Projeto CSP
Depoimento de Francisco Alves Teixeira (Cacique Alberto)
Entrevistado por Luiz Gustavo Lima
Caucaia, 2 de junho de 2014
Entrevista CSP_HV_018_ Francisco Alves Teixeira (Cacique Alberto)
Realização Museu da Pessoa
P/1 – Cacique Alberto, primeiro eu gostaria de agradecê-los por poder conversando aqui debaixo dessa árvore com o senhor. Para começar, queria que o senhor falasse o seu nome completo.
R – Quando eu nasci, em 1948, no dia 20 de agosto, era uma sexta-feira. Eu tinha um problema, uma doença, e colocaram o meu nome, mas era para ser Alberto. Mas a mamãe, de repente, achava que eu não ia escapar e, por isso, colocaram o nome de Francisco. Fizeram a promessa e, hoje, me chamam de Francisco. Mas o meu nome era para ser Alberto. Mas continuam me chamando de Alberto. O meu nome de guerra é Francisco Alves Teixeira. O cacique Alberto da tribo Tapeba.
P/1 – Onde você nasceu?
R – Eu nasci no Trilho.
P/1 – Onde fica isso?
R – O Trilho fica ali no colégio, não sei se vocês já foram lá, perto das Matés.
P/1 – Aqui no município de Caucaia?
R – Sim, no município de Caucaia.
P/1 – Qual o nome dos seus pais.
R – Vitor Teixeira de Matos e Francisca Alves Teixeira.
P/1 – Como era a vida na sua casa? O senhor tinha irmãos também? Quantos irmãos?
R – Eu tenho quatro irmãos. Três macho e uma fêmea.
P/1 – E como era a vida nessa casa?
R – A casa era uma cabana de palha, com cama de talo. Naquela época, eu acho que pode dizer, a nossa cama era uma cama de vara - tinha outro nome, mas eu vou dizer esse mesmo. Era uma cama que chamávamos de talo, forrada com ramo. Dormíamos daquele jeito ali, está entendendo? Casa de palha. Casa, não, uma cabana de palha, que é onde vivíamos debaixo, com toda a família: pai, mãe, os tios, vizinhos, primos, primas, avô, avó. Todos moravam encostados.
P/1 – E como era esse ambiente dessa comunidade? Viver com os primos, com os tios, como é que era isso?
R – Era uma comunidade boa. Não tinha desavença, não tinha intriga e todo mundo trabalhava e ia vender juntos. Quando chegava, partia o dinheiro. Um tanto para um, outro tanto para o outro. Desse jeito que convivíamos.
P/1 – O que o senhor lembra desse primeiro momento, ainda criança?
R – De pequeno eu tenho uma história pra contar que eu já contei e que eu não gosto muito de contar - mas vou ser obrigado a dizer. Eu fui uma criança que não tive adolescência. Só trabalhava. Eu não tive adolescência que nem tem esse pessoal de hoje em dia. Eu não tenho vergonha de dizer isso. O meu pai me batia? Não, ele não batia. O que eu quero dizer que eu não tive adolescência é porque eu vivia trabalhando. Com oito anos eu já trabalhava, já ia para a roça. Nunca tive uma adolescência. A ruindade que eu tenho para lhe dizer foi quando eu fui para a escola e o meu cabelo batia na cintura. A Letícia cortou o meu cabelo para eu poder estudar. E, de lá pra cá, eu nunca mais quis saber de estudo na minha vida. Eu fiquei com muita raiva. Eu não quis. O meu cabelo era muito bom e eu não queria que cortassem. E ela cortou. Quer dizer: a discriminação naquela época já era grande demais. Por outro lado, eu achei que eu fui ruim para o meu lado, porque eu não quis estudar. Amei mais o cabelo do que os estudos, mas Tupã me perdoa.
P/1 – Antes dos sete anos, o que o senhor lembra da vida anterior ao trabalho? Como é que eram as brincadeiras?
R – As brincadeiras eram no final de ano. Brincávamos o Toré, que são os rituais, com toda a família, com os avós, com todos os primos e toda a família, unida. Hoje, para a comunidade se reunir, têm que chamar um por um para poder chegar. Naquele tempo, morávamos todos unidos. Hoje, moramos desunidos. A politicagem dos empresários, dos latifundiários que tomaram as nossas terras nos dividiu.
P/1 – O que é o Toré?
R – Toré é uma dança sagrada: se dança e se cura com ela.
P/1 – O senhor podia contar um pouquinho como isso funciona?
R – Isso é nos rituais, dançando.
P/1 – E quem participa? São homens e mulheres?
R – Mulher, criança, velho, velha, jovem.
P/1 – Tem os cantos?
R – Tem.
P/1 – Tem instrumento musical?
R – Tem. É só o tambor, a maraca e as vozes vogais.
P/1 – O que é uma maraca?
R – Maraca é um instrumento que tem que balançar para tocar.
P/1 – É um instrumento percussivo?
R – É um instrumento de artesanato.
P/1 – O senhor falou que começou a trabalhar cedo. E como era o trabalho nessa época?
R – O trabalho era pescar, fazer artesanato e plantar arroz, feijão, batata e algodão.
P/1 – O senhor tanto plantava como também fazia artesanato?
R – Sim.
P/1 – E quem é que o ensinava a plantar e a fazer artesanato?
R – Os velhos, os avós, os tios, os primos e as primas.
P/1 – Como era a alimentação naquela época?
R – Alimentação era muquinhado.
P/1 – Como assim?
R – Peixe assado, peixe mal cozido, aquela comida que se chama de muquinhada.
