados. Eu sabia da existência da SOS, eu sabia que existia, eu conhecia, via e tal. Mas foi uma época de vida pessoal também conturbada, estava mais preocupada em casar do que outras coisas. Então a partir do momento em que eu acho que eu percebi, em noventa, mais nessa época, porque antes era um movimento, mas não era um movimento que a minha galera era voltada. Se bem que o comportamento da gente já era voltado para a questão de respeitar a natureza, até por conta dessa história que eu te falei de passear no parque, de não jogar lixo na rua.
P/1 – Você acha que esse desconhecimento público dos movimentos ambientalistas nas décadas de setenta e oitenta era generalizado?
R – Eu assistia muito a National Geographic... Não era o National, era um programa que tinha na Globo que passava sobre animais... Depois teve o Globo Repórter... Como chama aquele que era de cabelo branco? Nem me lembro...
P/1 – O Cid Moreira?
R – Não, era um apresentador antigo que falava do Acre, da Amazônia e nesse período estive na Amazônia também. Então eu fui para a Amazônia em 76 a primeira vez e em 78 a segunda vez. Era menina, para visitar uma amigas que moravam lá. Lá eu tive contato com o que era meio ambiente, com o que era sustentabilidade, com os índios. Eu acho que isso, esse movimento, ele era dentro, ele não era para fora, era um movimento que se você quisesse participar, você estava lá, mas se você estivesse de fora, você nunca saberia o que estava acontecendo. Não era difundido, existia a questão da dor, os animais morrendo, isso era uma coisa muito forte. Falava-se mais da importância do meio ambiente, mas não do que estava acontecendo de real. Então eu via na Transamazônica, porque eu peguei a Transamazônica, eu via quilômetros e quilômetros queimando, mas era o desenvolvimento que estava vindo. E os índios lá de onde eu fiquei, sabiam que era importante o desenvolvimento, mas não queriam perder o que eles tinham e ninguém estava lá com eles para orientá-los. Eu vivi com eles uns dois meses, na primeira vez, um mês na segunda, e não tinha ninguém orientando. E aquilo queimando do lado, então por isso que o social talvez tenha falado mais alto. Porque sim, Comissão Pastoral da Terra, esse pessoal estava mais presente, sobre os direitos e garantias, mas não sobre essa qualidade de vida que eles estavam perdendo. Então eu acho que era isso, nós estávamos tão preocupados em resolver problemas de direitos e garantias que a gente esquecia que tinha um direito e uma garantia muito maior que era a qualidade de vida. A gente estava querendo o direito de garantia de terra para plantar, para a pessoa viver, hospital para nascer, para isso.
P/1 – Muitas vezes, muitas pessoas, elas encaram os movimentos sociais como totalmente separados dos movimentos ambientalistas, que é aquela coisa...
R – Gente mata, faz mal.
P/1 – Exato, uma coisa do tipo “não, a gente primeiro tem que cuidar do social, das pessoas, para depois pensar na ecologia, no ambiente, etc e tal”.
R – Tem que matar a fome primeiro.
P/1 – Exato, é muito comum a gente ouvir isso, mas não é assim que acontece, eu queria que você falasse um pouco sobre isso, como você explicaria sobre uma situação dessas?
R – Eu acho assim, não dá para a gente tecer verdades absolutas. Eu acho que cada caso é um caso. O social é importante, mas o ambiental também é. Não tem o que é mais importante, é um conjunto. Acho que existiu uma época em que a preservação falava mais alto que a conservação. O ideal não é o real, seria ideal que a gente tivesse uma sociedade justa, em que ninguém precisasse entrar na mata para comer, que não tivesse palmiteiro, mas não é isso o que acontece. Eu acho que o único jeito de equilibrar essa situação é trabalhar junto. Hoje eu falo, depois de muitos anos, que eu não vou entrar numa área só para defender o macaco. Se bem que um dia eu fui falar com um juiz, eu entrei assim e falei: “Oi, doutor.” “A senhora que é advogada da SOS, que veio defender o macaco?” Eu disse: “É, o macaco, a sua mãe, o senhor.” (risos) “A senhora está brincando?” “O senhor também, né, doutor?” E assim a gente entrou num acordo, porque há uma coisa que é assim: a gente vai para defender o macaco, mas não é. O grande desafio hoje é mostrar para as pessoas que quando a gente entra para falar de meio ambiente, de água, de ar, não é somente para salvar o macaco, mas para salvar a humanidade. Então essa consciência de transformar o social como problema, mas não é o problema, é agregar o social ao ambiental, quer dizer, o resultado da melhoria de qualidade de vida vai refletir sobre o social. Agora onde e como a gente fazer isso, como educar, como dar condições de vida é o grande desafio, não é um desafio isolado, está conjuminado, está junto. Quando eu chego numa comunidade, eu não chego para falar: “eu vou defender a árvore.” não “eu vou defender a qualidade de vida de vocês, que inclui manter a árvore, tratar o esgoto, cuidar da água.” É um pacto não dá para dissociar. E aí quem fala assim: “ai, não pode porque o social atrapalha.” Eu acho que a questão é política, como interagir, tanto educação ambiental quanto educação social, você aprende. A lei chega como um instrumento de punir, mas não adianta punir se você não deu condições de instruir. Você tem que alertar para as pessoas o que está acontecendo, seja o que elas têm dentro da floresta ou fora da floresta. Eu não dissocio não, eu acho assim: existe essa competição sim, e muitas vezes é o discurso do outro, de quem quer utilizar um ou outro para manipular. Então muitas vezes num empreendimento, o cara: “Ah, vamos gerar duzentos milhões de empregos.” E daí? O pessoal vai morrer porque não tem água para beber, então não dá para dissociar, tem que trazer junto, a discussão é coletiva, é de todos, não é isolado não.
P/1 – Aí você no final de oitenta, no início da década de noventa, você já estava mais à par do que acontecia no universo ambientalista, também porque você disse que sua irmã estava lá na Eco 92...
P/1 – Estava lá na Tijuca.
P/1 – E você ajudava ela nesse processo todo. A gente já falou de oitenta, como era na década de noventa, o movimento ambientalista era muito diferente?
R – Não diferente na paixão. Quem é ambientalista é ambientalista sempre. É diferente na mobilização e na ação. É como olhar o mar a primeira vez, a gente olha, brilha, aquilo vai e às vezes quem mora no mar não dá valor. Então a palavra ambiental surgiu como olhar o mar à primeira vez. “Tem um mundo novo, tem umas coisas novas, tem umas teorias”. Isso era muito bom, veio refrescar, e não mudou nessa concepção de vontade, o que mudou é que as pessoas são mais ocupadas, elas têm outros milhares de problemas para resolver, antes de pensar. Pensando que isso está muito longe delas e que tem sempre alguém para resolver por elas. Então a capacidade de mobilização, naquela época, era maior, hoje talvez a gente tenha uma mobilização mais de internet. Mas essa coisa de juntar gente e ir para rua, talvez porque a gente já estava meio acostumada a fazer isso, para protestar. Então a gente veio com essa carga para o meio ambiente. Mas eu acho que a paixão continua a mesma. Eu, quando dou aula, quando eu falo, quando começo fazer uma palestra, eu percebo o olho brilhar, é como ver o mar, é uma coisa impressionante, as pessoas descobrem um mundo que elas nunca viram, porque elas não acham que não eram elas. Falar sobre teorias ambientais, sobre o princípio da precaução, para a área jurídica é totalmente diferente, porque se eu pensar, eu sempre falo o seguinte: “O Direito é uma mulher bem velha, bem gorda, com um monte de filhos já mais velhos, o Direito Civil já deve estar lá com seus quinhentos anos, mas ela está sentada assim. Aí vem um neném que foi a raspa do tacho, que é o Direito Ambiental, e que ela tem que pegar aquela criança, porque ela sempre está para lá e pra cá: “meu filho, volta aqui.” Então ela não tem a mobilidade que é necessária para cuidar daquela criança, mas ela é mãe dessa criança, e os outros irmãos, o Direito, e os de outras naturezas, estão lá ajudando a cuidar dele também. Então ele é muito novo, e é uma saída, é algo muito interessante para o profissional de Direito. Porque quem quer ser operador do direito, da justiça, encontra no meio ambiente um campo vasto. Você trabalha com o social, você trabalha com a questão de floresta, você trabalha com qualidade de vida, é importantíssimo. Eu sou meio suspeita porque eu acho que esse movimento me criou e eu sou fruto dele e eu acho que a gente passa isso também para quem a gente está capacitando ou falando.
P/1 – E você disse agora a pouco que antes da Eco 92 tudo podia, e depois da Eco 92, o que foi que mudou?
