Programa Conte Sua História
Depoimento de Lincoln Fabrício
Entrevistado por Denise Cooke e Carol Margiotte
Curitiba, 23 de agosto de 2018
Entrevista número PCSH_HV658
Realização: Museu da Pessoa
Revisado e editado por Bruno Pinho
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P/1 - Boa tarde, Lincoln, muito obrigada por estar aqui contando a sua história para a gente. Em primeiro lugar, gostaria que você falasse o seu nome completo.
R - Boa tarde. O prazer é todo meu. Lincoln Helder Zambaldi Fabricio.
P/1 - A data e o local do seu nascimento.
R - 27 de março de 72, Curitiba, Paraná.
P/1 - Você sabe alguma coisa sobre o dia do seu nascimento?
R - Acho que um dia muito feliz. Horrível começar falando assim. Tenho que dizer onde vivem meus pais. Tem muita história, já que você falou do meu nome, eu fiquei pensando no meu pai. Meu pai namorava minha mãe e falava que se um dia fosse ter um filho homem que se chamaria Lincoln e virou um nome composto, Lincoln Helder, meu pai gostava de duas grandes personalidades, e ainda gosta, Abraham Lincoln e o bispo Dom Helder. Então, ele juntou os nomes e nasceu Lincoln Helder.
P/1 - Qual é o nome dos seus pais?
R - Antônio Gerson Fabricio, conhecido como Fabricio. Meu pai pouca gente conhece, Toni na família, um apelido mais carinhoso, mas ele é Fabricio e minha mãe Elenir Terezinha – ela vai me odiar por eu estar falando, você edita isso depois – Zambaldi Fabricio.
P/1 - E você sabe como eles se conheceram?
R - Birigui, interior de São Paulo. Birigui ficou famosa depois. O meu pai trabalhava na farmácia do irmão mais velho da minha mãe, foi assim, na rua, eu acho que ela é alta e a primeira coisa que ele fez foi pedir para um amigo passar do lado daquela moça e ver se ela era mais alta do que ele, ele não teria se aproximado acho se ela fosse mais alta. Isso eu nem sei se eu podia falar. Estou brincando. Foi assim, em Birigui, meu pai veio estudar aqui em Curitiba, passou no vestibular na PUC e virou um grande professor. Para poder se manter teve que dar aula, ele entrou em uma universidade particular e começou a dar aula para poder pagar o curso e começou a dar aula em um cursinho. Pegou toda a fundação do grupo Positivo, primeira aula acho que foi ele que fez também e ficaram namorando a distância, acho que longos nove anos parece e acabaram se casando e minha mãe veio morar aqui, então, eu já nasci aqui e minhas irmãs são todas curitibanas, mas a minha raiz, pelos meus pais, é do interior de São Paulo, de Birigui.
P/1 - Me fala um pouco dos seus avós.
R - Meus avós são da região do interior de São Paulo, tem uma cidadezinha menor do lado chamada Coroados, são imigrantes de Italianos, meus oito bisavós são italianos, família que veio da Itália e camponeses; trabalharam no campo a vida inteira, acho que meus avós nasceram nos sítios lá da região, bem italianos, colônias e italianos e a grande diferença que eu vejo é que meu avô Reinaldo Fabricio os nomes já aportuguesados, acho que meu sobrenome original tinha dois zes, era Fabrizzi e depois meu bisavó Domingos Fabrizzi, foi aportuguesada, mas um grande mérito da educação, meu avô resolveu que os filhos iriam estudar, então, ele foi o único dos irmãos, família grande, seis, minha avó também, doze que iam todos juntos e foi quando ele falou, meu avô, pai de três filhos, meu pai mais meu tio que faleceu e uma tia e ele colocou os três para estudar, não vamos sair do sítio. Dos irmãos foi o único que fez isso, então, acho que o grande mérito da educação por ter investido na educação dos filhos, uma pessoa sem recurso, na lavoura até os 50 anos, depois os filhos puxaram o pai e a mãe para a cidade, primeiro do sítio para Birigui, para uma lanchonete, depois para uma lanchonete restaurante e depois foram vindo para o Paraná e depois meu avô veio morar um tempo aqui Ponta Grossa, Jacarezinho, mas seguindo um pouco os filhos, depois os netos para ficarem próximos, junto com a minha avó, Maria Pugina Fabricio.
P/1 - E você frequentava a casa deles quando você era pequeno?
R - Muito.
P/1 - Que lembranças você tem disso?
R - As melhores do mundo. Colo de vó, minha vó era italiana. Do lado do meu pai as avós, meu avô materno eu convivi pouco, faleceu eu era pequeno, era motorista e eles foram pessoas dóceis, pessoas especiais com relação a doçura mesmo, minha avó tem, do lado paterno, um lado musical que eu acho que eu me interessei, tocava autodidata acordeom. Minha herança ainda tenho o acordeom dela que um dia vou aprender a tocar, eu brinco, mas eu não sei tocar como ela tocava. Eu morava em Curitiba e eles moravam no interior de São Paulo, depois do Paraná, então, minhas férias eram na casa deles, era aquele convívio diário de férias, aquela coisa mais gostosa do mundo de almoçar e dar duas horas: ‘‘o lanche está servido’‘ e depois era aquela comida, lanche, um carinho especial, muito gostoso. Minha avó materna, que tive mais contato, mãe da minha mãe, a gente chamava de vó Preta, dona Leonor e ela também italiana pilhada, toda elétrica, apesar de achar que minha mãe era elétrica acho que minha mãe herdou muito dela isso daí. Então, pessoas dóceis, pessoas de uma vida simples, regada de amor, de relacionamentos, de presença, de carinho, de colo, muito saudável, uma lembrança muito gostosa, carinhosa.
P/1 - Como eram esses almoços?
R - Alegres, a mesa era sempre aquilo, a memória da mesa era muito forte, congregação da mesa era muito forte, isso aí dos dois lados sempre vivi muito bem isso e grande elemento que é a família nesse sentido é uma coisa que se perdeu hoje, de certa forma, o idoso está um pouco, o mundo moderno estragou um pouco isso, muito talvez o convívio. Eu tive isso na casa dos meus pais sendo pessoas do interior, mas na cidade grande, Curitiba, minha lembrança era um apartamento sem trancar a porta, os amigos entravam e meus pais, as vezes nem batiam, entravam e sempre tinha uma comida, sempre tinha um lanche ou era para assistir o jornal nacional junto, ver a novela, tomar um chimarrão, um café, uma infância, uma história muito gostosa de convívio mesmo na infância, que de certa forma vejo que meus filhos tiveram muito também esse contato com os avós, muito saudável, acho isso fundamental.
P/1 - Como era a casa da sua infância?
R - A casa cheia de amigos, amizade é uma coisa que me lembra que meus pais são pessoas queridas pela amizade, então, são pessoas que são grandes amigos. A imagem da minha casa, vivi sempre em apartamento, que é algo menos privativo até, mas um convívio muito simpático, muito agradável mesmo, era um privilégio viver essa infância, prédio de uma ala nova de Curitiba onde estava sendo criado o primeiro colégio Positivo onde meu pai trabalhou e a gente foi morar próximo dessa escola, ia a pé para a escola, crianças pequenas, voltava correndo para ver o Sítio do Pica Pau Amarelo que já tinha começado, tinha que sair voando para chegar para ver e a casa sempre cheia de amigos. Então, o prédio acabou sendo habitado por casais com filhos pequenos por causa dessa escola, era um prédio que tinha 30 crianças, a brincadeira, o brincar era muito agradável e os pais se relacionavam feito amigos, tinham um convívio muito saudável.
P/1 - Você tem irmãos?
R - Tenho duas irmãs.
P/1 - Como era a sua relação com as irmãs?
R - Eu tenho uma irmã mais próxima, a Elen Carisi, depois meu pai sentiu a obrigação de colocar um segundo nome nelas, tem a Larissa Fernanda, que é minha irmã caçula e que teve uma diferença de idade um pouquinho maior, então, eu pude cuidar mais da minha irmã caçula e a Elen tem menos de dois anos de diferença comigo. Grandes irmãs, é uma fase boa, foi uma infância muito próxima, muito unida, muitos amigos em comum que se fala hoje todos os dias, moram aqui também. Sempre essa coisa do irmão, homem mais velho gera um alvo de proteção que elas tiveram e de certa forma também um ciúme no sentido bom da palavra de ter um irmão que também cuidava. Foi gostoso, bem gostoso.
P/2 - Como eram as divisões dos quartos?
R - No começo eu tinha um quarto com minha irmã do meio, depois quando veio a Larissa, que é a pequena, minha mãe juntou um quarto para mim e um quarto para as duas, o quarto dos meus pais e uma sala de TV. Um apartamento de quatro quartos, então, tinha essa divisão. Meu quarto acabou sendo um quarto sozinho, pela questão dos meus irmãos. É divertido a bagunça das crianças, mas é diferente hoje em dia, é tão diferente isso, esse mundo virtual, os brinquedos, as brincadeiras, brincar nos quartos, a gente ia muito fora de casa, então, o quarto era um local de estudo e de dormir; as brincadeiras eram mais fora, mesmo morando em prédio, a gente vivia muito na rua, brincava de esconde-esconde na rua, via projetos grandes do Jaime Lerner que começou as vias de expresso, os ônibus. Então, a gente brincava de se esconder ali, brincava de bicicleta, vivia no meio daquela obra, de uma forma muito boa, sem violência urbana, mesmo em Curitiba, uma cidade fria, chuvosa. Peguei a época do ET, da bicicleta da Cross, eu saía para andar, traquinagens de criança de pegar carona no expresso, de subir, eu morava em uma rua de descida e para subir sempre tinha um pouco de preguiça, tinha que se agarrar no ônibus, que era um perigo, e brincadeiras da mais diversas de traquinagens, mas a rua era o nosso ambiente de diversão.
P/2 - Queria que você descrevesse como era pegar carona.
R - Perigoso. Eu fazia umas coisas, andava em cima de elevador, porque prédio você inventa umas coisas diferente para brincar, jogar aviãozinho pela janela, outras coisas também, mas era as artes de criança. Eu fui arteiro, mas a brincadeira era fazer arte nos sentido infantil, era um perigo, os motoristas paravam, alguns passavam óleo no para-choque para que a gente tentasse pegar e escorregasse a mão para gente não poder se agarrar porque era um perigo você estar do lado de uma roda, os ônibus gigantes. Imagina uma criança de 10 anos, 12 anos de idade, mas a gente andava na caçamba de carro, dirigia motoneta, mobilete, essas motinhos na rua, sem placa, era tudo errado, mas era um mundo mais leve. Existia uma vida, a gente vivia de forma diferente, eu vivia muito na rua, as brincadeiras todas eram muito mais divertido, sem dúvidas, morar na praça, fazer barraca na praça, tudo de uma forma divertida. Perigos lógicos de você descer uma ladeira grande com um skate, eu fraturei o braço umas cinco vezes, sem ser muito levado, mas era o azar de cair. Esconde-esconde de subir em telhado, entrar no expresso para se esconder do amigo, ir até o próximo ponto, voltava e o coitado tava lá todo cansado de ficar contando, eles faziam, os motoristas deixavam. Hoje a vida ficou mais chata nesse sentido, é uma nostalgia, tempos modernos. Se bem que as pessoas se divertem com tablets, cada um na sua hoje em dia.
P/1 - E qual a sua primeira lembrança da escola?