P/1 – E quando alguém ficava doente, como é que fazia?
R – Ia para a medicina.
P/1 – Como assim?
R – Medicina é remédio do mato.
P/1 – O senhor lembra dos remédios do mato?
R – Um bocado, um pouco porque tinha muitos.
P/1 – O senhor podia dar um exemplo de um remédio que o senhor usou na infância?
R – Por exemplo, para pneumonia fazíamos o remédio com a xanana, o cumaru e a raiz do cardeiro. Com isso fazíamos o remédio, o lambedor.
P/1 – Lambedor?
R – Sim. O mangará da bananeira, a cebola branca, o gengibre e essas coisas que sabemos por aí. Isso era para pneumonia.
P/1 – E tinham doenças mais perigosas do que outras naquela época? O que era mais leve?
R – Não. Naquela época, eu me lembro que o meu pai curou uma pessoa. Eu era um menino muito sabido, não saía do pé do meu pai - que Deus o tenha num bom lugar. Eu era um menino muito ativo, só andava mais ele. Chegou uma pessoa lá em casa e pediu para o papai curar uma doença venérea que ele tinha. Ele disse: “Vitor” e eu no pé dele. Na hora do papai almoçar, eu estava colado com ele; se o papai ia mijar, eu ia com ele - eram dois machos, entendeu? Ele chegou e eu ouvi – os meus ouvidos eram abertos. Ele disse: “Vitor, eu vim aqui para tu curar uma doença venérea que eu tenho”. Ele sentou: “Senta aí, Eduardo”. Eu vi quando ele puxou o pênis para o lado de fora, estava inchado, cheio de porqueira em cima. Eu me lembro que eu era um menino, tinha uns dez anos de idade, e ele disse: “Vamos embora para o mato”. Lá, ele tirou os espinhos do cardeiro, tirou a capa de cima, tirou a baba e fez um rolinho e deu para ele tomar a baba do cardeiro. Porque a baba do cardeiro é o xique-xique. Se ele tiver um espinho no pé, ou se quebrou um dente, você passa a baba do cardeiro, e ele coloca para fora. Com três dia, pode estar no pé do osso, ele coloca para fora. Só Deus do céu que bota dedo nisso aí - a baba do cardeiro, do xique-xique. Era uma doença venérea e o papai o curou com o cardeiro - quando urina ele coloca a baba para fora. Sai o liquido todo pelo pênis.
P/1 – O senhor falou que aprendeu tudo com o seu pai? Queria que o senhor contasse um pouquinho quem era o seu pai.
R – Papai era um cacique, o chefe da tribo. Naquele tempo, as coisas eram melhores do que são hoje. Não tenha dúvida. Eu não tenho nenhum medo de dizer isso. Era um cacique que a negada andava só no pé dele, no trilho. Ele só mostrava um pé. Era só um rastro. Então, naquele tempo, a organização era melhor do que é hoje. O cacique e o pajé só andava no rastro, no trilho. Se passavam 50 índios ali, você só via um pé. Hoje, não, está muito modificado. E você pergunta: “Por que, cacique?” A evolução, o progresso, cresceu tudo, abriu a cidade. Acho que não tem mais índio. Ficou ruim por causa disso. Hoje, os índios estão espalhados, um para cada canto. Se reúnem quando vão para uma conquista ou um manifesto. Aí ficam aquele povo todo.
P/1 – Como é que você vivia na liderança do seu pai? As primeiras imagens que você tem do seu pai?
R – A imagem que eu tenho do meu pai e que nunca saiu dos meus olhos, do meu raciocínio, nem da minha cabeça, é de que ele era um homem grande, quase dois metros de altura, um homem muito gentil com todo mundo. Todo final de mês ele estava na casa do povo dele todinho, ensinando coisas, rezando - era um grande rezador. Eu me lembro muito dessas coisas dele. O que ele tinha não era dele, mas do povo. Ele era assim, desse jeito. Era muito unido com os filhos, com as primas, primos, com o sogro e todo esse pessoal.
P/1 – Qual o papel de um cacique? O que ele faz no dia a dia? Ele reza?
R – Ele reza. Eu nunca queria rezar na minha vida, mas hoje eu já rezo porque o meu pai disse que, quando eu fosse um cacique - eu tinha dois anos de idade quando ele me disse que eu ia rezar e ia ser um cacique muito forte. Deus me perdoe, mas eu não quis chegar a cacique, mas acabei aceitando. Porque para rezar tem o pajé, mas o cacique também reza. Eu cheguei na idade de rezar. O papai rezava muito: ele rezava no dente, quando ele caía. Assim, não doía mais. Ele passou isso para os filhos. A mamãe pariu e ele me ensinava tudo – como cortar o umbigo. Eu aprendi muita coisa com ele.
P/1 – Como eram os partos na época? Quem é que fazia?
R – Era o papai. Ele cortava o umbigo. Quando a mamãe acabava de ter o filho, se fosse dentro da água - ela pariu ali dentro da água e ele dava uma folha do mangue, passava a menstruação e deixava a menina no pé duma moita e ia pescar. Quando ele vinha de tarde, levava a menina, colocava na maca e ia embora. Quando chegava em casa ele dava a folha da castanhola e a menstruação voltava. Ele me dizia tudo
P/1 – E como é você aos dois ou três anos recebeu essa informação de que iria ser cacique?
R – Eu fui cacique com dois anos e eu nem sabia ainda. Eu só fui assumir depois que o meu pai morreu, com 84 anos. Eu já tinha uns 17 para 18 anos. Fui cacique com dois anos. O primeiro cacique do Ceará fui eu.
