Do que me contam de quando nasci é que era uma menina chatinha e pequenina. Logo ao nascer, não aceitei o leite materno de minha mãe e nem outro tipo de leite. Começou aí o desespero da minha mãe: o que me oferecer. Meu pais nordestinos (tenho muito orgulho deles), começaram a me dar caldo de feijão e sucos de frutas, as que tínhamos e, geralmente, muito suco de laranja. Aos poucos, as coisas foram melhorando e fui comendo outras coisas que me ofereciam, mas o leite nem pensar. Todas as vezes que me davam, vomitava tudo. Conta os meus pais que com o passar dos anos, mais ou menos entre seis e sete anos (isso já me recordo melhor), ficava várias vezes no café da manhã debaixo da mesa, tomando meu suco ou meu caldo de feijão para não olhar o leite. O tempo passou e fomos embora para o Ceará. Quando chegamos lá eu não comia nada e meu avô logo sugeriu que me deixassem com fome, porém, ele me dava umas balinhas de mel de abelha escondido. Ah, meu vozinho! Quantas lembranças do pai do meu pai, fazia isso com todos os netos para irritar as noras e falava “Vocês não sabem criar filhos, deixa essa neguinha descalça pisar na terra”. Mal sabiam que ele era o verdadeiro, inteligente e experiente nessa história toda. Um belo dia, às cinco da manhã, eu já acordada assim como todos da casa, fui para o curral com meu avô que tirou o leite cheio de espuma no caneco e eu fiquei olhando aquilo sem saber o que era. Ele bebeu e falei que queria, também. “ Pois, minha neguinha, isso aqui é suco”, e eu tomei tudo o que tinha no caneco. Não era muito, mas tomei e gostei. Essa história é contada muito na família. Meus tios falam até hoje que era porque a “neguinha” queria suco da vaca. Desde aquele dia até hoje, tomo leite e não sinto nada. E meu vozinho, por muitos anos repetia “Não sabem criar essas crianças de Sum Paulo (SÃO PAULO). Hoje, com 95 anos e lúcido, cresci ouvindo essa história por...
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Do que me contam de quando nasci é que era uma menina chatinha e pequenina. Logo ao nascer, não aceitei o leite materno de minha mãe e nem outro tipo de leite. Começou aí o desespero da minha mãe: o que me oferecer. Meu pais nordestinos (tenho muito orgulho deles), começaram a me dar caldo de feijão e sucos de frutas, as que tínhamos e, geralmente, muito suco de laranja. Aos poucos, as coisas foram melhorando e fui comendo outras coisas que me ofereciam, mas o leite nem pensar. Todas as vezes que me davam, vomitava tudo. Conta os meus pais que com o passar dos anos, mais ou menos entre seis e sete anos (isso já me recordo melhor), ficava várias vezes no café da manhã debaixo da mesa, tomando meu suco ou meu caldo de feijão para não olhar o leite. O tempo passou e fomos embora para o Ceará. Quando chegamos lá eu não comia nada e meu avô logo sugeriu que me deixassem com fome, porém, ele me dava umas balinhas de mel de abelha escondido. Ah, meu vozinho! Quantas lembranças do pai do meu pai, fazia isso com todos os netos para irritar as noras e falava “Vocês não sabem criar filhos, deixa essa neguinha descalça pisar na terra”. Mal sabiam que ele era o verdadeiro, inteligente e experiente nessa história toda. Um belo dia, às cinco da manhã, eu já acordada assim como todos da casa, fui para o curral com meu avô que tirou o leite cheio de espuma no caneco e eu fiquei olhando aquilo sem saber o que era. Ele bebeu e falei que queria, também. “ Pois, minha neguinha, isso aqui é suco”, e eu tomei tudo o que tinha no caneco. Não era muito, mas tomei e gostei. Essa história é contada muito na família. Meus tios falam até hoje que era porque a “neguinha” queria suco da vaca. Desde aquele dia até hoje, tomo leite e não sinto nada. E meu vozinho, por muitos anos repetia “Não sabem criar essas crianças de Sum Paulo (SÃO PAULO). Hoje, com 95 anos e lúcido, cresci ouvindo essa história por muitos anos. Ele adorava levar a gente para o rio e jogar água em todos nós. Muito brincalhão , sempre contava as histórias da lua, todas as fases da lua. Ele repetia tudo: o que era lua cheia, o que era lua nova, o que era lua minguante e lua crescente. Na enorme casa de farinha que trabalhavam a família do meu avô, era o local preferido de contar histórias e brincar com os netos de cobra cega. A minha avó sempre de cara feia não gostava das meninas netas, só dos netos, afinal era o homem para ajudar na roça. Vivia dando ordem nas noras para fazerem as coisas, mas sempre muito responsável e caprichosa, ensinou várias netas a fazerem crochê. “Coisa de menina” - dizia ela, e acabava brigava comigo, porque eu queria mesmo era correr e jogar bola. Fiquei muitas vezes de castigo, pois não queria fazer crochê e nesses momentos lembro perfeitamente que sentava próximo ao alpendre, mas não ficava quieta, ia pegando as pedrinhas e jogando e ela reclamando, me chamando de fut, de Michela. Antes, não entendia porque daquela chatice, mas hoje entendo que naquela época eram bem diferente as coisas. Mulher tinha papel definido : era casar, ter filhos, aprender a cozinhar e cuidar do marido. Essa época foi a melhor da minha vida, até meus dez anos, mais ou menos. Depois voltamos para São Paulo com meu irmão pequeno. Meus pais trabalhavam e comecei a entender a minha avó, as responsabilidades foram chegando a cada dia e fui percebendo que estava crescendo. Ah, como queria voltar no tempo, lá no sertão do Ceará. Meus pais nunca foram de brincar comigo e com meu irmão. Eles compravam brinquedos, porém brincar não me recordo. Nunca faltou nada em casa, só os momentos de brincadeiras. A música cantada pela minha mãe para dormirmos era “A cuca vai pegar vocês”. Também ouvi muito ela dizer que o “véio do saco pegava criança que não obedecia”. Criada praticamente como a minha avó para seguir regras e criar os filhos, por muitos anos minha mãe foi distante. Sempre conversava e aconselhava, mas não era carinhosa, era brava. Meu pai era o que mais trabalhava, às vezes em dois empregos. Para que não atrapalharmos o sono dele, minha mãe vivia dizendo “Deixa seu pai dormir que ele está cansado!”.Eu e o meu irmão assistíamos muita televisão, quer dizer, sempre ele porque era o caçula e tínhamos apenas um aparelho. Agradeço muito a Deus pelo o privilégio de ter o meu avô na minha vida! Penso que, se tivéssemos continuado lá no Ceará, a minha infância e a do meu irmão teria sido ainda mais maravilhosa. Mas, pelo menos, tenho alguma infância feliz para contar para meus filhos e para relembrar com carinho.
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