R - Primeira lembrança da escola é aqui perto, em uma escola primária, eu fui chamado para cantar o hino nacional, eu lembro que eu tremia, uma lembrança de ‘‘entra aí no palco’‘. Não era um palco, era uma escadaria, essa é minha primeira lembrança, a escola tinha uma roupa, uma bata por cima do shortinho, da camiseta, lembro que tirei para cantar o hino para os pais; devia ser alguma homenagem ou 7 de setembro, eu era meio pequeno e essa é uma lembrança que eu tenho da escola. Era dentro aqui do círculo militar, eu chamava de escola do Pato Donald porque o símbolo era esse, mas não sei o nome da escola. Eu tive uma situação pitoresca na escola porque eu acabei, acho que pela altura, me alfabetizaram um pouco mais cedo ali, me mudaram de sala por causa da altura, provavelmente, e eu fui para uma sala onde estavam os maiores, só que acabei ficando alfabetizado. Quando eu ia para a primeira série, para o pré, eu já estava alfabetizado e lembro que meu pai fez um processo na secretaria de educação, meu pai sempre foi ligado a ensino, professor, ele não achava justo eu repetir o ano, achava que os amiguinhos iam sair da escola e eu ia ficar ali, aí ele fez o processo, tinha 5 anos e consegui ir para a primeira série, fiquei sempre um pouquinho adiantado, fiz um teste, errei LH, que não tinha aprendido ainda palavras com LH, me lembro que foi na biblioteca pública o teste, em uma tarde, eles viram que eu estava alfabetizado para entrar na primeira série e eu acabei ficando sempre o baby da turma, tiveram suas vantagens e desvantagens, mas hoje em dia muita vantagem, mas na época era uma coisa meio tensa de ser o mais novo da turma, isso para um menino é muito ruim. Eu adoraria ser mais novo hoje, mas na época achava péssimo falar que eu era 72. A minha turma era sempre 70, 71 e eu era 72.
P/1 - Tem alguma situação marcante com relação a isso para você?
R - Teve essa história da oficina nacional que eu cantei, eu não tenho nenhum registro disso, não sei nem o que eu cantei, porque eu não sei cantar o hino nacional inteiro hoje, talvez eu erre a letra, mas na época eu devo ter cantado. Não sei na época era bonitinho a voz ou o errado que era bonito, fato que eu me lembro disso e me lembro do meu avô paterno, ele morava perto, tinha uma mercearia e me foi buscar, ele ria muito porque um garoto me empurrou na piscina, molhou toda a minha roupa, eu passei do lado da piscina, ele me empurrou, eu caí e o problema não foi esse, foi ter que ficar sem roupa e ter vestido roupa de menina, era uma calça que parecia uma fusô, uma blusinha que não era minha roupa. As professoras juntaram o que tinha no achados e perdidos e me vestiram e meu avô foi me buscar e eu estava chorando que eu não queria ir embora a pé e eu fiz ele pegar um taxo para me pegar porque eu não queria ir embora a pé, estava com vergonha e com roupa de menina, essa é uma segunda lembrança engraçada. No primário já tinha um dia, isso me marcou todos os anos, que era o segundo dia de aula, o professor de educação física separava a turma em meninos e meninas, as vezes não separava, e fazia uma entrevista para ver dados de altura, peso e eu lembro que você era chamado para ir lá na frente pesar e medir e eles falavam sua data de nascimento, esse dia eu não queria ir para a escola porque eu não queria falar que eu era 72, algumas vezes eu menti porque tinha vergonha. Eu era mais novo, então, isso para mim era uma coisa que marcou. Lógico que isso fez com que depois eu acabei colhendo alguns frutos porque o baby tinha uma coisa de ser protegido quando chegou na época de bolo vivo, as meninas sempre me chamavam, tinha uma coisa meio face baby e eu fui sempre um bom aluno, então, isso inverteu. Quando entrei na faculdade com 16 anos isso teve um auge e eu comecei a achar interessante, mas até, então, eu tinha vergonha. A parte física também, meninos com pelo na perna, barba, a voz mudando, se bem que pelo na perna eu nunca tive até hoje, mas isso é uma coisa que me marcou, eu me achava muito mais infantil.
P/1 - E dançar o que?
R - Bolo vivo é festa de 15 anos que a menina escolhe um menino para fazer a valsa, ela dança com o pai e depois ela dança com o amigo, geralmente o paquera e eu sempre fui muito chamado para isso, adorava, eu me achava meio pavãozinho nessa hora e isso começo a: ‘‘legal ser mais novo, sou mais paparicado’‘.
P/1 - Você usava terno nessas festas? Com era esse ritual todo de vestir termo?
R - Era terno, alguma eram black tie, um smokezinho. Eu tinha altura, então, eu parecia, mas eu era super novo e isso gera uma cascata, mas eu acho que tem uma inocência da idade, você ter um ano a menos faz uma diferença. Depois, lógico, eu me irritei porque as mulheres sempre querem caras mais velhos, então, teve essa história. São lembranças gostosas da infância. Talvez até de uma maneira eu sempre gostei de estudar, sempre foi uma coisa fácil, então, acabei tendo também algum destaque, aquelas coisas de aluno que se cobra, coisa que não pode mais hoje, mas acho uma bobagem isso de não poder falar que é o primeiro da turma. Sempre foi saudável, existia uma competição boa ali. Hoje em dia as coisas estranhas de educação não sei se eu concordo.
P/1 - Nessa época o que você queria ser da vida?
R - Astronauta, à primeira imagem todo homem quer ser astronauta. Jogador de futebol, eu nunca fui muito ligado a futebol, então, eu gostava de jogar bola, mas o futebol não me prendia. Música sempre me fascinou, então, vinha o Kiss para o Brasil, eu era moleque, eu queria ser aqueles caras pintados. Tinha uma coisa, essa fase da criança que quer ser algo além, olhar as estrelas, então, a primeira imagem de querer ser foi essa imagem mesmo, talvez até alimentada pelos professores porque quando você fala que quer ser astronauta, você ser um bom aluno facilita, então, fui caminhando para o lado da engenharia porque era o curso mais difícil, as pessoas alimentam: ‘‘já que você é um bom aluno, então, faça uma coisa mais difícil’‘. Aviação uma coisa que eu gosto muito, adoro voar, como eu falei do filme do ET, esse mundo fora das terras ou das galáxias, estrela, é uma coisa que me fascinava muito, cosmos.
P/1 - Você lembra quando foi a primeira vez que você voou?
R - Lembro bem. Começou uma sementinha da medicina na minha vida em uma situação em que fomos levar meu avô e minha avó paternos para visitar uma netinha que tinha nascido em Ijuí, do meu tio que faleceu, irmão do meu pai, e nós fomos buscá-los de carro até Ponta Grossa, meu pai emprestou o carro do meu tio que tinha um carro melhor para levá-los, então, meu pai, minha mãe, meus avós, eu e uma das minhas irmãs, ia ser uma viagem longa para o Rio Grande do Sul e chegando lá a minha vó, em uma lanchonete, ela vai descer de um banquinho, ela roda, tem um degrauzinho, ela pisa em falso já por ter uma idade, esclerose, ela cai e fratura o quadril, que é uma fatura clássica feminina; nós estávamos lá naquele lugar difícil, como eu tinha esse meu tio que é médico em Ponta Grossa, anestesista, ele falou: ‘‘ela vai ter que vir para cá, vai ter que provavelmente operar’‘. Na época colocaram só um gesso na cidade, ela foi com muita dor até Ijuí e eles colocaram uma tala para imobilizar o quadril e ela tinha que voar até Ponta Grossa. Meu tio e meus pais fretaram um aviãozinho pequenininho, piloto, eu, minha mãe e minha vó e eu fui para voar até Ponta Grossa com o piloto, com injeção para se minha vó passasse mal, tinha que fazer uma heparina, alguma coisa assim; eu tinha 11 anos e fui com essa missão de trazer meus avós e com o piloto para aterrissar em Ponta Grossa e ela foi direto dali para o hospital operada, fez uma prótese de quadril grande. Foi um aviãozinho baixo. Eu vou corrigir porque acho que meu pai nos levou para essa experiência porque eu gostava tanto dessas coisas do céu, do astronauta, depois colocando o voar como sendo o grande barato que eu fazia minha mãe me levar no aeroporto aqui. ‘‘Hoje à tarde não tem nada, mãe, vamos no aeroporto’‘ e minha mãe me levava lá várias vezes, eu tenho fotos disso, ia tirar foto com uma máquina que meu pai tinha me dado, dos aviões, gastava um filme lá fazendo foto, eu gostava muito disso. Meu pai nos levou para Foz do Iguaçu visitar as cataratas e eu acho que essa viagem foi muito próxima dessa outra. Primeira vez que eu voei foi com meus pais e minha irmã para Foz do Iguaçu para visitar as cataratas, foi o voo Transbrasil talvez, Varig, não me lembro a companhia e eu voltei. Em seguida teve esse episódio e eu voei com o piloto, lembro que perguntou se eu já tinha voado e eu falei, ele falou: ‘‘não, você não voou. Esses aviões grandes não é voar, voar, mas esse avião aqui’‘, nós decolamos em estrada de terra e aterrissamos no aeroclube, não tinha aeroporto em Ponta Grossa era o aeroclube. Então, eu achei a experiência de voar fascinante, tanto que eu me inscrevi para a brevê já e por questões da vida acabei não fazendo, mas é uma coisa que eu tenho vontade. Depois com amigos aqui eu saí junto para pilotar, alguns voos com aviões menores, a emoção de voar eu adoro, então, foi uma experiência rica.
P/1 - E você disse que isso plantou a sementinha da medicina.
R - O cuidado com meus avós, eu era o neto mais velho e estava lá, meu pai não podia ir, então, fui eu, fui de copiloto porque não podia colocar o pé, depois o piloto brincava comigo como se estivesse pilotando, lógico que eu não estava, eu acho que estava, até hoje. Temporal, chuva, um voo base, você faz um voo bem bacana, avião pequeno tem essas vantagens. Minha vó, meu avô eu arriscaria dizer que tenha sido a primeira vez deles de avião, provavelmente. E o cuidado deles, depois teve um episódio em que chegando nesse ponto da medicina acho que ali teve uma coisa de cuidado, de aplicar uma injeção. Meu pai me incentivava porque ele trabalhou em farmácia, aplicava muito bem injeção, então, desde pequenininho ele me ensinou a aplicar injeção, eu tenho foto disso, cinco, seus aninhos e ele me ensinando a dar injeção nele. Talvez hoje ele fosse preso, mas foi uma delícia. Ele tentou fazer medicina, meu pai teve essa paixão até porque ela foi desencadeada pela própria farmácia que ele trabalhou durante anos. Eu me lembro do meu pai na minha infância, quem fazia injeção no prédio era meu pai, furar orelha todas as minhas amigas da minha idade quem furou a orelha foi meu pai, essa habilidade dele com isso, até hoje ele aplica muito bem. Eu já tinha esse lado contaminado prático de fazer algo de injeção, mas houve uma história muito triste que foi o acidente do meu pai onde faleceu a minha tia, irmã do meu pai, e ele ficou acamado em Ponta Grossa, onde morava esse meu tio médico que tinha uma estrutura, um apartamento para ele e esse meu tio era o meu xodó, ele teve três filhas meninas, depois ele sofreu esse acidente onde faleceu minha tia e depois ele se casou novamente e teve mais uma filha menina e depois veio a falecer em um acidente de moto com 40 e poucos anos. Ele sempre quis ter um filho homem, então, eu fui o filho homem que ele não teve. Ele era do serviço militar, engenheiro também, então, todas as habilidades de espionagem, de serviços secretos, coisas que ele participou durante um tempo, eu era fascinado por esse trabalho dele. Depois foi uma coisa que me marcou muito na infância ser espião, também achava interessantíssimo. Ele se acidentou e ficou acamado um ano, eu já tinha meus 13 anos e eu ia nos fins de semana a Ponta Grossa de ônibus cuidar do meu tio, fazer companhia e é uma história linda, trágico porque sofreu um acidente e minha tia faleceu, de repente as minhas primas ficaram órfãs de mãe, morando lá, as meninas pequenas e eu ajudava esse meu tio a tomar banho, a cuidar dele, ele ficou acamado mesmo, machucado e como ele já tinha uma afinidade muito tio Dad, o nome dele era Dosdete, mas tinha o apelido que era Dad, como se fosse pai mesmo, foi um pai para mim, uma proximidade. Minha mãe conta que quando ele me visitava e saía eu fazia febre de tanta proximidade com ele desde berço, eu era bebê e depois eu pude cuidar dele ali, ali foi o momento que eu levava na fisioterapia, ajudava com um curativo, algum remédio, estava sempre ligado nisso; me viciei em cachimbo, nunca fumei, mas eu sou viciado em cachimbo porque ele, naquele momento triste de luto, os hobbies dele era fumar cachimbo, ele ficava na cama e não tinha fumo em Ponta Grossa, então, não era fácil de achar há 30 anos e eu vinha aqui na tabacaria comprar, levava para ele Half-Half, mentolado, eu escolhia o fumo e como eu tinha uma afinidade de coração, o momento de ele chegar e preparar o cachimbo era uma arte, aquele cheiro no quarto de ficar com ele, eu tinha certeza. Tanto que eu não comecei a fumar ainda porque eu sei que quando eu fumar não vou parar, mas eu sou viciado em cachimbo, o cheiro de cachimbo me remete direto àquele quarto e ele se recuperou, depois teve uma tragédia que sofreu um próximo acidente, depois casou novamente e teve mais uma filha e depois em Ribeirão Preto veio a falecer.
