Então para começar íamos pedir à Maria João, por favor, que se apresentasse, dissesse o seu nome, local e data de nascimento.
O meu nome é Maria João Feio, nasci em 24/03/1961 e neste momento sou gestora.
Como é que se chamam ou se chamavam os seus pais?
O meu pai chamava-se Israel da Assunção Feio, já falecido há cerca de 30 anos, a minha mãe chama-se Prazeres da Graça Amaro Feio, tem 86 anos e ainda vive comigo.
E o que é que eles os dois faziam?
A minha mãe trabalhava em casa, o meu pai era farmacêutico e proprietário rural.
E a farmácia era aqui?
Não, era farmacêutico no Porto, então a nossa vida dividia-se entre o Porto e Vila Flor.
Quais eram os principais costumes da sua família? Tem assim alguma lembrança?
Sinceramente assim de repente não me recordo.
Tem irmãos?
Tenho um irmão mais velho que ele se chama Israel Amaro Feio e que trabalha nas finanças.
Gostava de ouvir histórias? Alguém lhe contava histórias na família?
Às vezes o pai contava histórias, porque o meu pai, era um homem com muita cultura, era um homem extraordinariamente culto, e quando eu nasci ele já não era propriamente um teenager, então tinha muitas vivências, era um homem com muita vivência, portanto, e era um homem muito à frente do seu tempo. Tinha muita visão de muito interessante sobre muitas coisas, convém que se diga também que era um homem que se fosse agora vivo tinha 103 ou 104 anos e era um homem extraordinariamente sensível, um homem muito sensível para a sua época. Ele chorava quando via filmes e gostava muito que lhe oferecessem rosas e havia outra coisa, ele tinha flores, nomeadamente rosas, que era sua grande paixão em todas as propriedades que tinha e era ele próprio que as cultiva, também no jardim de casa e sabia o nome todo das espécies de rosas que havia. E havia outra coisa que ele também tinha muito interessante, como era de farmácia, ele próprio tinha os seus canteiros com as plantas que gostava, porque na...
Continuar leituraEntão para começar íamos pedir à Maria João, por favor, que se apresentasse, dissesse o seu nome, local e data de nascimento.
O meu nome é Maria João Feio, nasci em 24/03/1961 e neste momento sou gestora.
Como é que se chamam ou se chamavam os seus pais?
O meu pai chamava-se Israel da Assunção Feio, já falecido há cerca de 30 anos, a minha mãe chama-se Prazeres da Graça Amaro Feio, tem 86 anos e ainda vive comigo.
E o que é que eles os dois faziam?
A minha mãe trabalhava em casa, o meu pai era farmacêutico e proprietário rural.
E a farmácia era aqui?
Não, era farmacêutico no Porto, então a nossa vida dividia-se entre o Porto e Vila Flor.
Quais eram os principais costumes da sua família? Tem assim alguma lembrança?
Sinceramente assim de repente não me recordo.
Tem irmãos?
Tenho um irmão mais velho que ele se chama Israel Amaro Feio e que trabalha nas finanças.
Gostava de ouvir histórias? Alguém lhe contava histórias na família?
Às vezes o pai contava histórias, porque o meu pai, era um homem com muita cultura, era um homem extraordinariamente culto, e quando eu nasci ele já não era propriamente um teenager, então tinha muitas vivências, era um homem com muita vivência, portanto, e era um homem muito à frente do seu tempo. Tinha muita visão de muito interessante sobre muitas coisas, convém que se diga também que era um homem que se fosse agora vivo tinha 103 ou 104 anos e era um homem extraordinariamente sensível, um homem muito sensível para a sua época. Ele chorava quando via filmes e gostava muito que lhe oferecessem rosas e havia outra coisa, ele tinha flores, nomeadamente rosas, que era sua grande paixão em todas as propriedades que tinha e era ele próprio que as cultiva, também no jardim de casa e sabia o nome todo das espécies de rosas que havia. E havia outra coisa que ele também tinha muito interessante, como era de farmácia, ele próprio tinha os seus canteiros com as plantas que gostava, porque na altura fazia-se muitos manipulados. Eu tive uma infância muito engraçada porque foi passada entre o campo e um laboratório de uma farmácia, que era a minha paixão, mas a vida levou-me para outros caminhos... Eu acho que o meu pai ainda pensou durante uns certos tempos que para farmácia, mas não fui porque pronto a vida levou-me para as humanísticas e pronto e tivemos de vender a farmácia.
Sabe a origem da sua família?
Sei! A origem da minha família, do lado do meu pai sou originária de uma família de cristãos-novos, devido à minha formação em história e eu já fui fazer a história toda da minha família, por isso é que eu sei. Tinha um avô sapateiro, provém de Penedono e da Meda, zona de refúgio judeus. Portanto, o seu próprio nome assim o indica como pode ver... Então eu tinha um avô sapateiro e uma avó que fazia flores e tinha do lado da minha avó tinha uma avó que trabalhava em casa e tinha um avô que era alfaiate. Do lado da minha mãe, também sei a origem, são todos originários dali do Vale da Vilariça. A minha mãe tem mais 2 irmãs, sendo ela a do meio e a minha avó era uma figura muito bonita. Era uma figura de cera. Ela morreu, era eu muito menina, mas lembro-me perfeitamente dela e o meu avô, eram proprietários, e o meu avô diziam as pessoas que era talvez o velho mais bonito que a havia na Vilariça. Eu tenho uma ideia muito bonita do meu avô, depois morreu senil, morreu com demência e era um homem com cabelo branco, muito lindo, era um homem muito bonito. É precisamente essa ideia dele
E são memórias de infância?
Sim, exatamente.
Como é que descreveria a sua infância? Lembra-se da casa onde cresceu?
Sim, perfeitamente, era uma casa de Vila Flor com rés do chão e primeiro andar, uma casa grande com jardim, com armazéns e depois a minha infância foi muito... porque eu fiz a escola primária em Vila Flor, o meu pai era um homem com possibilidades, mas ele acreditava na escola pública, portanto eu fiz a escola em Vila Flor e depois é que fui estudar para o Porto. Foi uma infância muito feliz porque tinha todo o espaço do mundo, tinha todo, tinha tudo. Íamos passar, tínhamos casas no Porto, ia passar 3 meses de férias para o Porto para a praia, portanto, foi uma infância muito, muito feliz. Convém que se diga, não sei se isto se enquadra, eu não tenho problemas nenhuns em falar sobre isso... eu nunca, nunca correspondi, já desde menina, tenho 61 anos, nunca correspondi à ideia padrão de menina daquela altura, fui sempre muito diferente, fui sempre muito diferente, não só na maneira de estar e de pensar, mas havia uma coisa que...não sei se vocês sabem, mas no meu tempo ser-se bonito era loiro e branco, e eu fui sempre morena, muito morena. Ouvi muitas vezes, esta acontecia com os meus pais, aliás o meu pai ficava muito zangado, ouvi muitas vezes dizerem que à minha mãe: sim, é bonitinha, mas é pena ser tão escura... percebe? Havia quase como um estigma, que eu acho que ultrapassei, não me marcou. Ou seja, eu tinha sempre uma reação contrária. Ficava cada vez mais escura. Percebe? Então passei a minha vida no campo, eu adorava andar no jardim e a coisa que eu mais ouvia da minha mãe era dizer, sai do sol que estás a ficar muito escura. Pronto está a perceber, havia toda uma envolvência. Eu tenho plena noção, voltando para trás que nunca correspondi à típica, ao padrão, ao cânone instituído de como seriam as raparigas naquela altura, nos anos sessenta, eu nasci em sessenta e um, nunca correspondi a esse padrão.
E lembra-se da Vila de quando era mais jovem e das diferenças que tem vindo a assistir?
