Entrevista de Sérgio Coelho
Entrevistado por Torigoe / Daniela
02 de agosto de 2021
Projeto: Memória de Furnas
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P/1 - Qual é o seu nome completo, local de nascimento e data, por gentileza?
R - Meu nome é Sérgio Coelho Pinheiro, eu nasci em Tubarão, Santa Catarina, no dia 23 do 2 de 1955.
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P/1 - Sérgio, a sua mãe, o seu pai, ou alguém da sua família, chegou a contar para você como é que foi a sua gestação? Como é que foi o dia do seu nascimento?
R - Eu nasci numa quarta-feira de cinzas, eu acho que por isso que eu adoro o carnaval, eu sou um folião nato, para mim a coisa mais difícil esse ano foi não ter pulado o carnaval. Mas enfim, eu nasci em Santa Catarina, meu pai trabalhava na Siderúrgica Nacional e ele foi transferido para lá. Minha família é toda mineira, eu sou o único que não sou mineiro. Meu pai morou lá durante quatro anos. A minha gestação foi normal, eu tenho um irmão mais velho, um ano e quatro meses mais velho que eu. Eu nasci numa quarta-feira. Na época eles ficavam muito sós, porque a família toda aqui em Minas, e a gente morando lá no Sul, muito frio, essas coisas. Tanto que eu não conheço nem os meus padrinhos, meus padrinhos são lá de Tubarão, eu não conheci, porque eu vim de lá com 4 anos de idade. Mas o que eu sei é que foi uma gestação normal e eu nasci numa quarta-feira de cinzas.
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P/1 - Sérgio, fala um pouquinho da sua mãe, qual é o nome completo dela? Fala um pouquinho da família da sua mãe e do seu pai, por favor?
R - A família do meu pai, o meu avô era médico, Dr. Lacerda, Antônio de Lacerda de Pinheiro. Minha avó Lola, na verdade Lola era o apelido, mas o nome dela era Ana Bonfim Pinheiro, que era professora. Eles são de Eugenópolis, interior de Minas, perto de Muriaé, Zona da Mata mineira, essa família do meu pai. E a família da minha mãe, meu avô Jair, Jair Soares Coelho, minha avó, Irma Guedes Coelho, eles são de Minas também, moravam em Carangola, que a cidade onde eu até tenho uma casa agora, que é o meu refúgio. Minha casa não é em Carangola, é próximo. Meu avô trabalhava na Vila Leopoldina, então essa coisa de eu gostar de viajar eu acho que é por isso, que desde criança, desde pequeno, meu avô morava em cima da estação de trem, de Carangola, ele era gerente da estação. Então eu cresci vendo trem, essa coisa de viagem, gente chegando, gente saindo, partidas e chegadas, era muito bacana. Depois eu vou até chegar lá, eu cheguei até a morar nessa casa. E o meu outro avô, meu avô Lacerda, que era médico, mas ele tinha muita facilidade de escrever, e tinha essa coisa da oralidade. Ele fazia discurso, todas as festas, todas as reuniões, ele tinha o dom da palavra, isso eu herdei dele, a questão de escrever, desenvolver temas. Meu avô, tinha uma coisa de quando eu morei perto deles um tempo, eu chegava da escola, ele me pedia para escrever uma redação todos os dias, ele dava o tema e eu desenvolvia, isso com 10 anos de idade. Hoje em dia, qualquer coisa que você falar, fala sobre isso, o negócio sai assim, de uma naturalidade. Essa é minha família, eu falo que os meus dois avós, um me ensinou a viajar, conhecer o mundo, que o meu avô, que era da ferrovia, me colocou no trem com 9 anos de idade, eu fui sozinho, de Carangola, até Eugenópolis, que era a terra natal dos meus avós paternos, naquela época, na Maria Fumaça, durava 4 horas a viagem, e eu fui sozinho. Me colocou ali, falou: não bota a cabeça do lado de fora por causa da fagulha. A Maria Fumaça soltava muita fagulha, que vem queimando a lenha né. E não fica na janela. Foi a mesma coisa que falar fica na janela, eu cheguei lá em Eugenópolis parecia um tijolo de tanta poeira, porque levantava poeira. E o meu outra avô me ensinou essa coisa da viagem da imaginação, do poder de falar, tanto que acabei virando um contador, sou ator, acabei virando um contador de histórias, é isso.
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P/1 - Sérgio, me conta um pouquinho das suas primeiras lembranças? Você guarda algumas lembranças, que você fala assim, são minhas primeiras. E se sim, de onde elas seriam, sobre o que seriam?
R - O meu irmão tem mais esse dom assim, de guardar as coisas. As pessoas nem acreditam, quando eu falo a minha idade, “você não aparenta isso”. Porque eu também nunca fiquei muito preso ao passado não, a minha visão é sempre hoje e amanhã, depois dos 40 anos então, é hoje amanhã. Então eu não sou essa coisa de ficar lembrando. Mas assim, essa coisa aí, eu me lembro direitinho, o dia que meu avô me colocou no trem e essa viagem que eu fiz, eu tinha nove anos. Eu me lembro também quando meu pai morreu, meu pai morreu muito novo, com 33 anos, num acidente de carro. E a gente morava em Volta Redonda, nessa época, meu pai estava trabalhando na Siderúrgica lá em Volta Redonda mesmo. Um pouco depois do golpe militar 65, meu pai morreu em 66. E eu me lembro do dia que ele morreu, me lembro nitidamente, ele tinha saído para pescar, meu pai gostava muito de pescar e de caçar. Ele tinha uma Rural e sempre que ele ia pescar o caçar, ele botava uma roupa verde, para camuflar no meio do mato, o bicho não vê. E ele saiu super feliz, minha mãe tinha feito uma comida que ele gostava, que chama de pela égua, que é canjiquinha com costela de porco, que é uma delícia, com couve, uma comida bem mineira isso. E ele comeu, saiu super satisfeito e foi. Aí tipo, sei lá, duas horas depois, chegou uma ambulância lá, a gente morava na Vila Residencial de Volta Redonda, falando que ele tinha sofrido um acidente. E realmente, foi um acidente super grave. Estava ele, um tio meu, irmão dele e mais duas pessoas, só ele que faleceu. Por que um caminhão desceu. Na saída de Volta Redonda tem uma ladeira, vinha descendo um caminhão e acho que perdeu a roda, sei lá, e tombou em cima do carro. Então eu me lembro disso direitinho, esse dia ficou marcado para mim, também é uma coisa muito né... Eu me lembro de eu sentado na porta de casa, pensando, como é que vai ser daqui para frente, como é que vai ser a minha vida, eu me lembro disso com uma nitidez assim absurda, eu sentado. Lá do lado de casa, tinha um vizinho que tinha um carro, que chamava studebaker, um carro da década de 50, se eu não me engano, aqueles carros lindos. E o carro dele era lindo, um carro bem o futurista mesmo, para época e o carro estava parado ali e eu sentei do lado e fiquei pensando isso, as pessoas todas naquela confusão toda, isso me marcou para caramba. E tinha um vizinho, o Dr. Francisco, que ele era médico, também da Siderúrgica Nacional e ele me viu sentada ali, ele me pegou deu uma volta comigo de carro. E aí ele falou: olha, eu sei que vai ser difícil, mas todo dia você reza para o seu pai, uma ave Maria e um Pai Nosso. E isso eu nunca mais esqueci, até hoje eu rezo. Porque meu pai sempre foi uma figura muito forte para mim, durante anos e anos, eu tinha uns insites, umas coisas tipo não faz isso, tinha certeza que era ele que estava me norteando. Mas é isso assim, isso é uma coisa que eu me lembro bem nitidamente. E quando eu ia para Carangola também, de eu estar brincando na estação de trem, eu me lembro que eu tinha muita dor de garganta, quando eu era criança. E o meu avô era louco com a gente, porque nós éramos os dois primeiros netos, meu irmão e eu. Então quando a gente vinha de Santa Catarina, A gente chegava de avião, era um acontecimento, porque vinha de avião de Tubarão até o Rio, e no Rio pegava um teco-teco desses pequenininhos, esses aviõezinhos pequenininhos e descia no aeroporto de Carangola. Todo mundo esperava quem era que estava chegando, era a gente. E ai o vovô preparava aquilo tudo, para a gente. E aí lá, faz muito frio no inverno também, só que o clima é diferente, em Carangola o clima é mais seco, e eu chegar, ficava com febre, com dor de garganta. Durante muito tempo eu tive isso, até que descobriu, o médico falou: para de tomar banho quente, até hoje eu tomo banho frio. Acabei de tomar um banho frio agora, sai de baixo do cobertor, e tomei um banho frio. Isso curou a minha dor de garganta. São lembranças que eu me lembro, as mais remotas, me lembro mais para frente assim, depois que eu já estava no Rio de Janeiro, na verdade em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, a gente vai chegar lá.
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P/1 - Em Tubarão você tem alguma lembrança, você falou que ficou quatro anos lá?
R - Não, não me lembro de nada. Depois de adulto, eu fui a Porto Alegre e eu peguei um ônibus à noite, para ir para Florianópolis. E eu me lembro que o ônibus parou na rodoviária de Tubarão, eu senti assim, nossa minha terra, não sei o quê, mas eram 2 horas da manhã, 3 horas da manhã, eu desci na rodoviária, mas não dava para saber nada. Eu sei que eu passei pela minha cidade, mas nunca voltei. Tanto que eu não conheço os meus padrinhos, não sei nem se são vivos até hoje.
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P/1 - E o seu pai então, quando vivo, trabalhava na CSN? O que ele fazia, ele trabalhava em construção, por isso que vocês viajavam muito, é isso?
R – Não, ele era contador. A CSN no início, tinha essa coisa, a gente morou em Tubarão, depois ele veio para o Rio de Janeiro, aí depois nós fomos para Volta Redonda, não, aí do Rio a gente foi para Niterói, aí de Niterói a gente foi para Volta Redonda, foi onde ele faleceu. Mas tinha esse hábito de rodar no início, depois não, quando ele faleceu ele já era contador, tinha um cargo de contador, tinha sido promovido e tudo. Mas aí teve acidente trágico, enfim, aí a gente teve que sair de lá, porque morava numa casa funcional, numa vila residencial. Eu tenho até vontade de um dia voltar, lá em Volta Redonda, não em Volta Redonda, mas para ver essa rua, que essa rua era muito bacana, porque eram as casas todas igualzinhas e tinha aquela coisa de construção Americana. Como nas Usinas de Furnas, quando eu fui trabalhar em Furnas eu me lembrava muito disso também, porque tinha muita grana na frente, toda a casa tinha um gramado, que a gente cuidava, cada morador cuidava daquilo. E a gente brincava muito naquilo, nesses espaços, não tinha muro entre uma casa e outra, era uma cerca viva, então a gente brincava de pique-esconde, pulando de uma casa para outra. A Companhia Siderúrgica Nacional, uma vez por ano, não sei quantas vezes por ano, mandava podar as árvores, era melhor dia, porque vinha aqueles homens, cortavam aqueles galhos todos e deixavam amontoados na rua, e só vinham buscar no dia seguinte, era nossa festa, a gente fazia a cabana de índio, aí era a turma da rua de cima, contra o pessoal da turma de baixo. Eu aprendi a andar de bicicleta lá em Volta Redonda, tem uma coisa que eu me lembro, que eu nunca mais esqueci, sorvete de doce de leite da Kibon, naquela época, agora tem um sorvete Haagen-Dazs, não sei falar, não sei se é Holandês, Alemão, que tem de doce de leite, é igualzinho, a Kibom já fazia isso quando eu tinha 7, 8 anos, naquela época vinha uma carrocinha, um cara empurrando um carrinho e ele entrava na rua falando, “Kibom, olha kibom, aí parava, a gente comprava, e era um sorvete de doce de leite, eu nunca mais esqueci, quando eu tomei esse sorvete agora, que eles abriram agora, o sabor é o mesmo, só que o da Kibon era um picolé, ele tinha uma casquinha por fora e dentro ele era cremoso, então você mordia, você estava comendo doce de leite, isso eu me lembro direitinho. Não sei nem porque estou falando isso, mas são lembranças de infância mesmo, só lembrando.
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P/1 - Você antes de Volta Redonda, lembra do Rio, quando vocês foram para lá, de Niterói, Duque de Caxias?
R - A gente veio de tubarão, eu não me lembro nada, nada mesmo. Mas no Rio, quando a gente morou, meus avós moravam em Duque de Caxias, e meu avô era médico, ele morava num prédio, era um sobrado, que tinha o apartamento dele e tinha o consultório dele, no mesmo andar. Aí quando a gente veio morar em Caxias, durante 6 meses só, a gente morou num apartamento em frente, eu me lembro, tinha um sótão em cima, a gente brincava muito naquele sótão. Tem um tio meu que é médico, ele hoje em dia mora em Ourinhos, ele era estudante de medicina, nessa época, e ele brincava muito com a gente. Eu tive uma infância de muita liberdade, de brincar na rua, depois virou uma coisa verticalizada, depois eu te explico porque. Mas nessa época, a gente morava num apartamento, mas meu tio levava a gente, tinha um monte de terreno baldio, e a gente brincava, nesses terrenos, meu tio tinha uma imaginação muito grande, foi uma infância bem legal mesmo. Depois em Niterói, a gente morou na rua 5 de Julho, em Santa Rosa, no final da Rua 5 de Julho, ela termina quase, tem um colégio, esqueci o nome, é um colégio grande que tem lá em Niterói. A gente morou numa casa, que tinha pé de carambola, que tinha vários pés de frutas, tinha um de carambola que era do vizinho, que virava para dentro de casa, a gente pegava, foi onde a gente teve a primeira televisão, meu pai comprou, que a gente assistia um programa, do carequinha, se eu não me engano, era um palhaço, eu não me lembro qual que era o palhaço, era um programa de um palhaço, que eu me lembro direitinho daquela imagem em preto e branca, não sei se era Arrelia, era um palhaço famoso, da época. E eu me lembro disso, foi a nossa primeira televisão preto e branca, ficava na sala, era uma casa que tinha um quintal bem bacana meso, e é isso. Depois que o meu pai morreu. Bom, aí a gente foi para Volta Redonda, foi aquilo que eu te falei, a gente morava na vila e tudo, aí o meu pai faleceu, a gente foi morar com a minha avó, que morava nessa casa da estação, minha avó já era separada do meu avô. Ela separou do meu avô, com 25 anos de casada, minha avó foi pioneira, uma mulher no interior, desquitada, pois ela bancou aquilo, que meu avô conheceu uma outra mulher, aí foi um escândalo e tudo. Mas assim, minha avó continua morando na casa da estação, aí nós moramos lá um ano. E esse período, apesar de ter sido um período difícil, que a nossa vida mudou, da água para o vinho, a gente tinha uma vida bem confortável, bem tranquila, minha mãe ficou super mal de grana, meu pai tinha um salário bom. E naquela época, não tinha essa coisa de você contribuir para a previdência de acordo com o seu salário, era diferente, você contribuia com que você queria. Ninguém ia imaginar que ia morrer com 33 anos, sei lá, meu pai ganhava R$ 1.000,00, ficou com uma pensão de R$150,00, foi um baque assim, absurdo. Minha mãe teve que vender tudo, a gente ficou morando na casa da minha avó num quarto, porque a casa não era muito grande. Mas foi um período bem legal. Eu morava nessa estação, que eu adorava, os trens para cima e para baixo, e tinha muito campo, muito verde, eu sei que eu brincava muito nas ruas. Eu tinha um amigo que estudava comigo, que também chamava Sérgio, ele morava numa igreja presbiteriana, o pai dele era o zelador dessa igreja, eles moravam numa casinha nos fundos. Então todo dia, quando eu não ia para casa dele, ele vinha para minha. Eu tinha um ônibus de plástico, e eu ia puxando aquele ônibus, isso já com 10 anos de idade, eu fui muito garoto, durante muito tempo, graças a Deus, a minha infância durou, esticou bastante. Aí eu ia para casa dele e depois vinha para minha casa, era como se tivesse viajando de Carangola para o Rio, do Rio para Carangola. E foi muita coisa de brincadeira, de imaginação, foi bem bacana mesmo, esse período, apesar de ter sido mais complicado. E depois a gente mudou, os meus avós paternos moravam em Caxias, já num prédio maior, aí mamãe recebeu o seguro do meu pai, comprou um apartamento no quinto andar, um apartamento de quarto e sala. E os meus avós moravam no segundo. E a gente mudou para Caxias, e foi onde que eu tenho as minhas lembranças maiores, porque eu já estava com 11 anos, eu comecei o ginasial lá. Naquela época, você fazia o curso de segundo grau, você tinha que fazer, chamava de admissão, ou você fazia o ano inteiro aquela admissão, ou então você fazia uma prova, como se fosse um vestibularzinho, aí se você passasse, você já entrava no primeiro ano ginasial. Aí eu vim de Minas, estudei 1 mês, e aí fiz admissão, passei, aí comecei a estudar no ginásio, e nesse colégio que chamava Educandário São Jorge, depois virou Ginásio São Jorge, depois virou Colégio São Jorge. Aí eu fiz todo meu ginásio, depois todo meu científico. Aí uma pessoa abria uma universidade, que hoje em dia é a Unigranrio, que é a maior universidade da Baixada Fluminense, naquela época chamava Associação Fluminense de Eduação, eles alugaram o terceiro andar do colégio que eu estudava. Aí teve o meu primeiro vestibular, eu fiz, passei, e aí fiz a minha primeira faculdade lá, de ciências contábeis. Eu fiz porque na minha geração, era aquela coisa, você vai ser o que seu pai era, então meu pai era contador, então fui eu, não tinha nada a ver comigo. Fiz ciências contábeis, me formei e é isso. Depois, mais para frente tem mais história.