P/1 - Você se importaria de falar sobre esse acidente que tirou a vida dele? Como foi, como você soube?
R - Não, nem um pouco. Tragédia horrível, eu estava na faculdade, no quarto ano de medicina, um dia ruim, me lembro que levei a minha mãe no médico para fazer um exame eu estava com essa coisa de olhar para o céu, talvez um pouco de instinto e recebi a notícia. As filhas estavam lá, a filha casou novamente, ele saiu, o carro dele estava na oficina, ele pegou o carro da esposa para levar as filhas para escola, voltou, deixou o carro e pegou a moto para ia ao quartel. O ônibus furou a preferencial e ele praticamente faleceu na hora, chegou a chegar no hospital, mas faleceu por trauma. Um horror, a imagem da dor da perda dele. Meu pai fala muito disso da minha semelhança com ele, meu pai é uma pessoa muito mais racional, começou a trabalhar com 14 anos, era o irmão mais velho, fez todo um movimento, acho que é a pessoa mais humilde que eu conheço e bondosa é o meu pai, mas tendo que seguir uma vida não se permitindo sonhar, não se permitia realizar muitos sonhos e o irmão do meio que era o irmãozinho dele, depois tem minha tia também e, então, a intensidade dessa energia toda que veio na minha personalidade, meu pai sabe bem disso, mas o que me marcou muito nessa perda, eu peguei o carro, saí voando para Ribeirão Preto, eu fui dirigindo feito louco, flashs de viagens e a dor do meu avô em especial, da minha avó também, dos pais do meu tio, meu avô seis meses depois apareceu diagnóstico de uma leucemia, tudo muito compreensivo, mas a dor da perda de um filho, isso foi uma coisa que me marcou mais que tudo. É um pedaço de mim, a gente fala do Chico Buarque, de uma canção linda, acho que é um pedaço mesmo irreparável. Então, isso é uma coisa que me marcou muito, saudades que ficam boas, meu avô foi meu avô e meu padrinho, ele foi uma pessoa de muita afinidade e sofreu quando eu fui para a França morar, minha despedida foi ali, eu sabia que ele estava muito mal, veio a falecer alguns meses depois. Acho que ima coisa irreparável que me marcou a ordem não natural da vida, foi um exemplo para mim, mas guardo muito carinho de ter vivido tanto com meu tio e ele também me incentivava muito, ele era muito fã da homeopatia, criou as filhas com homeopatia e eu me lembro de ele dar livros, eu nem falava em fazer medicina. A decisão minha da medicina veio de um professor meu do colegial, professor Otaviano, meu pai era diretor do Positivo, do colégio na Sampaio e o professor Otaviano fazia um curso em julho para ensinar a tirar sangue, fazer testes bioquímicos, ele é bioquímico e até funcionava como uma renda extra e ocupava as crianças que não viajavam em julho, que era meu caso, e eu fui convidado, meu pai sendo diretor da escola, tinha o laboratório, fazia análises químicas, mas era glicemia. Ele me convidou para fazer esse curso no primeiro ano do colegial e eu fiz e adorei, saí tirando sangue de todo mundo, do porteiro do prédio e até do cachorro, me senti com habilidade que me destacou, então, fiz exame de sangue da família toda e depois a gente tirara o sangue e levava para o laboratório, eram duas semanas de um curso que ele faz até hoje de bioquímica. Fazia tipagem sanguínea, eu chegava na diarista, síndico: ‘‘não quer saber sua tipagem sanguínea? Deixa eu tirar o sangue’‘, eu tinha 13 anos e fazia, tirava o sangue com garrote e adorei aquilo, acho que fui bem. No segundo ano foi um divisor, ele fez o curso avançado e me chamou, só que era um curso pago e para pagar ele falou: ‘‘eu vou fazer o básico de manhã para os alunos que não fizeram ano passado e vou fazer o avançado à tarde, ou vice-versa, se você for meu monitor nesse curso eu te dou a inscrição do outro’‘ e eu fiz. Era aquilo que me despertou da medicina e me tirou da engenharia.
P/1 - Mas quando foi essa compreensão: é medicina?
R - Eu fiquei quieto, quando começou o terceirão meu pai falou: ‘‘você vai fazer um teste vocacional, você vai fazer alguma coisa para saber o que você quer fazer’‘ e eu falei: ‘‘não, pai, eu já sei, eu vou fazer medicina’‘. Ele tomou um susto. Eu dou aulas de manhã na faculdade e eu falo muito isso, a medicina é a profissão mais bonita do mundo, eu vejo de uma forma muito com m maiúsculo, é o ser médico, é de encher a boca para falar e a gente esquece disso muito facilmente, o que envolve o ser médico, o que é a beleza da nossa profissão que muitas vezes cai na questão capitalista, todo mundo precisa de dinheiro para viver, mas a gente vê alguns erros que acontecem, o mundo como está hoje, mas a gente esquece de uma base que é essa base que é despertada na pessoa como eu lá atrás, que resolve ser médico, aí tem uma coisa que é despertada nessa beleza médica de ajudar. Eu me lembro que isso foi uma coisa muito forte, meu pai se assustou, talvez por proteção porque como ele tinha entrado no vestibular de medicina e não tinha entrado: ‘‘tomara que ele não escolha medicina porque vai que ele não passa’‘, aquela coisa de projetar no filho, mas, sem dúvida, o sorriso dele interno foi grande e eu não vejo nada maior que a medicina em termos de profissão, não vejo nada, porque não é só profissão e talvez esse seja o grande ponto, é um estado de vida, é uma condição que você acaba tendo. Lógico, tem toda a dificuldade de ser médico que as pessoas de fora não enxergam, os pacientes as vezes, quem tem médico na família já sabe como é esse convívio. Hoje em dia meu filho mais velho quer ser médico, então, é um motivo de grande orgulho. Com todas as dificuldades, a gente fala de um médico estar criticando, lógico que é pago pelo trabalho, isso é uma coisa tão ridícula, mas a vontade de ser um profissional ligado a saúde é fascinante. Então, eu resolvi no terceirão fazer medicina, houve um susto ali e mesmo tendo outras paixões porque existe uma coisa ligada a arte também do ser médico, outras situações que envolvem medicina que vão muito além, de sair do trivial, que é onde estão os problemas, você vai para uma esfera de beleza da profissão, não tem nada igual, então, eu faria tudo de novo, acho que é uma coisa linda.
P/1 - Como foi a faculdade de medicina? Como foi esse período?
R - Espetacular.
P/2 - Talvez antes, como foi receber o resultado do vestibular?
R - Eu não passei. Na época era Federal e PUC só em Curitiba, tinha apenas dois vestibulares e eu tinha ido bem na PUC, mas o resultado da PUC saiu antes, eu não passei, até achei que tinha ido muito bem, mas me surpreendi de não ter passado e quando veio o resultado da Federal, eu não passei. A evangélica utilizava até esse ano o vestibular da Federal e passava, o excedente era chamado, eram 120 e depois chamava mais 60. Não era como é hoje que você tem todo o gabarito, não sabia nada, eu não passei, toda a frustação, imaginam eu pai nessa história e cursinho vai ser difícil agora, talvez ele pensando em uma história dele, esse martírio de não conseguir passar. Isso foi em janeiro, até que em fevereiro ele escutou na rádio que a Federal estava entregando o score, que não tinha essa coisa que é hoje. ‘‘Filho, vai lá buscar o score para você ver quais as notas que você foi melhor ou pior para você estudar mais esse ano’‘, eram quatro dias de prova, e eu fui lá buscar com um grande amigo meu, Leonardo, fui dirigindo, não tinha carteira, mas outros tempos. Até no Politécnico era longe para chegar lá, de carro era uma aventura, fugindo das ruas, polícia. Nós chegamos lá fomos pegar o score, entramos na fila, pegamos o score e quando a moça me deu papel, aparecia lá a nota do primeiro colocado 9, 20, 18, o último colocado 7, 38. Eu desci com o Leo, fui para o carro e eu falei: ‘‘será que essa nota do último da Federal ou do último da Evangélica?’‘ porque tinha os 60 que chamavam. ‘‘Espera no carro que eu vou subir lá’‘, eu subi, entrei na fila de novo e falei, aí o sujeito pegou, eu tinha tirado 7, 07, até fiquei feliz com a nota porque a redação eu fui muito bem e ele pegou o papel no guichê. Eles não tinham contato, na Evangélica fazia o vestibular e pegava os alunos que vinham. 707 o cara anotou a lápis e me entregou, eu peguei e falei: ‘‘desculpe, mas 707 é minha nota’‘, ‘‘você não passou?’‘ e aí já me deu um gelo porque não tinha aplicativo, o papel era colado na porta, eu tinha ido ver na porta da faculdade, será que eu não vi certo, me deu um grande susto. ‘‘Não, não passei’‘. Ele foi na inscrição, critérios de desempate o mais novo fica por último, só que eu não sabia quantos tinham empatado na minha nota. Cheguei em casa e liguei para o meu pai e começou aquela angústia e você não sabia se ia ter segunda chamada, eu tinha empatado por último e foi um mês isso, meu pai ia lá na Evangélica, na faculdade: ‘‘você não tem como mostrar, só para eu ver se alimento a esperança dele ou não, se vale a pena ele esperar’‘ e eu me lembro que o dia que se iniciava o cursinho do Positivo era o dia que fechava a matrícula na Evangélica e meu pai: ‘‘pega os documentos que uma das duas coisas a gente vai fazer. Se você não passar, vai fazer cursinho, já segurei sua vaga lá’‘ e lá fui eu. Meu pai, de tanto levar bombom para as funcionárias, ir todo dia lá, Nhá Benta, e falar: ‘‘me dá uma luz’‘, elas falaram alguma coisa de que se chamarem cinco, seu filho está dentro. Meu pai não contou isso para mim, ele guardou para ele porque não tinha como saber, a lista não era divulgada, ele não sabia se ia ter uma chamada de uma pessoa e ficamos lá, chegava cinco horas a inscrição eu ia lá na secretaria e a segunda chamada foram oito e eu estava em terceiro ou quarto com aquela nota. Ele com a tesoura já me deu o corte de cabelo lá na hora, aquela emoção de passar é espetacular, não poderia ter sido melhor. Se pudesse voltar eu queria exatamente como foi porque não passar frustração de um filho que não passou no vestibular, então, já sei bem como é tudo isso, amadurece. Foi espetacular. Na hora de entrar na faculdade foi bem bacana. É uma história bonita.