R – Começou a ter uma série de questões mais sérias. “Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. A câmera e a ideia tinham que diminuir um pouco, porque começou a formar realmente princípios. Você tinha algumas bases que não podiam fugir, no sentido de você criar uma nova teoria, só que você tinha princípios que tinham que ser acordados com o mundo inteiro. Então teve que se desenhar esse princípio conjunto e trabalhar na implementação deles. Para isso, então não valia só a câmera na mão e uma ideia na cabeça, não era só protesto, era também proposta. Então se a gente puder fazer os “três Pês”, a década de setenta, oitenta até noventa era protesto. Começaram então depois da Eco 92 a época das propostas e hoje a gente está nos projetos, então foram esses três momentos que foi proposto e que tem que ser implementado “então está bom, você está propondo, implementa, e a gente implementa para você mostrar que dá certo”.
P/1 – Você em 96, 97 na SOS, você lembra como foi seu primeiro dia de trabalho lá?
R – Eu lembro de várias coisas, porque assim, entrar num departamento jurídico que, na verdade, era tocado por uma pessoa só, enlouquecido, porque muita coisa, muita denúncia, e começar a atender as pessoas, as demandas. Porque a SOS sempre foi muito demandada, então a primeira denúncia que eu atendi, eu sabia quais eram as legislações, mas eu tinha que ser mais psicóloga do que advogada. Porque as pessoas telefonam com milhões de histórias, e é interessante porque no meu caso, eu aprendi a lidar com a ansiedade do outro, e a pensar. Eu chorava todo dia, teve uma época que todo dia eu saía da SOS, e chorava, chorava porque eu não estava fazendo nada certo. Eu achava que eu estava fazendo tudo errado, que eu não ia salvar o planeta, a Mata Atlântica. Aí comecei a aprender a lidar com a minha ansiedade também, como profissional. Sabia que os resultados que eu poderia alcançar não seriam em curto prazo, seriam a médio e longuíssimo prazo, que os instrumentos que eu tinha legais tinham que ser revistos, porque não era só uma questão jurídica, era uma questão econômica. Eu percebi muito cedo isso, a questão econômica, e aprendi a lidar com as pessoas. Porque as pessoas têm um grau de ansiedade e de necessidade de atendimento imediato, de certas coisas que, por vezes, ficaram anos acumulados e aí eles encontram espaços e botam aquela ansiedade de uma resolução que uma instituição poderia resolver por eles. Não é instituição. A instituição colabora, mas é a mudança das pessoas que vai fazer melhorar esse mundo. Então não adianta só denunciar, tem que participar, tem que denunciar, mas também mudar. Quer dizer, o cara denuncia o vizinho, mas ele mesmo fez a coisa errada. Então muitas vezes acontecia isso, eu ia para ver uma coisa, o cara tinha feito pior, o vizinho era pior, o denunciante era pior que o vizinho. E tive logo no começo da SOS o final de uma história muito louca que é a Porto Primavera. Quer dizer, quem passou por Porto Primavera, que foi uma hidrelétrica no oeste de São Paulo, que inundou 230 mil hectares, foi o meu primeiro caso grande. Porque tinham as denúncias que eu tocava e toco, mas caso grande mesmo foi Porto Primavera. Porque ela estava para operar e com o processo todo irregular, o processo todo muito complicado, muito ruim, muito dolorido, com gente, índio, cachorro, papagaio, tudo que você pode imaginar num lugar em que é plano, 230 mil hectares, num raio que vai alcançar todo mundo. E foi a primeira vez que eu viajei em nome da SOS para um lugar; participei de uma audiência em nome da SOS e vi como era a manipulação de audiências públicas, como que a população não tinha voz e não conseguia se manifestar porque só descobria os danos depois, muito depois. Comecei a articular com as ONGs locais, tem o Djalma, que é da Apoena, que a gente articulava junto e tinham 35 ações civis públicas ajuizadas para não operar a Porto Primavera. E por uma jogada política, fizeram um termo de ajuste de conduta, e ela operou de um dia para o outro, sem ter resgatado nenhum animal - levou tudo. Foram resgatando, eu tenho até um vídeo, porque nessa época eu namorava um rapaz, um americano, que era da National Geographic, e eu chorei como uma louca, porque eu fiquei muito mal, porque eu tinha conversado com os índios, eu sabia que os índios estavam se matando, porque foram postos para fora. Eu estava num momento muito difícil mesmo; eu vestia só preto de tão triste que eu fiquei. E eu, muito triste, cheguei na SOS um dia, chorando, falei para o Mário: “Mário, eu acho que eu vou desistir. Não dá, eu não vou conseguir segurar.” “Não, vamos fazer alguma coisa.” Aí bolamos de chamar esse meu namorado que falou com o pessoal da National para fazer a fita, e a fita está lá na SOS, não foi divulgada no Brasil porque foi vetada por problemas econômicos aqui no Brasil, e eu fiquei famosa nessas histórias por conta de Porto Primavera. Porque a gente teve uma reunião numa secretaria e estava o diretor de meio ambiente da Sabesp e ele começou a falar besteira e eu falei: “Agora acabou, agora eu vou vomitar na tua cara porque eu não acredito em mais nada.” (risos) E eu fui tirada do recinto porque eu ameacei vomitar na cara dele. Mas ele também me provocou, ele falou que eu era muito mal educada, foi uma briga bem boa. A partir daí eu percebi que não dava mais para brincar, não dava mais para correr atrás da rabo de foguete. Tinha que desenhar a estratégia antes e a legislação tinha que ser um instrumento de prevenção e não de correção, porque senão você vai cair na área do antropocentrismo, que é compensar, mitigar e, muitas vezes, não tem como fiscalizar essa compensação, essa mitigação. Então legal é não deixar acontecer, a Porto Primavera foi o meu PHD.
P/1 – Que ano foi isso?
R – Em 97, 98, no começo da crise. E o interessante que quando a Porto Primavera começou, eu queria formar grupos, eu queria debater com as pessoas. E a questão energética do Brasil estava parada, ninguém discutia mais energia. Aí encontrei com esses amigos e nós resolvemos montar, retomar a questão do GT Energia, que era o Fórum Brasileiro de Organizações Sociais, que veio da Eco 92, que tinha ficado parado. Aí a gente retomou o GT Energia, que a gente chama hoje, e o GTU de energia é um dos GTs mais fortes que tem. Para a Primavera foi, para todo mundo que trabalha com isso, foi um marco. Foi a dor extrema, porque até hoje é um absurdo, não está resolvido, mas também foi um marco para que não aconteça mais, foi um pacto entre todos nós que a Porto Primavera não podia acontecer de novo. A partir daí eu comecei a entender a área econômica também. Porque eu confiava muito na área jurídica, que com ações eu conseguiria. Aí eu percebi depois de muitos anos que o dinheiro falava também bem alto e que ali a gente podia interferir também, na questão de financiamentos. E nesse momento eu recebi uma denúncia, que na verdade estava parada na SOS. Uma denúncia de um salto, de uma queda d’água de 369 metros, que é em Joinville. Um lugar maravilhoso e que estava ameaçado de construir uma hidroelétrica lá. Aí foi minha salvação, foi meu processo de cura. Porque não estava ainda licenciado, estava no processo de licenciamento, e a gente podia implementar as estratégias para não permitir a construção. Os empreendedores fortes, porém desarticulados, achando que podiam passar aquilo sem ter ninguém para ver. Um proprietário completamente maluco, que era o dono da área, que tinha sido viciado em cocaína, em fumo, mas de repente ele descobriu que ele precisava fazer alguma coisa com aquela área de 369 metros de queda, e aquele lugar maravilhoso. Aí nós fomos lutar pela conservação da área. Foram cinco anos, mas ganhamos. Foi o único caso aqui - em off, que a gente não divulga - foi o único caso que, mesmo com a concessão da Anaael, mesmo com o processo de licenciamento de um empresa forte, dentro de um governo como o de Santa Catarina na época, nós conseguimos barrar, criando uma RPPN de onze mil hectares na região. Uma coisa louca, e a história dessa luta é uma história mais maluca ainda, porque era esse proprietário que, de repente, despertou e descobriu que era importante manter aquela área; conseguiu, através da gente, a gente começou a trabalhar com uma estratégia com ele, de formação de grupos; montamos cinquenta ONGs ao redor, batendo forte na questão econômica e na questão técnica. Quer dizer, a mentira que o empreendedor tinha contado na época, que na área não tinha animal em extinção, a gente conseguiu desmistificar. Teve uma cena ótima, você pediu para contar uma história, lá vem a história. Uma vez a gente estava numa reunião com todos os empreendedores, o empreendedor veio com a Anaael, para você ter uma ideia, o cara era muito poderoso, e a gente lá, sentado, aí ele falou assim: “Ali é pinus, ali não tem Mata Atlântica, só tem fragmento de pinus no meio.” E estava eu, o Mário, o promotor, todo mundo: “Então está bom. Eu sou uma onça; eu estou andando no meio do mato, olho o fragmento de pino, você acha que eu dou a volta ou atravesso?” (risos) Ele falou: “Atravessa.” Então é primária, quer dizer, não é um punhadinho de pinus no meio de uma floresta enorme que vai descaracterizar a floresta. E o mais legal e tudo isso é que aquela comunidade ficou sensível para a questão ambiental. Essa pessoa, que é o proprietário, se formou na faculdade, a mãe dele me liga e fala: “Obrigada, porque vocês deram um motivo de viver para o meu filho.” Hoje ele é coordenador desse movimento, ele é uma pessoa super responsável e é linda a história. E o salto continua lá. E é desafiador porque agora a gente tem que correr atrás de grana para manter a área. Então nunca vai parar a história do Salto Cubatão. E a comemoração foi muito petit comite, por quê? Porque se a gente expusesse essa questão de ter conseguido vencer um empreendedor, etc, nas articulações que nós fizemos, isso poderia mostrar que a gente estava provocando o setor elétrico. E foi interessante porque foi o início da questão da energia no Brasil. E aí o Roberto também, nessa situação, ele, coitado, em Santa Catarina, perto de uma área e a empresa ficava pressionando ele, o diretor telefonava para ele, aí ele falava: “Eu não tenho nada a ver com isso, resolve lá.” (risos) “Eu sou apenas o Presidente, então você resolva lá com o pessoal.” Porque era um grupo mesmo, ele falava: “Então está bom, nós já ganhamos, está bom, chega, não precisa brigar mais.”