Sim, lembro-me da Vila perfeitamente. Lembro-me que, eu ia para a escola sozinha, a pé ainda era uma distância considerável na altura, fazíamos percursos sem casas e corria sempre tudo bem, às vezes o pai ia buscar-me porque como eu era menina, o pai tinha sempre um certo carinho e o às vezes iam-me buscar, mas eu gostava muito de ir a pé, de andar pelos campos, de vir por ali fora sozinha, a Vila era muito mais pequena. O meu pai era dos poucos homens em Vila Flor que tinha carro, automóvel e nós tínhamos um cão que quando o meu pai saía do café, que era na Praça da Vila, onde nós estivemos, o cão sabia que o meu pai ia chegar. Era muito engraçado. A Vila era... as pessoas conheciam-se todos, os estratos sociais estavam muito mais vincadas, as diferenças sociais, claro, isso muito mais, não tinha nada a ver com o que é agora, as coisas socialmente esbateram-se, mas era o muito.... havia os senhores e havia as pessoas. Não havia uma classe média, havia os senhores que tínhamos uma grande vida, uma boa vida, mas vivíamos numa economia muito... mesmo tendo uma vida boa, nomeadamente em casa dos meus pais e na casa dos meus avós, vivíamos numa economia de muita reciclagem, reciclava-se tudo, aproveitava-se tudo, desde a roupa à comida, não havia, não havia desperdícios. Era uma situação muito diferente e havia muita solidariedade. Em casa dos meus avós que uma daquelas casas da praça, o meu avô, todas as sextas-feiras, punha uma mesa corrida enorme, onde os pobres iam comer, iam buscar alimentos.
Tem essas memórias muito marcadas...
Tenho, tenho essas memórias muito marcadas, muito marcadas, muito vincadas
O que é que gostava de fazer quando era criança?
Brincávamos imenso porque nós tínhamos o campo todo e andávamos sempre pelo campo, íamos aos grilos. Nunca brinquei muito com bonecas, confesso. Era um bocadinho arrapazada e, curiosamente, há um episódio muito engraçado porque davam-se sempre, os meus pais quando me ofereciam, ofereciam-me sempre a tradicional boneca loira de olhos azuis e a minha reação foi um dia perguntar ao pai, que era realmente um homem muito evoluído e como ia com muita frequência ao Porto, ia quase de 15 em 15 dias porque tinha a farmácia, um dia eu disse: ó pai não me tragas uma boneca loira, arranja-me uma boneca escura. E o pai trouxe-me uma boneca, que é a única boneca que eu guardo, que quando o meu filho - Tenho um rapaz, sou mãe de um rapaz - entrou na fase de querer bonecas eu disse: tá aqui a boneca, acabou-se, brinque lá com a boneca, que eu não quero mais saber disso, uma boneca, que é uma mulata. O meu pai conseguiu arranjar-me uma mulata.
Eu ainda me emociono ao fim de 30 anos quando falo do meu pai. Eu penso que ... eu nunca pedi a lua, mas no dia em que eu lhe pedisse a lua ia ser um drama para ele, porque ele havia de arranjar maneira de me arranjar qualquer coisa em que eu ficasse convencida, que era a lua. Ainda me emociona ao fim de 30 anos.
Tínhamos amigos?
Sim, tinha os miúdos todos da escola. Apesar das diferenças sociais, eu levava as miúdas lá para casa.... Tínhamos uma vida muito boa
E o que é que queria ser quando crescesse?
Olhe...nunca tive uma vocação muito marcada. Fui sempre uma mulher todo-o-terreno, muito abrangente, era para fazer, eu fazia. Houve uma altura em que eu achava que devia ser bailarina. Eu era muito fininha, magrinha achei que ia ser bailarina, mas depois até a aprender tocar piano, que também sei alguma coisa, mas depois a vida nunca fui assim marcadamente alguma coisa. Mas há uma coisa que eu nunca quis ser, foi professor. Não sei porquê, eu fui sempre acompanhada pela mesma professora, que ainda é viva, até à quarta classe, o quarto ano agora e eu sempre, ainda hoje, tenho boas relações com a minha professora, mas não sei porquê, mas nunca fui uma pessoa assim muito marcada, percebe? Fui uma pessoa muito ambivalente e continuo a ser nesse sentido.
Então ia a pé para a escola e teve essa professora durante esses 4 anos aqui em Vila Flor...
Exatamente
E tem algum um episódio que a tivesse marcado?
Olha, lembro, lembro-me perfeitamente, é assim: eu tinha colegas que passavam fome. E eu andava na primeira classe... tenho 2 ou 3 episódios que me marcaram muito. Uma foi a fome das minhas colegas e então eu nos primeiros dias nunca lanchava porque dei sempre o lanche, mais tarde eu levava lanche para uma ou dois e levava para mim, que eu sei muito bem, quem são, ainda hoje sei muito bem quem são. Tive um episódio de uma colega que tinha epilepsia e volta e meia davam-lhe uns ataques. E a primeira vez que a Ana, desculpem o nome, mas também não é uma coisa... a primeira vez que a Ana teve um ataque, eu fiquei horrorizada porque era a roupa dela abriu-se toda e descobriu-se toda e eu reparei que Ana usava um cinto de couro junto ao corpo com uma bolsinha e com umas coisas lá dentro. Eu não percebia o que era aquilo e quando cheguei a casa eu disse ao meu pai, e o meu pai disse-me lá estão eles com as bruxarias, a Ana é epilética, eu já lhe disse para irem ao médico. Então aquilo era um coiso, porque diziam que ela estava possuída. E eu fiquei assim um bocadinho... porque eu nunca tinha...
Experienciado esse outro lado...
Exatamente, nunca tinha experimentado isso.
Essas duas chocaram-me, eu tive outra também muito engraçada que eu era muito escura, como disse, era muito morena, agora não posso apanhar sol por questões de saúde, e então eu tinha uma mancha no pescoço. E um dia a professora, no meu tempo as professoras iam ver a nossa higiene ou seja unhas, mãos, orelhas e pescoço, eu tinha uma mancha no pescoço e ela zangou-se comigo, porque dizia que eu tinha o pescoço sujo e eu não tinha o pescoço sujo... Isso magoou-me muito em termos da escola. Noutros termos, eu fui gaga durante a minha infância e ouvi muita coisa feia, pelo facto de eu ser gaga
Por parte dos colegas, dos professores...
Não, não... por parte das pessoas da altura, nunca os meus colegas, os professores também não, mas eu atenção que eu era mais gaga... Eu tenho que confessar uma coisa, eu tenho sempre tive uma relação, um bocadinho conflituosa com a minha mãe, por exatamente por eu não pertencer ao padrão instituído e eu era gaga em contexto familiar só. Era só gaga em contexto familiar, devido a essa pressão, que me era exercida para eu estar de acordo com.
Eu comecei a usar calças muito novinha, eu andava sempre atrás do meu irmão, porque havia alturas em que a única pessoa com quem eu tinha para brincar era o meu irmão. Portanto, eu entrava nas brincadeiras dos rapazes, do meu irmão e dos amigos... Eu nunca achei muito graça brincar... não brincava com carrinhos, nunca fui muito disso, mas eu gostava muito de andar ao ar livre, saltar, subir às árvores, paredes, andar aos grilos essas trapalhadas... a correr com os cães e as raparigas não faziam isso.
Lembra-se de algum professor que a tivesse marcado positiva ou negativamente?
Sim, lembro-me de alguns, eu fiz o liceu no Porto, está a falar disso?