P/1 - E como foi começo da faculdade?
R - Um espetáculo. A faculdade foi muito leve, eu acho que eu sou leve, eu tenho esse comportamento, mas, então, as coisas que vem leve para mim ficam mais leves ainda. Foi um momento maravilhoso, o susto de sair do sistema de um cursinho com apostila, um livro que tem que buscar para ler, métodos de ensino que assustam. A Evangélica é um grande diferencial, pequenas turmas de 60, então, seis turmas, você vivia o ambiente do hospital, grande vantagem isso, você fica rato de hospital, o pronto socorro muito precoce, vê doente muito precoce, então, foi uma coisa muito bacana.
P/1 - E você era muito novo, tinha 16 anos, como que você começou a amadurecer nesse começo de ter contato já com doentes, hospital?
P/2 - Teve alguma coisa que te chocou, que ficou marcante para você nesse novo mundo?
R - Sempre a relação médico-paciente é uma coisa que me destacou, a maneira de falar, a maneira de cuidar, são profissionais e profissionais que você começa a ver de que maneira você gostaria de ser tratado, como não gostaria de ser tratado, ambientes que você não tem muito aquele tempo que é o pronto socorro, você não pode muito tirar a história, você tem que parar o sangramento senão a pessoa vai morrer, depois você vai perguntar o nome. Tem momentos da medicina que são momentos de emergência, mas do outro lado tem o momento da psiquiatria, da clínica, da propedêutica, de grandes professores, grandes mestres, isso é uma coisa que, infelizmente, graças ao mundo atual, todo mundo tem uma perda salarial, ficamos no estado de miserabilidade, aquele médico, professor da nossa época, ele vivia muito o ambiente e ficava muito a disposição do aluno. Eu tinha professores que falavam: ‘‘hoje eu vou passar visita no hospital tal hora, quem quiser vir comigo’‘, então, vinha aquele rabixo de aluno com jaleco atrás e professores que davam dicas, como se fosse o House hoje em dia, que era uma coisa meio maluca, para nós parecia uma coisa mágica.
P/1 - Tem alguma coisa que ficou na sua cabeça de marcante que você usa até hoje? Um ensinamento, uma dica.
R - Várias situações brilhantes de exercício clínico, de madrugada estar lá com o professor no pronto socorro, acadêmico, quarto ano, quinto ano e vem um pai com uma criança no colo e ele de longe olha e fala: ‘‘prepara a nebulização para a respiração, a criança está vindo com asma’‘, parecia que ele já tinha atendido, ele via de longe que era uma criança asmática pela aparência física, então, vários detalhes propedêuticos, a medicina é muito rica de informação no olhar, no escutar, no psiquismo, são os grandes ensinamentos médicos, percepções Sherlock Holmes mesmo, coisas assim que são muito fascinantes. Isso me marcou muito desde o começo, grandes professores que olhavam a rima labial, olhava uma boca torta e sabia que tinha um AVC do outro lado e testes neurológicos, isso é muito fascinante, é uma coisa envolvente e, obviamente, você está no momento de estudar anatomia, fisiologia, cadeiras básicas, então, você sabe como funciona quando você se alimenta aquilo vai parar antes da célula, como é o coração, é um fascínio conhecer o corpo. Todo mundo deveria fazer medicina para se conhecer e não só isso, a relação interpessoal, as angústia que são colocadas para fora, os mecanismos de defesa de cada um, como chega o paciente aqui no consultório e descarrega uma sacola de pedras, as vezes fala: ‘‘já fui em 10 dermatologistas e ninguém resolve meu problema, não me dá nem bom dia, nem boa tarde’‘, nesse momento você com seus problemas, com suas contas, com suas angústias, é hora de empurrar a cadeira para trás, cruzar a perna e deixar ele falar, brincar, pegar leve e conquistar, trazer esse paciente porque ele está ali sofrendo por algum motivo que se você devolve essa agressividade, que é uma coisa comum de se fazer, é no trânsito, em todo lugar a intolerância está presente. Então, acho que isso eu aprendi muito, tanto que pensei, desde o começo, gostei muito de psiquiatria, cheguei a ficar uns seis meses no hospital psiquiátrico estudando, trabalhando, então, é uma área que eu uso até hoje e leio muito, gosto muito. Isso é uma coisa que me marcou na faculdade de medicina muito. Me envolvi muito com diretório acadêmico, a Evangélica tinha um lado muito politizado, presidentes do CRM, a gente vê por aí a Associação Médica Paranaense, políticos, tem várias pessoas que vieram da Evangélica, então, essa coisa de diretório acadêmico, de formatura, sempre me envolvi muito e estive muito próximo dos professores e teve uma pessoa, João Carlos Repka, que era um professor de microbiologia, imunologia. Eu entrei na faculdade em 89, era uma cadeira nova e ele era um professor que tinha feito pós graduação no Pasteur e graças a um grande mestre que foi quem assinou meu diploma, doutor Coriolano Caldas Silveira da Mota, que depois diretor da faculdade, que era da disciplina de higiene, que no segundo ano pediu para gente fazer um trabalho de curso, uma TCC da disciplina e indicou aquele professor que está vindo do Chile agora é um cientista, João Carlos Repka, falem com ele e esse professor, nós descemos a escadaria correndo e ele com aquela coisa de amor à primeira vista se simpatizou com nosso grupo, ele era do Repka e falou: ‘‘vamos fazer o trabalho sobre lepra’‘, na época em que podia falar lepra, hoje não pode falar. E foi o momento onde começou minha paixão pela dermatologia, isso era no segundo ano da faculdade. Eles estava fascinado com a imunologia da lepra, toda mundo se fascina até hoje, hoje tem grandes pesquisadores, o Marcelo Mira, que estuda aqui em Curitiba tem grandes nomes que estudam a hanseníase e ele nos colocou já em iniciação científica pelo CNPQ, nós fomos trabalhar no (inint) [00:55:07] hospital de dermatologia sanitária São Roque, aqui em Piraquara e era nosso grupo de cinco amigos, colegas de turma que começamos a desenvolver pesquisa de ponta mesmo, ligada a estudo de tecnologia, que nos colocou depois da monitoria da disciplina, por esse caminho, graças ao professor na época, a gente entrou no mundo científico e a faculdade caminha muito por aí e, graças a esse caminho, a gente acabou fazendo publicação científica em um momento ainda muito precoce de faculdade, 18 anos e trabalhando com ciência de ponta graças a ele. Mas isso rendeu, tem um prêmio feito pela doutora Elena Saudosa da embriologia que chama-se Elena Saudosa da embriologia, que chama-se Conscian (inint) [00:56:12], eu acho que era o maior do Brasil de acadêmicos de medicina e a gente ganhou o prêmio em primeiro lugar, no ano seguinte de novo o primeiro lugar, graças aos trabalhos que vieram desse grupo nosso, então, era um grupo muito saudável e fez com que a gente, na faculdade, tivesse portas abertas desde o começo, era um grupo que se relacionava bem com os professores, peixe de vários porque algumas teses a gente participou cuidando dos ratinhos porque nós éramos monitores da disciplina e o Repka fez essa revolução, as teses, mestrados, doutorados e a gente era os acadêmicos que davam o suporte e ganhando prêmio, publicação em parte científica. Nessa época tinha um programa do Bamerindus, Bichos do Paraná, ligado a uma música: ‘‘não sou gato de Ipanema, sou bicho do Paraná’‘, uma música regional e nós fomos para a Espanha, ganhamos uma bolsa da Ordem dos Cavaleiros de Malta, ligada a organização de saúde e de uma instituição, era um leprosário Fontilles que quando nós mandamos o trabalho nós ganhamos um curso lá, isso no terceiro ano da faculdade. Então, imagine um acadêmico de medicina, nós fomos em quatro amigos para a Espanha, ficamos lá praticamente um mês, fizemos um curso de leprologia, então, eram estrelas, a gente se sentia com uma certa importância acadêmica, a faculdade foi um passeio de aprendizado com muita alegria, muita coisa positiva, muito saudável, grandes amigos que, graças a esse grupo de estudo, a gente acabou conquistando e voltamos da Espanha, essa campanha que passava uma matéria na televisão e pioneiros nessa área e eu comecei a frequentar a (inint) [00:58:19], pacientes com hanseníase no laboratório da doutora Anelise Roskamp Budel que era a chefe do serviço de dermatologia na época, tudo da disciplina, e ela liberou o ambulatório para que a gente pudesse ir lá e eu comecei a ter o contato com a doença de pele, isso foi já começando uma grande semente ali, ainda que eu sempre achava que o lado da psiquiatria, da psicologia me envolvia, professor Gevaerd, lá da psiquiatria, eu sempre achava que isso contava muito no atendimento médico, ainda acho que conta, então, eu fui tomar uma decisão mais no final da faculdade, mas me decidi pela dermatologia. Foi uma decisão assertiva.
P/1 - Então, vamos aproveitar esse gancho e vamos falar da dermatite atópica então. Conta para gente como que começou o seu trabalho com a dermatite atópica?