P/1 – E como era isso? Como as pessoas o olhavam quando você era pequeno?
R – Nessa época, eram os velhos, a tribo e o velho daqui. Ele escolheu e disse ao povo, que me aceitou. Eu não sabia, porque ele tinha outra família e os meus outros irmãos por parte de pai. Eu não sabia que eu era de verdade e que acabou sendo de verdade.
P/1 – Você sabe quantos filhos o seu pai teve?
R – Eu sei que, da segunda mulher dele, eu tenho quatro irmãos. Mas os outro eu não sei e eles não estão aqui também.
P/1 – O senhor é o mais velho?
R – Não. Com a primeira mulher dele eu sou o mais velho.
P/1 – É por isso que o senhor foi o escolhido para ser o cacique?
R – Não, essa foi uma decisão dele.
P/1 – E o senhor sabe o porquê?
R – Porque ele achou que talvez eu tinha aquele merecimento. Quando uma criança nasce você já sabe. Eu sei quando ele é bonzinho - Deus me perdoe, pelo amor de Deus, mas sabemos quando uma criança é boa.
P/1 – O que é ser uma criança boa?
R – Uma criança boa, quando ele nasce, já sabemos pelos olhos dessa criança, o seu jeito, os seus gestos. Com oito ou dez anos o menino é astucioso para estudar, para trabalhar. Já sabemos. Ninguém é doido. Hoje ninguém pode fazer mais isso, como colocar uma criança para trabalhar. Eles crescem que nem batata: você planta um pé de batata e deixa lá.
P/1 – O seu pai ajudava a fazer os partos em casa?
R – Papai é quem fazia os partos e eu olhava. Ele mandava e cobríamos a mamãe com a camisa dele. Aí, pegava um talho daquele ali, lascava e cortava. E com a mesma linha, com a mesma palha, tirava e amarrava o umbigo com a cordinha fininha.
P/1 – Você falou que não quis estudar, teve um problema da questão do cabelo. Mas como era a escola nessa época que o senhor era pequeno?
R – A escola nesse tempo era a Cartilha de ABC.
P/1 – Já era uma escola indígena?
R – Não, ela já era parte da política, quem mandava lá era um político.
P/1 – Mas não se trabalhava essa questão indígena em sala?
R – Não. Nós já éramos índios, já tínhamos a nossa terra, que já vinham tomando no meio do mundo.
P/1 – Mas a professora não discutia nem conversava isso com vocês?
R – Ela não discutia. Ninguém discutia a terra. Só nós.
P/1 – E a professora também não era indígena?
R – A professora também não era indígena. Dentro de Caucaia, não tinha ninguém que quisesse saber que existia os índios, porque eles tomaram toda a nossa terra. Nós já estávamos nos dividindo nos locais onde cabíamos.
P/1 – Como é que você percebeu essa mudança no território?
R – A mudança de tomação? A mudança de tomação foi a pior desonestidade que eu já vi na minha vida durante esses 66 anos e quatro meses. Com isso, acabou o lago, não tem mais um peixe, não tem mais camarão, não tem mais caranguejo, que é miúdo. Acabou-se tudo. Ficamos com a discriminação, sem terra, sem moradia e sem escola boa. Foi uma vida miserável. Hoje já está melhor porque nós temos acesso e os políticos sabem, a polícia já conhece. Queira ou não queira, ela tem que respeitar a generosidade, porque ela sabe que tem uma lei que nos ampara. Então, eu acho que não é bom como era antigamente, quando éramos libertos - brincávamos, gritávamos, pulávamos, jogávamos. Ninguém mais faz isso. Eu andava nu e a toalha era o vento. Hoje não tem mais isso.
P/1 – E os Tapeba tinha contato com outros povos indígenas aqui do entorno de Caucaia?
R – Sim, porque aqui já tinha os Anacé, os Tremembé, os Pitaguari. Naquela época, já tinha aqui aquele povo que se entrosava, só que eles já vinham sofrendo a pressão. Eles conversavam: “Oi, rapaz”, mas já vinha com aqueles problemas. Quando a doença ataca não é de pouco em pouco? Então, conosco era do mesmo jeito. Se conversava para dizer: “O pessoal está tomando tudo”. Diziam que eram os donos e iam expulsando.
P/1 – Vamos nos aprofundar mais nesse assunto, mas vamos retomar a sua juventude. Como é que foi, quando você já era rapaz, o momento de se casar. Quando é que um Tapeba se casa? Como é que é essa passagem do tempo para um cacique Tapeba?
R – Eu trabalhei até os meus 12 anos com o meu pai e com 13 eu coloquei uma mulher dentro de casa. E dei conta do recado até os 20 anos. Ela produziu 12 filhos meus. Eu passei 20 anos com outra, que teve dois filhos meus. Ela é viva. E eu mantive a minha vida que Tupã me mandou. Eu estou há oito anos com essa pessoa e é aquela vida de berço: fica quem quer e quem não quer, não pode ficar. Ninguém é obrigado a ninguém.
P/1 – Como era esse contato com a mulher. Como é que o senhor a levou para a sua casa?
R – Não tem diferença nenhuma do branco, só que a frase do índio diferente. É uma coisa mais...
P/1 – Existe uma diferença?
R – Um pouquinho.
R – Eu quero saber a diferença entre um cacique e um outro índio quando ele se casa ou se aproxima de uma mulher.
R – Se ele quer casar com uma índia, ele casa. Agora, o cacique é porque já vem de berço e, se ela quiser, ele pode viver com três mulheres numa casa. Não é coisa demais, não. Um branco lá fora usa porque tem dinheiro demais. O cacique não, já vem de berço.