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P/1 - Você se lembra como que era rotina com seu pai com a sua mãe? O que cada um fazia, que horas vocês acordavam? Como é que vocês tomavam café, essas coisas, como que era?
R - Eu me lembro bem lá de Volta Redonda, porque era uma rotina mesmo, papai acordava cedo, ele tinha um carro, bem velho mesmo, um Lords, uma carro inglês, que às vezes não pegava de manhã, tinha que tocar aquela manivela na frente. Depois não, depois ele acabou comprando uma Rural, que era uma caminhonete grande. Mas eu me lembro disso, papai saía cedo para o trabalho, eu estudava numa escola, que era Nossa Senhora de Fátima, lá na vila residencial mesmo, que eu ia a pé, aquela época não tinha essa coisa de violência, as crianças andavam sozinhas, eu estudava lá, o meu irmão também. A minha mãe, naquela época era doméstica, minha mãe quando casou, ela só tinha feito o primário, porque a minha mãe era filha mais velha e acabou que ela ficou para tomar conta dos irmãos mais novos, e estudou só até a quarta série primária, depois ela continuou, mas depois de viúva. Minha mãe ficava em casa, eu e meu irmão estudávamos, tinha essa rotina normal. Meu pai era uma pessoa que gostava muito de ler, tinha muito livro lá em casa, era uma casa de três quartos, tinha um quarto que era uma biblioteca, tinha livro do chão até o teto, meu pai devorava, não só os clássicos, como aqueles livrinhos de bolso, ele lia um livrinho daquele na hora do almoço. Tanto quando ele morreu, que a gente foi para Carangola, eu passei um ano vendendo livrinho, sabe aqueles livrinhos, tinha caixote, mais caixotes de livrinhos, eu ganhava um dinheiro com aquilo. Então ele lia muito, meu pai, apesar de ser brincalhão, ele era bem tradicional, não podia falar na mesa. Eu tinha um tio meu, irmão dele, meu tio é vivo ainda, meu tio José Carlos, é dentista, ele morava na rua seguinte, embaixo, ele tinha sete filhos, eu adorava quando eu ia para lá, porque era uma bagunça, imagina, uma casa com sete crianças, na hora do almoço era uma zona, para mim aquilo era tudo, porque lá em casa era tudo muito certinho, tudo muito arrumadinho, não podia falar alto, não podia conversar no almoço, meu pai era muito rígido nesse sentido, ao mesmo tempo ele brincava muito comigo, mas tinha essa coisa de rigidez, eu não entendo tudo isso, até hoje porque, mas era isso. Era uma vida normal, tranquila.
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P/1 - Você falou da TV, você lembra de outros programas que vocês assistiam. Seus pais viam e vocês não viam. Além disso, vocês ouviam o quê no rádio? Vocês tinham LP na época, como é que era isso?
R – Não! Era uma fase assim, nesse tempo, como eu te falei, o meu pai era muito, ele separava muito, adulto e criança, por isso que eu tive uma infância muito grande, por quê eu vivia no meu mundo. Eu sou peixes, ascendente em peixes, lua em peixes e nasci em tubarão, quer dizer, mais peixe impossível, viajandão para caramba. Mas lá em casa era muito assim, Ah não, me lembro, tinha um programa que meu pai gostava de assistir, que era um programa da ngela Maria, cantora. Ela tinha um programa na TV Tupi, na extinta TV Tupi, que hoje em dia eu passo de carro aqui na Urca, dá até um aperto no coração, que era um canal, tanta coisa boa acontecia naquilo, mas abandonado. E ela tinha um programa, e eu lembro disso, meu pai parava tudo, era o Repórter Esso, que era o Jornal Nacional daquela época, que era o Repórter Esso, parava tudo para ver o Repórter Esso e na quarta-feira tinha o programa da ngela Maria, ninguém podia nem piar. Na abertura ela vinha dirigindo um Cadillac, um carro conversível, e ela rodava o Rio de Janeiro todo, a entrada, ela parava na porta da TV Tupi, e vinha um cara abrir a porta, aí ela entrava, aí já aparecia ela descendo uma escadaria, toda bonita. E tinha esse programa, me lembro disso direitinho. Tinha o repórter Esso, a gente tinha ficava torcendo para aquilo acabar, para ter alguma coisa. Porque criança não liga para notícia. E concurso de miss também, que era um evento, concurso de miss para o Brasil inteiro, eu me lembro que a gente ficava vendo aquilo e as pessoas torciam, me lembro bem mesmo. Hoje em dia não tem mais, não é mais como era. Em 1967, se eu não me engano, uma Gaúcha, Ieda Maria Vargas, ganhou o miss universo, que a medalha de ouro do concurso de miss. E ela ganhou o miss universo, eu me lembro quando ela chegou no Brasil, o país parou. Lançaram uma boneca, minha vizinha tinha uma boneca, boneca Ieda Maria Vargas, era uma boneca da Miss, com a coroa, tinha todas essas coisas. Era um programa que a família assistia. Mas o que mais me marcou mesmo, que eu nunca mais esqueci, foi esse da ngela Maria e dos palhaços. Mas de rádio não, de rádio a gente nunca teve essa coisa com rádio não, talvez o rádio tenha sido lá em Santa Catarina, mas aí eu era criança muito pequena, não me lembro.
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P/1 - E vocês não tinham discos? Vocês não ouviam muito música em casa?
R - Não! Porque tinha essa coisa dos programas musicais na televisão, coisa que não tem mais hoje. Uma coisa que eu sinto muito, eu não entendo porque. Tem uma geração nova, de grandes talentos, de compositores maravilhosos. Só colocam essas coisas absurdas, não vou falar, porque tem gente que gosta do gênero, eu acho que cada gênero tem o seu público, mas assim, tem muita coisa boa, tem muitos miltons, muitos caitanus, muitos Chicos atualmente, que não tem espaço. E naquela época tinha, tinha programa de televisão musical, na TV Tupi tinham vários, eu me lembro desse da ngela Maria, porque o meu pai era fã da ngela Maria. Tanto que a Elis Regina se espelhou, o ídolo da Elis Regina, era a ngela Maria, você vê, a ngela era de uma geração antes da Elis, a Elis era apaixonada por ela, ela começou cantando, imitando ngela Maria. Por quê? Ela via onde? Ela via na televisão. Depois vieram os Festivais da Canção, eu me lembre que eu comecei a me interessar por música, por causa do Festival da canção, O Chico Buarque empatou com Geraldo Vandré, com a Banda do Chico, e Disparada, na verdade quem ganhou foi Disparada, mas assim, fizeram uma coisa de ficar os dois, porque tinha uma galera que gostava de uma coisa, e a banda era uma coisa bem singela, então essas duas músicas empataram. E na banca de jornal, vendia uma revistinha, com as letras das músicas, eu me lembro que foi a primeira vez que eu comprei uma revistinha para aprender a cantar. Eu torcia pela Banda, depois, anos depois, eu ganhei um festival cantando Disparada, já adulto. Mas eu me lembro que era isso. Tinha essa coisa. Então por isso que eu acho que a gente não ouvia... lá em casa nem tinha rádio, o rádio era mais para ouvir futebol, eu me lembro do meu pai escutando futebol, é isso.
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P/1 - E você se lembra bem desses festivais, que são históricos na história do Brasil. Como é que foi isso para você?
R - Isso eu já era adolescente, eu morava em Caxias. Eu ia, eu fui em vários, que aconteciam, da Record não, que era lá em São Paulo, os primeiros foram em São Paulo. Mas depois vieram para o Rio de Janeiro, que era no Maracanãzinho, a gente ia assistir, a gente vinha em casa, eu me lembro que eu fui a uns três ou quatro, mas um que eu não me esqueço, foi do Fio Maravilha, que a Maria Alcina do Jorge Bem, fez a música Fio Maravilha, e foi para a final. E eu fui vestido, eu sou flamenguista, eu fui com camisa do Flamengo, tinha torcida do Flamengo, 40, 30 mil pessoas no Maracanãzinho, foi a coisa mais linda do mundo. Eu vi a Elis Regina cantando, isso eu nunca mais vou esquecer na minha vida, Elis Regina era quase uma anã, pequenininha, era a pequena notável, a Carmem Miranda e a Elis Regina. E ela era muito pequena, e a Globo, acho que era Globo que transmitia, fazia uns cenários enormes, enormes. Então quando a pessoa era muito pequena, aquilo parecia uma formiga, a Elis era presidente do Júri esse ano, não me lembro qual foi o festival. Mas ela subiu no palco, quando estavam apurando a música que ia ganhar, para cantar uma música, e ela cantou Black is Beautiful, eu nunca mais vi ninguém cantando essa música, essa música é da Elis Regina. A pouco tempo eu vi a Sandra de Sá cantando, canta bem, mas não chega nem aos pés. A Elis cantava com a alma mesmo. Eu gostava muito, eu comecei a me interessar por música, com os meus 11 anos, 12 anos, com a banda do Chico e a Disparada do Geraldo Vandré.
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P/1 - Me conta como que era sua relação com a estação de trem? Você ficava vendo muitas pessoas, você ia lá, frequentava, ou você ficava olhando a distância?
R - Não, eu ficava dentro cara. Eram momentos diferentes, a minha casa era em cima, então o terraço da minha casa, na verdade, era marquise que cobria a plataforma, onde ficava os passageiros. Então quando vinha a Maria Fumaça chegando, a fumaça da chaminé, ela passava na Marquise de casa, a gente tinha uma cachorrinha, ela ia latindo atrás daquela fumaça, a casa inteira tremia. Então o meu quintal era uma marquise que ficava em cima da estação, onde eu brincava. Vovô pedir, que quando tivesse chegada de passageiros, para a gente não descer, porque aí tumultuava, aquele monte de gente entrando, saindo. Mas quando o trem ia embora, era o meu playground, eu passei a minha infância toda brincando. Que aí, eram três que saíam do Rio de Janeiro, era o noturno e o expresso, o noturno levava 24 horas do Rio de Janeiro até Manhuaçu, que é depois de Carangola, mais para cima. E aí ele ia, e vinha assim, acho que 8 vagões de trem, passageiros. E às vezes eles deixavam 1 vagão, lá em Carangola, lá na estação, tinha duas linhas de trem, ele manobrava e deixava um vagão de passageiros lá e ia embora. Quando ele deixava o vagão, era onde a gente brincava, dentro daquele vagão. Tinha os carrinhos que andavam, que transportavam, saco de arroz, mercadoria que chegava, que levava para armazém, que tinha um depósito lá na estação. Esses carrinhos tinha um do correio e tinha outro mais pesado, era o nosso brinquedo, a gente vive empurrando aquilo, eu me lembro que despencou um carrinho desse, da plataforma lá no meio do trilho um dia, porque não sei quem foi que empurrou errado, o negócio despencou, mas ninguém se machucou não. Meu avô deu um esporro do cacete. Mas a nossa brincadeira era essa, tinha o depósito na estação, de saco de feijão, de saco de arroz, ia até o teto, e a gente brincava em cima daquilo, no meio daqueles sacos de mantimento, sacos enormes. Quando o trem estava lá, que era um trem de carga, perto da estação, tinha uma garagem, uma oficina de trens, que era fora da estação. Então o trem parava, deixava os vagões ali, e aí a Maria Fumaça começava a manobrar e ela ia para essa oficina, e aí o meu avô me botava dentro, e eu ia com o maquinista, enquanto ele estava lá fazendo os reparos, eu ficava lá dentro, um calor do cacete, porque tem a fornalha, aquele fogo, eu chegava todo cagado de carvão. Mas eu me lembro disso muito, tanto que até hoje, quando eu sinto cheiro de madeira, eu me lembro da minha infância, porque era o cheiro da Maria Fumaça chegando, porque hoje em dia não se faz mais isso, mas era madeira, que eles colocavam ali dentro para queimar. Então vinha aquele cheiro de madeira queimada, eu me lembro de Carangola. E quando não tinha trem também a estação ficava vazia, do outro lado tinha plataforma, aí tinha a linha do trem, a tinha uma outra plataforma do outro lado e tinha um terrenozinho assim, que eu brincava muito, sozinho, não tinha brinquedo, então pegava umas frutinhas, fazia fazenda, as minhas vaquinhas eram mamonas, umas frutas silvestres mesmo, que era os meus bois as minhas vacas, eu brincava ali. Brincava de pular em cima do monte de carvão, chegava preto até o joelho, depois entreva em casa para tomar banho. E eu brincava muito com os meus primos, os meus primos que eram de lá de Carangola, filhos dos meus tios, irmãos da mamãe. Hoje em dia a minha mãe é a única sobrevivente, meus tios já faleceram todos, meus avós também. Eu falo, você ficou para contar a história. Mas foi isso, foi muito rico, lá em Carangola, para mim. Aí tem o clube também, o Carangola Tênis Clube, que ficava, lá de casa, como era essa marquise, lá de casa a gente via o clube, então a gente ficava esperando... Tem outras coisas também, mais interessantes. A gente ficava esperando chegar o final de semana, quando fazia sol, para a gente ir para o clube, tomar banho de piscina. A minha tia Marli, tinha uma amiga Teresa, que tocava violão e cantava muito bem, então ela ia lá para casa à noite, a minha tia não era casada ainda nessa época não. E aí a gente ficava lá em cima da marquise, sentado em cima do telhado do armazém da exposição, cantando, e ela cantava aquela música três das 11 horas, do Adoniran Barbosa, e eu achava naquela época, que aquela música tinha sido feita para o trem, porque o trem noturno chegava às 11 horas, lá em Carangola, e ela cantava o trem das 11, eu imaginava que era, eu não entendia porque falava Jaçanã, que Jaçanã é essa. Depois que eu fui ver que foi feito para São Paulo. Mas não me lembro disso, de ter essa coisa a noite, de fazer serenata, seresta, a Teresa tocando violão Lá em casa lá em cima do telhado. Outra coisa que me marcou muito em Carangola, que hoje em dia não tem mais, é uma pena, foi o cinema. Eu sou da época dos filmes de caubói, de faroeste, em preto e branco, de gordo e magro. Então todo domingo tinha Matinê, e eu ia para matinê, custava, eu não sei a moeda da época, tipo R$1,00, e a gente ia, mas era uma bagunça dentro do cinema, aquela garotada correndo, quando o filme não prestava, e a gente jogando bolinha um no outro. Isso foi quando eu comecei a gostar, lá em Volta Redonda, já tinha também, em Volta Redonda tinha um cinema chamava 9 de julho, no centro da vila residencial, nem sei se existe esse cinema, deve ter, porque era um cinema muito bonito. A gente assistia a desenho animado, Tom e Jerry, Jerry Lewis. Já em Carangola, já era uma coisa mais até para antes disso, que era filmes de cowboy mesmo, anos mais tarde já trabalhando em Furnas, eu trabalhei com esse tipo de cinema, fiz um festival, depois a gente chega lá, eu te conto.