P/1 – Mas no jurídico da SOS, já deu para entender que você lida muito com denúncias, mas existem outras atividades que vocês desenvolvem dentro do departamento?
R – A gente tem um papel do institucional, quer dizer, de atender às demandas da Instituição, no sentido de contratos, avaliações de riscos de projetos, necessidade de intervir sobre conflitos que o projeto possa manter. A gente tem um papel na parte de atendimento ao público mesmo e as outras ONGs, é muito importante isso, é algo que eu gosto muito, que é essa questão de você trabalhar com outras organizações também da área ambiental, mas que não tem condições, às vezes, de ter um orientação jurídica. Tem a questão da defesa e missão, que aí é uma outra, é a missão e a instituição como ela. Eu não trabalho para as pessoas, eu trabalho para uma missão. Então o departamento jurídico da Fundação SOS trabalha para a defesa da missão e do que ela representa enquanto instituição. Então eu trabalho para a Fundação SOS e não para as pessoas. Isso é bem interessante porque para qualquer tipo de conflito que haja, o Presidente, o representante, pede um parecer do jurídico, e o jurídico não vai atender a isso ou aquilo, vai atender a necessidade da Instituição, e é fora dessas questões internas. Não tem questão interna, a defesa é da Fundação, para durar para sempre. Então não vai ser para defender fulano e sicrano, mas para defender o que ela representa, principalmente os filiados. Porque muitas vezes eu fico assim “Puxa, a gente tem 110 mil filiados!” Eu, como jurídico, eu tenho que manter essa instituição, o mais certo possível para ter orgulho, para ter a credibilidade. Às vezes eu me sinto um pouco no Ministério Público (risos). Às vezes, eu tenho essa sensação, mas eu tento evitar. Porque há uma coisa na área de meio ambiente que é muito perigosa que é a vaidade.
Há uma história na minha família que é muito legal. Minha mãe e meu pai sempre contavam, quando os romanos chegavam às cidades depois de ter vencido alguma grande batalha, todo mundo falava: “Os deuses, os reis!” E ia um cara atrás, segurando uma coroa de louro, falando assim: “Lembres que sois mortal”. Então essa questão de você ser advogada de uma instituição como a SOS, eu tenho que lembrar que eu sou mortal, que se acontece alguma coisa comigo, tem que alguém vir e pegar essa Instituição e fazer pelo bem dela. Não sou eu que me promovo, a Instituição é que deve ser promovida, a forma como ela conduz as histórias dela, a seriedade, a credibilidade, quem são os dirigentes. Porque não é fácil, a gente lida com gente, mas as pessoas têm que ter essa noção, de que a gente não trabalha para as pessoas que a gente trabalha para algo muito maior, e com muita credibilidade. Porque também, às vezes, as pessoas não têm noção do que é isso. As pessoas telefonam do Brasil inteiro perguntando para a gente como que a gente pode ajudar. A gente não é assistencialista, mas a gente tem credibilidade para falar: “Não, é desse jeito, se você fizer assim, a gente vai apoiar, desse jeito que é a melhor estratégia.” A gente tem história então, com respeito a isso, a coordenação respeita muito isso, de ter a porta aberta para qualquer demanda.
P/1 – Você tocou num ponto que é a relação da SOS com as outras ONGs, fala um pouquinho disso para a gente, para entender melhor.
R – A SOS nasceu do movimento de protestos. Com algumas propostas já solidificadas, mas basicamente com os protestos, e foi criando credibilidade, porque não dá para protestar sem não ter o aspecto técnico bem definido, propostas públicas, propostas de mudanças de políticas públicas. E isso foi germinando, “saliva de professor é semente de sabedoria”. Então isso foi germinando e foram criando outras ONGs, nesses anos noventa para cá, principalmente, criou um mundo de ONGs. Porque a gente consegue fazer mais, com menos e com mais efetividade. Os resultados são sérios, são bons, e isso começou a tocar essas pessoas. Não dá para mudar uma questão ambiental sem você ter a comunidade, aquele local, organizado para essa mudança. Então essas pequenas ONGs que foram crescendo, muitas delas cresceram bastante, nasceram dessa visão de outras ONGs maiores que foram passando para elas. Houve uma fase que se brincava que a gente era “King ONG”. A gente parece muito maior do que a gente é e, na verdade, a gente tem um grupo enxuto dentro da Instituição, mas é muito liderança, quase todos os que trabalham lá são líderes, são pessoas que até é difícil numa reunião entre nós, é quase para ir para matar, porque se um fala, tem que estar todo mundo de acordo, não é uma ideia de que você joga e todo mundo fica tranquilo. Todo mundo é muito questionador, e isso acabou dando também com as ONGs locais, que a gente chama regionais, trabalhando em parcerias, o que acontece é que o movimento apesar de ter vontade, o protesto, às vezes a propostas, não têm as estratégias que a gente já passou. Então é como um irmão mais velho. Localmente as ONGs fazem o movimento que elas têm e contam com o apoio da SOS, que sabem que a SOS entrando com o logo e com a vontade lá, é mais levada a sério. Então, um exemplo prático é o litoral norte aqui de São Paulo. Quando eu comecei a trabalhar lá, existiam já as ONGs, mas elas tinham muita dificuldade de debater localmente, porque existia uma pressão política muito forte. E eu lembro que a primeira vez que eu fui fazer um debate, cheguei lá na câmara dos vereadores, o cara começou a gritar, a falar: “Porque aqui é nosso e vem gente de fora...” Aí eu perguntei para ele: “Com quantos votos o senhor é eleito?” “Duzentos.” “Eu represento 110 mil pessoas, quem pode mais?” Então eu aprendi que a credibilidade podia ajudar localmente. As relações que a gente tem com as ONGs locais é essa coisa, de dar peso à luta, à necessidade local. E isso cria confiança, laços de confiança, laços de amizade fraterna mesmo. Porque sabe que na hora do “pega para capar”, a gente está lá para ou brigar junto, ou perder junto. E ganhar junto ou perder junto une, une e faz pensar nas estratégias de novo. Então já há uma profissionalização em cima das próprias metodologias que a gente já adotava na SOS. Quer dizer, não basta mais só chegar lá para protestar, tem que ter base técnica, tem que saber que a questão não é no varejo, é no atacado. Tem que trabalhar com políticas públicas, tem que trabalhar o econômico, e essa metodologia nossa acabou instigando essas ONGs, e há uma parceria, um apoio mútuo, tanto quando eu preciso, eu posso contar com elas, e tanto quando elas precisam, podem contar com a gente.
P/1 – São ONGs diversas? Cita só para a gente ter uma ideia.