Sim... pode ser
Sim, houve alguns, houve uma professora, nomeadamente de história, não sei se foi por isso que eu segui história, mas acho que não foi. Foi que nos deu acesso a bibliografia, que na altura quase ninguém tinha ou sabia da existência dela e ela abriu nos muito os horizontes e houve uma outra que nos marcaram; não nos marcou, marcou, não me marcou, não de todo, assisti a episódios assim, um bocadinho mais complicados, nomeadamente uma professora que nós tínhamos de português e francês que nos tratava por vacas pretas, que eu nunca percebi muito bem o que é que aquilo queria dizer... Eu tinha uma colega... Ai essa cena é perfeitamente... se fosse agora, se fosse agora isso acho que não acontecia. Eu tinha uma colega que se chamava Glória, veja a minha memória com olhos azuis, loira, a menina era de Arouca e as pessoas de Arouca abrem as vogais quando falam, certo? E nós estávamos a dar um texto, um livro em francês que se chamava "Lettre de mon moulin! de Alphonse Daudet, não me lembro do resto, mas disto lembro-me: a miúda dizia, Lettre mon moulã, e ela passou uma aula inteira com a miúda e uma dizia moulin e outra dizia moulã, a miúda já chorava e ela continuava. É horrível. Pronto é assim, mas de resto foi tudo muito pacífico...
Tinha boas notas?
Sim. não era propriamente um génio, mas tinha sempre boas notas. Cheguei a ter vinte a história, por exemplo, depois a minha opção pela área das humanísticas, teve muito a ver com muitos livros, muitos livros que eu li, eu tive acesso a muitos livros em casa, havia uma grande biblioteca, e depois também eu não fui para química, ou para essa área porque não me dava com a física, nunca me dei muito com a física e tive uma professora de matemática que também não foi propriamente uma pessoa que nos tivesse despertado para a coisa. Ou seja, ela chegava à aula e dizia, prai no segundo dia de aulas, e dizia assim: numa turma eu gosto de 2 ou 3 alunas, detesto o resto, o resto para mim, não me interessa. Acho que isto... está tudo dito, não é? Eu devo ter sido aquela gente que não contava, portanto...
Não a motivou...
Não, de todo. Mais tarde na minha vida, vim a descobrir muitas coisas sobre a matemática e como é que aquilo funcionava, mas foi uma pesquisa própria, uma pesquisa interna que eu fiz e pronto.
Então depois foi para o Porto para estudar... foi com os pais?
Sim, sim
Os meus pais como tinham lá a casa e farmácia, o meu pai também tinha que lá estar...
Mas foram por razões de estudo?
Sim, sim, foi essencialmente o pai mudou de vida, exatamente para nós estudarmos.
E como é que foi esse percurso depois da juventude, de estar no Porto, de começar a sair no Porto?
A coisa que mais me custou, vou-lhe me contar, ainda hoje tenho essas memórias, foi passar de um espaço muito grande para um espaço muito, muito mais condicionado. O liceu correu bem, sem problemas, ainda hoje mantenho amigas do tempo do liceu, uma grande maioria das minhas amigas são todas do tempo do liceu. Era um liceu feminino, que os liceus estavam separados por femininos e masculinos. Usávamos bata... Algumas outras cenas perfeitamente caricatas, porque nós tínhamos, no liceu Rainha Santa Isabel, tínhamos uma reitora que era a ***, que era uma pessoa um bocadinho severa e pronto era... a gente já sabe o que era. Nós tínhamos escadas para subir, escadas para descer. E então eu fui sempre muito despassarada em certas coisas e um dia fui apanhada a descer pelas que subiam ou vice-versa, eu já não me recordo ao certo como é que foi a coisa... e meu encarregado de educação era o meu pai e ela chamou o encarregado de educação à sala. O meu pai sabia que era uma miúda que tinha .... e achou muito estranho, o que é que eu teria feito de tão grave para ser chamado à escola. Então, tinha aquela irreverência, era irreverente, mas nunca passava dos limites, digamos, era q.b.. E ela chamou o pai, e o pai quando entrou no gabinete disse: qual foi o crime que a rapariga cometeu? E ela disse, foi apanhada a subir pelas escadas que desciam...E a Senhora chama-me cá para isto, acha que eu tenho tempo para isto? Deve estar a brincar comigo!
Entretanto, deu-se o 25 de abril de 74 e a coisa.... também começou a aparecer... ai também eram só professoras, as professoras eram só professoras, não tínhamos contato. Os rapazes que em cima há o liceu Alexandre Herculano e os rapazes não podiam parar no nosso passeio nem em frente. Depois deu-se o 25 de abril de 74 e tudo se alterou. Eu nunca tive rapazes da minha turma, mas tive professores, homens, mas rapazes não porque eu já estava mais adiantada e continuamos sempre com as turmas femininas. Pronto e foi um percurso engraçado com amigas, fazíamos as coisas, íamos para o café, íamos passear, sempre gostei muito de passear pelo Porto, eu conheço muito bem o Porto, todo o interior do Porto, tudo isso e depois vinha passar as férias sempre a Vila Flor.
E começavam a sair sozinhas?
Não, nós nesse tempo, nós não saíamos, nós, raparigas, só saímos durante o dia, as raparigas só saímos durante o dia, íamos para casa umas das outras, íamos ao café, íamos ao cinema e pouco mais.
E como era o grupo de amigos? Só mulheres?
Era só mulheres, exatamente era só mulheres, não havia homens, os homens entraram mais tarde nas nossas vidas...
E que momentos assim de efervescência tinham? Algumas festas?
Não, também não fazíamos grandes festas também não havia assim muitas festas, não tinha assim...
Ah eu, com 12 anos, cortei com a religião. Porque comecei a ler uns livros, uns livros muito filosóficos de Bertrand Russell, e outro tipo de coisas, portanto, também cortei com a religião. Foi também um... houve ali, em casa as fricções com a minha mãe, obviamente. Mais uma ficção porque eu cortei com a religião, mas não nós tínhamos, nós tínhamos o contato umas com as outras, vivíamos muito umas com as outras e rapazes eram eles também... eu tinha o meu irmão, também tinha um grupo de rapazes, mas não tínhamos muito contacto. Não havia, não havia muito contato com os rapazes
E quando foi para a faculdade, como é que foi esse período? Escolher o curso foi na Faculdade do Porto?
Eu comecei por estudar ciências políticas para Coimbra, mas não me ambientei nem ao curso nem a Coimbra e depois pedi transferência para outro curso, na altura era assim porque eu tinha umas equivalências. Eu fiz um ano letivo em Coimbra, tive um ano letivo em Coimbra e depois pedi a transferência e foi-me dada com algumas equivalências, outras não foram dadas, tive de voltar a fazer as cadeiras, mas tudo na Universidade do Porto.
Qual é que era o curso?
História
História e o que é que mudou na sua vida a partir desse momento em que entra num curso que afinal gosta demais? Mudou alguma coisa na sua vida?
Não, continuei impávida e serena na minha vida
Tem algum momento marcante do período da universidade?
Não, assim que eu me recorde assim não, correu tudo muito bem. Correu tudo muito bem. Assim nada que eu tenha....
Nada que a tenha marcado depois a nível profissional, que possa ter marcado depois a nível profissional?
Não, não, não houve assim de repente sou franca que não me recordo.
Quando é que começou a trabalhar depois?
Entretanto, eu fiz um interregno, fui para o Oriente. Eu tive uns tempos no Japão, na Tailândia e na Índia, porque o meu pai era apologista, que a gente devia... não primeiro passei por Inglaterra, peço desculpa, primeiro passei por Inglaterra, depois é que passei pelo Japão, pela Índia e pela Tailândia, porque meu pai achava que a gente devia abrir horizontes. E porque é que isto aconteceu? Aconteceu porque o meu pai tinha um amigo cujo filho era o ** cultural, na embaixada em Tóquio e eles proporcionaram-me a ida e depois foram eles que me abriram as portas todas para ir para a Tailândia e para ir para a Índia. Convém que se diga foram eles que me foram abrindo as portas. De alguma maneira, fui com as costas escodadas. Eu tinha, eu posso lhe dizer que estava em Inglaterra quando foi o casamento, não... Já estava em Tóquio, quando foi o casamento da Lady Di com o Príncipe Carlos. Foi nessa altura que eu fui. E lembro-me perfeitamente do que é a sensação tinha, portanto, 20 anos, acho eu, já não me recordo as datas ao certo, nasci em 61, não sei quando é que foi o casamento é uma questão de se ver, e então recordo-me perfeitamente da sensação que é entrar num numa sala de aeroporto, que é uma coisa absolutamente gigantesca, e eu era a única mulher sozinha. E uma miúda. Foi uma aventura muito grande, foi das coisas que mais me marcou na minha vida. Foi essa aventura
Essa chegada...