38:01
P/1 - Você falou de cheiro, você falou do picolé da Kibon. O que cozinhavam para você nessa época que você adorava? O que você comia que te marca bastante?
R - Engraçado, de comida eu não lembro muito bem não, porque a minha avó, essa lá de Carangola, nunca gostou muito de cozinhar não. Tanto que a minha mãe aprendeu a cozinhar com a minha avó paterna, que morava em Caxias, quando a minha mãe foi morar lá, com a minha avó fazendo, que ela aprendeu, a minha mãe hoje em dia cozinha super bem, comida mineira mesmo. Mas a vovó não gostava muito não. Tinha uma senhora que trabalhava para vovó, uma negra grandona, acho que é Teresa, não é Teresa não, esqueci o nome, eu gostava muito dela, eu chegava da escola, eu gostava muito de ovo frito, fazia arroz, com ovo frito, feijão estalado e tomate, para mim já estava feito. Eu acho que eu nunca comi tanto ovo na minha vida, porque eu chegava, todo mundo já tinha almoçado, aí eu comi aquilo assim. Mas eu não me lembro, eu não tenho essa lembrança culinária daquela época não, tenho depois, mais para frente, quando eu cheguei na família do meu pai já, em Caxias.
39:25
P/1 - Sérgio, o que você lembra de ler nessa época, em Carangola, em Caxias, você se lembra dos primeiros livros que você leu?
R - O primeiro livro que eu li, foi O Homem Que Calculava, de Malba Tahan, isso já no ginásio, porque tinha uma professora de literatura. Aí ele li Dom Casmurro, aí foram vários clássicos, ela era uma professora extremamente rígida, mas isso já em Caxias, já adolescente, já com 12, 13 anos, ela era muito rígida, a gente tinha que ler o livro e tinha que interpretar, ela não fazia perguntas, quem era o personagem, não, o que o personagem x pensava disso na situação tal? Então se você não tivesse entendido, você não sabia responder, foi quando eu comecei a deixar de ser aquele analfabeto funcional, até então eu lia para decorar e fazer a prova, depois disso eu passei a ler para entender e responder, me lembro disso direitinho. Mas foi essa professora de literatura, no ginásio que eu tive, que era muito boa, ela era um carrasco, mas assim, agradeço até hoje, de ter tido isso. Eu li muita coisa, O Crime do Padre Amaro, Dom Casmurro, tem um monte de coisa, não vou lembrar assim, aqui agora, Gabriela, um monte de livros bacanas. Pequeno Príncipe já li depois, mas já era mais simples.
41:14
P/1 - E que brinquedos vocês brincavam? Vocês faziam brinquedos?
R - Por exemplo, quando a gente morava em Volta Redonda, eu te falei, tinha uma situação bem confortável, papai ganhava bem, no final do ano a gente ganhava a bicicleta, depois tive até que vender a bicicleta, depois que o papai morreu. Ganhávamos uns presentes bacanas. Mas mesmo tendo esse conforto todo, eu me lembro que eu fazia no fundo do quintal lá de casa, fazia brincadeira de circo, era um circo meu, eu chamava os meus amigos e eu que apresentava o circo eu que criava as atrações do circo, era uma coisa muito da minha cabeça, porque eu me lembro que eu tinha ido em circo, talvez uma vez na vida e eu já brincava de circo. Eu brincava de escola, eu fazia escola, no fundo lá de casa, brincava muito de pique-esconde, isso era de noite, já depois do jantar, também era muito bom. Mas nessa época eu tinha brinquedos, brinquedos que a gente comprava. Quando a gente vai para Minas, que a gente passou um período financeiramente mais complicado, aí Eu já imaginava, eu não tinha, mas eu imaginava. Eu ganhei um ônibus, um ônibus de plástico, então para mim era aquela viagem, de sair da minha casa, era rodoviária do Rio, chegar na casa do meu amigo era rodoviária de Carangola. A gente fez uma estradinha no quintal dele, naquela época tinha um pedaço, antes de chegar, de uns 40 Km, entre Rio, Bahia e até chegar em Carangola, que não era asfaltada. Então quando chovia, os ônibus chegava de lama até, às vezes ficava atolado o dia inteiro. Então eu ia com esse carrinho, com esse ônibus, e aí brincava, chegava lá, fazia uma lama na estradinha que a gente tinha feito, aí sujava, cagava ônibus todo, para chegar o ônibus sujo, igual, tudo isso na imaginação. Brincava dessa coisa também, de ficar fazendo as minhas fazendinhas, os meus bichos, lá embaixo na estação, era muito da imaginação. Depois eu ganhei um par de patins, eu patino até hoje. Antes do papai morrer, eu me lembro do último Natal, a filha da vizinha ganhou 1 par de patins, e eu me lembro que eu pedi para andar, ela me emprestou, eu dei só uma voltinha, e eu fiquei doido com aquilo. Eu falei caraca! Eu tinha bicicleta, mas eu gostava do patins. Aí quando o papai morreu, aí eu fui passar um final de semana com os meus avós no Rio, a minha avó me deu um patins de presente. E aí eu fui para Carangola, morar esse um ano lá. E aí eu andava de patins também, quando a estação estava fechada, no hall onde vendia ingresso, bilhete, passagem, era hall grande, e também na plataforma, eu andava de patins ali, isso com 10 anos. Esse é um brinquedo que até hoje eu ando, eu tenho dois patins, o ano retrasado eu levei um tombo, eu nunca levo tombo, eu ando muito bem. Aí quando fizeram o Porto Maravilha aqui, O Museu do Amanhã, fizeram um calçamento, extremamente liso, maravilhoso para patins, aí eu ia, ficava andando assim, mas andava 1 km, 2 km. Dessa vez que eu caí, eu fui dar uma volta, vim andando de costas e muito rápido, eu de repente, levei um estabaco, que eu não sei da onde, e eu fraturei a minha perna. Eu passei em cima de um chiclete, um chiclete que estava no chão, vim andando de costas, a minha roda travou e eu voei no alto. Mas patins é um brinquedo que eu curto até hoje, e vem lá de quando eu tinha 8 anos de idade, até hoje, marcou. A outro brinquedo também, quando eu morava em Volta Redonda, foi lançado o autorama, não é da sua geração, eu acho que hoje em dia tem, mas ninguém brinca mais, que era o brinquedo que todo mundo sonhava em ter. Aí o meu pai faleceu, a gente foi para Carangola, nem pensar em comprar autorama, porque era muito caro. Aí a gente veio para Caxias, a mamãe depois de uns dois, três anos, ela pegou uma graninha e me deu, para mim e para o meu irmão, o autorama, e era um brinquedo que eu brinquei muito, muito, muito, a gente gostava muito. Esses eram os meus brinquedos da infância.
46:26
P/1 - Qual que é o nome do seu irmão? E como é que você vê a sua relação com ele nessa época?
R - O nome dele é Celso Pinheiro Filho, que é o nome do meu pai, meu pai era Celso Bonfim Pinheiro, ai ficou Celso Pinheiro Filho. Eu sempre tive uma relação muito boa com meu irmão, por isso que eu falo a gente, porque ele estava sempre incluído nas brincadeiras. Eu apanhei muito, porque eu era muito folgado, apesar de ser pequenininho, eu era muito folgado, mamãe sempre falava, depois, quando a gente já morava em Caxias, “se chegar aqui em casa chorando vai apanhar mais”. Então a gente já resolvia isso fora, e normalmente, eu enfrentava as pessoas e para eu apanhar, eu apanhava, meu irmão entrava na briga, às vezes apanhava também, tinha muito disso. Hoje em dia a gente tem uma relação legal, até hoje, ele mora com a minha mãe, eles moram aqui do meu lado, num prédio aqui ao lado. Ele foi casado duas vezes, mas hoje em dia é separado, mora com a minha mãe. Uma coisa que foi engraçada, é que minha mãe sempre imaginou que ele seria o primeiro a sair de casa, na verdade fui eu, eu saí com 23 anos. Morrendo de medo, mas fui embora. E depois ele casou e saiu enfim. Mas a minha relação com ele sempre foi muito boa, a gente jogava futebol, meu pai jogava futebol, meu pai jogou em clubes lé de Minas e tudo. Eu sempre gostei muito de futebol e meu irmão também, mas os dois, nós somos dois pernas-de-pau. Eu cheguei até ganhar medalha na época do ginásio, por que jogava no time na defesa, eu não sabia jogar, neguinho passava, eu não tinha medo, dava logo uma banda, derrubava a pessoa. Eu tenho uma medalha, por incrível que pareça, mas nunca fui bom, nem o meu irmão. Nós somos flamenguistas, isso é um grande desgosto do meu pai, porque o meu pai era Fluminense doente, e os dois filhos... Mas porque nós somos flamenguistas, porque a família da minha mãe toda lá de Carangola é flamenguista, meu avô era flamenguista doente. Ele tinha uma caravela, que era um abajur, era uma caravela com as velas vermelhas e pretas, aquilo abria de noite, era a coisa mais linda, não me esqueço disso. Não sei com quem ficou essa caravela. E a gente foi ser Flamengo, porque passava as férias sempre lá, desde guri, desde pequenininho. E o meu pai era Fluminense, mas nós somos flamenguistas até hoje. Eu ia muito ao estádio de futebol Maracanã, com meu irmão, quando a gente morava em Caxias. A gente pegava o trem, isso já depois dos 13 anos, já com uns 15 anos. E o meu irmão também flamenguista, ele não gostava, porque eu ficava muito nervoso, saia dando soco, nessa coisa de ficar batendo na perna dele na hora do jogo. Mas nesse ponto a gente é muito... até hoje, ele é mais doente do que eu, eu não sou tanto. Hoje em dia eu curto, vejo, mas meu irmão é flamenguista doente mesmo.
49:53
P/1 - E nessa época como estava o Flamengo?
P/1 - Eu era da época do Zico, imagina, o grande ídolo, eu vi muita coisa boa. Nossa, eu chegava em casa sem voz, toda vez que eu ia. Eu era adolescente, fumava escondido, comprava o maço de cigarro, fumava o maço umas inteiro durante o jogo, fumava 20 cigarros, ascendia um no outro, gritando, sem tomar nada, porque a gente ia só com dinheiro do ingresso mesmo, não tinha dinheiro para mais nada. Então chegava sem voz. E o Maracanã naquela época, eu cheguei aí a partida com 100 mil espectadores, 100 mil, hoje em dia eles botam 70. Eles acabaram com o Maracanã, eles fizeram essa reforma, esse povo tinha que ser preso, porque o Maracanã cabia até 120 mil pessoas, acabaram com arquibancada que era alma do Maracanã. Eu fui nas olimpíadas, quando eu entrei no Maracanã, eu disse: isso não Maracanã. Tinha geral, onde o pessoal ficava em pé, era outra coisa, hoje em dia virou o estádio, tiraram o teto. Como roubaram, meu Deus do céu, para que tirar o teto, o Mineirão é a mesma estrutura, mantiveram o teto e fizeram um anexo de lona, poderia ter feito aqui no Maracanã. Tiraram uma Marquise linda, em balanço, projeto de engenharia maravilhoso, tiraram aquilo para meter o dinheiro no bolso. Tá preso hoje em dia, graças a Deus, quem fez isso. Mas era uma coisa assim, ir ao Maracanã era um evento, ia de trem. Aí depois eu entrei na torcida lá de Caxias, chamava Flachiense, aí quando ia a flachienci mesmo, muita gente, eles alugavam um ônibus, a gente ia de ônibus, de graça, cantando. A gente entrava no Maracanã com a Charanga, tinha uma banda que tocava, a gente entrava tocando o hino do Flamengo, era uma loucura. Eu me lembro, que eu fui soltar um foguete uma vez, um morteiro, eu nunca tinha soltado, me deram, eu segurei, segurei no cano do morteiro e acendi aqui embaixo, quando eu acendi o negócio queimou minha mão, eu joguei para o alto, aquilo estourou, bateu na marquise e caiu no meio da torcida jovem do Flamengo. Falei: caraca, esse povo vai me matar agora. Aí virou todo mundo para cima, aí eu virei também, tipo, quem foi, com a mão toda queimada. Nunca mais eu soltei foguete na minha vida. Isso foi no Maracanã.
52:31
P/1 - E você se lembra de algum jogo específico, que ficou na tua cabeça?
R - Não me lembro! Eu me lembro de campeonatos, que o Flamengo ganhava e tudo. Mas assim, especificamente eu não me lembro, a minha memória, eu pego o geralzão. Foi muito legal! Hoje em dia eu não entendo, hoje em dia eu não me vejo no estádio torcendo, acho que é porque eu não tinha nenhuma definição ainda do que eu queria na vida ainda, naquela época. Porque você vai ver, a gente vai chegar lá, eu acabei fazendo duas faculdades de ciências exatas, para largar tudo e trabalhar com cultura, coisa que eu nunca estudei, e hoje em dia minha profissão, eu aprendi porque eu quis. Joguei tudo para o alto, o povo queria me matar. E eu falei: não é isso. Então naquela época, eu acho que é porque eu ia fazendo coisas, que vida ia levando, faz ciências contábeis, porque seu pai era contador. Aí depois... Eu desenhava muito bem quando era criança, desenhava muito bem e ninguém nunca prestou atenção nisso. Naquela época não tinha isso de ver qual era a aptidão da criança. Eu tinha uma tia minha, minha tia Zeni, lá de Volta Redonda, casada com esse meu tio que estava no acidente com meu pai, que ela uma vez chegou lá em Caxias, e me viu desenhando. E aí quando ela voltou numa outra vez, ela levou um livro, que era só de cavalos, um livro que ensina a desenhar. E quando ela voltou numa outra vez, eu tinha desenhado todos os cavalos. Ai já ensinava fazer sombreado, sem ninguém me ensinar. Aí depois ela me trouxe um outro livro, que era de anatomia, e eu desenhava aquilo tudo. Mas na minha cabeça, como é que eu vou viver de desenho, depois, hoje em dia, você tem programador visual, design gráfico, tudo isso. E naquela época não tinha isso. Aí não, você vai ser contador, a coisa mais ridícula que teve no mundo e minha foto na formatura de Ciências Contábeis, eu com cabelo aqui, com aquele chapeuzinho assim, parece um ET, no meio daquele monte de homem, tudo, aquele povo careta, eu entrava na sala, eu era um ET. Mas eu chego lá, eu estou pulando as etapas.