R - A dermatite atópica ela é uma doença altamente prevalente na região sul, onde tem uma migração muito europeia, então, tem uma pele mais do europeu, mais clara, uma característica que a gente vê uma prevalência maior em pacientes assim e o clima frio. O atópico tem uma deficiência na barreira, então, a pele seca faz com que essa doença seja mais prevalente aqui no sul, alguns dados que geram isso. Misturando um pouquinho a evolução, eu acabei passando na residência de dermatologia, aqui – nos hospitais, aqui de Curitiba – mas, em seguida, eu recebi uma bolsa, para ir para a França. E na França, a dermatite atópica é muito alta, então, o país europeu, não só pela característica do clima, também, na Europa, os países nórdicos, por exemplo, chega a 10% das crianças. E, daí, lá na França, existem as estações termais, existe o termalismo, que a gente faz muito, para (inint) [01:00:34] (atópica) [01:00:34]. Então, eu comecei a ter muito contato com o doente, que a gente fala doente com eczema, que é aquela pele vermelha, que coça, então, migrando, que veio da residência, saindo desse contexto, indo para o contexto europeu, as doenças inflamatórias são muito mais prevalentes. Enquanto a gente tem um país, apesar que estou falando de 20 anos, o Brasil entrou em uma era rica, felizmente, industrializada, de uma o país melhorou muito, e a industrialização, ainda com todos os problemas que nós temos, mas isso aconteceu. Então, nós estamos tendo muito mais, a atopia está ligada ao desenvolvimento, enquanto a infecção está ligada ao subdesenvolvimento. Então, na Europa eu tive um contato maior, e tive contato com grupos de apoio, como existe para doente com diabete, por exemplo, com doente com outras doenças, colesterol, grupos de estudo, grupos de ajuda de pacientes, grupos de pacientes, para algumas doenças em comum, e já existia isso lá, também, ligado à atopia, eles chamam de escola, e treinamento disso. Aí, começou, uma coisa que eu já tive mais contato lá, enfim, e depois, a gente (teve) [01:01:46] a oportunidade de trazer isso para o Brasil, também. O doente atópico, na minha época – estou falando há 20 e tantos anos – era a criança, não era o adulto. Hoje a gente tem um caso muito grave, que é o doente atópico adulto. Ninguém sabe explicar muito bem por que, mas está ligado ao desenvolvimento. Porque hoje a pessoa que não teve alergia na infância, atopia na infância, de repente, aparece com uma doença tópica no adulto. E mais um detalhe grave, é que o atópico adulto costuma ser um doente grave. Não é um atópico leve, não é só uma plaquinha de eczema, ele costuma fazer um quadro bem exuberante. E isso está aumentando muito. Eu lembro do professor, que foi quase Prêmio Nobel, (inint) [01:02:33] que eu tive oportunidade de conhecer em um evento, até, em Tóquio, os países, a Ásia, tem muito mais alergia, de forma geral, no Japão, a questão da polinização, das cerejeiras, andam com máscara, enfim. Eles têm, por exemplo, menos câncer de pele, lá, mas tem mais dermatite atópica. Esse professor fez uma aula inaugural, em um evento, lá, e esse professor é um professor francês, é um imunologista, e foi quem desenvolveu, há muitos anos, a teoria da (higiene) [01:03:09], que hoje explica um pouco mais essa história, de porquê tanta alergia no mundo de hoje. Se a gente faz uma pergunta, às vezes, em um anfiteatro: ‘‘quem se considera alérgico?’‘, é surpreendente. Mais da metade levanta a mão. Se considerar rinite respiratória, asma, pele, intestinal, está super na moda, intolerância a tudo, o que está acontecendo? Lá atrás, há 30 anos, ele formulou uma ideia, a Teoria da (higiene) [01:03:31], Teoria (Hiegenista) [01:03:31], enfim, que era, justamente, na ausência de micro-organismos, de agentes, e em um mundo cada vez mais estéril, você acaba tendo um organismo que se volta conta o self, contra o próprio, e faz a doença inflamatória ser mais prevalente. Parece que o nosso sistema fica ocioso, de defesa, e começa a guerrear com o que é nosso, essa história das doenças autoimunes, faz sentido. Tem trabalhos espetaculares sobre isso. Espetaculares, no sentido de mostrar o quanto, a gente olha, por exemplo, na veterinária, quando você olha um cachorrinho, um trabalho que foi feito com porquinhos, que separou do curral, aí, para um ambiente como o nosso, até apertado, ambiente de ácaro, e quem lida melhor com a doença? Obviamente, o porquinho, que estava lá, naquele habitat dele, natural, lida melhor com a doença, do que quem está no ambiente, os nossos cãezinhos de raça, que, hoje em dia, faz um gripe, morre, e o vira lata está ali na rua, tadinho, debaixo de chuva, e está lá com uma vida, lógico, não estou querendo aqui dar um passo a trás, a medicina evoluiu muito, e muito bem, e quantas pessoas, hoje, não estariam entre a gente, graças à medicina. A longevidade é algo espetacular, mas tem algumas coisas que, talvez, a gente vá ter que ajustar, que é justamente ligado ao microbioma, que é a nossa palavra (moda) [01:04:56], agora, ligada a isso, que é compensar um pouco o que essa tecnologia, os (inint) [01:05:01] aditivos trouxe de malefícios. Mas está se vivendo muito mais, está se vivendo muito melhor. Todo dia tem histórias, de cirurgias, coisas espetaculares, não é querer ser naturalista, nesse sentindo, mas acho que a gente tem que ter uma adaptação melhor, e atopia tem muito a ver com isso, atopia, está fora do lugar, a palavra vem daí. O que está acontecendo? Será que é um hábito alimentar? Várias coisas estão acontecendo, nesse sentido. Como a gente lida muito com doenças, enfim, a dermatologia tem várias áreas, que são grandes, cirurgia dermatológica, o câncer da pele, a estética, que é muito bem-vinda, porque a autoestima, enfim, a qualidade de vida, muito envolvendo a estética, e os doentes de pele, a pele é um grande órgão de comunicação, talvez o maior. A pele é um grande órgão de comunicação. Se hoje, eu estivesse com uma crise atópica, eu iria cancelar a entrevista com vocês. Eu posso estar aqui com a minha enxaqueca, com a minha angina pectoris, com a minha doença intestinal, com a minha cólica, tendo feito a minha insulina, muitos fatores, mas se eu tivesse uma doença que interferisse na comunicação, e muito provavelmente, vocês também. Então, existe uma coisa que tem se dado a um grande valor. E de pele, grave, ele é introspectivo, ele não sai, ele deprime, ele bebe, os vícios vêm, para suportar uma perda de comunicação.
P/1 - E pensando nessa linha, de pensar a pele como um órgão de comunicação, que nem o senhor disse, como funciona, em uma consulta, essa leitura?
R - Explícita. É uma coisa fácil. É uma leitura que salta aos olhos. O doente que chega com aquele sofrimento tem queixas que ele nem sabe que estão relacionadas a isso, muitas vezes. Comportamentos sociais, comportamentos amorosos, comportamentos muitas vezes relacionados à própria doença da pele, ao próprio autoestigma – se essa palavra existe, não sei – até a própria privação que ele faz. Você pega um adolescente com acne, por exemplo, que na primeira consulta vem com capuz, cabeludo, não que eu ache ruim cabelo comprido, mas enfim, metaleiro, também não acho ruim o rock metal, mas ele vem com um comportamento introspectivo, senta com a mãe, aqui, ou com o pai, eu pergunto: ‘‘em que eu posso te ajudar?’‘, ‘‘pergunta para ele, ele que me trouxe’‘, existe um impacto, agressividade, ele está com uma acne grave, se escondendo atrás daquela doença, com um comportamento, aí, o pai fala: ‘‘ele não quer ir para a praia’‘, ‘‘só usa roupa escura’‘, ‘‘esse cabelo no rosto’‘, a crítica do pai: ‘‘não par de mexer’‘, ‘‘come no quarto’‘. O que está acontecendo, com esse adolescente? Logo em um momento tão importante da vida dele, de autoestima, e aí, você começa a tratar esse paciente, e o tratamento eficaz, vai melhorando a pele dele, ele vem sem o gorro, ele vem com o cabelo mais curto, vai fazer esporte, como é que ele vai fazer esporte? Eu vivi isso, com acne no dorso, por exemplo, que eu caia na escolha do time, sem camisa, eu ia embora. Eu: ‘‘minha mãe me chamou, eu esqueci...’‘, eu fugia. São exemplos que eu trago comigo, então, você começa a tratar, aí vem uma beleza de conduta, que você vê o paciente na quarta (consulta) [01:09:33] já não vem mais com o pai, já não precisa, já vem, às vezes, (com) [01:09:33] a namorada, está trabalhando, a vida dele vai mudando, porque ele está livre, leve para se expor diante de uma sociedade, ainda mais hoje, tão exigente da aparência. Então, esse é um dado, por exemplo, que salta, um comportamento, que vem de uma rebeldia, que os pais não estão aguentando, tomando psicotrópicos, às vezes, tomando droga, já, psíquica, para tratar a ansiedade, depressão, (então é) [01:09:57] uma doença de pele. Dermatite atópica, coceira, a pessoa se coça tanto, que ela nem percebe que está coçando. Eu estou atendendo um paciente, na minha frente, ele está coçando e está tirando sangue da lesão, e dá vontade de falar: ‘‘para de mexer’‘, e ele não está percebendo, ele está coçando, e pensa. A coceira muito noturna, também, quem não dorme direito, por um distúrbio como esse, fica mal-humorado. Isso a gente vê, com uma criança que não respira, que tem uma adenoide, é uma criança que está irritada, de manhã. Daí, para piorar, ainda, são duas coisas, faz uma ansiedade, abusa do doce, e aí, gera mais irritação, muita irritabilidade, a criança não dormiu, o cérebro não descansou, ela está irritada, então, o aprendizado cai, então, você tem as (situações) [01:10:45] de leitura, que você perguntou como é que isso se apresenta. Então, muito simples, é a hora que a gente pode ser grande, no alívio, não só daquele sintoma, mas que isso, como está impactando em todo o resto, na vida dessa pessoa.
P/2 - Fala para a gente, então, qual é o seu papel no alívio desses sintomas.
R - A dermatologia – voltando um pouquinho a história – nasceu na hanseníase e na sífilis, doenças contagiosas, que tem o contágio. A primeira coisa, que eu acho que existe, enraizada, de forma, talvez, até antropológica, falando aqui, é que todo doente de pele – grande parte – quando ele aparece com uma lesão, ele fala uma frase clássica: ‘‘eu peguei’‘. A gente faz isso. ‘‘Peguei no banheiro’‘, ‘‘peguei em uma relação’‘, ‘‘eu peguei’‘. Estava contaminado, ainda mais nesse mundo chato, higiênico demais, estéril de mais essas bobagens do nosso dia a dia. A pele tem muito disso, e, talvez, até por doenças que foram tão importantes, no início da nossa especialidade. Então, vem um mecanismo muito clássico doente de pele, na limpeza. O que ele faz? Ele tenta limpar, tenta adstringir, isso piora, muitas vezes um atópico. A primeira coisa que você pega, no atópico, geralmente, é que ele tenta cuidar daquela pele com um grau, porque aquilo está feio, está coçando, está impuro, está sujo, deve ter, ainda, um peso religioso, por trás disso tudo, vai misturando, um pouco, porque descama, isso gera constrangimento, imagina. Isso é uma coisa ruim, porque ele já tem uma deficiência de barreira, a deficiência de barreira dele não permite que a água se mantenha na pele, de uma forma correta, essa perda de água transepidérmica, que passa pela pele, que sai, deixa a pele muito ressecada, e aí, gera coceira e suscetíveis a infecções. Então, pode aparecer daí, sim, uma infecção por causa daquela pele. O ideal é você voltar essa coesão celular, na superfície, para que a pele volte a ter o manto lipídico natural, que nós temos. A gordura da pele, natural. Esse paciente atópico não tem isso. Ele está exposto a irritações maiores do que quem não é atópico. E aí, tudo irrita. A lã irrita, o perfume irrita, e, às vezes, ele se rotula alérgico em outras coisas, mas são falsas alergias. Geralmente, não é uma alergia de contato, é uma alergia que ele não tem a barreira, que está protegendo. A primeira coisa, então, quando a gente vai lidar com um atópico é corrigir esses conceitos, de tomar vários banhos por dia, corrigir (inint) [01:13:50] fria, o banho é muito quente, lavar a louça na pia, quando a água está quente, sai muito melhor, então, você tira aquela gordura da pele, com uma água muito quente. Sabonetes, então, mudou muito, a gente fala com o ph, a gente fala: ‘‘(temos ph) [01:14:03] alcalino’‘, é o contrário, é o ph ácido. Os (SINETS) [01:14:07] que são (detergentes) [01:14:07] sintéticos, que a gente usa, hoje em dia, muito mais, para cuidar desses pacientes, evitar a alcalinização da pele, tentar manter o PH natural, corrigir pequenos defeitos, excesso de banhos, excesso de limpeza, excesso de adstringência, esses excessos que vão piorar atópico, na questão da barreira. Esse é o primeiro passo. E isso é tão interessante, por isso a importante, de, às vezes, ir em uma escola, junto de um grupo de estudo, junto de orientação, a gente vê isso muito prático, quando você pega em crianças, as escolas mandam tirar as crianças da aula, porque elas estão com escabiose, estão com sarna, volto a falar, a questão da comunicação, o medo do contágio, ninguém, vai pegar aquilo, mas existe muito medo. E a pessoa que sofre isso acaba tentando se limpar. E a gente explica, explica, e o pai ainda fala: ‘‘vamos matar o bichinho’‘. Não tem bichinho. Existe sim uma colonização, aumentada em alguns casos – por estafilococos (áureos) [01:15:10], por exemplo, que é a bactéria que aumenta, mas isso aí é justamente pela perda do microbioma. Quando tem uma deficiência de barreira, hoje se sabe que o microbioma, que seriam nossos bichos, o habitat deles, natura, que seria a nossa, que muito comum na flora intestina, por exemplo, está alterado nesses pacientes. E, provavelmente, essa alteração faz com que a crise da doença venha. Então, primeira coisa, desmistificar, corrigir isso, e começar aliviar sintomas. O principal é a coceira, e o (prurido) [01:15:37] é difícil de lidar. Às vezes, tem que usar drogas até sedativas, que não vão agir diretamente sobre a pele, mas, para o paciente poder desligar, aquilo que eu falei, agora pouco, o paciente está conversando com você e está se coçando, e ele nem percebe que está se coçando. E por quê? Porque a coçadura, por si só, a pele é um órgão de defesa. Então, a coçadura faz com que a pele coloque mais tijolinhos, mais rápido – vamos tentar falar assim – vão proteger de forma errada, sem cimento, aquilo lá vai quebrar, é um (craqueleiro) [01:16:08] ele vai sair. O ato de agressão gera mais inflamação, e você cai em um circulo vicioso. O paciente não sai desse circulo. E, para piorar, vem um familiar e fala: ‘‘está assim porque está estressado’‘, ‘‘está assim porque brigou com a namorada’‘, ‘‘está assim porque não tomou banho direito’‘, ele está se coçando: ‘‘para de se coçar’‘, imagine. É falar para o adolescente com acne: ‘‘para de mexer na espinha’‘. Ele vai parar de mexer, quando ele não tiver.