R – No litoral Norte, a gente brinca porque eu quase fui tia. Eu não sou tão velha assim, mas eu de certa maneira fiquei tia deles. Eu sou madrinha de casamento, eu sou madrinha de filho. Porque muitos chegavam na SOS e falavam: “Eu quero montar uma ONG.” “Onde?” “No litoral” “Legal, então vamos montar. Qual é a tua proposta?” Já direcionava a ONG para um processo legal, e eles começaram a crescer lá e acabaram formando. E cada cidade do litoral tem uma ONG que está representando, têm um coletivo das entidades no litoral Norte, então foi juntando gente. Muitas vezes eu acho que o trabalho que a gente faz é de juntar a vontade com a forma, então a gente pluga e apresenta as pessoas, e começa a dar credibilidade e aquilo começa um movimento que é uma onda mesmo, todo mundo falando a mesma linguagem. Essa semana, eu estou muito feliz mesmo, por exemplo, porque faz cinco anos que a gente trabalha para o depósito do decreto na Normalização do Zoneamento Econômico Ecológico do Litoral Norte. É um debate que envolve o interesse de toda a natureza. Gente com muita grana que não quer uma limitação do uso das áreas e gente que está querendo defender essas áreas. E essa semana, o Ronaldo vai assinar o decreto. Então foi um trabalho de coletivo. Quando a gente começou lá com essa questão da normatização pelo decreto, foi essa coisa do cara falar: “Eu sou vereador, eu mando aqui, e quem é que vem falar aqui de questão ambiental?” Fizeram até um jornal, uma vez: “Paraquedista na Mata Atlântica.” Escreveram lá que achavam que a gente estava interferindo sob uma área que era só deles. E foi através do Atlas, através dos levantamentos científicos, através de posturas, de políticas que o Mário desenvolvia, e a gente conseguiu fortalecer as ONGs. E hoje elas são danadas de boas, todo mundo reconhece o trabalho delas, e para gente é como um filho “Puxa, cresceu, que legal, e sempre que precisar pode contar com a gente.” Então esse trabalho conjunto é muito interessante, mesmo dentro da cidade de São Paulo. Algumas ONGs de associação de moradores ou para, por exemplo, proteger árvore. Tem muita gente que se preocupa com a arborização da cidade, não adianta defender uma árvore, tem que defender a composição de florística da cidade de São Paulo. Para isso, cada associação tem que trabalhar com seu bairro, com a sua região, para tentar legislações ou ações que pelo menos expliquem por que vão cortar uma árvore lá, pro cara é importante. Ou condomínios também, a gente trabalha muito com associação de moradores de loteamentos, de condomínios que também tem esse mesmo entendimento. Então é legal, a relação é muito boa. Claro que a gente, às vezes, não pode corresponder a todas as expectativas. Muitas vezes é muito difícil, eu sou uma, o Mário é outro, a Márcia é outra, mas até essa quebra de expectativa é importante. Quer dizer, a gente trabalha com a realidade, a gente fala: “Olha, a gente pode fazer isso desse jeito, mas vocês vão ter também que fazer a parte de vocês.” E aí a coisa vai andando.
P/1 – Você, pelo que deu para entender, você está também nos bastidores da grande parte de projetos e programas da SOS. Dá um panorama para a gente desses projetos da SOS, pelo menos os que mais te marcaram e que te marcam ainda.
R – A gente fala que tem soldado, tem sargento, tem capitão, eu sou um sargentão, daqueles que comanda a tropa. Eu acho que os projetos da SOS, em geral, são projetos muito interessantes, no aspecto de metodologia, são desafiantes. E como o Roberto fala, “conversar pode”. Então a gente tem que conversar com todos os setores, tem que procurar agregar. A gente não veio para dividir, veio para juntar para um ideal. Para isso, os projetos, desde a questão da concepção do projeto em si até a execução dele, com patrocínio, são debatidos dentro do possível. Claro que eu não tenho um caráter deliberativo. O meu papel como eu falei é um papel de defender a instituição, a missão, e ver quem é quem. Então, para um possível patrocinador para um projeto, passa pelo crivo do jurídico, se ele tiver um passe monumental ele não pode ser patrocinador. Chegam umas cinquenta empresas por mês, por ano lá na SOS, e a gente só tem três ou quatro que são aprovadas. Isso é duro para o técnico que apresenta, é duro para a instituição porque muitas vezes quer fazer alguma coisa, e é mais duro para o jurídico porque sabe que é importante fazer, mas tem que falar um “não” e, às vezes, cria rusgas. Mas em geral, isso mostra resultados, não tirando a importância de ter o projeto. É importante também manter a credibilidade. Então dentro dos projetos, quem patrocina cada um dos projetos, é um patrocinador que a gente não fala patrocinador, é parceiro daquele projeto, mas não quer dizer que ele é parceiro do projeto que a gente não possa brigar com ele se ele fizer alguma coisa errada. Se um parceiro comete um ato que a gente não considera legal, a gente vai bater do mesmo jeito porque ele fez um ato que não fez legal. Agora, em geral, os projetos são muito interessantes. Os bastidores desses projetos, de como eles são implementados, como que a gente tem que solucionar um conflito, vem muito do feedback do próprio coordenador do projeto. Por exemplo, a Malu - que você vai entrevistar - coordena o projeto de água, e eu não preciso ficar o tempo todo com ela, ela sabe que a hora que precisar ela me chama. A semana passada ela me chamou para uma reunião, que eu tenho verdadeiro horror às pessoas que se comportam daquela maneira, que foi lá na SOS para conversar, porque a gente está debatendo uma ação, que o cara quer fazer numa área onde a Malu tem o projeto. Então o cara chega, com postura superior e tal, aí uma hora eu me cansei e falei: “Seguinte, você veio na minha casa, você quer conversar?” “Quero.” “Quer ouvir?” “Quero.” “Se não eu vou para a minha sala, vou trabalhar do mesmo jeito, e você vai ficar falando com a parede, porque eu não estou afim de ficar ouvindo você falar que o teu projeto é bom quando eu estou falando que o teu projeto não é bom, enquanto não for bom, você vai apanhar enquanto tiver que apanhar.” Então é assim, o jurídico chega na hora que tem que chegar. Às vezes você não pode utilizar uma bola de canhão grande para matar uma formiga, tem que saber equacionar. Do projeto que eu aprendi muito, acho que o projeto do Guararu, que é esse no Guarujá, me ensinou algumas realidades, me ensinou alguns critérios que eu gostaria de obedecer daqui para frente. Quando a SOS entrar num projeto, ela tem que ter um histórico anterior com a própria comunidade, com o próprio local, que é o caso do Guararu. A gente tem uma ação civil pública contra um determinado empreendedor na área há quinze anos. Então a credibilidade e a forma como a gente entrou, já precedeu, porque a gente já tinha um posicionamento em relação à região. Quer dizer, procurar uma comunidade que seja realmente fértil, que esteja disposta, que tenha vontade, isso é muito importante, o modelo colaborativo, que o Belô fala tanto, da gente procurar no local o que é importante para a comunidade e não o que nós, técnicos, os brancos, os loiros, os poderosos, achamos que é importante para a comunidade. Então o Projeto Guararu é um projeto muito polêmico, muito difícil, mas é um projeto que me ensinou muito. Me ensinou essa visão de como que é o ideal entrar no local, por mais que doa, às vezes, não conseguir fazer determinadas coisas, mas é bom entrar em algum lugar que a gente já tenha algum histórico. Dos outros projetos, eu acho que o Atlas é um projeto que eu gosto muito e que tive a oportunidade de conhecer “N” realidades com o Projeto Atlas, com os conflitos que nasceram do projeto, por questão de ocupação irregular. Estive com o MST, aprendi a discutir com o MST, sei que é importante a questão de ocupação, sei quem é sério, quem não é, como jurídico, eu estou falando no individual porque é um aprendizado, porque você falou “qual era para mim”. Essa coisa de ter encontrado na área, onde eu fui, a fazenda que era do meu avô. Então é muito louco estar trabalhando, cinquenta anos depois, num lugar que eu conheci, e quando já estava no final da exploração que existia na região. Tudo isso você vai agregando, todos os projetos, de alguma maneira, quando chamam o jurídico é para um conflito que deve ter uma solução, não necessariamente na punição, porque a punição é uma outra história, mas da metodologia, de como a gente vai agregando isso como aporte para a estratégia, daqui para frente é assim, isso é importante.
P/1 – Elci, agora uma pergunta mais macro, você acha que no modelo ambientalista nacional existe muita influência das ONGs ambientalistas internacionais?
R – Não, pelo menos não.
P/1 – Na sua opinião?