54:50
P/1 - Como que era você na escola lá em Caxias?
R - Lá em Caxias, eu fui estudar, fiz ginásio, científico, normal, foi muito bacana. Meu irmão na época, ele tinha, hoje seria um DJ, naquela época falava que tinha uma equipe de som. E ele tinha uma equipe de som, que ele rodava a Baixada Fluminense, a cidade toda, levando, fazendo baile. Aí ele fazia, e eu ia dançar, porque começava o negócio, ficava todo mundo em volta, bebendo, não sei o quê, até que um chegava e começava a dançar. Então como eu gostava de dançar, hoje em dia não sou muito chegada a dança não, mas naquela época eu gostava. Ai eu ia e dançava igual um doido na frente, aí juntava todo mundo. Mas assim, no ginásio, científico, foi mais essa coisa de esporte. As coisas dos festivais de música, que tinha também os festivais lá em Caxias, porque tinha essa coisa de festival na televisão, mas ai tinha também, não na cidade, a gente frequentava também. Tinha festival do chopp, me lembro disso, quero uma festa em Caxias, uma vez por ano, a gente juntava dinheiro para comprar aquele caneco, era uma festa maravilhosa. Mas era uma coisa mais de brincadeira, de eventos e tudo, mas não que me direcionasse para minha formação profissional. Eu tinha, sem saber, lá em Caxias tem a feira, tem uma feira livre que a maior feira da América Latina, são 3 km de feira, que acontece aos domingos. E essa feira começava na porta do prédio onde eu morei. Então a minha coisa, que eu adorava fazer no domingo, era acordar, tomar café e ir para a feira, eu andava a feira inteira. É uma feira muito doida, vende de roupa, sapato, panela, comida. Mas é maravilhoso, tem repentista, tem feira de pássaros, tem tudo, tudo, nessa feira. Foi a minha referência profissional, artística, porque eram tantos universos dentro de um lugar só. Eu tenho essa coisa meio confusa, meu Barroca, sei lá o que é, essa misturada, mas que tem uma harmonia, que tem um porque daquilo existir. Até dei uma entrevista agora a pouco tempo, para o jornal O Globo, e eu falei isso, que a feira de Caxias sempre foi a minha referência artística, depois no futuro, que eu fui perceber isso. Mas essa coisa da Cultura, eu sempre quis ser ator, desde pequeno. Mas na época da ditadura, minha avá falava não, ator é coisa de maconheiro, de subversivo. Então acabaram com meu ator ali, eu fiz a minha primeira peça, eu escrevi uma peça, dirigir essa peça, e montei essa peça lá em Caxias, sem nunca ter entrado no teatro. Fiz com um grupo de pessoas, os meus amigos que moravam lá no prédio. Aí eu fazia parte de um grupo de jovens da igreja, que me colocaram para fazer, chamava encontro de jovens, e eu acabei virando, fiz o encontro, e acabei virando líder palestrante, não sei o quê. E aí eu montei a minha primeira peça, e montei na igreja, para arrecadar dinheiro, para comprar bancos para nossa sala de jovens, que tinha lá, sem nunca ter entrado. A primeira vez que eu entrei num teatro, foi para ver Maria Bethânia, olha como eu sou privilegiado, foi para ver Maria Bethânia, nunca mais esqueço disso, aquela mulher é uma entidade, ela não é uma pessoa, ela entra no palco. Eu não tenho paciência de ouvir Maria Bethânia em disco, porque eu acho que a voz dela é muito igual, mas a Maria Bethânia no palco, eu sou capaz de ficar uma semana vendo, porque aquela mulher tem uma alma, que ela entra, que eu falo, Caraca bicho, que isso. E a segunda vez que eu entrei foi para ver Dercy Gonçalves, olha o disparate. Que era uma comediante absurda, comédia que fala palavrão, naquela época era proibido, e ela falava um monte de palavrão. Então eu fiquei com essa referência. Depois que eu me tornei ator, que eu trabalhei numa companhia de teatro durante 10 anos, e o diretor falava: você é um ator extremamente dramático, por isso que você faz comédia bem, porque você conta as coisas com tanta verdade, que ninguém está acreditando nessa bobagem que você está falando. Me lembro que eu fiz uma peça uma vez, que era uma coisa absurda, surreal o final, e as pessoas choravam, choravam de rir também, com a naturalidade que eu fazia aquilo. Mas o meu grande sonho, sempre foi ser ator, que foi camuflada naquela época. E depois, anos mais tarde, foi quando eu joguei tudo para cima, já trabalhava em Furnas. E aí eu fui para a Europa a primeira vez, fui para Paris, e tive contato, fiquei encantado com aquela cidade, o berço da... Aí eu retomei, foi uma carreira, foi não, ainda é, a dois anos atrás eu fiz um longa-metragem maravilhoso, foi lançado no Festival do Rio. Já fiz vários curtas também, agora estou entrando para o cinema, mas é isso.
1:00:51
P/1 - Nessa época você sentia a questão de ditadura, no seu cotidiano, ou o seu irmão? Como é que foi para você?
R - Eu fui perceber isso já na Santa Úrsula, quando eu fazia engenharia civil, que eu fui percebido pelos agentes do doi-codi, sem saber. Tinha um cara na minha turma, que não sabia fazer nem raiz quadrada e estava fazendo engenharia. E ele era um cara que grudou em mim, ele queria saber tudo, ele queria conversar, aabe aquele que quer ser o seu amigo, e você meio. E aí depois descobriu que ele era um dos agentes, que estava Infiltrado, aí cercaram a faculdade toda, e expulsaram esses caras. Eu me lembro eu correndo de borrachada, aqui no aterro, quando demoliram o prédio da União dos Estudantes no Flamengo. E eu estava lá na manifestação, e a polícia baixando porrada, a gente correndo igual uns loucos, para não apanhar, isso eu lembro direitinho. Mas eu tenho consciência, que a pior coisa... isso eu falo, quando as pessoas falam em regime militar, eu falo, essas pessoas não tem cérebro, não sabem ler, são analfabetos culturais, funcionais, porque é só você pegar um livro. Eu fui... eles acabaram com a minha possibilidade de conhecimento, porque os livros eram todos censurados, quanto eu perdi na minha adolescência. Eu só fui tomar consciência disso, já na faculdade. Então foi um período que eu tinha medo, eu tinha medo de ser sequestrado por ser terrorista, quem eram os terroristas? Gabeira, essa galera que sequestrou os embaixadores, para libertar as pessoas que estavam morrendo nos porões da ditadura, estavam sendo torturados. Mas para gente, passavam que eles eram os comunistas que comiam criancinhas. Eu me lembro, que eu já trabalhando, no banco de Boston, eu vinha de ônibus, morrendo de medo de ser sequestrado, olha que absurdo, isso eu já com 18 anos de idade. Isso eu acho que foi o grande absurdo dessa ditadura, ter tirado o meu direito de crescer, eu falo do meu conhecimento, de me tornar uma pessoa melhor, de poder ter feito muito mais coisa, porque a gente foi enganado. E é o que está acontecendo agora, as pessoas são acéfalas, não é possível, porque ninguém virou isso hoje, as pessoas já eram. Outro dia eu vi um amigo meu, fazendo um discurso. Eu falei: eu não acredito que esse cara é da minha geração, ele viveu tudo isso. Aí depois eu lembrei que o pai era militar, eles tinham uma vida completamente diferente da gente. Então isso, realmente, eu me lembro disso, isso me prejudicou muito, me prejudicou tanto, que eu fui ser o que eu queria ser com 27 anos de idade, que eu tive coragem de falar: não, agora eu vou chutar tudo e vou ser ator, vou trabalhar com arte. Com 27 anos de idade, olha como esse período, nefasto da nossa história, prejudicou a gente. Não posso nem ouvir falar nesse troço, imagino quem foi... O meu tio, meu tio Roberto, irmão da minha mãe, ele era especialista em queijos, tanto que ele ganhou cinco vezes o melhor queijo parmesão do Brasil, que é um concurso nacional, então ele era o pentacampeão. Ele faleceu, já há alguns anos. E na época ele estava estudando em Juiz de Fora, então ele vinha de Juiz de Fora para ir para a Carangola, ele passava lá em casa, almoçava com a gente, a gente levava ele na rodoviária para ele ir para Carangola. E eu me lembro que um dia ele veio, e a gente foi com ele, levar ele na rodoviária. E eu me lembro que quando a gente saiu, eu vi uma Rural, um carro meio assim, com umas pessoas esquisitas, eu passei, olhei aquilo. E eles olhando para gente, mas eu nunca imaginei, a gente foi levou meu tio, ele pegou o ônibus, no meio do caminho, esse carro abordou o ônibus e tiraram meu tio de dentro do ônibus. Aí eu sei que tiraram meu tio do ônibus, porque confundiram ele, com um possível terrorista, alguma pessoa que era contra o regime, imagina, terrorista. Terrorista é o que esses infelizes denominavam. Então foi isso assim. Quanto eu deixei de aprender, quantos livros eu deixei de ler, porque eram proibidos, porque não tinham. Isso para mim foi a pior coisa, me arrancaram uma parte da minha vida, minha e de todo mundo, de todos os brasileiros. Tem gente que se conforma, eu não me conformo. Eu ainda consegui resgatar, e essas pessoas que ficaram alienadas a vida inteira, estão até hoje. Estão aí o. Mas enfim, é isso, foi assim, um mal, que Deus me livre, que nunca mais aconteça. Enfim, é bom nem falar muito nisso não, que chama.
1:06:21
P/1 - Como é que foi para você na época esse sentimento de eu quero ser um ator, você tinha isso muito consciente, ou não? E como é que veio essa coisa de não, vou fazer ciências contábeis, como é que era isso, era impasse?
R - Porque assim, são duas coisas. Eu sempre quis ser ator, mas o problema também, é que eu não tinha alguém que me bancasse. Para ser ator, você tem que ir para uma escola de teatro. Tanto que hoje em dia eu sou ator, mas eu nunca fiz uma escola de teatro, eu aprendi na marra, aprendi em cima do palco. Mas assim, naquela época, minha mãe não podia. A minha mãe ficou viúva com 29 anos, com dois filhos, um com 9 e outro com 10, ela tinha quarta série primária. Quando ela ficou viúva, que ela veio, ficamos um ano lá em Carangola, aquele ano de luto e tudo. Ai quando nós viemos para Caxias, já aqui na baixada, morar no prédio onde meus avós moravam. Ela voltou a estudar, ela fez em um ano todo primário, revisão do primário, passou. Depois fez um ano todo ginásio, passou em primeiro lugar. Minha mãe é muito inteligente, isso eu herdei dela. Minha mãe tem uma visão de futuro, minha mãe sempre olha para frente. Com 87 anos hoje, ela está sempre pensando no amanhã. E aí depois ela fez o curso de massagista, estética e terapêutica, ela fez o curso também, super bem, depois fez um estágio na BBR, na parte terapêutica. E foi com isso que ela nos criou, que ela começou a trabalhar. Mamãe hoje em dia tem um problema de coluna muito sério, porque ela trabalhou a vida inteira curvada, amassando aquelas mulheres, porque não tinha esses aparelhos que tem hoje em dia, era tudo na mão mesmo. Mas foi isso assim. Bom, aí eu tinha que de alguma forma me manter e ajudar em casa. Aí eu fiz ciências contábeis, mesmo achando que eu era um ET, mas eu sempre fui muito chato, eu sempre fui muito dedicado, não é isso, mas eu vou fazer direito. Eu era um dos melhores alunos da turma, eu fiz prova para um banco. Essa história é engraçada, porque eu comecei a estudar, mas ao mesmo tempo eu falei, não, não adianta eu só fazer ciências contábeis, tenho que arrumar um emprego pra mim. Aí eu trabalhei numa academia, mamãe era massagista de uma academia, eu fui trabalhar na secretaria da academia, um período. Aí o meu avô, tinha um amigo dele, que era diretor do banco de Minas Gerais, esqueci o nome agora, banco de Crédito Real de Minas Gerais, tinha uma agência lá no centro da cidade, agência central do Rio. E aí eu falei: vovô, me leva lá no seu amigo, fazer um teste, para ver se eu arrumo um emprego para mim, para eu ganhar um dinheiro. “Não, eu só te levo se você cortar esse cabelo”. Que eu tinha o cabelo aqui, na época, um cabelo enorme. Aí eu fiquei pau da vida com aquilo. A é, tá bom! Aí um dia eu arrumei um dinheiro, fui, peguei um ônibus e fui sozinho, cheguei lá no banco. Sabia onde era, que eu já tinha ido lá com ele um dia. Aí cheguei na secretária do diretor, “eu sou neto do Dr, Lacerda amigo, do seu Fulano, não me lembro o nome dele, será que eu posso falar com ele”. Ele me recebeu, “meu avô não pode vir hoje, mas eu vim aqui, porque eu estou querendo muito trabalhar, será que o senhor podia me dar uma chance, de fazer uma prova, não sei o que”. Aí eu fiz uma prova de datilografia, na época, passei. Aí voltei para casa, arrumei um emprego, voltei para casa todo feliz. Cheguei para o meu avô, falei: olha só, falar para o senhor, eu fui lá, fiz isso, isso, isso. Meu avô ficou de boca aberta assim, me olhando. “Agora que eu passei, agora eu vou descer e vou cortar o meu cabelo”. Aí eu desci e cortei o cabelo. Isso é para provar para o senhor, que cabelo não tira competência de ninguém. Então eu passei com cabelo comprido, aí eu fui cortei meu cabelo. Aí trabalhei dois meses e meio nesse banco. Aí tinha uma senhora que gostava muito de mim, e ele falou: tem um irmão meu que é auditor do banco de Boston, e tem uma vaga lá, você não quer tentar? Eu falei: ah, eu vou! Eu ganhava 550 cruzeiros, não sei qual era a moeda, eu pagava 400 de faculdade, e o dinheiro que sobrava, era o dinheiro que eu tinha para pegar ônibus de Caxias até a Praça Mauá, só que o banco que eu trabalhava era na Cinelândia, era longe para cacete, então eu tinha que ir a pé, ia e voltava a pé, porque não tinha mais dinheiro. E aí eu fiz essa prova no banco para ganhar 1.150. E aí passei, e trabalhei no banco de Boston, durante um ano e cinco meses. Foi quando surgiu a possibilidade de fazer prova para Furnas. Aí eu fiz um concurso, naquela época não tinha concurso público, tinha uma vaga, era uma vaga específica, para auxiliar de contabilidade e eram 10 candidatos, para aquela uma vaga, meu irmão também fez a prova, mas só tinha uma vaga, só eu passei. Aí foi assim que eu entrei em Furnas. “Ah você vai trabalhar em Furnas”. Eu não sabia nem o que era Furnas. Aí quando eu passei, “você vai trabalhar na Fundação”. “Fundação”? “Fundação Real Grandeza, de previdência privada”. Sei lá o que era isso. Enfim, foi assim que eu fui parar em Furnas. Mas lá para frente a gente conta mais.