Não, essa aventura toda que eu fiz sozinha. Foi uma aventura.
Durante quanto tempo?
Não durou, não durou um ano, mas quase, não era costume as mulheres na.... não se proporcionava este tipo de vida a quase ninguém. Eu ainda levei travel cheques que não me esqueço. A minha mãe... não havia cartões de crédito, não havia nada. A minha mãe andava sempre, peço desculpa pela expressão, histérica porque não havia telemóveis nem comunicações e meu pai foi sempre um bom sarás, dizia: É porque ela não precisa de nada e porque ainda não há desgraças, porque as más notícias chegam sempre, se se passasse alguma coisa já tinha dado notícias. Impávido e sereno.
Foi a primeira vez que saiu do país?
Sozinha, sim. Saía com os meus pais algumas vezes, mas sozinha foi a primeira vez. Sim, sim, sim.
Como é que foi chegar a uma cidade e um país novo sozinha? Tem alguma dificuldade que tenha identificado, alguma coisa que tenha chamado à atenção quando se mudou?
Chamou-me em Tóquio, Tóquio há 30 anos atrás. Não são poucos, eu estive há 30 anos atrás, não tive há mais, peço desculpa, quarenta. 40 ou mais anos atrás! Não tem nada a ver com o que era agora. Havia uma mistura muito grande de culturas, ainda havia. Eles ainda usavam ainda, por exemplo, eu lembro-me perfeitamente que a aristocracia era quem vestia, eram os únicos que vestiam quimono, as senhoras da aristocracia usavam quimono. Ó pá episódios muito engraçados que eu vivenciei, muitas coisas muito engraçadas. Havia na altura, não sei como é que está essa cultura agora, sou franca, mas na altura havia muitos suicídios de jovens, porque eles não conseguiram conciliar a escola com os costumes ainda em casa ancestrais, havia ali ainda uma grande dualidade, inclusive havia um edifício em Tóquio que eles tiveram de fechar, que era sítio da morte, porque não sabiam qual era o fascínio que aquilo tinha, os miúdos atiravam-se todos ali para baixo e não era um edifício demasiado alto, havia muito mais alto. Portanto, havia já um grande desenvolvimento tecnológico, uma coisa de perfeitamente absurda e tinham uma vida muito em casa, ainda muito ancestral dos costumes. Os Japoneses ainda mantêm os banhos públicos e toda a.…E havia uma grande competição entre os miúdos por causa dos cargos e essas coisas todas. Havia, por exemplo, eu quando cheguei cá e contei coisas, pensavam que eu estava tolinha ou que estavam a inventar. Eu que fiz uma viagem de 22 horas porque não se sobrevoava o espaço soviético, portanto ainda foi à volta pelo mundo. E depois é que fui para Tóquio, foram 22 horas, portanto quando cheguei, não sabia em que dia estava, nem que horas eram, era uma coisa muito complicada, os fusos horários aquilo era uma loucura. Eu, por exemplo, sei que os miúdos faziam imensas excursões. Os miúdos tinham uma educação muito ativa, muito fora, muito fora, viajava muito com as escolas e também sei que, por exemplo, já na altura, os funcionários das grandes fábricas de automóveis viviam dentro das fábricas, tinham instalações para viver dentro das fábricas para não perderem tempo ao deslocar e para não se cansarem, as vacas para dar o leite e quando eu contava isto ninguém acreditava e agora é uma coisa que toda a gente sabe. As vacas para dar leite ouviam música clássica, quando eram ordenhadas e davam massagens nas vacas ** que é a carne mais cara do mundo, eram massajadas. As pessoas achavam que eu era louca, porque eles tinham um nível de tal maneira avançado, que ninguém acreditava nisto. Depois eu fiz a minha viagem saí daí...
O que é que a Maria João fazia nessas viagens?
Eu viajava...
Nunca chegou a fazer algum trabalho?
Cheguei a fazer um trabalho sobre a revolução industrial. Foi isso que eu fui fazer. Nos países asiáticos. E então o que é que acontece? Eu depois fiz a viagem, fui para a Tailândia, fui para a Índia e aí foi o horror dos horrores, porque não tinha nada a ver, a nível de vida, tudo perto, completamente diferente. Nomeadamente, na Tailândia, na altura, vivia na prostituição infantil, de raparigas, era uma coisa horrorosa. Porque a Austrália, Nova Zelândia, está logo abaixo, e os tipos vinham com grandes iates por ali acima.... eu na Tailândia viajei sempre com uma rapariga chamada Lada que quer dizer Ana Maria, que era casada com um americano. E ela foi sempre a minha companheira de, ela e o filho. O marido menos. Foi sempre a minha companheira de route. Eu vi coisas inacreditáveis. Eu vivi numa aldeia de barcos, vivi num barco numa aldeia de barcos. E a miséria era uma coisa muito, muito marcante, especialmente a miséria humana. Era uma coisa muito marcante. Eu soube que as raparigas que se prostituíam na altura, não havia quase rapazes ainda, o masculino, era na altura, mais nas Filipinas. Ali na Tailândia, era mais as meninas. Ainda havia aquele encobrimento, foi aí que eu acho que começou toda esta brincadeira, salvo seja, das massagens e não sei quê, foi aí que começou, na Tailândia. Havia as casas de massagens que não eram casa de massagens nenhumas.... Eu vi coisas inacreditáveis, as miúdas sei que ganhavam mais numa noite do que no mês inteiro a trabalhar na fábrica e toda uma estrutura familiar dependia daquilo. Eu, eu nunca saí do hotel sozinha, por exemplo, onde estava, isto em Bangkok. Na província não, na província era perfeitamente tranquilo e sereno, mas... para começar não havia muitas mulheres orientais sozinhas e, portanto, eu uma vez tentei sair e ainda andei para lá daqui ali ao lado da rua e veio um tipo atrás de mim, o porteiro e meteu dentro e disse, não sai daqui sozinha, porque há tráfico de mulheres, nomeadamente mulheres ocidentais. Portanto, foi numa zona assim, um bocadinho complicada, porque nós, quando saímos do hotel, íamos ver como estavam as nossas malas, se ninguém não tinha posto lá nada porque podia ser complicado ficar por ali, não é? Portanto, tínhamos instruções para fazer esse tipo de coisas. Eu, quando cheguei a Londres vinda da Índia, revistaram-me as malas completamente, uma coisa perfeitamente traumatizante, os sapatos, as solas dos sapatos, fizeram-me coisas terríveis que foi posta ao lado no aeroporto e depois fui vista, revista e se o cabelo era meu, tudo, uma série de coisas por causa do tráfico. Foi, mas, entretanto, na Índia, se na Tailândia mal na Índia era pior. Eu na Índia tive, não trabalhei com eles, viajei com eles com uma equipa da UNICEF, que fazia formação às mulheres sobre limpeza, sobre higiene, sobre esse tipo todo de coisas. É indescritível o que eu vi, não, nunca mais fui a mesma. Tudo aquilo, tudo o que eu vi é uma coisa que transcende, transcende tudo o que nós passamos e possamos imaginar. Estamos a falar há 40 anos. As coisas alteram-se de alguma maneira, mas não tanto quanto isso. Mas foi, foi, foi muito, muito foi, foi talvez a coisa mais que mais me marcou até hoje na minha vida.
Gostaria de exemplificar mais alguma coisa mais?