R – Eu sinto assim, o que existe é um trabalho feito pelas ONGs internacionais que é muito sério. Elas começaram talvez pela dor, porque a gente aprende na vida por dois motivos, amor e dor. A gente não aprende porque gosta de aprender, é uma coisa que de alguma maneira vai doer, o amor também dói. Mas essa dor que as ONGs estrangeiras sentiram antes da gente, porque perdeu muito anteriormente os recursos. Tinham outras preocupações, ar, contaminantes, e tudo isso para eles foi muito mais cedo que para nós. Então essa luta deles não pode ser esquecida. Mas a gente tem um modelo brasileiro, porque o Brasil é um país diferenciado, ele não é África, não é continente africano, não é América do Norte, não é Europa, é onde os recursos têm depois de muitos anos, gente que utiliza e possa saber utilizar bem. Então esse modelo brasileiro é um modelo muito específico, até de mobilização mesmo é muito específico. A gente discute um pouco isso no Greenpeace de vez em quando, eu falo para o pessoal: “Gente, qualquer dia desses vocês vão ser mortos!” (risos) Eu acho legal, eu acho bárbaro, mas é o modelo deles. O modelo talvez que eu entenda que é mais brasileiro, é esse modelo de articulação, de debate, de mudança, de projeto. O deles, de alguma maneira, diz tudo e, às vezes, é um pouco mais blasé que o nosso, a não ser o Greenpeace que é mais de ativista, os outros modelos internacionais não são tão ativistas, são mais a discussão técnica. Não tem aquela coisa de pôr o pé no chão, de ir lá na comunidade, de se amarrar na árvore. O brasileiro tem esses dois pontos, ele pode tanto amarrar na árvore quanto falar da questão técnica, é um modelo um pouco diferente, mas não que não contribuiu, contribuiu bastante, influenciou até um pouco, mas não é o nosso modelo.
P/1 – É um modelo bem particular?
R – Bem particular, bem gostoso.
P/1 – Na sua opinião, quais são os principais problemas enfrentados hoje na defesa do meio ambiente?
R – A gente teve muita ideia, primeiro é a quebra de uma expectativa. Se eu falar hoje, 2004, eu tinha uma expectativa como ambientalista em relação a quem estava no poder que agora… Que não corresponde a realidade. Então o que eu vejo disso? Eu vejo que houve a migração do pessoal do terceiro setor para o Governo, para tentar fazer alguma coisa, mas quando chegou lá viu que o buraco é mais em baixo. E não conseguem mudar toda uma estrutura já montada, do antropocentrismo, do dinheiro, dos poderes paralelos, da noite para o dia. Eu tinha, sinceramente, eu posso falar, posso parecer uma Cinderela, mas eu pensei que ia ser mais fácil, não está. Dois: eu acho que a frustração leva também a cada um falar: “Então eu vou tratar cada um do meu problema.” Houve um afastamento dessa coisa do coletivo, dos conselhos, principalmente onde o conselho poderia fazer alguma mudança. Nos conselhos hoje é briga de poder, isso também é meio desgastante. Não se tem essa consciência de que é para todos nós. Quer dizer, um pouco vaidoso demais. E terceiro, a legislação que apesar de ser maravilhosa, eu acho que eu me orgulho de estar nessa legislação, mas é efetividade, até que ponto a gente paga pra ver? Até que ponto as pessoas não modificam mesmo, não respeitam a lei? Mas aí, eu acho que não só no meio ambiente. A lei do trânsito é a lei de uma série de coisas, onde a fiscalização, onde o conceito da sociedade não está solidificado, ainda permanece o “Gerson”, é complicado. Eu tenho um caso agora de Barra Grande, por exemplo, em que todo o processo foi errado. O processo começou no licenciamento errado, falando que tinham coisas lá que não tinham, quer dizer, todo o processo foi errado e a gente conseguiu uma liminar para suspender a obra. E aí o judiciário, por uma questão de forma, quebra a liminar e permite que a empresa corte uma área que é única, não tem como compensar e mitigar, quer dizer, o juiz que quebra uma liminar na questão ambiental, que pode ocasionar um dano, que nunca mais vai ser. Não é dinheiro, não é coisa, é biodiversidade. Então o juiz ao cassar essa liminar ele está permitindo um dano que, se no mérito a gente estiver certo, nunca vai ser recompensado. Então é muito difícil você tratar com essa situação. O direito, a legislação, apesar de ser boa, ainda encontra essas formas de julgar e de ser implementada que dificulta. Aí o cara lá fala assim para mim: “Puxa, doutora, eu não cortava um pé de árvore porque o Ibama vinha aqui e me prendia, e como que essa empresa vem aqui, pega cinco mil hectares e vai cortar tudo?” Como eu vou explicar para uma pessoa dessa que a justiça é desse jeito? É meio pirante. Enquanto a sociedade não perceber que o meio ambiente não se compra, aquilo que a gente estava falando. A água é a fórmula mais simples, H2O, não dá para fabricar água na sua casa, estoura sua casa, não tem como fabricar, enquanto o empreendedor achar que toma água Perrier e não se preocupa com a água comunidade, enquanto achar que a gente está defendo onça e não a qualidade de vida, é difícil. Agora uma política pública voltada para dar essa consistência no coletivo na importância é o que falta. Talvez, a minha maior frustração é isso, parece que as pessoas não ouvem. E a minha filha, também pequeninha, ela tinha uns oito anos, eu cheguei em casa, ela estava aos prantos: “Não vai ter água, eu vou morrer sem água!” Porque ela ouviu tanto durante tanto tempo que eu estava trabalhando com água, com floresta, que ela entrou em pânico, ela caiu, aquele dia foi a noite inteira convencendo ela que não adiantava ela chorar, ela tinha que ela modificar, e ela começou a fechar a torneira na hora de escovar os dentes, ela modificou o comportamento. Talvez seja isso, a sociedade tem que levar um grande choque para sentir, enquanto não sentir, enquanto não doer, talvez só alguns por amor, mas o resto só vai ser pela dor.
P/1 – Hoje, quais são as principais frentes de atuação da SOS?
R – Eu vou falar do conceito geral. Uma coisa muito importante que eu gosto muito de discutir é a questão mesmo de vocação de áreas. Quer dizer, nós temos uma frente para mostrar assim, as áreas que têm cobertura florestal, elas têm vocação, tem áreas que vão ser para conservação e tem áreas que já estão ocupadas e que podem ser retomadas, reativadas na importância da biodiversidade delas. Então os programas de RPPN que são áreas de Reservas Particulares de Patrimônio Natural, os programas de recuperação de áreas ciliares. Essas frentes que a SOS está formando, porque não adianta só protestar pelo corte, a gente tem que plantar árvore, a gente tem que mudar uma realidade local, dar sustentabilidade para as comunidades. Quer dizer, o cara não vai comer tijolo, ele tem que aprender a cultivar a terra de maneira sustentável para ele poder continuar na qualidade de vida dele e para a natureza ficar lá também presente. Os aspectos econômicos, onde a SOS está mostrando que é viável, que não é um sonho, é viável você morar na Mata Atlântica e respeitar o meio ambiente, ser feliz e ter ganhos com isso. Eu acho que essas frentes que a SOS está abrindo, especialmente para o segundo setor do empresariado. Porque eu entendo, um presidente, fruto desse setor e que acredita piamente, eu sei disso, naquilo que ele faz ele impulsiona uma série de outras pessoas para isso. Então o convencimento do segundo setor que meio ambiente é viável, eu acho que é um dos desafios mais fortes que a SOS vai ter que enfrentar. Para mostrar que a gente não é melancia, não é verde por fora nem vermelha por dentro, que a gente é sério, que a gente tem como dar opções. Mas que o cara não vai ter lucro de, talvez, de 100%, vai dar lucro de trinta, mas é muito, porque ele vai investir, mas é para o futuro, não é dar a mão, do prato para a boca, e convencer essas pessoas. Eu tenho visto setores, e é muito estranho, porque às vezes eles vão lá na SOS só para eu falar verdade, eles falam: “A gente vem aqui para você falar verdade.” Porque as pessoas mentem, as pessoas têm necessidade de mentir que tal empreendimento é bom, que isso que aquilo outro, para ganhar dinheiro em cima do próprio empreendedor que, muitas vezes, nem sabe o que está acontecendo. Então ele vai na SOS e fala assim: “Me fala a verdade.” “Então senta que lá vem história.” Aí ele senta e eu falo: “Olha, pode fazer isso, mas é assim e assado...” Tem hoje grandes empreendedores que chegam para mim e falam assim: “Eu não vou fazer, porque eu acreditei, fui atrás de quem você falou, realmente isso que você falou está certo...” Não está mais caindo o 171 de que tudo é possível, e talvez isso se dê muito. E eu acho que a SOS cresceu muito com essa postura de ter um presidente como é. Eu acredito muito nisso, de que a postura de quem preside a gente leva também a ter credibilidade, não imagino uma pessoa com um porte do conhecimento que o Roberto tem, está com a gente sem acreditar no que a gente faz e vice versa, a gente também não estaria com ele se a gente não acreditasse nele.