1:12:24
P/1 - Você tinha quantos anos quando entrou e em que ano você entrou?
R - Em Furnas? Em Furnas eu tinha 20 anos. Eu entrei em 1975. Eu estava terminando a minha faculdade, de Ciências Contábeis, eu terminei no semestre seguinte. Foi até um problema sério, quem me indicou, era o pai de um amigo nosso, morava no nosso prédio, lá em Caxias. E tinha um irmão dele, que era gerente lá, contador na Fundação Real Grandeza de Furnas. Aí abriu a inscrição, ai ele falou: tem uma prova lá, você não quer fazer? Eu fui, fiz! Mas foi assim, você se inscrevia, e era uma prova objetiva, era uma prova de contabilidade, era uma prova de dificílima. Mas eu consegui passar, meu irmão não passou. E aí foi assim que eu entrei. Eu era funcionário de Furnas, cedido para Fundação Real Grandeza, que a fundação de previdência social que existe até hoje. Aí trabalhei lá durante 13 anos, como contador, foi quando eu vim para Furnas. Aí já vim com outro cargo, foi quando eu chutei o balde, e virei. Isso aí é uma história que eu te conto mais para frente.
1:13:55
P/1 - Nessa época você falou que tinha um cabelão, era o que, estava numa moda hippie?
R - É! Era o movimento hippie. Eu tinha um cabelão, andava com calça jeans, toda rasgada. Meu irmão fazia muito trabalho manual, bolsa de couro, chinelo de couro com sola de pneu. E era assim que eu entrava na faculdade, chegava lá, aquele monte de gente, todo mundo de terninho e gravata. Chegava eu com aquelas bolsas comprida, cabelo, eu parecia um ET no meio daquele povo. Eu me lembro, que eu tinha um professor, foi o único que me entendeu. Era um professor de português, na faculdade. Ele um dia chegou e falou: eu fui ver um espetáculo ontem, que eu tenho certeza que você vai gostar. Eu falei: Ah é! Ele falou: é! chama Gospel, é um musical que tá acontecendo lá em Botafogo, na Amélia Barreto, num circo. Eu fiquei com aquilo na cabeça, e aí eu fui ver, e aquilo mudou a minha vida. Que era a história de Cristo contada por palhaços, Cristo era um palhaço e os apóstolos eram outros palhaços. Mas era um musical, depois eu vi esse espetáculo, não sei quantas vezes, tem o filme. Enfim, isso aí mudou a minha vida, foi quando eu falei: não, eu vou ser ator, eu vou pelo menos batalhar para que eu possa ser ator um dia. Era com a Zezé Motta, o Wolf Maia fazia o Cristo, o Wolf Maia era um garoto na época, hoje em dia é um diretor consagrado. A Lucélia Santos fazia um dos apóstolos, era uma menina totalmente vesga, na época. O espetáculo é lindo, lindo, lindo. E eu já estava nesse movimento na igreja, de jovens e ainda falava de Cristo, e era uma visão extremamente, fora do contexto, na ditadura. Porque eu me lembro, quando eu fazia parte... Outra coisa também, da ditadura. Eu fazia parte, quem era o meu mentor, era o Frei Mário, que era um padre, extremamente revolucionário. E a gente estudava o Novo Testamento, ele pegava um evangelho, uma coisa, uma passagem de Mateus, sei lá. E a gente lia aquilo, uma parábola, e transportava aquilo para os dias de hoje, para aqueles dias, que a gente estava vivendo. Então a gente pegava jornal, e começava fazer comparação de jornal com o Novo Testamento, isso para igreja católica era um absurdo, para a ditadura então, nem se fala. Aí mandaram ele embora, ele foi expulso, mandaram ele para o Vaticano. E a irmã Beatriz também, que era uma psicóloga, ela era muito inteligente, mandaram ela para Alemanha. Aí veio um padre totalmente reacionário, mande-lhe a merda, fui embora, não, disso daqui eu não faço parte. Querendo que eu fosse boneco, falasse o que ele queria que eu falasse, não. Aí eu fui dar uma palestra sobre Deus, ai botei Águas de Março, o padre quase teve um... Vou dar uma definição de Deus para vocês, e botei Águas de Março, do Tom Jobim. O padre quase teve um troço, mas é isso, Deus é tudo, essa letra fala de tudo. O que o senhor quer que eu fale? Que Deus é uma entidade? Não, não é! Foi quando eu falei: vai para a merda, larguei aquilo. Dessa história eu não faço parte. E o frei Mário ficou, eu mantive contato com ele durante muitos anos, depois eu perdi o contato. Eu sei que ele casou, ele abandonou a igreja, casou, vive na Itália. Não sei nem se é vivo hoje, porque nunca mais tive notícia. E a irmã Beatriz eu perdi o contato. Mas essas foram as pessoas, que eu falo que são os anjos da guarda que passaram na minha vida, e que me deram esse sinais, assim. Vai que você está certo, vai demorar mas tu chega lá, graças a Deus.
1:18:07
P/1 - Era uma época que muita gente inveja né? Você estava num epicentro de cultura ali no Rio de Janeiro nesse período né? Que lugares que você ia? Ia assistir o quê?
R - Por exemplo, nessa época que eu estou te falando, dos encontros de jovens, a primeira peça que eu fiz, era a minha adolescência. Na verdade a gente morava em Caxias, que Caxias é uma cidade que fica na Baixada Fluminense, é uma cidade dormitório, que ele chamam. Das pessoas que moram lá, mas trabalho no Rio de Janeiro. E é uma cidade que não tem muita atividade cultural, foi o que te falei, tem um festival de chopp, tem um festivalzinho aqui, não sei o que, aqueles bailizihos. Mas essa vida cultural mesmo, eu só fui fazer parte mesmo, já trabalhando em Furnas. Foi quando eu tomei consciência do que a ditadura tinha feito com a minha vida, falei assim: agora eu tenho que resgatar isso. Eu tenho que pegar um jornal e ler e entender o que eu estou lendo, o que eles estão falando disso. Aí eu comecei estudar por minha conta mesmo. Aí eu deslanchei. Como eu te falei, eu nunca fiz escola de teatro. E eu me lembro que eu montei essa peça, depois eu já trabalhando em Furnas, eu montei o meu primeiro espetáculo infantil, um musical, que ficou um ano em cartaz. Ganhei muito dinheiro, nessa época. Fez um sucesso absoluto no Rio de Janeiro, um ano em cartaz, eu ganhava três vezes mais que o meu salário, com teatro, olha que absurdo, do que o meu salário de Furnas. As pessoas não acreditavam. Isso tudo, porque eu já estava envolvido com essa questão do teatro. E eu vi que a Bia Lessa, que era uma diretora teatral, que eu era apaixonado pelo trabalho dela já. Eu vi que ela estava dando um curso de direção, no SESC da Tijuca aqui. Aí eu falei: ah eu vou lá! Aí eu cheguei lá, e falei: vim fazer a minha inscrição. A secretária falou: você estuda aonde? Eu falei: não, eu não estudo! “Mas esse curso é só para diretores teatrais, que estão fazendo curso de direção, você tem que ter uma faculdade”. “Mas eu não faço”. “Não pode”! “Como que não pode”? Ai nisso a Bia estava entrando, eu falei: Bia, olha só, prazer, eu sou seu fã, você é minha ídala, adoro seu trabalho, eu estou querendo fazer direção, ela está falando que eu tenho que ter, mas eu quero muito”. “Você quer mesmo? Inscreve ele”. Aí me botou lá! Aí eu entrei com uma galera, que hoje em dia são diretores consagrados. E no meu primeiro trabalho que apresentei, a Bia Lessa quase enlouqueceu. Ela deu um poema, e falou: agora vocês vão para casa, e vão me trazer isso, traduzido em cena. Com atores, lógico. Aí ela tinha feito uma palestra, falando que o ator não era tão importante no teatro. E aquilo ficou engasgado na minha garganta, como que o ator não é importante. O ator é a peça mais importante. Era um modismo que tinha de direção, naquela época, que eu não concordava muito. Aí eu fiz a cena em casa, aí eu falei: não vou fazer com ator não, vou fazer só com objetos. Montei aquilo e levei. Aí fiz a cena toda, e ela enlouqueceu. Aí todo mundo dava opinião, os 30 diretores. Todo mundo elogiou muito. Aí eu tinha que falar, aí ela perguntou: mas porque você fez isso pequeno? Ela chama todo mundo de pequeno, porque ela é pequena. Eu me dou bem com a Bia até hoje, encontro com ela, é muito carinhosa. E eu falei: olha, eu fiz isso, para te dizer uma coisa, o ator é a coisa mais importante do teatro, isso que você viu aqui, é vitrine de shopping. Porque o que eu fiz, bons objetos, uma boa iluminação, uma sonoplastia. “Eu criei uma situação, que isso qualquer vitrinista do mundo faz, um diretor de teatro tem que ser muito mais que isso, e para ele ser muito mais que isso, ele tem que ter gente, porque o teatro é uma coisa viva, como é que eu vou contar isso, não, não sou vitrinista”. Ela ficou passada, acho que ela nunca podia imaginar. Aí ficou, sabe assim. Ela me colocou do lado dela, durante quatro meses e meio, eu fiz essa oficina e até hoje eu agradeço, porque ela é um gênio aquela mulher. Mas é isso assim, não sei nem porque estou falando isso, fui viajando.
1:22:50
P/1 - É porque eu estava localizando bem onde você começou a dar essa virada de vida. Eu imagino que foi no fim dos anos 70, no começo dos anos 80, mais ou menos por aí?
R - É! Por aí! A minha virada mesmo, profissional, foi no finalzinho da década de 80 e início de 90. Que eu deixei a engenharia. Eu não cheguei nem a cogitar ser engenheiro de Furnas, quando eu estava terminando a engenharia, foi quando eu viajei para França e comecei a estudar francês e fiquei apaixonado, não sei o quê, e comecei a mexer com teatro de novo, foi quando eu montei o formigando. Em Furnas, a fundação Real Grandeza, já tinha um departamento, que cuidava dessa parte cultural, eram duas pessoas que cuidavam disso. E eu era muito amigo deles, eu estava sempre lá ajudando, montando exposição, não sei o quê. E aí um dia, a gente estava montando uma exposição, sobre Van Gogh, se eu não me engano, sobre a vida de Van Gogh. Eles conseguiram até pela embaixada dos Países Baixos, da Holanda. A gente estava montando essa exposição e entrou um diretor da DG, que era o segundo nome da empresa, tinha o presidente, e o da DG na época, que era o Gilberto, não me lembro o nome dele. Esse cara foi outro anjo da guarda na minha vida. A gente estava lá montando, já era umas 9 horas da noite, ele entrou e falou: mas que barato, não sei o que, gosto muito do trabalho que vocês fazem, e você está sempre aqui, você gosta muito do que você faz? “Não, eu estou sempre aqui, mas eu sou voluntário, porque eu sou contador, eu não posso trabalhar, infelizmente nessa área, eu estou até pensando em ir embora”. Falei para ele. “Porque eu quero trabalhar com arte, quero trabalhar com isso, é isso que eu quero”. “Mas você quer mesmo”? Falei: quero, mas eu não posso, é desvio de função, meu cargo é contador, como é que eu venho parar na área cultural. Aí tá, ele foi embora, no dia seguinte me ligaram para ir na sala do meu diretor financeiro. Ele falou: você foi transferido para o setor cultural. E foi assim, cara. Eu cheguei lá, não tinha mesa para eu sentar, eu sentei numa prancheta, que era alta assim. E dali a minha vida mudou, mudou literalmente. Eu cheguei sem saber nada, com muita vontade né. Aí vem a coisa do teatro. Aí quando eu voltei, que eu falei, agora eu vou fazer teatro. Eu fui na CAL, que é a Casa de Artes Laranjeira, que é uma casa bem famosa, existe até hoje no Rio. Quem era o dono da CAL, que era diretor, era o Ian Michael, que era um puta de um crítico de teatro, um estudioso, tem vários livros. Aí eu fui lá peguei o programa, vou fazer isso aqui, não sei como eu vou fazer, mas eu vou fazer. Aí estudei, estudei, no dia eu fui lá, fiz a minha prova escrita, tirei a minha nota máxima. Aí fui na prova prática, aí apresentei a cena que eles tinham me dado, apresentei. Aí, “e cena que você teria que trazer”? “Não tem nada aqui dizendo que eu teria que trazer uma outra cena”. Eles tinham me dado a documentação do ano anterior, e tinham mudado. “Cara, mas ninguém me falou, não, vou ligar para o Ian Michel”. Aí eu liguei: Ian, olha só, aconteceu isso”. “O que eu posso fazer, você vai para casa, pega uma cena, ensaia e vem, você vai ser o último a se apresentar”. Mas aí, uma merda, a prova foi uma bosta, porque eu estava inseguro, nervoso, eu era o primeiro a fazer. Aí não passei. Aí eu falei: um dia eu vou entrar nessa escola para dar aula, eu pensei comigo, isso lá não sei aonde. E a 2 anos atrás, eu fui dar aula na turma de encerramento, explicar como é que se lida com projetos culturais e como é que você seleciona. Depois eu virei curador, virei parecerista de projetos culturais, do Centro Cultural do Banco do Brasil, de Furnas. E eu fui para CAL, pela professora dos formandos, eram 200 e poucos alunos, ela falou para mim: ô, se por acaso alguém se levantar e sair, você não se preocupa não, porque é normal, eles não tem muita paciência não, você vai ter uma hora para falar. Eu falei 2h30, ninguém se levantou. Mas o que eu fiz, eu contei as minhas experiências. Aí eu comecei a minha aula falando: olha, a última vez que eu entrei nessa casa aqui, eu fui reprovado, e eu jurei que eu ia voltar um dia para dar aula, e eu estou aqui hoje, mas eu não tenho nada que eu vá falar, que não seja do meu aprendizado, que eu aprendi sozinho, a vida me ensinou. Ai eu comecei a mostrar. Cara, foi maravilhoso! As pessoas ficaram até o final, eu saí de lá com a alma lavada. Falei: caraca, nada como um dia atrás do outro. Para você ver, quando você determina, você fala, a minha vida vai mudar, eu vou fazer isso, o mundo inteiro veio falar: você é um idiota, caguei! E não me arrependo, faria tudo de novo, poderia até ter feito antes, se não fosse a maldita da ditadura, que eu teria tido, talvez um pouco mais de coragem. Porque foi um período nefasto, que só cultivou medo e receio, e violência, e coisa ruim. Coisas que a gente está revivendo, mas enfim, outro momento.
1:28:50
P/1 - Você ficou 7 anos na área de exatas em Furnas, aí você passou….