Já foi há 40 anos… há muito coisa que está esbatida, só que a está muito presente. Pessoas a dormir, famílias inteiras a dormir na rua… vim do Japão que aquilo era tudo muito limpo. Tóquio na altura, o Porto parece que é 100 vezes mais barulhento que Tóquio, os carros não podem fazer barulho, também é um mundo ali metido, se eles não vivessem com o mínimo de organização não se aguentavam, obviamente, mas pronto, tem haver com a maneira de ser deles. Há um sentido cívico muito grande porque se alguém que chama à atenção, eles vivem muito assim…. Quase todas as ruas tinhas semáforos, mas vamos supor que houvesse uma rua ou outra que não tivesse semáforo, eles juntavam-se para não ser um a um a atravessar a passadeira, senão nunca mais os carros conseguiam passar, juntavam-se 5 ou 6 ou 7 e eu levantava a mão e toda a gente passava serenamente, os tipos tomam a iniciativa de levantar a mão e os tipos passam. Depois passai pelo caos, para o caos, porque eles, ainda hoje tem, o sistema de castas, na altura estava mais acentuada há 40 anos atrás. Portanto havia muita gente a viver na rua e pessoas que tinham o mínimo para sobreviver, nomeadamente nas grandes cidades, no campo as coisas tem outra, são um bocadinho diferentes…
E depois regressa para o Porto.
Regresso para o Porto e continuei a minha vida académica, continuei a estudar, fiz o meu curso, fiz a licenciatura, depois fiz uma pós graduação em história económica e social na época moderna e fiquei a trabalhar na faculdade, não como professora, mas como investigadora, trabalhei durante uns anos na investigação… entretanto, eu estou a trabalhar na faculdade e como sou uma pessoa que me interesso por várias áreas do saber, fui fazendo cadeiras do curso de filosofia, do curso de história de arte e um dia venho a descobrir que também tenho a licenciatura em história de arte, que eu não fiz de propósito, atenção. Um dia venho a descobrir isso e então eu trabalhei para uma organização chamada +++ - gabinete de história e do douro+++ que está ligada à fundação Leonardo Coimbra, eu trabalhava para eles, trabalhávamos com objetivos, fiz muitos +++, inclusive para museus, museus perdão para arquivos… trabalhávamos com objetivos e fiz muitas aqui na zona do Porto ++++++
O que fazia com o dinheiro que ganhava?
Tinha… ai o que é que eu fazia…ia de férias, tinha um bom carro, comprava muito boa roupa e basicamente era isso
Depois que outros trabalhos é que teve?
Depois, entretanto, o meu pai faleceu, foi um choque muito grande, como pode calcular, ficamos todos com as vidas de pernas para o ar e tenho um irmão mais velho que começou a tomar conta das propriedades que os meus pais tinham aqui em cima e um dia o meu irmão resolve dizer que não toma conta das propriedades e que amanhem-se, chega a casa da minha mãe e atira-me com as pastas, foi uma altura de muito conflito familiar, muito conflito familiar, mesmo.
Entretanto, ele atira com as pastas todas e eu fiquei com a criança nos braços. Como não sou mulher de baixar os braços, tomei a coisa a peito, entretanto, comecei a andar cá e lá, lá e cá isso e cheguei à conclusão que não fazia bem nem uma coisa nem a outra, depois também comecei-me a fartar um bocado da faculdade, também tinha uma relação que começou também a entrar numa fase complicada e eu decidi que me vinha embora. Fiz o curso de jovem agricultora.
Aqui?
Sim, tinha 39, 38 anos, acho eu, sim tinha praí 38 anos. Fiz o curso jovem agricultora e como tinha as propriedades, pronto instalei.
E como é que eram as condições de trabalho? O que é que fazia? Que tarefas é que assumia nessa nova função?
Tudo o que era gestão.
Das propriedades
Sim, desde a contabilidade. Eu assumo desde contabilidade, tudo, sou eu que faço tudo, portanto, assumi essa parte depois eu tenho alguém por trás que tem outra formação na área, mas fui eu que assumi isso tudo sempre.
E como era a relação com a equipa? Tinha uma equipa de trabalho consigo...?
Tinha os empregados rurais e eles olhavam para mim assim um bocadinho de lado, obviamente era mulher, mas como era a filha do senhor Doutor, eles lá me iam aguentando, mas pronto era assim, mais ou menos.
Uma relação que pelo facto da mulher...
Era, eu senti sempre isso. Senti sempre isso, o fato de eu ser mulher eles nunca me levaram muito a sério, confesso.
Nunca teve então períodos de desemprego?
Não, no sentido de desemprego, não.
E depois desse trabalho manteve-se e foi evoluindo dentro desta área? O que é que foi mais desenvolvendo?
Fui desenvolvendo o agroturismo. Sou provadora oficial de azeites, criei todo um coiso à volta... fiz vários cursos de turismo, muita formação na área do turismo, portanto, fui-me envolvendo nestas tarefas e nestas componentes...
Evoluindo também e verificando algumas mudanças também...
Sim, sim, sim, sim
A gestão de propriedades alterou-se assim significativamente...
Sim, porque eu ganhei outras valências. Isso aí percebi, comecei a perceber como é que as coisas funcionavam, porque quando eu cheguei era completamente nada, tinha noções básicas de gestão, mas não tinha aquela especialização, digamos, fui ganhando pela intervenção.
A Maria João é casada?
Tenho uma relação....
Em união de facto?
Sim, em união de facto.
Lembra-se do dia em que conheceu o seu companheiro?
O meu companheiro já conhecia há muitos anos e depois por circunstâncias da vida.... Sim, sim, lembro-me perfeitamente, já conhecia o meu companheiro prai desde os 19 anos e, mas a coisa só se realizou muito mais tarde, como pode ver, devido a circunstâncias de vidas.
Ele é de cá?
O meu companheiro não é de cá, vivia cá, é do Porto vivia cá também estava a saído de uma outra relação, de um casamento complicado...
E tem filhos?
Tenho um filho com 21 anos, foi mãe assim um bocadinho para o velhote
E como é que foi ser mãe?
Foi uma coisa maravilhosa. Aliás, nunca demonstrei interesse em ter filhos, nunca, vou-lhe já dizer e hoje, quando olho para trás, penso que devia ter tido uns 4 ou 5, que sou mãe naturalmente, tenho uma coisa, não sei se é natural, mas para mim é uma coisa muito natural. Eu criei o meu filho com uma facilidade que ninguém imagina. Foi uma coisa perfeitamente, uma coisa muito, muito umbilical, uma coisa muito estranha. É um sentimento muito estranho, mas eu resolvi ser mãe porque já estava com 39 anos, tinha um sobrinho, pus-me a pensar nas coisas e disse olha, eu vou tentar ter um filho. Até porque nunca tinha tido filhos, atenção, porque provavelmente nunca ter tido grande vontade de ter filhos, confesso, também tinha um problema uterino que depois quando resolvi que iria ter um filho eu resolvi ir tratar.
E correu tudo bem?
Não, não correu bem, eu tive um parto... eu tive um acidente e tive uma cesariana de urgência, corri perigo de vida eu e a criança e foi uma situação muito complicada. Tive o meu filho durante um mês e meio numa incubadora. Teve o meu filho durante mês e meio uma incubadora no Porto. Mas depois no fim correu tudo bem, mas ainda hoje é um sentimento muito profundo, é das coisas mais profundas da minha vida. E eu sempre disse uma coisa e continuo a dizê-lo, e aliás, ele sabe disso, eu tenho uma relação completamente aberta com meu filho desde que nasceu eu falo de tudo com ele, sabe de tudo e nunca tive qualquer tipo de obstáculos. Ele sabe, às vezes a minha mãe, por exemplo, que é uma pessoa austera, não é, dizia-me ah andas sempre com o menino ao colo, e eu dizia ó mãe, mas qual é o problema de andar com o menino ao colo? O Menino precisa de colinho, o carinho nunca é demais num filho, ele tem normas, tem regras, mas ele tem colinho também porque vocês acreditem nisto, eu já disse isso, ele até quando eu for mais velhinha, ele pode me dar um pontapé no rabo, mas não me arrependo de ter sido mãe dele. Porque eu só de olhar para ele, sou feliz.