P/1 – E o senhor lembra do porquê ter escolhido essa pessoa? Quem é ela?
R – Raimunda.
P/1 – E o senhor lembra o porquê da escolha?
R – É porque nós fomos um para o outro. Ela morava perto de mim, nós conversamos e afinal, deu tudo certo.
P/1 – Nessa época, o senhor tinha quantos anos?
R – Treze anos e ela dezessete.
P/1 – O senhor ficou casado com ela até os 20 anos do senhor?
R – Eu me casei com ela, assinei papel e me casei no civil. Eu não queria, mas ela disse que no futuro...
P/1 – E por que se casou no civil?
R – É porque ela insistiu que queria. Eu disse: “Tudo bem, aceito o seu pedido”. Mas eu contei todo detalhe para ela. Já cheguei até a dizer: “Será que no caminho eu não ia tropeçar”. Tropeçar quer dizer: “E se não desse certo”. Porque a diferença do índio para conversar com uma menina branca é o mesmo que você está conversando aqui, só que o leviano é melhor de que o papo de alguém.
P/1 – Mas a Raimunda é Tapeba?
R – Raimunda é Tapeba.
P/1 – Nessa época, perto de quando o senhor casou e começou a ter filhos, como é que eram as festas e as comemorações?
R – Naquela época, em 1900 e não estou lembrado agora, festejávamos quando um trem matava um gado e o cara não queria. Retalhávamos a vaca e fazíamos uma festa. Era muita carne. Nós não podíamos comprar isso, então, fazíamos uma festa grande, chamava tudo quanto era índio para comer a carne. A Maria Fumaça era o trem daquela época. Os vagões eram de madeira e ela se movimentava à lenha. Ela matava um animal daquele e nós comíamos e chamávamos todos os índios. A gente dava a carne e fazia uma festa grande.
P/1 – Mas como eram as festas?
R – Eram os nossos rituais, o Toré.
P/1 – Sempre o Toré?
R – Toda a vida foi o Toré.
P/1 – Tem outros rituais?
R – Sim, tem outros rituais, mas quando é num casamento duma índia com um índio. Aí, fazemos o casamento lá mesmo, no Toré.
P/1 – Eu queria saber melhor o que é o Toré?
R – O Toré é uma dança sagrada que já vem dos antepassados. São os rituais que dançamos e curamos com ele. Você está entendendo? É uma dança que já vem de berço.
P/1 – O senhor poderia descrever a sensação de dançar o Toré?
R – É aquela dança que nós dancemos no dia de uma entrevista que eu tive na Lagoa II.
P/1 – O município de Caucaia está num momento de bastante mudança, como a chegada de empresas e indústrias. Como vocês sentem essas mudanças?
R – Eu tenho visto essa mudança devido à política. Aí, você me pergunta: “Por que a política? Não é bom? Vocês não votaram?” Votamos pensando que estávamos colocando uma pessoa boa, mas estávamos votando numa pessoa que estava nos roubando. Quando a gente vota numa pessoa, pensa que aquela pessoa é de fé, mas nós estamos sendo enganados. Se a política fosse boa, não estávamos nesse sofrimento que estamos hoje aqui. Sempre esperando, pedindo que o ministro assine essa demarcação de terra, mas ele não assina. Então, estamos entre a cruz e a espada. Não sabe se vai, não sabe se fica.
P/1 – Quem é essa pessoa?
R – Eu esqueci o nome desse senador.
P/1 – O senhor nasceu nessa região?
R – Eu nasci em Mata Queimada e, de lá, passei para Açude e, depois, a Caucaia.
P/1 – E o senhor sabe dizer a distância daqui?
R – São 20 minutos daqui para onde eu nasci.
P/1 – E por que o senhor veio para cá?
R – Eu vim porque aqui era um canto que estava desocupado e eu queria viver mais solto para descansar a vida. Estava chegando numa idade e tinha um povo que não tinha casa. Então, eu os puxei para cá, para encher a vaga porque a negada já vinha tomando o resto. Então, me aposentei e vim para cá.
P/1 – E como é que ficou aquele outro território, aquelas pessoas que talvez não vieram com o senhor? Como é que ficou essa situação?
R – Os que não vieram comigo é porque já tinham um local deles por lá.
P/1 – E o senhor sabe me dizer quando que se deu essa mudança?
R – Está com três anos, mais ou menos. Eu não sei a data correta.
P/1 – O que o senhor tem para falar desse espaço aqui?
R – Esse espaço aqui eu vou tornar a repetir: nós estamos precisando que esse espaço tenha a homologação. Se não tiver a homologação, fica um negócio ruim. É pedir a Deus, a Tupã, que esse cara assine essa homologação dessa terra para que ficarmos sossegados, com toda a família. Porque todos nós estamos num barco desse e, se o barco furar, pronto.
P/1 – O senhor sabe dizer o tamanho do território que está dentro dessa homologação?
R – São cinco mil, seiscentos e cinquenta e oito mil hectares.
P/1 – Isso é muito ou é pouco?
R – Não. Todo dia está nascendo mais índios e todo dia a terra está diminuindo. Estão nos tomando. Só de manguezal nós temos quase três mil hectares. Se ela fosse homologada hoje, o que nós íamos fazer.
P/1 – A sua esperança é homologar essa terra?
R – A esperança é essa. Com isso temos tudo na vida. Os filhos vão viver sossegado e vão encher a boca para dizer que tem a terra deles na mão; os filhos vão poder dizer que vai ter uma escola de boa qualidade e que vão viver sossegado. Eles vão agradecer a Deus, às instituições que ajuda, eles vão agradecer a Tupã. Este seria o primeiro caminho: a homologação dessas terras para que os índios vivam sossegados, naquilo que é deles, assim como era antigamente.