R - Não! Eu fiquei 13 anos. Com 27 anos, foi quando eu tomei decisão que eu ia. Foi quando eu viajei, comecei a fazer teatro, e isso trabalhando em Furnas. Eu já fazia parte de uma companhia de teatro autônomo, do Jefferson Miranda. Jefferson é uma puta diretor de teatro, eu trabalhei 11 anos com ele. E eu conheci o Jefferson nessa oficina que a Bia deu. Eu trabalhei com ele 11 anos, com elenco fixo, era uma companhia. Eu trabalhava em São Paulo e trabalhava em Furnas. Eu negociava com meu gerente, isso na área financeira ainda. Eu falava assim: as quatro sexta-feira desse mês, eu não virei, então você desconta das minhas férias. Eu fiz espetáculo no SESC Pompeia, eu fiz espetáculo em vários teatros em São Paulo. Mas no Sesc foi onde a gente mais teve com frequência. Participamos da virada cultural, na época tinha outro nome. Aí eu saí, eu trabalhava de segunda a quinta, quinta eu pegava um ônibus, que eu tinha permuta do hotel, começava a partir de meia-noite. Então meia-noite e um, já era sexta, a partir de sexta-feira. Então pegava o ônibus às 5 horas, chegava em São Paulo 11h30, meia-noite. Aí já entrava no hotel, aí fazia espetáculo, sexta, sábado e domingo. Domingo eu pegava um ônibus leito, voltava para o Rio, já ia direto da rodoviária para Furnas. E aí trabalhava segunda, terça, quarta e quinta, isso assim, várias temporadas eu fiz. E a nossa companhia, era uma companhia muito bem quista em São Paulo, a gente, no início, não foi muito aceito no Rio não, mas em São Paulo. Fizemos no Centro Cultural São Paulo, fizemos o repertório, os três espetáculos lá. E o público de São Paulo, cara, eu acho que não existe igual, as pessoas em São Paulo vão para ver teatro, aqui no Rio, público vai para ver ator da Globo, tem uma diferença radical, isso aí. Então quando você tem um bom espetáculo, de qualidade, publico de São Paulo não quer saber, quer ver qualidade. E por incrível que pareça, nem tudo que faz sucesso em São Paulo, faz sucesso no Rio. São coisas inexplicáveis. A gente tem uma escola muito boa de teatro aqui, mas no Rio tem muita... acho que o teatro de uma forma geral, tem muita vaidade. E aqui no Rio é tudo muito setorizado, a companhia X, o grupinho X, só trabalha com aquele grupinho, ninguém ajuda o outro. Tá cagando para você, só olha para o próprio umbigo, isso eu acho bem ruim mesmo. Em São Paulo... eu me lembra que a gente fez um espetáculo, Minha Alma Imortal, um dos melhores espetáculos que eu fiz na minha vida, que é criação coletiva, direção do Jefferson Miranda. A gente fez no TBC, Teatro Brasileiro de Comédia, quando tinha sido restaurado, a gente fez lá. Depois a gente fez no Centro Cultural São Paulo. A gente estreio na verdade, no SESC Pompeia. E era um espetáculo muito doido. E aí depois a gente voltou anos depois, e fez no Centro Cultural São Paulo. E era um espetáculo que tinha duas arquibancadas, ficava um publico aqui, e outro publico aqui, e tinha uma parede no meio, aconteceu um espetáculo aqui, acontecia outra aqui, quem entrava daqui, não via o que estava acontecendo aqui, e vice-versa. E a gente fazia isso, só que a cenas, não necessariamente eram as mesmas que aconteciam e vinham para cá, não. Tinha todo uma engrenagem, tinha hora que abria um negócio, alguém enfiava a mão de um lado. Um espetáculo lindo, lindo, teatro puro. Eu me lembro que no Centro Cultural São Paulo, a gente teve que montar essa estrutura em cima do palco, porque não tinha nenhum lugar que pudesse, não tinha um teatro de arena. Aí botamos 80 pessoas, 40 de um lado e 40 de outro. Quando terminou, aí a luz ia abaixando, bem devagar, tocando uma música e faz aquele silêncio. Menino, quando a luz levantou, aquelas 80 pessoas avançaram em cima da gente, eu lembro que quase arrancaram meu figurino. Eu nunca vi uma manifestação tão maravilhosa, quanto aquela. Isso só acontece em São Paulo, aqui no Rio.. e olha que eu sou carioca de coração, mas o publico... não é porque você é de São Paulo. Você é de São Paulo?
1:33:47
P/1 - Eu moro, mas é uma longa história…
R – O povo tem essa particularidade, para mim é o melhor público, de teatro, isso por experiência mesmo. Mas foi isso, para você ver. Sete anos eu trabalhei, entrei com 20, com os 27 eu comecei a mexer com o teatro, aí monteiro formigando. Mas a virada mesmo, aconteceu de 89 para 90, foi quando a gente criou o primeiro espaço Furnas cultural. Porque hoje em dia eles contam uma história que não é real, eu tenho tudo isso documentado, inclusive eu entreguei para as pessoas do espaço Furnas Cultural, essa história, porque eu tenho toda ela toda documentada, com matéria de jornal. O primeiro espaço Furnas Cultural, chamava espaço Furnas Cultural, porque a gente usava a estrutura de Furnas, que era o auditório e o hall do auditório, que a gente fazia uma galeria dele. Mas era um projeto da fundação Real Grandeza, patrocínio da fundação Real Grandeza. Aí veio a era Collor, que também foi um desastre para Cultura, tirou tudo, acabou com tudo da Cultura. E eu já estava nessa época, trabalhando no espaço Furnas cultural, foi a época que eu mais trabalhei na minha vida, porque tiraram todo dinheiro. Aí começaram a ligar, das outras instituições, para fazer movimento. Aí eu conversei com esse casal que trabalhava comigo, “gente, a gente tem duas opções, ou a gente senta e chora, e cruza os braços, ou nós vamos para iniciativa privada, Furnas tem tantos fornecedores, tantos parceiros, a Fundação também. E a gente foi. Aí mandamos um projeto para coca-cola, que era grande patrocinadora, na época, nem a Petrobras era tanto, era a coca-cola, de cultura na época, aqui no Rio de Janeiro. Aí mandamos um projeto de 200 anos de Mozart, uma exposição, um evento, exposição, conserto, palestras. Aí ligou, a gente recebeu uma ligação, da diretora-geral, o Papa da coca-cola, que você tem que esperar 6 meses para ser atendido. A mulher ligou pessoalmente, querendo marcar, a pessoa não, a secretária dela, querendo marcar uma entrevista com a gente. Eu tremi nas bases, essa minha amiga também, eu falei: caraca, vamo lá! Aí chegamos lá, ela recebeu a gente naquele salão enorme, aí ela falou: não conheço vocês, não sei onde é que fica esse espaço Furnas Cultura, mas quem faz um projeto desse, com essa qualidade de programação visual, com esse capricho, não vai fazer besteira. Eu vou dar o patrocínio para vocês, mas vocês tenham certeza, eu vou estar lá para ver. E ela foi, e foi um sucesso. Fizemos a exposição, eu vim pegar o material de Mozart com um Consul da Áustria, aí São Paulo, fui de avião num dia e voltei com todo aquele material na ponte aérea, fui de manhã e voltei de tarde. Montamos, fizemos aqueles exposição maravilhosa, ela veio e deu um patrocínio para gente, de um ano. Aí nós fizemos miséria, fizemos festival de jazz, várias exposições, eu tenho tudo isso documentado. Esse foi o primeiro espaço Furnas Cultural, que a gente usava o espaço, em nome de Furnas, porque era no auditório de Furnas. A gente fez um festival de jazz, com seis bandas, inclusive duas de São Paulo. Entupiu! Aí resolvemos fazer no final do ano, com as duas maiores bandas, que fizeram mais sucesso, que era Rio Jazz Orchestra, daqui do Rio e a Tradicional Jazz Banda, de São Paulo. Aí montamos um palco, aqui no pátio de Furnas, a gente botou quase cinco mil pessoas na semana, na sexta-feira tinha mil pessoas no pátio externo de Furnas, mil pessoas para assistir a Tradicional Jazz Banda. A gente fez de segunda a sexta, foram quase seis mil pessoas, isso tudo patrocínio da coca-cola. Isso daí eu já estava, foi quando eu dei a minha virada. Quando eu entrei, nesse espaço Furnas Cultural, a pessoa que era a coordenadora. Era uma pessoa muito capaz, mas era uma pessoa muito vaidosa, muito insegura. E quando eu entrei, eu estava com meu espetáculo Formigando, em cartaz, eu tinha contratado uma assessora de imprensa, para fazer a divulgação para mim. A assessora era top de linha, e ela me ensinou tudo, e eu falei para ela: Tânia, eu não tenho dinheiro para te bancar durante muito tempo, eu vou te bancar durante dois meses, só que eu te peço, se você puder ser generosa de me ensinar, porque depois eu vou ter que correr sozinho. E ela me ensinou tudo de divulgação, quando eu entrei no espaço Furnas Cultural, essa pessoa que era responsável pelo espaço, era jornalista, só que não entendia nada de divulgação. Você é jornalista, você sabe, tem uma engrenagem, tem vários protocolos que você tem que seguir, porque você não pode avançar o sinal, você tem que saber como é que chega, como é que você faz um release, criar uma situação para que aquilo seja aceito no meio de um monte de propostas. Aí ela virou para mim e falou assim... ela sentia que eu estava muito cheio de gás, essa pessoa de Furnas. Eu não vou nem falar o nome, acho que não é ético. E ela falou: eu vou te dar no primeiro evento, você vai fazer sozinho, eu não vou te ensinar nada, você vai fazer sozinho. Eu falei: bom, para mim é um presente. Ela achou que ia me derrubar. E aí eu fiz um festival de cinema, dos anos 50, só de séries, Nacional Kids, Billy the Kid. Aí eu descobri um colecionador desses filmes, que mora no Espírito Santo, Paulo Tardin, ele tinha tudo isso em película e tinha os cartazes da época dos filmes. Então ele me mandou o material de ônibus, eu peguei esse material, a gente tinha a máquina de projeção lá em Furnas, só tinha uma máquina, quando era um filme muito grande, parava, botava o outro rolo, em película, fizemos um festival. E fiz uma exposição em baixo, na galeria, com os cartazes da época. Cara, eu consegui matéria em tudo que foi jornal, em tudo quanto foi revista, as pessoas se estapiavam na porta de Furnas. Eu fazia apresentação na hora do almoço e depois do expediente, lotado todos os dias. E aí foi assim, o meu primeiro evento. Mas por quê? Eu fui me cercando de pessoas que podiam me ajudar. Aí tinha um menino que eu conhecia, que trabalhava no Globo, que conhecia não sei quem, que foi perguntando e foi indo, e aí foi esse boom, aí foi embora, aí fui aprendendo. E foi aí que dessa essa grande virada. Depois veio essa coisa do Collor, que esculhambou com tudo, mas aí a gente deu uma virada, foi um período maravilhoso. Aí fecharam o espaço Furnas Cultural, em 92, acabou, só durou quatro anos. Aí todos os funcionários de Furnas, emprestados, que era o meu caso, e dessas pessoas também, nós passamos para Furnas. Aí eu vim para a área de recursos humanos, só que eu fui trabalhar com cultura na área de RH, cultura com empregados, para empregados. Que aí o espaço cultural Furnas Cultural, só vai voltar a cena, em 2003, já no governo Lula, com Doutor José Pedro de Rodrigues Oliveira, que também é outro anjo da guarda que apareceu na minha vida, que era presidente de Furnas, que é meu amigo, assim. É isso, a passagem foi essa, demorou um pouquinho, mas foi com segurança.
1:41:56
P/1 - Me conta como era a empresa logo que você entrou, em 75? Como é que era a cultura da empresa? Como é que era o dia a dia nos blocos? Você foi trabalhar nos blocos na Rua Real Grandeza, foi isso? Como é que era naquela época?
R - Quando eu entrei Furnas, eu fui trabalhar num prédio que era da fundação Real Grandeza, é um blocozinho pequeno, que tem na Rua São João Batista, fica nos fundos de Furnas. E aí fui trabalhar na contabilidade. E assim, foi um período meio estranho, porque quando eu entrei lá, esse cara que era gerente, ele começou a ficar meio enciumado, porque ele era um coroa já do seus 50 e poucos anos, e ele tinha acabado de se formar. Ele só estudou, teve oportunidade de estudar, depois de adulto Aí chega um garoto com 20 anos, já se formando. E ele meio que me deu uma sacaneada, ele me colocou... Eu era auditor no banco de Boston, trabalhava com o melhor da contabilidade, que é você fiscalizar e analisar a contabilidade que os outros fazem. E ai eu fui para Furnas, fiz essa prova, ele me colocou como arquivista. Chegou lá, tinha uns 5 armários, você abria as portas, aquilo caia tudo, uma bagunça. Cara, esse cara vai me botar aqui, como arquivista? Bom, enfim...a é, então está bom. Fui comprei um livro sobre arquivo, eu sei que em seis meses, eu botei o arquivo da Fundação Real Grandeza, que era o exemplo, o arquivo da contabilidade, ficou um luxo o negócio. Aí ele foi ficou meio assim, teve que me tirar do arquivo. Aí eu passei de auxiliar de contabilidade, para assistente de contabilidade. Mas sempre me perseguindo, o cara, foi uma pedra no meu sapato. Como eu tenho os meus anjos, tem esse infeliz, era infeliz né, coitado. Ele era tão infeliz, que quando eu viajei para Europa a primeira vez, eu tinha um amigo meu que era médico e ele foi fazer pós-graduação em Paris, e eu fui para visitá-lo. Quando eu voltei, foi a primeira viagem, foi uma maravilha, eu voltei encantado de lá. Eu voltei com umas roupas, que quando eu cheguei, as pessoas paravam, o cara da Alfândega achou que eu era artista, e ficava todo mundo olhando, aonde é que você vai assim? Na época que Paris estava lançando as modas do brechós, então você comprava aquelas roupas de exército, essas calças que tem bolso na perna, naquela época ninguém tinha isso. Eu vim com calça do exército, da Marinha Francesa, umas roupas muito doida, desci aqui no Galeão, foi uma loucura. Bom, enfim, esse cara, quando foi no ano seguinte, que era para ver a questão de avaliação, ele me chamou lá, e falou: olha, eu não vou te dar aumento, porque você está muito bem, você está passando férias em Paris. Eu falei: cara, como é que você analisa uma pessoa, você tem que me analisar como profissional, você é muito infeliz, e eu vou te dizer mais uma coisa, estou viajando semana que vem de novo para Paris. Bom, enfim, aí as pessoas me conheciam, porque iam lá para pegar documentos e tudo. Tinha um cara que era do contas a pagar, muito bacana, o Viunir, um cara muito gente boa. E aí ele me levou para o contas a pagar, era um setor que você trabalhava igual uns loucos, mas era umas pessoas maravilhosas, uma coisa muito bacana. E aí trabalhei lá, mas era tudo muito a parte, parecia que quem trabalhava na Fundação, tinha Fundação e tinha Furnas. Furnas era um outro universo, até então, eu ficava vendo Furnas de longe, apesar de estar dentro do mesmo espaço físico. E aí quando eu voltei, tinha uma menina que foi fazer estágio, também outro anjo da guarda, que era muito doida. Ela tinha uma motinha, ela era sobrinha de um diretor de Furnas, ela era apadrinhada, mas era uma pessoa do bem. Mas muito doida, ela chamava atenção e ficou muito minha amiga. Um dia eu fui comprar um casaco, cheguei na hora do almoço e mostrei para ela meu casaco. “Esse aqui eu vou usar no final de semana”. Ela falou: ué, que história é essa de final de semana? “Porque tem roupa que eu trabalho aqui, tem roupa que uso no final de semana”. “Deixa de ser ridículo, você tem que ser você mesmo”. Me deu um esporro, eu sei que no dia seguinte eu cheguei de tamanco no pé, uma calça toda incrementada, uma blusa do exercito, e dai foi. E eu trabalhava com um pessoal que vinha, os fornecedores que iam pagar eu tudo, chegavam lá, quero falar com o senhor Coelho, era eu. Aí quando via que era eu, aquela figura, aquele ET, no meio daquele povo todo careta. Mas assim, foi isso, foi uma mudança radical. Aí eu chutei o balde, vou ser eu mesmo. Porque quando eu saí do banco, como era auditor, trabalhava de terno, de gravata, tinha todo um ambiente formal. Quando eu vim para Furnas, eu trouxe isso, no início eu trabalhava, não de terno, mas de gravata, camisa social, calça social. Aí eu fui chutei o balde, foi quando eu comecei a mudar, foi quando eu passei a me interessar por esses eventos culturais que aconteciam na empresa, minha vida foi abrindo. Eu me lembro que ela levou para ver o Asdrúbal Trouxe o Trombone, que é um grupo de teatro, que foi revolucionário na época de 80, que mudou o teatro, Regina Casé fazia parte, o Evandro Mesquita, a Patrícia Travasso, toda essa galera fazia parte desse núcleo de teatro. E era um espetáculo, que chamava, eu vou lembrar, mas um espetáculo que fez sucesso, e aí a minha cabeça começou... E essa menina veio também, ela pegava o jornal, porque eu abria o jornal eu não sabia, tão alienado da parte que eu vinha, lá daquele passado recente, que eu não sabia ver o que era de Cultura, não sabia fazer um link do que estava acontecendo no país, com os movimentos culturais. E ela foi me ensinando isso, e eu passei de assistir Inferno na torre, passei a ver sétimo selo, passei a ver cinema de qualidade, festivais de cinema, e foi indo. Passei a ver teatro, e foi assim. Mas Furnas era muito engessada nessa época ainda, tinha esse departamento cultural da fundação Real Grandeza, que fazia parte social, de esporte e cultura. E eu sempre participando dos eventos deles. A minha primeira participação que eu fiz, foi um concurso de contos e poesias, eu tinha umas poesias que eu tinha escrito, poesias não, era até letra de música. Aí fui lá e me inscrevi. Aí veio uma cartinha, dizendo que eu tinha que ter alguém para interpretar aquela música, foi quando eu falei: não, eu vou! E aí eu botei uma trilha de uma música do Chico, que era um instrumental bem pesado mesmo, e eu entrei como sendo locutor, um radialista, fazendo aquela voz bem fanha e lendo o meu poema. Eu ganhei o melhor intérprete do festival. E a minha poesia ficou em terceiro lugar. E eu escrevi um conto, de uma noite para o dia, meu conto ganhou em primeiro lugar. E foi assim, aí o grupo de teatro de Furnas, que era coordenada por esse departamento da Fundação Real Grandeza, eles me viram, e me chamaram para fazer uma participação, na peça de teatro que eles estavam montando. E eu fiz um contador, era para ser um cantador, tinha que ser um repentista que ia cantar, como eu não cantava naquela época, eu entrei contando. E daí foi, aí o teatro reiniciou na minha vida, fazendo os espetáculos em Furnas. Aí veio formigando, fora, depois eu entrei nessa companhia de teatro. Aí a engrenagem foi, as peças foram se encaixando, e aí ninguém me segurou mais.