O que é que no seu percurso de vida significa para si, que significado tem para si, ser mulher?
Pois, ser mulher é uma coisa muito complicada. Muito complicado. Não tem nada a ver com o ser homem. Eu gosto muito de ser mulher, adoro ser mulher. Adoro ser mulher, sei as dificuldades todas de ser mulher, mas eu adoro ser mulher. Agora que fui posta de lado, que fui e sou posta de lado, que... eu vou-lhe dar um exemplo que se passou aqui há uns na minha casa, eu falo inglês, falo francês, há um sujeito que vai lá a casa de uma empresa aqui de Vila Flor, que vai com um alemão que só falava inglês, eu também ainda falo alguma coisa de alemão, mas não é uma coisa que eu fale com fluência, não, e o senhor chega lá e pergunta-me pelo meu marido, meu companheiro, se quiserem meu marido, pronto eu para mim isso não é uma questão que não me afeta minimamente... E eu disse, ele não está, mas porque é que é só ele? Ah porque é para ele falar inglês aqui com o senhor... E eu disse ok, ele não está, pronto olhe vai ter que esperar. Isto foi verdade. Entretanto, eles esperaram, não sei quanto tempo não interessa, não é mais relevante, e quando chegou o meu marido, eles ah Sr. Rui tal e coisa, olhe é para o senhor ficar aqui, é para o senhor falar, porque eu não falo, era para o senhor falar inglês com ele e diz-lhe ele, mas eu já não falo inglês, quem fala inglês é minha mulher. Só para vocês perceberem o que vai na cabeça das pessoas. Isto é exemplificativo. Eu e o meu marido tomamos conta das propriedades, nomeadamente das propriedades da minha mãe e nunca vêm falar comigo. Desde que ele entrou em casa, nunca mais nenhum homem veio falar comigo sobre propriedades e só com ele. As propriedades são minhas, a quinta é minha e só falam na quinta no Rui não falam da Maria João, quando eles já todos sabem que aquilo é um bem de família, porque eu herdei as propriedades já do meu avô, depois passaram para o meu pai, portanto é uma coisa já de família. Entrou um homem na família, pronto ok, percebeu? é isso... Mas eu continuo a gostar de ser mulher muito, muito, muito. Para mim, acho que a mulher é uma coisa perfeitamente diabólica.
Em que sentido é que identifica com diabólica?
Nós, mulheres somos diabólicas. Só não só fazemos o que não queremos, só não damos volta ao que não queremos. Temos umas capacidades muito diferentes dos homens. Eu não quero, atenção, eu não quero ser igual a um homem, de todo. Eu quero ser mulher, mas quero que me deixem ser o que eu quero ser, o que eu sou e o que eu quero ser. E que não me ponham entraves pelo facto de eu ser mulher, porque... desculpem o que eu vou dizer, mas vou dizer... um pilau ou não, não faz diferença nenhuma em termos de seres humanos. Somos todos seres humanos, não temos qualquer...temos as diferenças que temos que ter, mas mais nada. Os direitos são completamente iguais. Aliás, foi uma das minhas guerras com a minha mãe, nomeadamente, o que pode imaginar... tenho um irmão e a minha mãe, quando os meus pais não estavam e as empregadas, nós tivemos sempre empregadas em casa, a minha mãe queria que eu fizesse a cama ao meu irmão, isso eu recuso-me, ele tem duas mãos, ponto final parágrafo. O meu irmão fazia patuscadas com os amigos quando os meus pais não estavam e depois não arrumavam a cozinha. Eu também não, não fui eu que andei a fazer a patuscada porque é que era eu a arrumar a cozinha era o que me faltava. Foi sempre assim, portanto, daí e ainda hoje eu vou lhe dizer uma coisa, depois a gente vai ver se passo, Se Eu deixo passar ou não. Eu acho que as palavras eu sou uma mulher muito desinibida. Sempre fui muito desinibida com o meu corpo também. Sempre fui muito desinibida no corpo e sempre fui muito desinibida em todos os níveis e sou desinibida a nível da linguagem e acho que se as palavras existem é para serem aplicadas na altura certa, não estou com coisas. No outro dia, eu disse um palavrão, em bom português, eu disse um palavrão e a minha mãe, que tem 86 anos, eu tenho 61, virou-se para mim e disse-me assim, estás com essa linguagem, se o teu irmão te ouvir, ele vai adorar. E eu disse: o que é que o meu irmão tem a ver com os meus palavrões, o que é que o meu irmão tem a ver com os meus palavrões? Ele por acaso manda em mim? Eu sou senhora de mim, portanto, eu digo os palavrões que eu entender.... Então vou-lhe dar outro exemplo, agora à medida que vamos, as coisas vão surgindo. Eu era menina, 8/9 anos e disse merda e a minha mãe ouviu e foi um drama desgraçado, disse coisas terríveis, chamou-me os nomes mais inacreditáveis que podem imaginar. E eu, sabe o que é que eu fiz? Virei-me para ela e disse-lhe assim: mas olha eu não sei só isto, e disse-lhe tudo. Percebe? Eu sei tim, tim, tim.... Eu acho que ela não teve uma síncope porque, enfim, não é? Já pode ver a raça da criatura. Nunca permiti que me proibissem nada pelo fato de ser mulher, nunca. Por isso, andei sempre em conflito, ainda ando, infelizmente ainda ando com 61 anos é triste, mas é a verdade, portanto, tem que perceber que os contextos em que as pessoas são... os contextos pronto. Também faz parte da minha obrigação neste momento, como mulher madura perceber isso, mas eu andei sempre em conflito com ela por causa destas coisas. Lá está, eu nunca, eu nunca fui, nunca correspondi aos cânones, mas também nunca permiti que ninguém me eu não podia fazer pelo facto de ser mulher, porque eu nunca me senti inferior a nenhum homem nunca, antes pelo contrário, sinto-me sempre superior a eles. Temos pena. Não tenho nada contra os homens e convém que se diga atenção, isto não é uma reação. Não sou reativa em relação a isso, pode ser, mas não tenho nada contra os homens e já encontrei homens fora de série na minha vida, mas não permito, não permito ser discriminada por causa disso.
O que é que a Maria João faz hoje? Quais são as coisas mais importantes no seu quotidiano hoje?
Quais são as coisas mais importantes no meu quotidiano hoje? É uma pergunta sobre a qual nunca pensei nisso. Sinceramente, mas olha é um bocado tentar ter um bocado de sossego, descanso, mas não é descanso físico, é descanso mental. Acho que neste momento é uma coisa que eu tenho muita necessidade. Até é um bocado o isolamento e o silêncio, mas também há outra coisa.... eu privei-me de muita coisa durante estes anos todos, porque eu sou uma pessoa que sou assim, é para fazer, tem que ser feito, eu faço, mas seja o que for. E como tive.... Levei à frente um projeto muito grande e numa fase muito complicada na minha vida, eu privei-me de muita coisa, de fazer muita coisa. E eu neste momento tenho a necessidade de estar com as pessoas de quem gosto, de conviver.... Eu deixei de conviver porque trabalhava só, só trabalhava. Tenho necessidade de estar com as pessoas e tenho necessidade de falar de mim, confesso. E de falar das minhas coisas e mentalmente sentir sossego, tenho necessidade disso.
Quais são as suas principais tarefas do dia a dia?
Olha as minhas principais tarefas, além de toda a parte administrativa da empresa que sou eu trato. De alguma maneira é também cuidar da minha mãe, porque ela ainda é autónoma, mas tem que ter cuidado, tem que se cuidar dela porque tem 86 anos, está a começar a perder faculdades e também ir controlando o meu filho que está em Coimbra, controle entre aspas, atenção, não tem nada a haver com o controle de…. Está a perceber? Portanto as coisas que se passam em Coimbra, e como é que as coisas estão, e se é preciso isto... essas trapalhadas todas. E, portanto, a casa, no sentido lato do termo.