P/1 - E ainda pensando nesta questão física, do paciente que vem e tenta se esconder, é uma pergunta um pouco mais sensível, de sensibilidade, mesmo. O senhor tem alguma estratégia nesse atendimento, alguma coisa sua de contato, para trazer essa segurança para o paciente? Como é sua abordagem, para receber esse paciente que se esconde?
R - Existem trabalhos que mostram que, a hidratação em crianças, pelos pais, existe uma área chamada imunopsicodermatologia, ou psicoimunodematologia, o toque é uma arma muito poderosa. Tem trabalho mostrando que, a hidratação do corpo de uma criança, pelos pais, ou no adulto, pelo cônjuge, enfim, isso tem benefício, não é só a questão do toque, em si, mas tem o benefício psíquico muito grande, nesses pacientes. Às vezes, no exame físico, do médico, examinar o doente, quando você vai palpar, às vezes, colocar a mão, isso daí, naquele momento, já, tem paciente que, às vezes, puxa: ‘‘não, doutor. Não coloca a mão aqui.’‘, ele tem um conceito errado, da contagiosidade, já, de que eu vou pegar aquilo por tocar. Isso vai quebrando algumas coisas, e é o resgate, naquele momento da consulta, que o médico deve ter, demonstrar que é uma doença inflamatória, que não tem risco de contágio, um dos movimentos que você faz, de resgate desse paciente, que aquilo está acontecendo, não é porque ele quer, lógico, tem algumas coisas que estão erradas, que estão favorecendo mais, mas é uma doença. Ele tem um estado de doença, naquele momento, então, minimizar isso, porque o paciente tem esse constrangimento. O doente de pele tem um constrangimento muito grande. Se eu estivesse com uma espinha grande, aqui, eu estaria fazendo a entrevista de lado, para você. Não é nem pelo contágio, é o constrangimento natural. Ajudar o paciente nesse aspecto, você tem um ganho já, de largada aí, que entra nessa coisa da pergunta, o quanto sensível. Segundo ponto, o impacto negativo na qualidade de vida desse paciente, porque existe um dano que está ali, naquele momento, mas tem um dano acumulativo, que vem desses anos todos. Às vezes, você escuta de um paciente, um garoto, como eu tive, de 23 anos, que nunca deu um beijo. Falar aqui do lado do erotismo, provavelmente, se não houve nem um, beijo, não houve nem uma aproximação, para um beijo. Não houve uma paquera, não houve uma relação, que situação é essa, que gerou perda de vida desse paciente? E aí, tem perda pedagógica, tem perda profissional, tem doente de pele, grave, que ganha menos. Isso é um dado. Projeção, com certeza. Você vai ter um impacto, aí. Lógico que tem situações brilhantes, que a pessoa usa aquilo para dar um gancho, de se mostrar, como a gente vê aí, modelos com vitiligo, que estão, (um) [01:20:50] sucesso, que quebra, desmistifica, a gente gosta lá, da zebra, que é toda malhada, maravilhosa, o dálmata, mas, de repente, alguém com vitiligo é visto, que exigência é essa? Uma doença benigna, vamos falar assim. O médico tem que trabalhar isso. Então, exemplos de pacientes, exemplos públicos, enfim, acho que é uma coisa que a gente acaba colocando, para o paciente. Óbvio que a dermatite atópica é uma doença muito mais multifatorial, do que uma psoríase, por exemplo, do que outras doenças de que o (paciente) [01:21:31] tem o controle muito rápido, com o remédio ‘‘X’‘, e você controla e aquilo lá está resolvido. Hoje, por exemplo, a psoríase, com os biológicos tem uma resposta que resgata essa pessoa, para uma vida normal. O atópico, tem outras situações, que ele não vai reverter, aquela deficiência da filadrina, por exemplo, da barreira que eu comentei agora pouco..., então, você vai ter que compensar aquilo com emolientes, com hidratantes. O comprometimento do médico, diante do paciente, é se colocar na pele do doente, mesmo, acho que isso é uma coisa que a gente faz, automaticamente, quando você tem um doente grave, isso eu costumo dizer, a primeira coisa que ele tem que sentir no profissional – eu falo de dois a um – às vezes, o doente está casado com a doença. Nenhum médico vai ganhar. Nenhuma medicina vai conseguir resolver isso. E isso, muitas vezes, está rotulado de forma inconsciente, nesse paciente, até, ele está rotulado como um doente, ele vem, assim, (em velocidade) [01:22:46]. E, lógico que, quando você está em um estado, doente, carente, você tem ganho. Ganho de atenção, inconsciente, só que isso é nocivo. É bom no imediato, mas a longo parazo se torna uma coisa nociva. Ninguém quer sentir, que os outros tenham pena de você, que você tenha (inint) [01:23:06] E isso vai gerando um comportamento, e a pessoa gruda, com aquele doença, de um jeito que é difícil de você, a primeira coisa, que eu acho que um profissional, médico, deve exercer é gerar essa empatia, com o doente, para que nós – eu e o paciente – consigamos lidar, dois a um, aqui, contra a doença. Nós juntos, para combater aquela doença. Esse é o primeiro como, eu acho. Então, a primeira coisa de confiança e comprometimento, que eu vou estar aqui, exercendo melhor, lógico que tem doenças que não têm cura, ‘‘N’‘ situações da medicina, que a gente vai até um ponto, mas a primeira missão do médico é confortar. E você gerar esse conforto, nessa relação, para doentes graves de pele, é fundamental. Você pode ter o melhor remédio do mundo, aí, eu vou lembrar do nosso saudoso professor, João Manuel Martins, que foi um dos grandes médicos, escritores, enfim, um sujeito formidável. Nos deixou precocemente, em 2014, e ele falava: ‘‘às vezes, acho que falta miligrama de médico’‘. É muito bonito de ouvir isso e pensar dessa forma, o que eu posso fazer por esse paciente, eu, médico? Independente do que nós temos de tratamento, porque, tratamento é uma ferramenta. E eu vou usar aquela ferramenta. Lógico, que tem horas que acabaram as ferramentas, e aí, a gente espera os avanços, e tem coisa muito boa, vindo aí, de avanço, para a dermatite atópica, esse ano, inclusive, tem os (comprimidos) [01:24:55] biológicos, que estão surgindo, tem muita coisa que, felizmente, já está chegando, para um controle melhor, desse doente grave, felizmente. A primeira coisa que eu vejo importante, quando tem muito familiar: ‘‘ele é estressado’‘, é a hora que eu tento romper, de forma brincalhona, delicada, leve, ‘‘para de se coçar’‘, às vezes, o cônjuge fala assim, ele está se coçando, se (a gente) [01:25:31]estivesse igual, estaria se coçando também. Esse comentário não cabe. Lógico que angustia a pessoa amada. Eu brinco com isso, se a minha mãe me liga e fala: ‘‘estou com uma dor no meu braço, filho’‘, eu vou falar: ‘‘mãe, você ficou tricotando no sofá, ontem, até tarde, eu sei disso’‘, porque eu não quero que seja infarto. É a minha mãe. Então, existe uma relação, ao passo que, se é um paciente, eu vou falar: ‘‘vamos examinar o braço. Vamos ver, vamos pedir um elétro.’‘. Eu vou dar uma atenção, às vezes, que aquilo, para minha mãe, ter um bloqueio, que ela fale: ‘‘você nem deu bola para a minha dor no braço’‘, porque eu não quero que seja nada grave, eu falo, eu me arrepio. Isso tem que deixar claro, na consulta, para os dois lados. É legal de falar. Quando ele está mandando o paciente parar de coçar, tem um amor, nesse: ‘‘para de coçar’‘. É isso que tem que estar bem nítido.
P/2 - Deixa eu te perguntar uma coisa. Fora do seu consultório, fala do seu trabalho com a dermatite atópica.