1:50:55
P/1 - E nesse meio tempo, se eu não me engano, você falou que saiu de casa também. Você se mudou, foi morar sozinho? Foi morar aonde?
R - Fui morar na Tijuca. porque aí eu já estava fazendo Engenharia na Santa Úrsula, engenharia operacional civil. Eu entrei com isenção de vestibular, não fui aceito, aí no dia que eu fui lá pegar o meu resultado, tinha uma menina lá que tinha feito história, e foi aceita. Aí eu falei, pera aí, a mulher fez história, eu fiz ciências contábeis, tudo bem que ciências contábeis não é uma matemática, mas história não tem nem matemática, como é que essa mulher... Eu fiquei um mês, todo dia eu ia no reitor da faculdade, na universidade Santa Úrsula, para falar com ele. No final de um mês ele me atendeu, ele falou: olha, eu vou te dar essa vaga, mas você vai me prometer uma coisa, eu não quero ver a sua cara nunca mais. E aí foi assim que eu entrei, eu era um dos melhores alunos, por isso que eu falo, eu sou chato, no início foi foda, a matemática que você estuda na parte de contabilidade, não é a mesma na parte de engenharia. Então como eu tive várias isenções, vários créditos que eu ganhei. Eu já entrei em cálculo dois, e eu sabia lá cálculo 1. Então eu tinha que pegar professor para me ensinar o cálculo 1, para entrar no cálculo 2, no início foi uma doideira. Muita gente que conseguiu entrar, desistiu. Eu não, fui! Eu me lembro que no último período, já era cálculo 3, tinha um professor que era aquele carrasco da Universidade, prova dele ninguém passava. Nós éramos 90, acho que 90 alunos, numa prova. Eu fiquei entre os 9 melhores. Eu estudava igual o cão. E aí eu fui morar na Tijuca, porque aí eu falei, não dá para eu trabalhar em Furnas, estudar em Botafogo e morar em Caxias, eu saia de casa 6 horas da manhã, chegava em casa meia-noite e meia, todo dia, emagreci para cacete. E aí eu falei com a minha mãe, minha mãe tinha esse apartamento, que quando meu pai morreu, com o dinheiro ela comprou esse de Caxias, e esse apartamento meu pai já tinha comprado, mas estava só no tijolo. Aí mamãe foi, terminou ele, e alugou, mas aí ela me deixou morar lá, a moça entregou apartamento, eu fui morar lá. E aí eu chamei um amigo meu que casou com uma italiana, morava lá, pagava o aluguel para mim, para eu ajudar a minha mãe. Aí Morei seis anos na Tijuca, e depois eu vim para Botafogo, morava em frente, a Furnas, da minha janela eu via a minha sala. Foi assim que eu vim para Botafogo e nunca mais sai, esse bairro me acolheu, o lugar que eu escolhi para viver, para mim é o melhor bairro do Rio de Janeiro, gosto muito daqui.
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P/1 - Como que era Botafogo, quando você conheceu? Como que é o espaço dos blocos, espaço da Real Grandeza?
R – É! É muito triste passar por Botafogo hoje em dia, e ver aquilo abandonado. É a mesma coisa que você pegar o Maracanã e fechar o Maracanã, e falar: isso aqui existe o Maracanã um dia. Foi um lugar que fervilhou, efervesceu cultura, gente, pessoas. Muita gente faliu, nesse período agora, depois que fecharam Furnas. Porque era uma cidade lá dentro, eu tive oportunidade, como eu trabalhava com essa coisa de eventos e tudo, eu rodava tudo. Tem que carregar uma mesa daqui até não sei a aonde. Ah, não tem carregador? Botava na cabeça e ia. Eu sempre tive esse espírito de que tem que acontecer, então ia lá e fazer acontecer. É um lugar enorme, são quatro blocos, quando eu entrei, só tinha o bloco A e o bloco B, eu vi a construção do bloco C terminar, e vi a construção do bloco E. E é tudo muito grande, só a parte de ar condicionado, que você entra, que fica no subsolo, parece que você está numa nave espacial, é uma coisa surreal. O refeitório é uma coisa absurda de enorme, são muitos mundos, muitos corredores, a Dani sabe dizer isso, que a Dani também trabalhou lá muitos anos. E foi uma conquista, eu fui ganhando esses espaços. E uma característica minha, do meu trabalho, é transformar espaços, acho que isso aí vem, talvez da Engenharia, inconscientemente. Quando eu comecei no espaço Furnas Cultural, a gente começou com um auditório, já agora em 2003, é um rool embaixo, quando você entra para o auditório, um rool envidraçado, que a gente fazia uma galeria. Eu transformei isso, ampliei... Eu brigava cada 10 minutos, tinha que enfrentar um dinossauro em Furnas, uma empresa extremamente tradicional. Aí eu ampliei essa galeria, 3 metros, para um lado e para o outro, esse cubo de vidro. Em cima só tinha um roolzinho, eu transformei o andar inteiro, numa outra galeria. O auditório foi todo preparado para receber espetáculos de teatro, de dança de música, mas de música e teatro. A gente fez na entrada de Furnas, que são dois blocos, o bloco A quando você entra, o bloco B e o bloco A. Então tem uma entrada, que era toda de concreto, a pessoa entrava ali... Você fala Furnas, quem não conhece, é o quê? É uma empresa de energia, e de petróleo, e de cimento, é de açougue, que merda é essa? Aí eu fiz nessa parede, porque assim, você entrava direto pelas catracas, você ia passar por debaixo do bloco B, e lá no fundo era a entrada do espaço Furnas Cultural, que tinha essa galeria de vidro. Aí nesse paredão à esquerda, eu montei uma linha do tempo. Você entrava, você começava a ver as placas, as fotos, quando você chegava lá no espaço cultural, você já sabia onde você estava pisando. Que empresa era aquela, o que a empresa fazia, onde ela atuava, era uma linha do tempo, maravilhosa. Isso foi uma outra coisa física, que quase me mataram, de eu colocar uma coisa em cima daquelas paredes intocáveis. Na hora de abrir o vidro da galeria, quase me mataram também, porque imagina, mudar no projeto de não sei quantos anos, conseguimos mudar. Aí na frente, antes de chegar na galeria, tinha um lugar, que quando teve a inauguração, ali ficava o carro dos presidentes, e dos diretores. Mas no dia da inauguração do espaço cultural, fizeram uma pracinha, para receber, para fazer um coquetel. Aí quando terminou, falei: quer saber de uma coisa, deixa essa pracinha aí. E aí começou a virar um ponto de encontro das pessoas na hora do almoço, aí eu consegui tirar o carro do presidente, o carro dos diretores, neguinho querendo me comer vivo. Aí foi criada a praça Betinho, o Herbert de Souza, é o Betinho, acho que ele plantou uma árvore, até morreu essa árvore, a esposa dele foi lá e plantou novamente. A aí eu já estava trabalhando na área social, na presidência da empresa. Aí foi, montei esse espaço. Tinha um outro espaço morto também, no bloco C, eu criei uma galeria de arte só para os empregados, chamava galeria C, que a cada um mês tinha uma exposição, que eu mesmo fazia a curadoria, eu montava, foi feito isso. Tinha um espaço no subsolo, que eu montei, um espaço de recreação. Então muita coisa física, que hoje em dia você fala assim, se eu contar, esse cara é maluco. Quando eu me aposentei, eu fiquei feliz, porque a coisa andou, a coisa estava na mão de outras pessoas, mas estava funcionando. Até que veio isso, esse movimento defasto, e sepultou isso tudo. Eu falo que é a mesma coisa de você chegar no Rio e tirar o Cristo Redentor. Muitas pessoas perderam a referência. Eu quando eu passo... eu não sou saudosista não, sempre falo, a minha vida eu olho para frente. Mas eu não posso negar que eu vivi 38 anos da minha vida, dentro daquilo ali. E que eu construir coisas físicas, que beneficiavam as pessoas, e essa história foi soterrada, muito doido isso. Mas é isso, Furnas é uma cidade, o escritório central. Muitas coisas aconteceram ali, eu vi muita coisa boa acontecer, muitos eventos, muitas conquistas eu tive. Toda minha vida foi ali, de conseguir realizar mesmo, de ver que as pessoas estão felizes, você sobe, faz um show, neguinho vai lá assisti. E nunca teve privilégio, o espaço Furnas cultural, ele era gratuito, mas para você, como funcionário, assistir um Show, você tinha que entrar na fila igual a todo mundo. As pessoas no início queriam, eu sou funcionário, eu tenho direito, não, isso daqui e dinheiro público. Quando a gente criou o espaço Furnas Cultural, eu falei para o doutor José Pires, esse que era o presidente de Furnas, que era um outro anjo na minha vida. Nós não vamos usar lei Rouanet, eu não tenho nada contra a lei rouanet, é único instrumento que a cultura tem para conseguir patrocínio. Mas Furnas tem que entender, que cultura é investimento, não é gasto. Então o senhor vai me dar um valor X, e eu tenho que te dar retorno, e eu vou lhe dar retorno, eu faço questão que esse dinheiro entre no balanço, como um dinheiro que saiu, e eu vou lhe dar o retorno entrando, com retorno institucional, de imprensa. Assim, eu comecei com R$ 200.000, eu nem falava, que eu tinha amigos que era diretor do Centro Cultural Banco Brasil, de outros lugares, eu nem falava quanto que eu tinha de dinheiro. Mas com esses 200 mil, no final do ano eu já dei um retorno de 600.000, de mídia espontânea. Tinha uma agência que vinha, que me dava esse suporte de fazer a minutagem, essas coisas todas. Eu sei que no final, bicho, eu tinha um retorno de quase 5 milhões de reais, de mídia espontânea. Sabe quem era o assessor de imprensa? Eu! Eu nunca tive, porque assim, tinha uma assessoria de imprensa que era voltada para energia. Uma assessoria de cultura e outra coisa. E eu que fazia! Tinha uma estagiária, uma menina de 20 anos, teve um dia que a gente entrou no elevador, o senhor José Pedro começou a me elogiar, esse presidente, o elevador estava cheio, eu falei: Sr. José Pedro, muito obrigada, mas o senhor tem que elogiar essa menina aqui, quem conseguiu essa matéria essa semana, foi ela, ela é estagiária, e o estágio dela está acabando, olha o talento que nós vamos perder. A menina ficou branca. Eu acho que foi com isso que a gente foi criando laços de admiração e de respeito. Eu me lembro que eu consegui o Fantástico. Na época da copa do mundo, eu não me lembro que copa que foi, todos os espaços culturais fizeram exposições, sobre as copas. A gente tinha feito um edital, e quem ganho o edital, era um rapaz que tinha uma exposição sobre o futebol. É esse que a gente vai montar. E aí eu mandei, como todo mês eu mandava entrevista para todo mundo. A gente tinha tanta entrada nas coisas, que o pessoal, quando chegava lá, quando terminar a matéria, falava: até o mês que vem! Não sabia nem o que vinha, mas já sabia que tinha. Aí me ligaram do Fantástico, da Globo. “Olha, eu estou com o seu release aqui, se você pudesse mandar material mais completo”. Eu tenho uma Vespazinha, uma lambreta. Eu peguei a minha vespa, sai que nem um doido, de Botafogo até a Rede Globo. “Eu queria falar com a Luciana”. Quando ela veio, ela falou: cara, foi você que veio? Ela se sentiu respeitada, de eu ter ido. Eu falei: você tem noção do que você está me oferecendo, você está me oferecendo o Fantástico. Ela botou essas fotos da exposição, no fundo do Fantástico, só aí foram dois milhões 800 e sei lá quantos mil de mídia espontânea, num domingo, naquele horário nobre. O cara quase morreu, o artista, que não era nem conhecido aqui do Rio de Janeiro. Desse universo de que eu entrei como um ET e fui me transformei como lagarta, e fui me transformando numa borboleta mesmo, cara. E fui batendo asas e fui voando. Tive muitos problemas, como eu te falei, brigava a cada 10 minutos, porque Furnas é uma empresa extremamente conservadora, e aquela coisa... Teve uma época que tinha os militares lá dentro, então eles eram os todos poderosos. Eu bati boca lá, com um capitão, coronel, sei lá o que foi, uma vez na usina de Furnas, que ele estava viajando com a família dele no avião de Furnas, e eu estava a trabalho, tive que sair do avião, porque a família dele entrou. Menino, mas eu quase quebrei aquele aeroporto de Furnas. Meu amigo falou: você vai ser mandado embora. “Eu? Se eu for eu levo ele junto comigo, porque eu estou trabalhando eu não estou brincando”. E aí a coisa foi, sabe, o respeito vem vindo, sabe assim. Eu quando entrava na carpintaria de Furnas, era para trabalhar, quem gostava ficava, que não gostava sumia, “Coelho vem é porque vem trabalho por aí”. “Gente, vamos fazer um banco, não sei o quê...” Mas sempre com muito respeito, toda vez que eu trabalho acontecia, esses créditos todos eram mostrados, eu nunca fiz nada sozinho, desde o cara que varria, até o outro que faziam iluminação, o artista, todo mundo era muito respeitado, eu era muito respeitado, sempre fui, graças a Deus. Muita gente querendo dar rasteira, mas essa é a vida normal, a gente vai saindo fora. Mas é isso, cara, foi um grande desafio, Furnas para mim, me ensinou muito, muito. Até no meio artístico, as pessoas tinham até uma certa... porque eu era um ator, que eu trabalhava porque eu queria, porque eu gostava, eu não tinha necessidade de ganhar dinheiro com