P/1 – Tem uma história sua...
R –Essa história é famosa, lá vamos nós (risos).
P/1 – Com o Roberto Klabin, que é o Presidente, eu queria que você contasse para gente?
R – (risos) Ai meu Deus, isso vai custar minha carreira, o meu trabalho, o meu emprego e quiçá o meu futuro! Eu entrei na SOS, trabalhar com a missão numa instituição, mas eu sempre tive consciência que o Roberto vinha da Papel Celulose, e eu não sabia muito. O contato com ele era menor, e eu estava a menos de um ano na SOS. Aí fui chamada por uma denúncia em Campos de Jordão, perto de julho, bem frio, peguei a ONG local, o DPRN [Departamento Estadual de Proteção de Recursos NAturais], os policiais num jipe para chegar no lugar. Chegamos lá, era um estoque, era assim, os cortes das árvores deixam uns tocos, e era corte de Araucária numa área declividade que a gente chama de preservação permanente, na frente do Morro do Elefante, um lugar maravilhoso. E o cara tinha cortado as árvores, jogadas numa grota, e os caras estavam destocando, tirando os tocos para aparecer que ali nunca tinha nada, para poder construir um pista de neve natural na área. Aí cheguei com a fiscalização, eu à paisana, a paisana não, com a roupa da SOS, mas com uma bolsa, chapeuzinho, umas coisas. Aí eu desci, fui para um lado, o policial foi para o outro. Aí chegou um cara num cavalo árabe, bonito, parecia filme, desceu e eu ouvi os gritos dele: “Você não sabe com quem você está falando” com o policial, que era sargento e um cabo: “Você não sabe com quem você está falando?” E aquilo subiu um lado meu, apesar de ser alemã com italiano e um pouco francês, subiu um lado meu que na hora que eu vi eu falei: “Senhor, o senhor pode vir aqui um minuto?” Aí ele veio e eu falei o seguinte... Posso falar?
P/ - Pode.
R – Eu falei o seguinte: “Olha, você está errado. Você cagou. E se cagou, senta em cima para não feder; o senhor fica aqui quieto que agora a coisa vai pegar.” Aí ele não esperava alguém falar isso para ele. Aí fizemos a denúncia, fomos para a delegacia, ele não foi porque foram os funcionários, enfim, aquela confusão toda, passou, eu voltei para SOS, a Márcia falou: “O Roberto quer uma reunião com você e esse empreendedor.” Eu falei: “Se for para pedir desculpa, eu vou pedir minha demissão, porque eu não vou pedir desculpa porque eu não estou errada.” “Não, Elci, vamos ver o que rola.” Aí fui para a sala de reunião, loira, sentou o Roberto, eu numa ponta, e o cara na outra e o Roberto começou a perguntar: “Qual é o problema?” “Não, veja bem, Roberto, essa moça chegou lá no meu terreno com o policial e eu estou fazendo uma pista de neve natural, eu quero fazer para gerar recursos para Campos de Jordão, e ela lá e na frente do meu empregado ela mandou eu cagar e sentar em cima para não feder.” Aí o Roberto falou: “Você fez isso mesmo?” “Fiz porque ele fez, gritou...” Contei a história toda, ele olhou para o cara: “Olha, eu acho melhor você cagar e sentar em cima para não feder, porque a coisa não vai rolar!” Foi a hora que eu tive a certeza que eu tinha alguém que pudesse segurar, que ia entender. Lógico, eu nunca faria uma coisa para colocar a SOS em risco, nunca, nunca faria alguma coisa para pôr ninguém em risco, no sentido de ilegalidade, de uma forma irregular de conduzir. Apesar de ter fama de ser meio brava, eu sou muito justa no que eu falo, nunca tive uma ameaça de morte, sempre fui respeitada pelos empreendedores. Porque eu respeito quem faz, mas naquele momento eu senti que eu estava com alguém entendia, que sabia o que é certo, o que é errado, não estava ali para fazer figuração. Era alguém que confiava na equipe dele, pode até brigar comigo depois que eu contar essa história (risos), mas no momento ele confiou, e ele confia, ele tem essa confiança. Ele sabe que se a gente toma uma atitude é porque a gente tem que tomar e depois a gente resolve. Hoje a gente está instrumentalizado para saber que tal atitude pode ou não e, às vezes, eu falo: “Agora já está bom, a gente já limpou, agora nós vamos fazer outra coisa.” E deve segurar altas ondas, a gente não tem noção, mas eu imagino, se eu seguro altas ondas com colegas, porque eu sou defensora dos macacos que isso, que aquilo outro, coisas banais. Eu imagino que ele também deve sofrer suas pressões. Mas cada um sabe como segurar tua onda, tem que confiar naquilo que está fazendo. Isso é uma coisa primordial, acreditar no que está fazendo é o único jeito de você realmente fazer direito, porque aí você vai fazer com o coração, lógico, a passionalidade é importante, mas ela não pode estar presente na racionalidade, quando eu discuto juridicamente, eu discuto em cima de princípios que eu sei que existem. Eu não venho com fórmulas novas, e acho que é um debate que ainda tem muito pra acontecer. Porque, na verdade, de 88 para cá que as coisas começaram a discutir juridicamente coisas ambientais. Os juízes estão se preparando, os promotores já estão bem preparados, mas é difícil. Tem juízes que foram criados noutra época, estudaram com outras legislações e a adaptação para essa nova geração, para essa justiça gorda que eu falo. É difícil, às vezes é complicado para a gente fazer a história acontecer, para amigos meus explicarem que vale mais manter a área vocacional do que é o empreendedor, do que criar emprego, para eles é difícil, e amigos que eu cresci junto, mas isso é algo a tendência, a tendência que o mundo tem que seguir.
P/1 – Na sua opinião, quais são as perspectivas para a Mata Atlântica, a médio e curto prazo?
R – Eu tenho, às vezes, pesadelos com isso. No começo eu chorava muito, eu tinha muita angústia, achava que a gente tinha que fazer mais, que a gente estava fazendo pouco, que as pessoas vão acabar aqui. Minha filha pegou isso, coitadinha, ficou desesperada, eu não sei. Eu sou Poliana, eu já confirmei que eu sou Poliana total. Eu acho que Mata Atlântica, a curto prazo, ela está sendo conhecida. Com dezoito anos da Fundação a gente já pode até ser preso, porque a gente já ficou mocinha. Mas ainda é muito cedo, a gente ainda não fez a cabeça de todo mundo, as pessoas ainda acham que está longe delas. É alguma coisa assim, como um filme, como você assistir um filme, não está dentro de você, o desafio talvez seja a gente mostrar que eles são personagens do filme e trazer esse pessoal para dentro, tem que ficar cada vez mais popular e não elitizar, tem que ir lá de baixo, a sociedade tem que chegar lá de baixo para cima, porque ali em baixo faz a mudança, isso a curto. No aspecto da biodiversidade me preocupa muito mais do que no aspecto de conscientização. Eu acho que a gente está perdendo biodiversidade demais. Vou dar um exemplo bobo, que até quem me ouvir, vai falar: “Mas a Elci é louca!” - mas eu estou falando num aspecto bobo. Há dez anos uma praia que você ia, você percebe uma diferença, então é muito rápido, não dá tempo de corrigir nessa mesma proporção. Então a falta d’água, isso me dá um pouco de aflição, eu não sei se vai dar tempo, depende da velocidade. A longo prazo os instrumentos econômicos vão fazer valer a conservação. Vai ganhar quem tiver conseguido conservar nascente, quem tiver mata. Isso eu tenho quase que total certeza, quer dizer, a tendência do mercado é procurar aquilo que tem menos e que vai valer mais. Ouro tem pouco e vale muito, petróleo tem pouco e vale muito. Então essa mesma coisa com a água e com floresta, está faltando madeira no mercado. Então isso tudo de alguma maneira vai retomar. O que acontece com o Brasil, é que a gente abre a janela do quarto da gente, a gente vê floresta, então a gente acha que nunca vai acabar. Então essa conscientização precisa ser rápida. Nos cursos que eu dou de Direito e tal, às vezes eu vejo advogados que também tem a mesma ansiedade que eu. Mas a grande maioria continua num sistema, que é o sistema de defender e não se preocupar preventivamente, não estar trazendo questionamento. Até porque se você chegar para um empresário que tem uma visão X, e fala: “não, vamos pensar na vocação da área.” Ele vai mandar embora e por outro advogado. Ele quer alguém que atenda as necessidades dele, e ele não está sabendo que a necessidade não é só dele. Então eu acho que é formando pessoas, eu não me canso de formar, eu sempre estou lá falando as mesmas coisas, até pode ser meio repetitivo, meio chato. Eu já falei que eu tenho um sonho, quando eu ficar com setenta anos eu vou falar: “Olha gente, é o seguinte, em 1990 existia uma prainha...” Eu acho que vai rolar sim, e os meus alunos, grande parte deles, não da graduação porque eu não faço graduação; da pós, eu sinto que já tem essa vocação. Os técnicos que vão trabalhar com meio ambiente estão mais compromissados, também por conta de um mercado. O empresário exige também a credibilidade. As empresas que tiverem credibilidade terão mercado; àquelas que não tiverem credibilidade não tem mercado - isso é a minha concepção. Na parte de in situ mesmo me preocupa; eu acho que isso é o que mais me aflige, estava pegando fogo em Alcatraz agora. Eu quase parecia uma louca, eu queria resolver naquele momento, e é tudo tão difícil, você telefona para um, aí chuva caiu, graças a Deus, acabou o fogo. Mas às vezes eu estou em alguns lugares e eu sei que está acontecendo um dano ambiental, eu sei que o cara está desmatando e ninguém está indo lá para pegar, aí eu vou no lugar e está todo desmatado, aquilo me aflige. Mas me afligiu mais, não que eu perdi a sensibilidade, é que eu tenho uma conta, eu fico assim: “Quantas árvores a gente plantou e quantas que é... Não, a gente não plantou, então a gente tem que plantar mais, tem que fazer mais projetos de plantio de árvores.” Aí começa, mas eu sei que é meio Poliana, não é muito real.