R - A gente tem grupo de escola, de apoio aos pais, às crianças, obviamente, mas é um grupo pequeno, aí tu não tens para adulto, é uma coisa que a gente vai, provavelmente, criar, em breve, a gente tem as crianças que são, trabalho de vocês, histórias que são contadas em um mesmo momento, em um mesmo ambiente, por pais que falam: ‘‘meu filho teve que sair da escola porque estava contaminando a turma’‘, e assim, vai. Então, a gente tem um trabalho muito bacana, que é onde as pessoas expõem essas histórias, e isso baixa o nível de ansiedade, olhar crianças que têm o mesmo problema, que os próprios filhos, conviver isso de uma forma: ‘‘estou diante de um problema que eu posso buscar uma solução’‘. Esse é um trabalho que a gente faz, de conscientização. Isso, felizmente, eu consegui envolver meus residentes, lá do hospital, (inint) [01:27:33] Dermatologia do Hospital Evangélico Universitário, e é muito bacana, porque eu estou formando, ali, dermatologista, é uma equipe, nós somos em vários preceptores, mas uma formação bonita é esse lado humano, de você ver eles se sensibilizando com as histórias, que é um momento que você não está só ali, dando receita ou operando. Você está escutando histórias. Isso é um trabalho muito bacana, um trabalho fora, do dia a dia do consultório, educacional, que a gente tem, pesquisa clínica é uma coisa que a gente tem feito bastante, os laboratórios, quando trazem drogas novas, precisam saber um pouco mais sobre a doença, então, isso que nós estamos falando um pouco, no bate papo, aqui, que população é essa, que a gente tem? Quais são os desafios dessa população? As necessidades? Para quem é esse remédio novo? Isso é feito através de ensaio clínico, pesquisa clínica. É, também, uma área forte, nossa, de trabalho. Basicamente, acho que fora do dia a dia, o que a gente faz com a dermatite atópica é algo informativo e acadêmico, no sentido de pesquisa. Tentar desenvolver novos produtos, testar, eu já participei de vários estudos, para testar novos hidratantes, e aí, lógico, em um país como o nosso, tão carente, você é tão bem-vindo, alivia até a conta do Estado – vamos falar assim – porque, quando a gente consegue, a indústria que patrocina esses trabalhos, existe uma visão meio errada, lógico, todo mundo quer ganhar dinheiro, alguém tem que estar patrocinando, financiando, mas a busca é muito maior. Eu trabalho bastante com a indústria farmacêutica e eu, jamais, vi movimentos que são antiéticos, no sentido de não buscar algo melhor, às vezes, existem uns comportamentos que decepcionam: ‘‘não existe a cura do câncer porque não querem’‘, ‘‘não existe a cura da AIDS porque não querem’‘, sinto muito. Isso não é assim. Dentro das indústrias tem pessoas médicas, cientistas médicos, então, isso não é assim. E várias doenças foram resolvidas, graças à parceria. Em um país como o nosso, mais carente ainda, é impossível fazer alguma coisa sem parceria, sem a indústria de ciência. Então, isso se remete a buscar uma harmonia de relacionamento voltada para a ética, obviamente; existe complay, limites onde eu posso ir ou não – assim como a indústria também. Mas o benefício para o doente, ao final, é muito grande.
P/1 - Eu queria que o senhor contasse, se puder, alguma história de algum paciente com dermatite que tenha sido marcante.
R - São muitas histórias. Algumas mexem tanto conosco que vamos para o corredor chorar, e geralmente, estas estão ligadas à privação de vida. Um câncer, por exemplo, que vai ter um risco de vida; e às vezes se interpreta isso como morte, mas viver em sofrimento é pior que a morte, muitas vezes. E o doente atópico grave vive em sofrimento. Portanto, as histórias mais marcantes são dos pacientes que chegam à desesperança; às vezes eles vem arrastados para o consultório, porque alguém conseguiu tirá-lo de casa – pois se ouviu falar de mais um médico ou de algum tratamento, então, dizem ‘‘Vamos lá conversar com esse médico’‘ – já que não tem mais esperança, já jogou a toalha – e dizem ‘‘Vou passar só mais um creme, porque não aguento mais’‘. Quando você resgata esse paciente para uma vida digna – não uma sobrevida, sofrida – é aí que temos um exercício médico. Tenho várias histórias de atopia; eu tenho um caso – uma história forte que aconteceu em uma residência – de um pai do interior, de fora do estado, que trouxe um filho de 30 anos, que veio paraticamente carregado e estava muito ruim. O pai humilde, sentado como se enrolasse um cigarro de palha, típico de um homem do campo, de cabeça baixa, quase que não olhando nos nossos olhos, se colocou a falar do sofrimento de seu filho, no qual viveu toda uma vida doente. E ele falou para mim: ‘‘Doutor, se fosse um animal por muito menos eu já teria sacrificado’‘. Você imagina um pai falar isso? Eu quase que tive que sair da sala; inclusive, eu quase tive que parar a entrevista agora, porque quase não consigo falar dessa história. Então, quando você vê esse rapaz em remissão, não tem nada maior que isso. Esse doente de pele é muito negligenciado, muitas vezes pela própria sociedade; é comum falar que é apenas uma doença cosmética, nós já escutamos isso até de órgãos ministeriais. Então, imagine quanta dor de ver o filho sofrer? São histórias que nos marcam, sem dúvidas – eternamente.
P/1 - Porque o senhor acaba não sendo apenas um médico, acaba sendo uma família.
R - Tem tudo envolvido. O índice de qualidade de vida dermatológico, quando se aplica em crianças, é um índice, na verdade, familiar. Porque se a criança não dorme, o pai e a mãe também não dormem. O avô pergunta: ‘‘Que médico é esse que não está tratando direito do meu neto?’‘. Então, o avô é sogro de um dos dois, o que acaba gerando um conflito também de casal. A cascata de impacto não tem como medir às vezes, pois se geram conflitos extremos.
P/1 - E quando tem uma consulta agendada que você sabe que tem um histórico difícil, antes de o senhor entrar aqui no consultório, tem algum ritual pessoal, antes de encarar essa consulta?
R - Quando eu sei que é um paciente mais grave? Quando vem encaminhado por alguém?
P/1 - Sim, existe algum ritual pessoal? Pode ser antes ou depois.
R - Essa pergunta é interessante. Lógico que vai de cada pessoa, não é porque tenho um temperamento x que porque todos os médicos têm que ter; é igual ao jeito de você se vestir, ou se alimentar, a sua característica deve ser respeitada. Eu acho que tenho uma irreverência respeitosa/leve, no qual me ajuda. Essa entrevista talvez demore um pouco para ir ao ar por causa da edição. Anteontem atendi um dos meus melhores amigos da infância – a amizade mais antiga -, no exame eu vi uma pinta que eu não gostei; no qual eu acho que pode ser um melanoma. Lógico que eu operei, fiz o que tinha que fazer. Ele não veio por causa disso, veio por causa de outra coisa; veio examinar o corpo todo, e o dermatologista tem essa vantagem, porque a doença está exposta. Espero que ele esteja dormindo tranquilo, eu já perdi o meu sono. Isso acontece ‘‘n’‘ vezes, entendeu? Lógico que já falei o que pode ser isso, e se for espero que seja em um grau menos agressivo. Eu não tenho resposta ainda, mas se essa entrevista for ao ar um dia, espero que ele veja e entenda. Tomara que não dê nada, mas se der, espero que tudo seja resolvido. Entretanto, não é fácil esse momento. Eu já tive uma história dessas com a minha irmã, uma das minhas irmãs com câncer de pele. Então, são situações em que você não queria viver aquele momento, você sofre depois; e o médico tem um sofrimento que ninguém enxerga muito. Talvez a minha irreverência e o meu jeito de levar as coisas – e buscando sempre procurar uma solução -, ajudam e não pioram a situação. Se eu disser: ‘‘Olha, isso aqui é melanoma, um câncer de pele, avise a sua família’‘; o paciente sai daqui desnorteado, e morre atropelado. Lógico que tem ‘‘n’‘ motivos do médico se comportar dessa forma às vezes; tanto motivos feios como bonitos. Motivos feios é quando você valoriza apenas os seus honorários. Motivo bonito é quando você não aguenta a ansiedade e precisa pôr aquilo para fora, e acaba por achar que vai ajudar, mas na verdade não ajuda o paciente. Então, em situações graves, você deve ponderar no que vai dizer. O comportamento de leveza e de irreverência, deve ser tomado como obrigação para os médicos – de confortar e gerar bem-estar – mesmo diante da pior situação. Eu acho que isso é um exercício diário que você faz, que você paga um preço. No caso de qualquer pessoa já é muito difícil, mas no caso de uma amizade piora a situação. São muitas histórias para contar nesses 20 e poucos anos de medicina. Mas voltando a sua pergunta, eu tento exercer o que há de melhor, a mesma leveza, apesar de ser uma situação difícil. Sempre buscando uma solução, respirando, e de maneira leve; isso ajuda muito. Eu tenho várias experiências relacionadas ao paciente em uma UTI, em estado grave, e ter que sair de lá demonstrando à família otimismo. Claro que não é um otimismo ao extremo – de forma a se dizer mentiras – mas é uma energia positiva que acaba por ajudar todo mundo – o doente e o familiar. A atividade em que exerço, a minha história, eu acho que é essa: sempre buscar uma solução. Isso ajuda muito.
P/1 - E agora pensando no doutor Lincoln, em como é possível se fazer esse exercício. Ou melhor, pensando na pessoa Lincoln ao sair do consultório, qual é a sua válvula de escape?
R - Música e poesia. Mesmo dentro do consultório, eu trabalho escutando música. Eu trabalho pensando em poesia. A medicina tem muito de arte, muito. É uma beleza o que a medicina tem de arte. Então, não é uma válvula de escape; bom, eu não sei se é uma válvula de escape, eu acho que seria um alimento mesmo. Não é uma fuga, é um se encontrar. É algo que me completa; não é algo paralelo, como um vício ou igual a tomar um drink para relaxar porque o dia foi terrível – eu acho isso negativo. Acho interessante essa imagem do negativo. O professor alemão (Rudolf Roemer) [01:42:05] que estudou muito alopecia, uma condição grave em que a pessoa perde os cabelos, tem uma frase ótima. O cabelo tem um impacto enorme nas pessoas; o pelo é algo em extinção, nós não temos mais pelos no corpo; eu até brinco que o homem careca é um homem evoluído. Na questão da vesícula é a mesma coisa, a vesícula está indo embora; o apêndice também, que era um detergente que servia quando comemos uma carne muito sal, e precisava de um detergente, hoje em dia se faz cálculos, claro que falando de uma forma bem leiga – o pessoal de gastroenterologia, por favor, não me reprima. São muitas coisas que se relacionam ao evolucionismo, as atividades de hibernar no inverno e o apêndice para uma determinada função, a história do pelo, depois o aquecimento global, a era do gelo e a história da vitamina do sol; enfim, de forma antropológica o homo sapiens veio da África Tropical, e se você não tem mais pelos em um clima daqueles, você deteriora folatos e você não engravida – portanto, a evolução da espécie acaba ali. Assim, a pele ficou negra em função disso; inclusive esse assunto se remete a um debate sobre racismo. O melanosto, com mais pacotinhos de melanossomos, joga na pele e forma uma cor mais moreno. Aí tem a migração na terra, o homem vai para a Escandinávia e não tem sol, logo, é ao contrário; se chegar algum negro em um ambiente sem sol, ele vai sofrer o mesmo problema, ele vai (inint) [01:44:07] tem a pele branca. Eu estou fora de lugar, eu deveria morar em Londres, eu acho, por ter essa cor tão branca – é um pedido antropológico, é apenas uma brincadeira. Voltando essa história do pelo e a exposição da pele, temos regiões de alta proteção, como os cílios, narinas – que filtram -, áreas sexuais e as axilas. Mas e os cabelos? Qual seria a função? A sobrancelha seria para não escorrer o suor; portanto, há vários fatores mecânicos no que se remete ao pelo: quando você fala da beleza, da beleza dinâmica, das sobrancelhas, e do sorriso. Mas e a aceitação da calvície? Como ela está hoje? Então, o professor Rudolf fala uma coisa bastante interessante: ‘‘Se o cigarro levasse à calvície, provavelmente não existiria cigarro no mundo’‘. Tomara que o Doutor Drauzio Varella – que fez uma campanha muito boa sobre anti-fumo – escute isso, mas acho que ele deve saber dessa expressão. Nós deveríamos colocar na caixinha de cigarro uma imagem de pessoas carecas, e não aquelas imagens horrorosas, mesmo que fosse uma mentira, já que hoje estamos na moda das fakes news. Eu pretendo fazer um estudo fake para mostrar que o cigarro leva a calvície; tenho certeza que acabaria com o cigarro. Eu falo de uma maneira brincalhona aqui, mas onde eu quero chegar? Falando-se de um conceito negativo, como este em que se o cigarro gerasse calvície ninguém usaria, faço também alusão a questões da minha área; pois se digo para um paciente que se ele não usar filtro solar, ele terá um câncer, a mensagem negativa é a mesma. Acredita-se que câncer só acontece com os outros, e nunca em nós. E há um bloqueio em nós diante de uma mensagem negativa, normal. Um bloqueio que há até quando vejo um paciente querendo pagar para colocar botox sem questionar preço, ao contrário do que acontece em casos de cirurgia de câncer. Porque eu prefiro comprar uma roupa para o meu filho a pagar por remédio, natural isso; é um mecanismo de defesa, como vimos agora pouco. Então, eu não vejo isso como uma coisa feia; é um comportamento interessante de auto-defesa mesmo. Então, quando você lança uma imagem para o paciente no sentido de ‘‘tem que usar filtro solar para evitar o câncer’‘, e lança uma outra imagem no sentido de ‘‘deve-se usar porque evita o envelhecimento’‘, os comportamentos divergem; há muito mais adesão ao tratamento em prol do não-envelhecimento. Eu já até me perdi na pergunta inicial que você colocou.