P/1 – E esses mais de 5 mil hectares são para quantas pessoas hoje em dia?
R – Para uns 5 mil e poucos índios, mais ou menos. Eu não tenho os dados na mão, mas parece-me que passa de 5 mil índios.
P/1 – E eles estão espalhados em vários lugares?
R – Eles estão dentro das terras, mas estão espalhados.
P/1 – Como assim?
R – Distantes um do outro.
P/1 – Mas o senhor sabe dizer onde esses grupos estão?
R – Tem um na Lagoa I, na Lagoa II, Trilho, Capoeira, Sobradinho, Ponte, Vila Nova, Cacto. São 17 comunidades. Eu não estou lembrado agora, mas são 17 comunidades localizadas nessas 5 mil e poucas por aí.
P/1 – E como o senhor organiza essa luta pela terra?
R – A luta se organiza através de reunião fechada, para que se discuta essa homologação. Nos reunimos para decidir como vamos fazer. Nós mesmos decidimos as nossas coisas.
P/1 – Hoje em dia, para você discutir a questão da terra, você tem que fazer uma reunião com todo mundo. Como o senhor vê essas diferenças da forma de usar o poder?
R – A diferença é que hoje não está mais do jeito que era. O povo, os índios, estão do mesmo jeito. Não mudou nada no índio, mas que o povo não está todo reunido. Para ser reunir precisa fazer reuniões – e já fazíamos isso naquele tempo. Mas, não era tanto tempo. Hoje, se distanciaram um pouco devido aos posseiros, aos empresários que nos afastou de nós, tomando as nossas terras, chegando a um pedacinho pequeno de chão.
P/1 – O senhor lembra como era o clima das reuniões de antigamente e como é que se dava uma reunião?
R – Nas reuniões da organização já tinha quem contava que vinha gente querendo nos trair. Os meus pais já diziam isso, as minhas lideranças mais velhas. Eu era um menino e já ouvia isso.
P/1 – E como é que o senhor cresceu olhando para essas outras pessoas?
R – Já vinha passando para os meus filhos o que eu tinha passado. E passei para todo o povo, esses 5 mil índios. Passei tudo para eles.
P/1 – O senhor pode dizer como é que o senhor passava isso? Como é que o senhor ensinava isso?
R – Passava dizendo em reunião - que alguém que não queria ser e hoje ele estava dentro, eu passava como foi com meu passado. Eu, como cacique, passei para toda a comunidade.
P/1 – O senhor lembra de algum momento importante de uma reunião dessa, que lhe chamou atenção?
R – Eu me lembro de uma reunião muito boa que eu avisei para o meu povo quando eu organizei eles todos. Colocamos numa mesa redonda e conversamos tudinho. Esse povo todinho que está hoje aí, que você passou lá na Lagoa I, na Lagoa II. Eu chamei todas as lideranças e colocamos tudo nos eixos. Reuni todos, pois o meu pai mandou que fosse em todas as casas. Quando ele morreu, avisou tudinho. “Alberto, vá à casa de todos, não deixe uma”. Fui. O meu caminho foi aquele. A minha tendência era aquela e eu avisei todo mundo. Chamei, coloquei num quadro só, e hoje o povo está aí. Eu tinha que dizer porque o cacique era eu mesmo. Eu tinha que chegar e dizer a eles: “Você é índio, você é índio, você é índio e você é índio”. Aí, você diz: “Como é que você sabia?”. Porque eu tinha aquele dote, eu sabia com quem eu estava falando e sabia quem era do meu sangue. Fui e chamei todo mundo. Estão aí os 5 mil e poucos índios.
P/1 – E quantas pessoas foram a essa reunião?
R – Nessa reunião eu juntei uns 100 índios.
P/1 – As representações, as lideranças?
R – Desses 100 índios, chamamos todo pessoal que estava ao redor e que tinha medo de ser índio, devido aos padres, aos jesuítas, aos europeus, os holandeses, o coronelismo. Eles tinham medo porque eram mortos. Não eram? Naquela época era dente por dente, olho por olho. Matava índio como se matava piolho. Mas aí nós chegamos todos juntos e, então, começou a chegar o povo novamente. O povo que está lá.
P/1 – Como o senhor sentiu na pele essa questão da violência contra o seu povo? Como é que foi isso?
R – A violência contra o meu povo nasceu através dos posseiros, que eu acabei de lhe dizer nesse instante, matando, batendo para que os índios saíssem de dentro dessa área. A violência começou ao nos colocar para ir embora. Aí começou a violência.
P/1 – O senhor chegou a viver algum conflito intenso com morte, com guerra, com disputa?
R – Não, porque quando eles matavam muitos índios eu ainda era pequeno nessa época, e não tenho muita lembrança. Mas eles matavam mais os índios com bebida, com peixe envenenado e as batalhas com suspeita. Eu ainda me lembro dessa parte.
P/1 – O que é suspeita?
R – Suspeita é dizer que estávamos mexendo em algumas coisas. Achava que eram outras pessoas e matavam os índios. Chamavam isso de calúnia.
P/1 – E você teve conhecidos, pessoas de muito perto que sofreram com isso?
R – Naquela época, tu me perguntaste agora, mas não tenho muita lembrança. Mas eu vi os meus pais conversando com os meus tios me lembrei dessa parte que eles conversavam.
P/1 – Depois que o senhor cresceu, continuou ouvindo essas histórias?