teatro, por exemplo. Eu fazia aquilo, porque eu tinha paixão, então eu escolhia a peça que eu ia fazer, isso meio que incomodava alguém que vivia daquilo. Eu não fazia aquele propósito. Eu tinha um trabalho, ninguém via esse outro lado, que eu tinha que me descabelar, em horários, na minha vida privada, para poder fazer as duas coisas. Mas eu me dava esse luxo, eu me lembro que uma vez, eu estava em Paris, eu tinha feito uma peça no Rio, com essa companhia. E saiu um edital de última hora, e o diretor me ligou, Sérgio pelo amor de Deus, a gente vai ter uma apresentação, acho que na Fundação do Progresso, dia tal. Eu só ia voltar, 10 dias depois, eu peguei um avião e vim, eu falei: eu não vou deixar o cara na mão. Aí quando eu cheguei no ensaio, era no centro cultural Sérgio Porto, quando eu cheguei no ensaio, uma dessas pessoas que me via meio enviesada, ela falou: nossa, estava onde? Estava em Paris, por acaso? Não, “onde que você estava”? “Estava viajando”! “Estava em Paris, por acaso”? “Estava, como você sabe? Estou chegando no aeroporto agora”. O cara queria se rasgar. E eu vim, porque o cara era meu amigo, o diretor, é meu amigo até hoje. Muito louco, o que eu falo para você, a coisa da vaidade. Voltando a Furnas, dentro de uma empresa, onde a atividade fim é a energia, é uma empresa extremamente machista, uma empresa masculina, uma empresa de ciências exatas. Aí entra você, com um monte de sonhos, um monte de alternativas, isso incomodava. É o que eu falava, era um dinossauro por dia. Mas foi muito rico nesse sentido, de eu ir crescendo, e muita gente vim crescendo comigo. Eu nunca trabalhei aqui, a gente tem duas favelas, tem a favela Dona Marta, que foi a primeira a ser pacificada no Rio de Janeiro, e a Tabajara. Na época do espaço Furnas cultural, todo artista que vinha expor, eu pedia que tivesse contrapartida, oficinas, que ensinassem as crianças. E aí vinha gente de tudo quanto é canto, vinha gente do exterior, não sei o que. E aí eu nunca subi o morro, porque eu falei, eu não vou fazer pacto com bandido, que é tomada pelo tráfico. Mas aí eu entrava em contato com as bibliotecas, que tinha no lugar, e as crianças desciam o morro. Então a gente tinha um projeto no sábado, que chamava, Sábado eu te conto, que começava às 11 horas e terminava meio-dia, era nessa pracinha do Betinho, em frente ao espaço cultural, tem uma igreja do lado, que a Igreja Senhor Batista, tocava as 11 baladas, começava a contação de história, e quando dava as doze badaladas. Eu me lembro que vinha aquela garota toda do morro. E anos depois, quando foi pacificado, eu subi o morro para conhecer, já não tinha mais gratificante. E as pessoas que trabalhavam recebendo, vários deles me conheciam, “ai seu coelho”. Me chamava de Seu Coelho, eu odeio quem me chame de seu coelho. “Eu não sou seu tio, seu coelho o cacete”. E já eram adultos, pai de família, mas eram crianças, adolescentes que passavam pelo espaço Furnas cultural, que tinha esse viés, sociocultural, verdadeiro mesmo. Todas as exposições tinha essa coisa da visitação, os shows a gente privilegiava a comunidade que viesse assistir os shows. Eu tenho um amigo, que acabou expondo, ele mora, ele é brasileiro, mas ele mora mais de 50 anos na Europa, já é um senhor já, ele é um artista plástico maravilhoso. E ele veio fazer uma exposição aqui, só que ele morava em Mônaco, ele trabalhava com crianças em Mônaco, que são milionários. E quando ele veio aqui, ele saiu super feliz, porque ele fez a cena, para as crianças do morro. E ele fala, cara que diferença. “Cara, você não sabe o quanto está sendo importante para a vida dessas crianças”. E ele ficou extremamente agradecido dessa oportunidade. Outros franceses que vieram também, que até hoje eu me comunico com eles. Depois teve muitos projetos também. Eu vou parar, se não eu viajo, porque é muito projeto, muita coisa.
2:10:37
P/1 - Pode falar fique à vontade.
R - Essa coisa de conhecer as pessoas, quando foi criado o espaço cultural, eu te falei, nós não vamos usar a lei rouanet, então não usamos. Aí o que eu fazia, no início tinha uma galeria, aí quando eu consegui fazer a segunda galeria, no segundo andar. Eu falei para o Doutor José Pedro, “Doutor José Pedro, vamos fazer o seguinte: o edital vai me selecionar para o primeiro andar, quer dizer, a pessoa que ganhar o edital, vai escolher se vai fazer no primeiro, ou no segundo, e no que ela não escolher, eu vou colocar um artista que eu vou fazer a curadoria, eu vou sair procurando”. E eu começava ir nos espaço. Tem um francês, que mora, Ovasan Rozenblit, ele é fotógrafo, ele fazia um trabalho com pessoal da Rocinha, com o pessoal aqui do Dona Marta, com várias favelas do Rio, de fotografia. E aí eu fui e chamei ele. Eu tinha visto um trabalho dele, no Centro Cultural da Light, e vi uma matéria no jornal. Aí falei pra ele: cara você quer vir aqui conversar comigo. Aí ele veio, eu falei: olha, eu não tenho dinheiro, eu tenho dinheiro para montar a sua exposição, eu te banco, e eu tenho para a divulgação, mas dinheiro para te dar eu não tenho não. Você topa? Ele falou: topa! Resumindo, foi um sucesso! E esse cara rodou o mundo inteiro com esses meninos, ele foi para a Europa, para os Estados Unidos, e até hoje... Hoje em dia ele faz um trabalho mais voltado para o mundo do funk. Mas foi um trabalho maravilhoso, foi até mal visto pelos traficantes do morro, porque eles viam outdoor pela cidade inteira, da exposição, achavam que ele estava milionário, que a gente estava bancando. Na verdade... Consegui matéria em tudo que você possa imaginar. Um outro francês também, que me mandou o material, e eu achei aquilo lindo, porque era uma coisa que falava sobre energia, sobre luz. Por quê a energia é importante na sua vida? Por que você quer e por que você não quer energia? E aí ela me mandou umas fotos, eu falei: gente, o Brasil é muito diverso, olha só essas fotos, Nordeste, não sei o que. Aí eu liguei para ele, ele falou: não, essas fotos são do Rio de Janeiro. Falei: o que? Era uma coisa de você chorar de ver aquilo, uns lugares, que eu falei: isso é no Rio de Janeiro? Ele: é! E ele já tinha ido na Eletrobras, e tinham dado um pesão na bunda dele, nem se interessaram. E falei: cara, vamos fazer essa exposição. O que era a exposição, ele viajou o estado do Rio tudo, então ele conhecia a pessoa, e quando ele tirava foto da pessoa e do habitar da pessoa, da casa. E a pergunta era, porque que você quer luz, ou por que você não quer luz? Então eram, acho que 18, ou 20 painéis, lindos, enormes. Tinha de uma senhora de 80 anos, uma caixinha de fósforo, com uma velinha acesa, ela falava: eu não quero luz. “Por que a senhora não quer luz”? “Eu não tenho como pagar, para que vocês vão me dar uma coisa que eu não posso pagar? Vai ser um problema na minha vida, então eu tenho tudo que eu preciso aqui. E era um barraco, numa favela, dessas mais miseráveis que você possa imaginar. Era um dos painéis mais bonitos. Tinha um outro, de um casal, que era caseiro de uma família rica, em uma casa em Paraty, Paraty ou Angra, eu não sei. Aí tinha foto do interruptor de luz, e em cima tinha uma vela, um cotoco de vela. “Por que está esse cotoco de vela”? “A gente só pode acender a luz, quando os donos da casa estão aqui, quando eles não estão, a gente usa vela”. Olha que loucura, cara. E essas histórias assim. Eu sei que depois, essa exposição desse menino bombou de uma tal maneira, tanto que Eletrobras, lançou aquele programa, Luz Para Todos, e foram atrás dele. E ele rodou o Brasil todo. Esse cara é super premiado, ele já ganhou vários concursos de fotografia, mora na França, é casado com uma brasileira. Enfim, foi outro projeto... foram muitos projetos. Nelson Sargento, outro, Nelson, sambista que morreu há pouco tempo. Eu tenho aqui, é porque aqui não dá para ver, esse quadro aqui, é do Nelson Sargento, ele me deu, tem uma dedicatória dele aqui, “ao amigo Sérgio Coelho”. Me deram uma carteirada assim, eu fiquei puto na hora. “Vai ter que fazer uma exposição do Nelson Sargento”. “Mas ele não está no edital”! “Mas tem que fazer, não sei porque...” Bom, como era o Nelson Sargento, tá, eu vou fazer. Ai eu montei uma pintura naif, uma coisa bem singela e tudo. Aí montei, e eu conheci o Nelson Sargento, ele já tinha 80 anos na época. Eu estava em Goiás, vendo um outro projeto, de música erudita, e me ligaram, “olha, a Rede Globo vem amanhã aqui, 7 horas da manhã”. Eu estava lá em Goiânia, peguei um avião, vim que nenhum um doido. Aí o Nelson já estava também, era 7 horas da manhã. “Oi Nelson, tudo bom”? “Tudo, né meu filho”! Com aquele jeitinho dele. Aí a repórter da Globo chegou, “ai seu Nelson, que bom”. Ele falou: minha filha, eu vou te falar uma coisa, para você nunca mais esquecer, 7 horas da manhã, 8 horas, é hora de música está dormindo, indo para a cama, não é hora de músico está acordado, eu já tenho 80 anos, e o músico à noite a nossa vida, então nunca mais faça isso, eu vim porque o Sérgio Coelho me chamou. A mulher ficou tão sem graça. E aí eu montei a exposição dele, foi um sucesso, e ele falou para mim, eu nunca fui tão respeitado, como eu fui aqui, por você e pelas pessoas que trabalham contigo. Realmente foi uma exposição muito bonita. A mulher dele também é uma pessoa muito bacana. Aí ele me deu, ele falou: eu faço questão de te dar esse presente. Me deu, eu tenho autografado por ele, e ele faleceu. Aí anos depois eu encontro com o Nelson, já com seus 90 anos, num show que eu estava indo, ele estava entrando como convidado, eu falei: oi Nelson, lembra de mim? Ele falou: não! Eu falei: seu Nelson, Sérgio Coelho, lá de Furnas. “Ah meu filho, desculpa! Pelo amor de Deus! Tem tanto tempo, eu já estou velho, e aí como você está”. Eu achei a espontaneidade dele, não, mas quando eu falei, na mesma hora ele lembrou. E foi uma exposição muito boa. E isso assim, vai indo. Tem uma cantora, Daúde, também, que é uma cantora maravilhosa, ela é baiana, inclusive ela gravou uma música linda com ele, tem um clipe dela, com o Nelson Sargento. E eu fui com a Daúde fazer um som em Itumbiara, levei a banda dela. E a Daúde é uma cantora performática, se veste super bem, uma mulher super antenada, mas totalmente fora da casinha, assim, daquele pessoal do interior. Chegou lá, ela fez um showzasso, o pessoal ficou tudo assim, olhando. Aí quando terminou, a gente fez um coquetel, as pessoas, “nossa, gostamos muito, mas você não não canta assim, uma ngela Maria, você não canta uma música da Alcione”. Que era tudo muito para frente, para o povo. E aí nós voltamos de ônibus. A banda dela voltou de avião. E eu falei Daúde, vamos ficar mais uns dois dias aqui, depois a gente volta de ônibus para São Paulo de lá a gente pega... Eu sei que nos perdemos, o ônibus chegou, era 11:30 da noite, o leito. Nós chegamos lá 11:15, o ônibus já tinha ido embora. Aí saímos de carro pela estrada, conseguimos pegar o ônibus, olha, foi um inferno aquela viagem, mas até hoje a gente lembra disso. E a Daúde é uma cantora, ficou minha amiga até hoje. Isso eu vou carregar comigo, eu não tenho inimigos, uma coisa que eu sinto às vezes, é que quando você está evidência, você tem que estar muito atento para saber quem é que realmente está se aproximando de você, porque quer construir uma coisa, ou se é por interesse. Porque assim, eu sempre tive essa relação boa, porque eu sou um artista, eu como artista, gosto de ser bem tratado. Então por isso que eu sempre criei um ambiente, para que os artistas fossem muito bem recebidos. E hoje em dia eu vejo que o retorno não é recíproco. Depois que eu sai de cena, daí ficou o artista, não é mais o fodão de Furnas, o promotor cultural, oi sei lá o que eles veem, mas ficou o artista. Mas isso também, eu já sabia, mas num grau um tanto quanto elevado. Eu tenho um amigo meu, que é do Centro Cultural Banco do Brasil, ele foi diretor, se aposentou agora. Eu sempre falava para ele, cuidado cara, porque quando você sair desse pedestal, o mundo aqui embaixo é mais raso, aí você vai ver que o buraco é mais embaixo. Mas assim, nada disso... é uma realidade, eu comecei a trilhar outros caminhos, fazer cinema, virei curador de exposição, virei parecerista de concursos de dramaturgia. E ele saiu conhecendo outras coisas, outras pessoas e essas pessoas que meio que me descartaram, quem está perdendo são elas, não sou eu. Porque vira e mexe eu estou... agora eu estou fazendo meu projeto de música, que chama Canja de Coelho, que sai toda sexta-feira, toda sexta-feira eu publico um samba cantando. Eu comecei com seis ambas, eu Já gravei 75, nessa pandemia. Então sexta-feira eu já tenho quase 500 mil visualizações, dos meus sambas. Já saiu matéria no jornal, televisão, cacete a quatro, e vamos embora, a vida é essa.
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