P/1 – Como você disse, uma das ferramentas mais eficazes para evitar o desmatamento e o fim da Mata Atlântica é a conscientização, uma das formas de conscientizar é que as pessoas conheçam o que é, e a SOS teve campanhas maravilhosas nesses dezoito anos, eu queria que você dissesse para a gente qual é a que mais te marcou?
R – A Lista de Schindler. Eu achei muito bem bolada, até para explicar um pouco, talvez o meu inconsciente coletivo. Eu sempre achei uma injustiça a guerra. Meu primeiro livro que eu ganhei foi Anne Frank, e eu achei que ela tinha minha idade, na época, então eu fiquei muito chocada com aquilo. Quando eu vi o mesmo filme - A Lista de Schindler - ter visto na Mata Atlântica me deu um... Me ligou, sabe assim? A gente está num momento que não tem como criar Israel na Mata Atlântica, não tem. Mas a gente tem que pensar que o que perdeu não volta, isso me aflige. Às vezes eu tenho pesadelos com comunidade, no caso, por exemplo, de Barra Grande, porque eu sei que não tem saída. Juridicamente pode rolar, mas tinha que ser uma decisão... Um jornalista americano me ligou e falou assim: “Mas o senhor está falando de desmontar Barra Grande?” Eu falei: “Olha, seria ideal detonar aquela obra para ensinar que não pode fazer daquele jeito, que aquilo não vai recuperar.” Então a Lista de Schindler é mesmo isso, certos animais, certas espécies, isso que a gente estava falando hoje, o cara acha que eu estou defendendo macaco, cara, não é só o macaco é todo um ciclo, tem gente que às vezes fala: “O animal é melhor do que o homem.” Não é isso, está todo mundo junto, o olhar de uma onça, quem já viu, eu já vi uma onça com filhote é o olhar de uma mãe, eu ouvi um grito de uma macaca uma vez, que tentaram tirar a macaquinho dela no enchimento de uma usina, sacudiram a árvore e o macaquinho caiu, ela gritou como eu gritei quando minha filha caiu do escorregador, o mesmo grito. Quer dizer, eu acho que eu tenho um respeito tão grande por esses seres quanto eu tenho por mim mesma, quanto eu tenho por tudo. Eu acho que todo mundo vale a pena viver em harmonia, agora ganhar, ganhar tão pouco, ganhar tão pouco tempo para ter um Mercedes na porta, para tomar água Perrier, vamos todo mundo tomar água Perrier, vamos todo mundo ter um Mercedes, ou vamos viver legal, essa coisa me deixa um pouco irritada.
P/1 – Bom, a sua campanha foi do Schindler, e qual o projeto, o programa que mais te marcou na SOS?
R – Todos. Essa eu não tenho, filho é filho, todos assim. Claro que tem coisas que eu gosto mais. Eu adoro fazer essa coisa de capacitar comunidade, ir lá, entrar no mato, mas não tem assim um preferido, não. Todos os que eu faço... Porque é uma coisa que o meio ambiente me ensinou, a gente tem que fazer exatamente o que a gente acredita. Eu acredito em tudo que eu estou pondo a mão, eu estou acreditando, você não acredita. Eu sou tão afiada que ninguém me suporta, ninguém me coloca no projeto, nunca (risos), porque minha fama também é do grilo falante. Mas eu gosto de todos, eu gosto muito de ir para o mato, gosto muito de estar com comunidade, é uma alegria de coração. Eu tenho um aluno de quando eu comecei a trabalhar com os quilombos, e lá eu identifiquei um menino que ele andava atrás de mim o tempo todo, eu ia para um lugar esse menino ia junto “Esse menino, o que ele quer? Aí um dia eu cheguei: “O que você quer?” “Eu quero ser advogado.” “Ah, você quer ser advogado? Está bom.” Aí como eu dava aula para graduação em Itu, eu falei para a minha irmã: “Nós estamos com um meninos assim...” “Elci, vamos conseguir uma bolsa para ele?” “Vamos!” Aí eu peguei, conversando, articulando aí o reitor da Universidade falou: “Só se ele passar no vestibular.” O menino no quilombo, pegamos os técnicos da SOS, o Gazzetta, que é um técnico lá do Lagamar, falou: “Eu dou aula para ele de biologia.” Ele deu aula, o menino passou, entrou na faculdade com tudo pago, a escola, o curso de francês, computação, só que ele tinha que se virar para morar lá em Itu. Aí fazia plaquinha, ia para não sei aonde, arranjava emprego, e eles são totalmente diferentes da gente, os critérios de dinheiro é diferente do nosso. Bom, hoje o menino está se formando em Direito, se formou esse ano, é representante da Comunidade Negra na Unesco. Quer dizer, essa minha felicidade eu nunca vou poder esquecer que o Ariel é uma pessoa que foi chamada, e ele me falou: “Agora quem defende sou eu.” Quer dizer, ele vai falar pela comunidade dele, porque ele é oriundo dessa comunidade, tem que defender a comunidade dele. Ele diz que quando vai lá faz fila - desde de dor de dente, tudo ele tem que resolver; esse é ônus de ser advogado de uma comunidade, um orgulho, e ele vai fazer isso com outras pessoas. Essa questão de você trabalhar num projeto, não necessariamente ficar lá. Eu nunca trabalharia só no escritório, eu gosto dessa coisa de identificar gente, identificar liderança, capacitar liderança, explicar o que é real para o ideal, por, tirar a ansiedade, passar um pouco disso que eu passo, e dividir, é óbvio. Tem dias que eu tenho crises homéricas, eu quero chegar em casa, deitar e nunca falar de meio ambiente, não vejo nem National Geographic, não quero saber, tiro férias fora de hora, de ecossistema, mas eu acho que é importante em qualquer projeto você por o toque de alguma coisa, algum benefício sempre você vai ter.
P/1 – Na sua opinião existem pontos na SOS que necessitam de algum tipo de reformulação?
R – Eu acho que a gente está passando por essa reformulação. Eu estou muito esperançosa, eu acho que a SOS cresceu, ela precisa aprender a ser mais ágil, a questão de autonomia e confiança dos técnicos. É claro que com direção, mas para a gente voar mesmo, porque tem muita ideia, tem muita vontade, o estímulo para a SOS, o estímulo da gente, não só financeiro, porque isso a gente tem uma concepção, pelo menos eu tenho uma concepção de que não é. Como advogada normal, seria talvez outra realidade financeira, mas não é aí que pega. Exercer o que a gente é, potencialmente, preparado para exercer. A SOS é uma “48 cano duplo”, bárbara, que você pode atirar, você pode fazer, depende de quem conduzir. Quer dizer, você pode atirar para todo lado, mas de repente você pode atirar para uma coisa que vai dar certo. A SOS nunca vai ser esquecida, desde o papel que ela teve ou como ela é, a gente não tem noção da grandeza dela até a hora que a gente chega em certos lugares. Eu percebi um pouco isso, essa coisa de mania de humildade, eu não tenho noção de que é, e aí eu descubro que as pessoas falam: “Ela é advogada da Fundação!” Mas aí eu começo a perceber, não, é a SOS, eu estou aqui como representante, então pega muito. Talvez essas mudanças sejam justamente para fortalecer mais na gente, principalmente internamente. Porque brigar lá fora tudo bem, não tenho medo nenhum, eu sei o que eu estou fazendo, eu acredito, eu sei que eu estou certa, não tem discussão. Mas brigar dentro também cansa, não dá para falar que isso é certo, isso eu não gostaria. Queria sempre que meus amigos estivessem lá fora. Eu acho que essa mudança que o pessoal está passando vai ser para isso, para a gente melhorar, para a gente poder respirar, porque às vezes a gente fica lá dentro falando: “Ai meu deus, tem tanta coisa acontecendo lá fora.” E precisamos de grana para isso, então eu acho que isso é duro, saber de onde pegar, com quem pegar, porque pegar com qualquer um, eu não gosto.