R – Eu vi pessoalmente a polícia batendo nos meus filhos, levando a minha filha presa dando de mamar no peito. Já era quase a mesma coisa: dente por dente, olho por olho. Estávamos morando ali na ponte e queria tomar as nossas casas. Levaram a minha filha presa porque eu falei mais alto. Levaram ela presa, botaram-na dentro do camburão e levaram ela presa dando de mamar a uma criança. Isso foi há pouco tempo. Que dizer, há uns cinco, seis ou oito anos, mais ou menos.
P/1 – E como foi viver esses momentos difíceis?
R – Nesse momento era o mesmo que eu passei no passado. Não tinha sossego. Não tinha um abrigo certo para se morar, não tinha uma confiança no que eu vivia. Eu vivia no que era dos outros. E era como eles queriam. O que eles queriam mostrar era aquilo ali mesmo.
P/1 – O senhor falou que saiu apontando para as pessoas: “Você é índio”, dizendo que algumas pessoas não queriam se ver como índio, como um Tapeba. Eu queria que o senhor explicasse melhor como era isso?
R – Quando eu cheguei, quando eu assumi, o meu pai morreu com quase 90 ano e ele mandou que eu fosse visitar o meu povo. Até ele já tinha me mostrado a terra todinha que era uns 30 e poucos mil hectares - quase 50 mil hectares. Ele mostrou que eu fosse visitar o meu povo. Eu fui avisado e muita gente não queria ser por causa daquilo: achavam que aquilo era uma besteira. Eu disse: “Não é por aí, o caminho é por aqui”. Outros diziam: “Não, porque isso aqui é terra de Fulano”, e eu dizia: “Não é de Fulano, isso aqui é nosso. Os meus avós já deixaram para os meus, que já deixaram para nós. Então, isso aqui é nosso, vamos conviver”. Eu conquistei o povo todinho. Não conquistei o meu povo com dinheiro, como o político, mas conquistei com amizade. O que eu tinha para falar a eles era que eles tinham o direito de viver.
P/1 – Imagino que esse foi um trabalho difícil de se fazer. Como é que fazia?
R – Não foi difícil, não. Difícil seria se eu não tivesse para fazer e eles não tivessem o que eles têm hoje para viver. Hoje eles têm a terra deles.
P/1 – Como é a luta hoje?
R – A luta de hoje é uma luta meio dura. Ninguém tem a lei nem a confiança no político. Ninguém não tem a confiança na justiça. A casa não têm que ter medo do bandido tomar. Então, a coisa hoje se torna muito difícil, porque enquanto não tivermos essa terra e uma justiça boa, a coisa se torna difícil.
P/1 – Mas como é que se dá essa organização hoje? Como é que o senhor está organizando ou vendo a organização também?
R – O que eu vejo da organização é porque hoje nós já estamos um pouco mais sabidos no estudo, na convivência. Com isso você já sabe em quem vai votar. Então, hoje eu já vejo a convivência desse jeito. Hoje já tem gente se formando, fazendo o segundo grau, já tem gente fazendo o primeiro grau. Então, naquela época, nós vivíamos no “dente por dente, olho por olho”. Hoje o negócio está melhor para nós.
P/1 – Como o senhor vê essa aproximação do Tapeba com o branco?
R – O branco é aquele que nos roubou. O Tapeba não gosta do branco que o roubou. Mas hoje, quando o branco é amigo, nós o respeitamos, assim como eles nos respeitam. Não temos nada contra aquele homem que nos respeita.
P/1 – O Tapeba fala uma língua diferente do português, como é isso?
R – Não. Eu falava um pouquinho, mas com o tempo eu me esqueci. Eu assoletrava um bocado de coisa, mas como o tempo passou. Mas ainda chama xucurujá, o suco de maracujá; ocanacu e balaiobá, amarre. Essas são as coisas que ainda falamos.
P/1 – E os rituais seguem sendo feitos? O Toré continua?
R – Ave Maria! O Toré ninguém pode esquecer porque é a dança sagrada.
P/1 – E ele tem um período para acontecer?
R – É em conquista, para manifesto. Fazemos numa retomada, num casamento.
P/1 – O senhor tem uma fala que é muito aguerrida. Eu não sei como é a relação com os mortos. O senhor falou que aprendeu tudo com seu pai.
R – Não. Os mortos, no dia de finados, eu coloco uma vela no pé de um pau desse daqui.
P/1 – E como o senhor imagina que esses que já se foram veem a luta de vocês hoje em dia?
R – No passado, de outra geração que fica, com certeza, eles poderão voltar para encarnar numa pessoa para se trabalhar.
P/1 – Você diz que aprendeu a luta com o seu pai.
R – Foi. E vou deixar tudo para os meus filhos, para os meus companheiros que já aprenderam tudo.
P/1 – O grupo já tem um novo cacique? Você já escolheu um filho, como que é?
R – Não. Para o cacique tem um período aqui, não sei quando, mas que vamos decidir daqui uns tempos.
P/1 – Mas tem alguma pessoa que o senhor já prepara, que o senhor já ensina?
R – Eu tenho um nome, até já conversamos. Eu queria ceder para o Veibe, mas ninguém sabe. Eu também já falei isso a ele.
P/1 – Veibe?
R – Ele é meu primo. Ele é um, mas é filho de um primo de segundo grau. Então, já tivemos conversando isso numa reunião, não sei se foi em Fortaleza ou em Recife. Eu falei isso a ele. Mas isso aqui é em conversa que pode dar certo, como namorar com uma índia. Você sai com ela, conversa, vê se dá certo ou não. Eu joguei a conversa. Agora depende se ela quiser e depende de se eu também quero. Jogar eu joguei.