De que forma nascer em Trás-os-Montes influenciou a sua trajetória de vida e as suas experiências?
Não sei, eu isso não sei responder. Não sei se seria a mesma pessoa se nascesse noutro lado. Nasci naquele contexto familiar, comprei a minha vida por causa das propriedades que herdei. Não sei, sinceramente, não sei se teria sido assim. Já me questionei algumas vezes sobre isso, não sei se eu tivesse vendido as propriedades e tivesse continuado com a minha vida académica.... Sinceramente não sei o facto de eu ser transmontano ou não. Eu não me sinto muito transmontana, confesso. Eu sinto-me mais uma cidadã do mundo, do que transmontana. Acho que sim que tenho devo ter, devo ter a minha linguagem, alguma coisa que eu neste momento estou muito a querer voltar é à linguagem aos termos que se usavam quando eu era menina, porque como eu sempre tive estas vivências muito, digamos, internacionais, não é? Nunca me identifiquei muito aqui. Porque houve uma altura da minha vida que eu deixei de vir aqui, o que é absolutamente... prai entre os meus 20 e os meus 30 anos, eu deixei de vir aqui prai durante 10 anos eu deixei de vir aqui e durante 10 anos mais ou menos eu deixei de vir a Vila Flor e não me interessei mais pelas propriedades, nem me interessei por nada nesse sentido, claro. Portanto, eu agora gosto muito de a andar a recolher essas expressões que se usavam, que estão em desuso, que já ninguém usa, porque a globalização conduz para isto, não é? E há outras coisas que eu acho que não se devem perder, agora de que maneira que me condicionou, não, não sei, não consigo ter essa dimensão, de condicionamento, não consigo.
Tem Sonhos? Agora para um futuro próximo ou distante?
Se eu tenho sonhos, nunca fui uma mulher de muito sonhos, os meus sonhos não se.... foi sempre uma coisa mais diária assim uma coisa... não, nunca fui. Não tem muito a ver... Não, até tenho, ultimamente tenho um sonho, tenho. Agora, estou aqui a pensar na coisa é ver o meu filho independente de mim. É o meu maior sonho. É que ele crie umas asas muito fortes e que voe para bem longe de mim. Ele aqui há tempos, quando esteve cá, falava ir para Austrália, eu disse: eu apoio que tu vás para a Austrália. E o Rui começou logo, ai agora... e eu disse não, se ele quiser ir para a Austrália, eu quero que o meu filho tenha asas muito fortes e que voe para muito longe de mim. Acredita? Com todo o sofrimento que isso possa ter para mim. É o meu maior sonho que eu ele tenha umas asas muito fortes e que voe muito. E que não precise de mim para nada.
Como é que foi contar a sua história?
Foi muito bom. Sim, gostei dos vossos olhos, foi muito bonito. Mas esta coisa de, porque eu sempre também quis voar e, de alguma forma eu voei.
Sim.
Com todas as condicionantes de ser mulher, na altura em que fui, não é? porque vocês têm outra, já têm outras oportunidades, obviamente eu, apesar de ser mulher do tempo que sou, acho que fui e acho que eu também gostava muito, era o meu maior sonho era dizer: olha, mãe, eu este momento já não preciso de ti. A não ser claro que ligação entre... Isto não é normal, pois não, nas mães, acho eu. Acha que é?
Não, acho que não
Eu gostava muito que ele voasse muito, muito longe, para muito longe, com umas asas muito fortes, muito estruturadas, muito bem estruturadas. Eu não quero o meu filho ao pé. Acredita? Eu não quero meu filho perto. E sabe que isto são coisas muito profundas e eu sou muito assim, quando o meu pai faleceu, o meu pai teve um cancro do pulmão, eu tinha uma ligação, como já se percebeu, muito próxima com o meu pai, ele tinha um cancro de pulmão, fui eu que cuidei dele. Então, fui a última pessoa, não última pessoa foi a minha mãe porque eu disse que não, que não voltava ao hospital, que é a vez que era dela, ele entrou no Hospital Santo António, passado 3 dias morreu e no dia em que eu dei entrada sozinha, eu fiz sempre este percurso sozinho. Fiz sempre este percurso da doença do meu pai sozinha e então ele deu entrada no hospital e levaram-no para uma sala que se chama sala da ressuscitação. Eu esperei o tempo que tinha a esperar e saiu de lá uma pessoa, um médico, que acho que foi a pessoa mais triste que vi na minha vida, a pessoa mais cinzenta, sabe o que é que eu quero dizer, cinzenta? E que me disse, começou a rodear e a dizer-me: você sabe qual é a condição, a qualidade de vida do seu pai? E eu disse: eu sei perfeitamente, a qualidade de vida do meu pai, acompanho o meu pai 24 horas, portanto, sei tudo isso. E depois desta conversa, ele teve-me a preparar para... eu quando sai hospital e eu sabia, eu senti que entre mim e o chão havia uma almofada de ar, eu não pisava. Depois para mim, quando o meu pai faleceu, telefonaram para casa lá que o pai tinha morrido, eu e o meu irmão fomos para o hospital. Isto volta a ser sempre sozinha, para lhe explicar o seguinte, fomos para o hospital e, entretanto, chegou uma médica e disse: Como é que vamos reconhecer o corpo? E eu disse: ó Doutora eu vou reconhecer o corpo, mais alguma coisa? Por favor, não façam autópsia ao meu pai, não vale a pena. E ela teve isso em conta e quando foi para ir reconhecer o corpo do meu pai eram 11 da noite no hospital Santo António, que não é o que é hoje. Eu fui sozinha, porque o meu irmão disse-me: vai, porque eu estou-me a sentir mal. E eu fui com aqueles corredores, só com uma luzinha, tudo em granito. Não sei se vocês sabem o maior edifício em Portugal de granito é o hospital de São João, de planta inglesa. Porque eles claustros entre aspas, fui sozinha reconhecer o cadáver do meu pai. Ainda trouxe as coisas deles. O meu irmão ficou disse que se estava a sentir mal...
Mas porque é que houve essa necessidade de reconhecimento?
Não havia necessidade, é uma coisa que fazia na altura, ir ver... E isso foi uma coisa que me marcou, eu fiz sempre esse percurso sozinha, nunca tive acompanhamento de ninguém. Eu tinha, aliás, quando o meu pai faleceu houve uma senhora da nossa amizade, da nossa relação de amizade, uma senhora que já morreu, já tinha muita idade já altura, toda a gente se preocupou muito com todos e uma vez essa senhora entrou lá em casa e disse: e como é que está a filha do Doutor, que era como era conhecido o meu pai. Tudo se preocupou muito com a mãe, e por amor de Deus, eu não digo isto, atenção. Há 2 sentimentos que eu não tenho: é inveja, nunca tive sentimento de inveja, nem de todos os sentimentos que andam à volta de inveja, eu não tenho esse tipo de sentimentos, é uma coisa que para mim, ela é minha vizinha está bem, para mim é espetacular que ela esteja bem, porque eu também estou bem comigo própria. Eu estou completamente próprio, porque é que os outros não hão de ter uma boa vida, não hão de estar bem, para mim é uma coisa muito importante. Portanto, ela foi a única pessoa que que, no meio daquilo tudo que se lembrou de mim e disse, como é que está a filha do doutor? Engraçado, porque fiz todo esse percurso sempre sozinha. E ainda hoje sinto que sou uma pessoa sozinha. Sabe? Ainda hoje sinto isso. E, em relação ao João... Ah e quando o meu pai morreu fiquei com uma sensação de alívio muito grande porque ele deixou de sofrer. Eu disse, eu não sou egoísta, para que é que eu queria o meu pai vivo se ele tinha uma vida, a morte é inevitável, é a coisa mais inevitável que nós temos, para que é que eu queria o meu pai vivo em sofrimento? Para que? Por uma questão de egoísmo meu? Não, ele libertou-se. Ele libertou, foi uma libertação bestial. Pronto acabou-se chegou a vez dele. Foi uma libertação muito grande que eu senti, ninguém pode imaginar o que foi. Porque ele sofreu mesmo muito tadinho é uma libertação. Eu acho que a morte é uma libertação. Para mim, a morte é uma libertação.