P/1 - Sobre a questão da arte relacionada à medicina.
P/2 - A válvula de escape.
R - Sim, acho que era isso que ia dizer. Então, a mensagem que você quer passar enquanto médico, dando-se enfoque para o positivo, e o momento de criação, referem-se à arte – no qual associa-se à criatividade. A arte sempre está ligado ao positivo – tudo bem que há a arte de protesto também. Então, eu vejo que me completo nesse alimento; eu levo outras coisas para o meu paciente no consultório que remetem ao positivo; por exemplo, a música. Eu não conheço pessoas que não gostem de músicas, no qual também é uma forma de linguagem, sem ela não se teria o menor sentido. São muitas situações, e a música está sempre presente no meu cotidiano. Ouço muito na ‘‘fossa’‘, como dizem; na pausa. A maneira de se colocar uma frase é uma música para mim. Alguns músicos brincam comigo me questionando o motivo de eu ser médico; é uma brincadeira que eu escuto bastante. Ainda que sejam atividades de lazer, a música e a poesia, não as vejo separadas da medicina. Há letras de músicas que falam sobre alzheimer, câncer, pele, etc. Eu tenho várias canções que fiz pensando nas histórias médicas; uma coisa alimenta a outra e eu não consigo separar.
P/1 - Infelizmente temos que encerrar, mas tem três coisas que são muito importantes. A primeira: canta uma para nós.
R - Cantar uma música assim à capela? Nossa, você me pegou de surpresa mesmo. Eu não tenho internet, não tenho rede social, a minha banda que tem tudo. Eu tenho uma banda e com ela já fizemos grandes artes, cantamos em lugares fascinantes como no Abbey Road Studios, em Londres, no primeiro disco. Depois em 2013 e 2016, gravamos no Six Sense Studios na Califórnia; tocamos no Whisky a Go Go em Hollywood. E em julho desse anos fizemos uma nova arte, que foi voltar para o Abbey Road Studios, e gravamos o terceiro álbum, no qual estamos gravando agora. Então, tem muita música.
P/2 - Então, canta uma sobre pele, já que estamos falando disso.
R - ‘‘All under skin live...’‘. O nome dessa música é tatuagem, não é bem sobre pele: (Sin for server me too case please you are, can pay too help heal/Sin for lady too faint, for think you lady see snow heap/I want a skin to live) [01:51:23]. ‘‘Eu quero uma pele para viver’‘; uma expressão que os franceses usam muito que é ‘‘est bien dans votre peau’‘, que quer dizer ‘‘está bem dentro da sua pele’‘. A pele tem várias funções; tem vários mecanismos de funcionamentos que geram proteção imunológica e combate à infecção e mantém a temperatura do corpo. Há ‘‘n’‘ situações, que englobam o tato, o beijo e demais funções sensoriais. Ela está relacionada ao bem-estar, a felicidade. Então, aí está o privilégio de ter uma profissão que lida com isso. Quando você busca isso através de uma arte, de uma música, há todo um bem-estar musical que envolve a pele. O que é estar bem dentro da sua pele? A Organização Mundial da Saúde tem um conceito muito bom sobre isso, saúde não é ausência de doença, é um bem-estar físico, psicológico, emocional e social. Portanto, a definição de saúde é muito mais ampla do que nós imaginamos. Logo, a música se encaixa perfeitamente. Vocês me pegaram de surpresa por cantar uma música à capela. Faltou um violão ou um piano. Beatles e Rollings Stones – e demais bandas britânicas – gravaram no Abbey Road, então, para nossa geração esse espaço é um santuário. Quando estávamos gravando o primeiro disco, quando entramos no estúdio 2, tinha saído uma string. O Paul McCartney está lá até hoje. Então, uma pessoa que você admira, de repente olha para você e diz: (Welcome to the Magic Room) [01:54:18]. É uma sala mágica, um ambiente mágico. O nome da banda é Splippleman, e o nome do disco tem essa frase: Welcome to the Magic Room. O segundo disco californiano partiu de uma brincadeira de mandar uma música para um festival americano, no qual um grupo independente de música selecionou. Ficamos classificados para tocar, mas não fomos. Fiquei com uma pulga atrás da orelha com isso, e acabei gravando a música no Six Sense, em que Princes também gravou. Enfim, tivemos essa ousadia de gravar nesse estúdio; com super engenheiros de som, que levaram prêmio com a (Norah Jones) [01:55:10]. Então, você está em um ambiente que você se belisca para saber se é verdade. Fizemos o CD ‘‘Lost, Now Found’‘, que é um disco bem californiano; nele há uma faixa ao vivo, que foi onde gravamos no show do Eric Martin, da banda Mr. Big, em que é também um outro santuário. Fui trabalhar em Londres como médico em dezembro, falei com os engenheiros de som do estúdio; lá começou uma brincadeira sobre traição, porque fomos gravar nos Estados Unidos, e que nos EUA é em dólar, e em Londres é pence. Eles pediram para voltar a gravar lá. Eu tive um ano de composição, falei com o pessoal da banda e começamos a gravar a música. Em julho, fizemos essa nova aventura musical, que foi uma coisa espetacular. Estamos na expectativa desse lançamento.
P/1 - Então, canta um pedacinho de novo igual cantou para nós?
R - A mesma música?
P/1 - Sim, sim.
R - Não, talvez eu poderia cantar uma outra, do disco novo.
P/1 - Não, porque de fato essa é muito bonita.
R - (Sin for server me too case please you are, can pay too help heal/Sin for lady too faint, for think you lady see snow heap/I want a skin to live) [01:56:25]. Tem um trecho dessa música que diz assim: (Everyday the chance say you make fill six for what) [01:57:10]. É uma frase que eu acho bonita. Tenho compositores parceiros de letras que me permitem fazer algumas coisas ousadas no inglês, como (Bronisław Kaper) [01:57:30] que mora em Los Angeles. E Ivan de Santana, que é um poeta paranaense; além do Serginho da banda, que é nosso maestro e pianista. Conto também com Mário Sep na guitarra, além de Mário Barros no baixo. Essa banda é uma banda de músicos profissionais. Eu entro na condição de músico quando estou com eles. Eu brinco que Curitiba tem a ‘‘Banda mais bonita da cidade’‘, e a nossa é a ‘‘Banda mais desconhecida da cidade’‘.
P/2 - Só para nós finalizarmos, o que você achou da iniciativa desse projeto de conhecer a dermatite atópica através da história de vida? Tanto dos médicos como dos pacientes.
R - Eu achei sensacional; eu já havia comentado há muito tempo, parece que havia uma questão de complay, de pacientes que poderiam contar a sua história. Mas não poderia falar certos nomes de remédios, algumas coisas não eram permitidas – porque talvez houvesse patrocínio por trás disso. Eu havia comentado isso, de algumas pessoas com hanseníase que fizeram depoimentos. Na Espanha, tem pacientes que contam suas histórias de vida; eles muitas vezes foram abandonados pela família, muitos mostram a foto da esposa e dos filhos que nunca mais viram, porque foram retirados e colocados em um leprosário. São histórias chocantes de quando não existia tratamento. Hoje é suportável ainda porque tem tratamento. A hanseníase tem muita base ligada à miséria e ao subdesenvolvimento. Tanto que na Índia e no norte do Brasil, há situações endêmicas ainda. Triste falar isso. Acho que a medicina tem que andar junto com o Ministério do Desenvolvimento. Uma caneta de um deputado pode fazer um saneamento básico de um bairro pobre e ser mais eficaz do que muitos anos de exercício médico. Por isso que se deve entender esse conceito cada vez melhor. Esses relatos são importantes, não para o médico em específico, já que escutamos isso todos os dias, mas para a sociedade. Acho que isso é muito bonito, é muito louvável. Há doenças que têm um impacto econômico mais na moda; impacto, inclusive, remetendo-se ao dinheiro, do próprio estado, que é a fonte pagadora e que interfere em bases laborais e diretas. Como é o caso da gripe, que teve um surto por esses tempos; e sarampo, e as demais doenças. Mas os portadores das doenças de pele estão lá, escondidos em casa. Então, é importantíssimo mostrar como o doente de pele tem um sofrimento grande. Portanto, parabéns ao Museu da Pessoa, que está colocando essas histórias. E os pacientes participam, eu imagino que vocês estão tendo acesso a isso. Não misturar tudo, porque o objetivo é de falar do seu sofrimento e da sua história, enquanto doente; há muito atrito porque alguns falam da sua insatisfação quanto ao tratamento e a medicação. O importante é a história do doente e da doença.
P/1 - E como foi para o senhor contar a sua história hoje para nós?
R - Tranquilo, porque parece que estou entre amigos aqui, me sinto à vontade. Eu nem vi o tempo passar.
P/1 - Pois é, estamos super atrasados.
R - Pois é, mas são histórias. E eu sempre falo que o passado é perfeito. Nossa, tem tanta coisa gostosa aqui hoje. Agradeço a vocês.
P/1 - E para finalizar, quais são seus sonhos?
R - Nossa, você tem tempo?
P/1 - Eu tenho dois minutos. Mas é o senhor quem está atrasado.
R - Primeiro, quero que você pare de me chamar de senhor. Talvez em um museu, será que terá boneco de cera?
P/2 - Tem múmia.
R - Eu vi uma palestra interessante sobre a pele da múmia lá em Lion, no museu. Interessante. Eu tenho muitos sonhos, eu sou um sonhador; sou um grande sonhador. Lógico que temos uma grande dádiva, e a maior dela são os filhos. Tenho uma grande realização em ser pai, acho que o que tenho de melhor é a minha paternidade. Os grandes sonhos envolvem meus filhos; e sejam pessoas do bem e sonhadoras como a mim. E se nós abrirmos esse sonho para todos, é um sonho comum. Nossa vida está ligada – nossa arte maior – envolve a nossa herança, em que você impacta de uma forma positiva, com a intensidade de vida. Esse é o meu maior sonho, o sonho de uma vida bonita, cheia de amor. Talvez o sonho seja não deixar de sonhar, esse é o meu maior sonho.
P/2 - Tudo bem, doutor. Em nome do Museu da Pessoa, agradecemos muito a sua presença, sua apresentação e disponibilidade.
R - Obrigado. Eu que agradeço a presença de vocês.
P/2 - Muito obrigada, foi muito bom ouvir a sua história.
P/1 - Obrigada. Pena que a gente não conseguiu falar mais dos seus filhos também.
R - Ele pegou a imagem, a frase está boa.
P/2 - Temos a questão das fotos também.
[02:04:19]
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