P/1 – Durante a sua vida o senhor plantou, caçou e isso tudo foi para ser consumido ou o senhor também chegou a comercializar com outras pessoas o seu trabalho?
R – Não. A minha vida foi plantar junto com o meu pai, caçar para se alimentar. Ninguém vendia caça. Era só para se alimentar.
P/1 – Plantação também não?
R – A plantação vendia quando não tinha outro movimento. Era que nem a coleta: caranguejo, siri, camarão, tainha, pacamun, moreia, muçum, traíra - vendia porque tinha muito. Ainda na época não tinha farinha. Então, vendíamos ou trocávamos por farinha.
P/1 – Estamos ao lado da escola indígena. O que o senhor espera dessa escola? Como o senhor vê esse momento?
R – Eu quero que essa escola cresça mas com o respeito que ela tem, tanto para nós, para alguém que não tenha e que não seja egoísta. Não adianta eu ter um filho e você ter o seu filho e, só porque não é índio, não pode estudar. Tem que estudar também. O estudo é uma coisa boa. Eu não estudei devido à discriminação. Foi por isso que eu não quis. Cortaram um pedaço de mim e eu não quis mais. Mas Deus sabe o que faz e ninguém sabe o que diz. Se eu tivesse um estudo - hoje eu sou uma pessoa boa e me orgulho em dizer isso, com a maior sinceridade -, talvez eu não estivesse vivo, porque eu iria correr dos dois lados: tanto do índio como do outro, o branco. O povo branco iria apoiar? Então, Deus sabe o que faz e ninguém não sabe o que diz. Está bom para mim. Eu estou com o meu povo, tenho 12 filhos, 12 netos e 47 bisnetos. Está bom demais. Eu vejo o meu povo junto, perto de mim - o povo lá de fora está do meu lado. A tribo está ao meu lado. Aquilo é melhor que dinheiro achado numa calçada alta.
P/1 – O que significa esse cocar na sua cabeça?
R – O cocar é a identificação do índio e isso já vem dos nossos antepassados.
P/1 – Acho que o senhor já até respondeu isso, mas eu vou perguntar só para registrarmos: o que o senhor espera da vida daqui a alguns anos?
R – Eu espero que alguém no Congresso, que toque no seu coração e que assine esse documento para deixar a vida dos índios em paz. Para nos dar uma maior dignidade e ter sossego na vida. Que dê trabalho para nós, porque até a terra ser homologada, ele tem tudo na mão dele. Tem escola, tem comida, tem roupa, tem rede, tem cama. Tem tudo isso. E por que? Porque vai tirar da mãe-terra. Por isso, eu digo que nós queremos ser brasileiros e mostrar que nós somos trabalhadores também.
P/2 – Não registrou a história que o senhor contou daquele dia da invasão. O senhor poderia contar de novo como foi aquela madrugada, por favor?
R – Maria, qual foi aquele ano que derrubaram aqui?
Maria – Aqui? Foi no dia 22 de junho.
R – No dia 22 de junho, às cinco horas da manhã, chegou um petroleiro aqui, mandado pelo juiz de Caucaia para derrubar dez casas daqui. Ele meteu o trator para cima e derrubou. Eram 30 viaturas e dois helicópteros rodando pra levar nós preso. Ah! Perdemos fogão, perdemos cama, perdemos geladeira, perdemos comida, perdemos os animais, perdemos documento, perdemos tudo. Se você visse, era demais. Chovendo, as coisas que nós passamos aqui debaixo, levando com a chuva. Acabou-se tudo. Tudo foi por terra. Eu perdi aqui 30 mil reais porque eu fiz um empréstimo de oito mil e a Débora fez uma de 22 mil reais. Perdemos o que está aqui, nesse chão aqui. Esse petroleiro, o Marco Massabe, foi que fez isso conosco.
P/2 – Mas veio do nada?
R – Ele veio dizer que isso aqui não era dos índios. O juiz de Caucaia disse que aqui não existia índio, porque aqui existia um povo que não era índio. Ele disse que tinha mandado a liminar para tirar o povo daqui de dentro – que ele já tinha tirado o povo, mas que esse povo tinha voltado novamente. O povo estava saindo mas eu levantei a minha casa e um Fulano levantou dez casas. Aí, ele mandou uma liminar derrubando as nossas casas daqui.
P/2 – O senhor estava dormindo quando chegaram?
R – O pessoal correu lá para a minha casa para me avisar. O Veibe estava aqui e a comissão todinha. O oficial de justiça não atendeu ninguém, nem o doutor Paulo. O oficial mandou derrubar tudo e acabou-se. Eu achei a FUNAI [Fundação Nacional do Índio] fraca. Pensei que a FUNAI tinha um poder de combater a polícia ou então mandar. Mas, mesmo assim, ela chegou e viu o ato que aconteceu. Uma casona linda com um trator passando por cima e derrubando. Eu acho que o Veibe tem essas fotos. Peça para ele lhe mostrar. E ele já entrou na justiça pedindo a indenização. É necessário. Ninguém sabe escrever, mas metemos na justiça.
P/2 – O senhor falou que, no passado, andava nu e o vento era a sua roupa. Eu fico pensando quando o senhor era bem pequeno, nessas tradições de andar nu, de estar pintado.
R – Naquele tempo tinha tudo. O que eu quero dizer era que, naquele tempo, a toalha era quando ficávamos nus e a toalha era o vento. Ficava livre e desimpedido. Mulher, criança, mamãe e todo mundo.
P/2 – O que o senhor mais sente falta de antigamente?