Tenho uma pergunta que se calhar pode ficar o off, mas estavas a contar de teres a tua vida no Porto e depois com essa situação toda cai-te a propriedade no colo e se calhar não era propriamente isso que tinhas imaginado para ti?
Sim, não nunca tinha imaginado isso para mim
Pois, agarraste aquilo e fizeste o que achaste que tinhas a fazer até hoje, mas agora também tens essa relação com o João queres que ele vá para longe e que tenha a sua vida independente
Sim, sim, sim, sim.
Era mais também perceber projetos futuros de… o que é que achas que vai acontecer com este legado, digamos assim, que começou com os teus avós, com o teu pai e que agora...
Olha não me preocupa. Eu quero é a Felicidade dele, ele quando andava na história de uma escolha o custo eu disse-lhe assim: Ó meu, tu até podes ir para trolha. Só há uma condição, tens de ser o melhor trolha da zona e arredores.
Não me preocupa mesmo.
Não te preocupa o que vai acontecer, mas se calhar preocupa-te ele assumir, tal como tu fizeste uma coisa que, se calhar não quer, é isso?
Sim. Isso preocupa-me muito isso preocupa-me levá-lo para um caminho que ele não queira. Eu fui para um caminho que nunca pensei, não é não queria ou deixava de querer, nunca pensei nele. E foi o caminho que a vida me abriu. As coisas surgem repentinamente e as circunstâncias agora eu não queria impor, não quero impor um caminho ao João. É isso que eu não quero, é impor um caminho. Quando ele escolher o caminho dele que seja sem condicionamentos, nem familiares, nem económicos, nem políticos, nem porque é homem ou mulher, não quero, não quero, acho que as pessoas têm que ser completamente livres no seu arbítrio, acho que é uma coisa essencial e eu de alguma maneira também fui. De alguma maneira, nunca ninguém me impôs um curso, nunca ninguém me condicionou para esse nível, mas depois foram tentando condicionar e eu fui tentando, pronto, resistindo, arranjando guerras, lutas e discussões, saídas de casa, pronto.... Percebe? Nunca fui assim muito... Mesmo a nível familiar, eu antes deste companheiro tive um outro companheiro que já morreu, com quem tive uma relação muito longa, uma relação mesmo muito longa, e que pronto, porque circunstâncias várias terminou e mesmo assim eu nunca me casei. E a minha mãe não o suportava pura e simplesmente, mas posso dizer-lhe, posso dizê-lo a vocês com toda a coisa, foi efetivamente a minha alma gémea. Foi efetivamente a minha alma gémea. Se há almas gémeas, eu acredito nelas, foi efetivamente a minha alma gémea, mas por circunstâncias várias a relação não.... Portanto, até a esse nível as minhas colegas casaram todas, as minhas amigas casaram todas. Elas casaram, tiveram todas filhas, algumas já tem netos, eu tenho um filho quase da idade dos netos de amigas minhas, andei sempre fora, muitas delas já estão divorciadas, outras viúvas. Engraçado, não é? Eu fui sempre uma mulher muito fora da caixa, muito fora do esquema. Eu vivi numa comunidade de raparigas no Mindelo. Nomeadamente, saí de casa fui-me embora e vivi com uma comunidade de raparigas, ainda hoje somos todas muito amigas porque houve uma amiga nossa ficou viúva com 30 anos e com um filho, e teve que ir viver por questões de partilhas, porque o marido dela faleceu, tinha outros filhos, pronto, ele era viúvo quando casou com ela, portanto, tinha já outros filhos e depois houve ali umas questões de partilhas e não sei quê... E é engraçado que vivi sempre umas mulheres também muito diferentes. E, então elas ainda vivem todas juntas, porque nenhuma delas se casou. Ninguém se voltou a casar, tiveram algumas relações esporádicas, mas ninguém. E então a única casa que estava disponível para ela ir viver com um filho pequeno, era uma casa no Mindelo e nós mudámo-nos todas para o Mindelo, para o pé dela, para ela não estar sozinha. Depois aquilo era muito engraçado porque tomávamos conta das crianças à vez conforme os horários, eu ia para o Porto, eu estudava no Porto, ia para o Porto de comboio. E depois vinha, e depois comecei a trabalhar também e fazia o meu percurso, andava para lá e para cá, sempre comboio só havia uma que tinha carro, eu só tive carro aos 24 anos. Só havia uma que tinha carro, mas o carro era só para irmos até à estação para apanhar o comboio. Quer dizer, eu nunca fui uma mulher que tivesse uma vida, como é que vos hei de explicar? Com os bens como os meus pais e que usufruísse muito disso. Porque eu tive carro com 24 anos porque já estava a trabalhar e não sei quê e o meu pai disse, pronto eu vou-te dar um carro porque eu andei sempre de autocarro, de transportes sempre tudo, sempre tudo muito certinho, sempre tudo. E, portanto, vivíamos, nunca houve nenhum atrito entre nós, entre nós mulheres. Nunca, nunca nós tivemos um atrito, portanto, damo-nos todos muito bem. Entretanto, houve uma que ficou doente, gravemente doente. E nós fomos, ainda é viva felizmente, e nós fomos buscá-la ao hospital IPO e cuidamos dela sempre toda a vida, inclusive fizemos um horário, que ela nunca podia estar sozinha em casa e tinha um filho, estava divorciada, fizemos um horário para: hoje ficas tu das tantas às tantas, depois eu chego às tantas sais tu e eu entro e fizemos um horário para estar sempre alguém, por causa da medicação, por causa dos cuidados, por causa da alimentação, por causa disso tudo, vivemos sempre assim muito tempo, muito serenamente todas foi muito engraçado, foi uma experiência muito gira, ainda hoje somos todas amigas, mau era que não fossemos. Eu quando o João nasceu eu tive um acidente e fizeram uma cesariana de urgência. Aqui em Mirandela e o miúdo foi para o Porto, e eu também não podia estar sozinha e fiquei em casa delas e ser-lhe-ei eternamente grata por essa ajuda que me deram, foi realmente muito importante na altura, na minha vida.
E essa comunidade de mulheres surgiu no tempo da faculdade?
Não, do liceu, éramos amigas do liceu e viemo-nos a encontrar mais tarde. São todas de liceu, mantenho as minhas amigas quase todas desde os 12 anos, não é muito normal nas mulheres, digo eu, não sei, mas no meu tempo não era muito normal, mas nunca fomos aquele tipo de mulheres convencionais de andarmos nas fofocas, umas contra as outras não senhor, sempre ali, uma grande união, uma grande solidariedade e, acima de tudo, todas com muito espírito solidário. Nunca me interessei porque se a outra é gorda, magra, baixa, é como é. É uma pessoa com sentimentos, uma pessoa bem formada, o resto estou-me a borrifar, anda com A ou com B o problema é dela, seja tudo ou mais alguma coisa, a gente diz, olha que se passa isto e assado e vê lá o que estás a fazer com a tua vida, mas o resto é com ela. Se entre nós nunca houve esse tipo de problemas, não. Éramos amigas de liceu, voltamos a encontrar, todas seguimos caminhos diferentes, voltamo-nos a encontrar mais tarde e depois fomos viver com ela, até ela se ter restabelecido, porque ela ficou em má situação económica, ficou bastante mal, ela trabalhava atenção, mas tinha um filho pequeno. E criarmos ali muitos laços de afinidade e afetividade, foi uma coisa muito gira, uma coisa muito bonita. Ainda é, de algum modo, menos porque a vida depois levou-nos para outros lados também, não é? Mas pronto, enquanto estivemos ali foi muito bom.
Obrigada, Maria João
Foi um prazer estar com vocês, um gosto pronto.
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