P/1 – Você enxerga como a Fundação hoje?
R – Eu sou suspeita. Ela é uma moça de dezoito anos, bonita à beça, muito inteligente, mas que ela pode, de repente, ser modelo e atriz. Ou ela pode ser uma grande médica, pode ganhar o Prêmio Nobel, vai depender muito de como ela vai ser conduzida.
P/1 – É exatamente essa minha outra pergunta, como você vê a Fundação daqui dez anos?
R – Prêmio Nobel.
P/1 – Você aposta no Prêmio Nobel?
R – Aposto. Atriz e modelo, acho que vai ser difícil, a gente não vai deixar, os pais não vão deixar ser atriz e modelo. A gente briga muito por causa disso, é fácil você se tornar um ícone e viver sobre a imagem, mas a imagem não dura para sempre. A gente tem que ir atrás do Prêmio Nobel, tem que ir atrás do conhecimento, tem que pôr a cara para bater, tem que ser firme, tem que ter uma boa direção, evitar ter oportunistas. Quer dizer, a gente tem que ter um jeito de não deixar oportunistas ocuparem a gente. Essa menina que pode ser modelo e atriz ou ganhar Prêmio Nobel, se ela de repente se encantar pelo o que brilha, não é ouro. Por isso é um momento muito delicado, quase o final da adolescência, mas juridicamente a gente até fala: “Por que dezoito anos pode ser presa causa de crime?” Aos dezoito anos você superou um ciclo, primeiro você nasce para sobreviver, depois você nasce para aprender, e agora é o ciclo de nascer para crescer. Está crescendo, então aumenta peito, mulher, homem cria barba, a SOS cresceu, e agora, e agora José? Agora vai para a faculdade ou vai viajar para a Europa? Vai isso ou vai aquilo? Então eu acho que é nesse o momento que um pulso forte, uma consciência forte nossa sobre isso é importante, é mais fácil ser modelo e atriz, mais fácil você seguir modelo e atriz, você vai ficar boazinha, tirar fotos na Caras, vai ser mais difícil ser um Nobel.
P/1 – Mas é lá que você enxerga?
R – É, é lá que eu enxergo, vai ser dificílimo, vai ser pauleira.
P/1 – Elci, agora a nossa última pergunta...
R – Ah não (risos), eu quero mais.
P/1 – Eu queria que você falasse...
R – O que eu quero?
P/1 – Não.
R- (risos) Beijo para minha mãe, para o meu pai, para o meu tio.
P/1 – Depois eu quero, mas a pergunta que eu quero te fazer é o que a Fundação SOS Mata Atlântica significa para você?
R – Isso é lindo. Eu acho que eu tenho uma relação, às vezes, de amor e ódio. Amor porque eu adoro, e ódio por não conseguir. Eu vejo muito potencial, eu acho que eu sou aquariana demais, porque eu vejo uma coisa muito grande, e eu fico meio assim, de vez em quando eu paro: “Meu Deus, o que é? Por que eu? Por que yo?” Eu acho que a gente não vem por acaso. Eu tenho uma relação com a SOS de muito respeito. Eu respeito todos que estão trabalhando lá, eu sei que cada um de nós ali é um pé no chão, é vida, é entendimento, é filosofia de vida. Para mim, a SOS, de certa maneira, vem como um presente, por todo o meu histórico, eu não imagino um outro. Eu até tive um, depois não vai contar para o patrão, mas, às vezes, vem outros me procurar e eu, o que eu vou fazer? Eu gosto tanto do que eu faço, se eu puder continuar fazendo o que eu faço na SOS, eu continuo. Se um dia eu não acreditar e não puder fazer o que eu faço, eu vou embora. Mas é um casamento que eu fui muito feliz, e eu não penso em ir embora. Para mim, até o pessoal fala: “Ficar mais de dez anos num emprego só é ruim.” Eu não acho. Eu acho que não é o mesmo trabalho, todo dia é diferente, é todo dia um desafio. Para mim a SOS é um desafio completo, quanto trabalho, enquanto Instituição. Minhas preocupações como Instituição, porque eu fico pensando que eu quero que ela seja Prêmio Nobel, não quero que ela seja atriz, eu sou mãe: “Vai fazer isso, menina!” Então eu fico meio assim, me preocupa essa coisa dos oportunistas, mas eu tenho uma fé enorme de que as coisas vão superar, a gente vai conseguir superar, vai ser muito difícil, não vai ser fácil. Porque esses próximos dez anos são culminantes, porque aí ela já se torna mulher, aí que a gente vai saber. Daqui a dez anos eu te falo se ela ficou modelo ou atriz, se ela virou Luma de Oliveira, ou se ela ganhou Prêmio Nobel. Ela não precisa ser feia, nada disso, é só ser real, ir para as bases. Ela tem força, a SOS tem um poder, não sei qual é. Talvez cabalístico, não estou entrando no mérito, mas que é alguma coisa que tem como resolver, a gente não precisa ser o “mais maior” do mundo, mas a gente tem um papel na história que vai ser sempre reconhecido. Minha relação com a SOS é assim, às vezes, eu tenho um amor, é filho, argh! Mas eu amo muito o que eu faço, não tenho vaidade nenhuma. E tem uma coisa, isso é muito importante para mim, se acontecer qualquer coisa comigo, eu quero que, quem chegue onde eu estou, também tenha brilho no olho e continue, porque me dá muito aflição de pensar que eu, ou o Mário, a Márcia, todos nós que trabalhamos ali, que se acontecer alguma coisa, quem vem? E quem vir, tem que vir com esse mesmo intuito, de tentar evitar as tentações do mundo, de vaidade, de sentar sobre o poder, e que isso não existe, e estar com o pé no chão, amigo, companheiro, porque a instituição merece. Merece ter essa posição de gente boa, independente de quem estiver lá, então é esse o desafio, tirar os oportunistas, fazer a menina estudar e ganhar o Prêmio Nobel, para daqui a dez anos ver se ela virou atriz ou modelo.
P/1 – Elci, tem alguma coisa que eu não perguntei, que você gostaria de falar?
R – Eu acho assim, as minhas histórias, um dia a gente senta, porque hoje eu preciso tomar uma cerveja para me liberar das histórias. Porque histórias, o pessoal fala muito, eu quero falar o seguinte, as lendas se constroem, o do Fábio falou; “Eu sei que você conta histórias”, mas eu tenho que contar histórias no contexto. Às vezes, eu esqueço porque as coisas foram acontecendo na vida da gente e a gente vai tomando muito essa condição, saber qual o momento. Essas histórias mais marcantes do Roberto, foi porque foi importante para mim, mas como, talvez, um dia um cara falou: “A senhora vai ganhar essa causa, porque a senhora tem essas belas pernas.” Eu falei: “Cada um usa o que tem.” Essas coisas que a gente vai fazendo é uma forma até minha, pessoal, de me comportar perante a vida, de acreditar no que eu faço. Mas eu acho que você perguntou quase tudo, se você quiser perguntar mais daqui dez anos, para conversar sobre a mocinha (risos), a mocinha vai ser uma modelo, eu acho que a mocinha vai ganhar Prêmio Nobel e, se Deus quiser, a gente vai ter gente muito capacitada para administrar, se a gente tiver uma administração forte, boa, não vai ter oportunismo. Porque é aí que a SOS tem que ter uma administração legal, imbuída dos bons sentimentos, o que vai valer no mundo se não, não é muito tempo, espero que não. É o que a pessoa é, na essência, não é nada que... É o que ela é, como ela vai comportar, porque trazer um monstro como a SOS, essa mulherona, tem que ter competência para fazer. Eu confio nisso.
P/1 – Elci, muito obrigado, eu agradeço demais o seu depoimento.
R – Eu que agradeço, menino, você quase conheceu minha vida (risos), só faltou falar da minha vida sexual, eu podia contar para você o que são os bastidores da notícia, mas eu não vou contar.
P/1 – Daqui dez anos...
R – Daqui a dez anos eu estou velhinha.
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