R – O que eu sinto mais era de andar liberto, e que hoje eu não ando mais liberto. Ninguém pode tomar um banho num rio daquele nu - é bom demais o banho nu. Passar um tempo assim, do jeito que vivia no paraíso, vamos supor assim. Ninguém pode fazer isso hoje. Quem faz é o povo lá fora, numa praia, mas se o índio tomar um banho num lago desse é um assombro. Nem no mato um índio pode tomar banho. É um assombro. Eu acho uma diferença muito grande de ontem para hoje. Eu acho muita diferença.
P/2 – O senhor se lembra de algumas figuras que o senhor poderia nos contar além do seu pai?
R – O que eu me lembro do meu passado era do meu avô, que era o cacique Perna de Pau. Ele nos encaminhava, nos ensinava muitas coisas. Quando ele morreu, passou para o meu pai. E do meu pai, eu comecei também, mas ainda me lembro do meu avô. É o que eu acabei de dizer - nós andávamos no trilho. Através do meu avô que hoje eu estou aqui, junto com o meu pai. Porque o meu pai aprendeu com o meu avô.
P/1 – O senhor falou que seu pai não lhe batia.
R – Não.
P/1 – E como é que passava os ensinamentos nessa época?
R – O ensinamento era trabalhar. Levantar três horas da madrugada, comer farinha com rapadura ou farinha com açúcar e sal. Não tinha pão naquele tempo. Tinha a capemba de coco - ainda tem a língua enrolada.
P/1 – E esses produtos quem é que fazia?
R – Era o meu pai e a minha mãe, o meu povo todo que ia buscar a capemba de coco de uma árvore que comíamos assada com café. Capemba de croatá.
P/1 – E a farinha?
R – Farinha se fazia até quando fosse no tempo.
P/1 – Tinha um lugar?
R – Tinha um pedaço de chão, não era muito porque naquele tempo, quando eu nasci, eu já vinha sofrendo.
P/1 – Mas o senhor lembra do lugar de onde se fazia a farinha?
R – Era perto da Lagoa Tapeba, onde a negada tomou, na Cetrec.
P/1 – E o senhor aprendeu a fazer farinha?
R – Aprendi com os meus avós.
P/1 – Era aquilo que a gente escutou como da casa de farinha?
R – Era aquilo ali. Numa casa de farinha onde tem o roldo, tem a rapação, tem os fornos para assar e tem o tempo de tirar.
P/2 – Seu Francisco, eu vejo pela sua história que você aprendeu observando os outros.
R – Eu só estou na atividade para os outros.
P/2 – Você conseguiria contar uma situação de alguma viagem que o senhor fez com o seu pai para aprender ou alguma situação que ele lhe ensinou?
R – Agora você tocou num assunto que há quase 40 anos que eu não me lembrava. O que eu tive com o meu pai, quando ele me sentou debaixo de uma árvore e disse assim: “Olhe, você já é cacique”, eu até brinquei com ele: “Papai, mas o senhor tem mais filhos”, “Não, mas é você. Vou lhe passar com amor, com carinho e com alegria. Seja um cacique bondoso, não seja egoísta, não seja orgulhoso e seja bem atencioso com o seu povo. Eu vou, mas você fica”. Esse foi o maior prazer que eu já tive na minha vida e foi com ele. Quarenta e tantos anos que ele morreu e ainda me lembro disso. E é assim: nós somos a luz acesa, mas ninguém sabe a hora que tem para ir. É como aquela história que diz: “É melhor você decidir logo porque, quando chegar lá na frente, se está arrependido não pode se arrepender do que não ter dito.”
P/1 – Para fechar, queria que e o senhor falasse o que achou desse momento, dessa conversa aqui conosco?
R – Eu digo que, com reportagem é melhor do que conversar com político em Brasília. Porque aqui é ao vivo. Por que é eu digo que é ao vivo? Eu já estou cansado de dizer ao meu povo que ouça, seja sincero, não seja como os políticos. Com uma reportagem dessa, ela é ao vivo, todo mudo vai saber o que nós contamos. Ninguém aqui está contando nada escondido para ninguém ver. Essa entrevista é para todo mundo ver. E para nós, índios, é a coisa melhor do mundo. Se chegar numa instituição grande, todo mundo vai dizer: “Fulano teve numa aldeia, conversando com um cacique a tal hora”. Isso é uma coisa muito boa e muito importante. O que eu quero dizer: que Tupã lhe agradeça, lhe abençoe, de noite, de dia e no pingo do meio-dia, assim diz Virgem Maria.
P/2 – Seu Francisco, tem alguma história, alguma coisa que não perguntamos e o senhor queria falar? Alguma história, uma passagem da sua vida?
R – Não, que eu me lembre não.
P/1 – Então é isso, Seu Francisco. Muito obrigado por nos receber e contar as suas histórias. Agradecemos e parabenizamos o senhor por essa trajetória e por essa luta.
R – Só para adiantar mais um pouquinho, que eu já pedi a Tupã e, até porque, eu tenho o direito de receber. Isso diz dentro da minha lei que eu não posso ser egoísta. Eu tenho que receber vocês como recebo a um filho, um parente, um tio, um avô. Isso já vem de berço. Queira ou não, eu tenho que recebe-lo, contar o meu passado - o que eu recebi ou o que eu não recebi - tenho que contar para vocês o que é isso. Se eu vim duma geração, tenho que dizer de onde é que eu vim. Se eu sofri, tenho que dizer que sofri. Se eu errei, tenho que dizer que eu errei. Esse é o meu papel.
P/1 – Muito obrigado.
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