Já explicou a origem do seu nome?
A minha madrinha estava na América, naquela altura, já há 64 anos, quando a minha mãe andava grávida de mim. Então, escreveu uma carta à minha mãe… como a minha mãe já a tinha convidado para ser comadre, que quando eu nascesse queria que me pusesse Helena Marina ou Marina Helena. Só que as minhas irmãs leram mal, naquela altura andavam na escola, então as leituras delas eram diferentes de agora. O meu pai vai-me registar Maria Helena no civil. A minha madrinha vem da américa para me batizar. Quando vê os papéis “eu não vos disse para ser este nome! Vós puseste este nome no civil, mas na ideia tem de ficar Helena Marina” e eu na igreja tinha o meu nome Helena Marina. Tenho dois nomes! Depois quando me casei, estava a dar problemas, porquê? Porque no registo civil tinha um nome e na igreja tinha outro, então o senhor padre alterou o meu nome e fiquei na igreja Maria Helena.
E onde é que a Maria Helena ou Marina nasceu? E em que data de nascimento?
9 do 11 de ‘58.
E foi aqui em Vila Flor?
Antigamente os partos eram em casa… Aqui em Samões. Sou natural de [inaudível] na minha aldeia.
E como é que se chamam os seus pais?
O meu pai chamava-se Manuel Luís e a minha mãe Aurora do Céu
Já faleceram ambos?
O meu pai já faleceu há 41 ano… faleceu com uma pneumonia e a minha mãe faleceu vai fazer 15 anos dia 27 numa altura em que eu mais precisava dela. Estava internada no IPO
O que é que os seus pais faziam?
A minha mãe era doméstica, mas o meu pai era agricultor. O meu pai ficou sem mãe com uns 4 anos e depois, antigamente, as casas eram ricas, não é? Acolheram-no, porque o meu avô voltou a casar e a madrasta do meu pai era muito má. E então o meu avô tinha 3 filhos mais velhos, o meu pai tinha fome e foi encetar um pão e a madrasta entalou-lhe a cabeça… antigamente eram arcas de madeira. E então os irmãos mais velhos bateram na madrasta, por causa de terem feito aquilo a uma...
Continuar leituraJá explicou a origem do seu nome?
A minha madrinha estava na América, naquela altura, já há 64 anos, quando a minha mãe andava grávida de mim. Então, escreveu uma carta à minha mãe… como a minha mãe já a tinha convidado para ser comadre, que quando eu nascesse queria que me pusesse Helena Marina ou Marina Helena. Só que as minhas irmãs leram mal, naquela altura andavam na escola, então as leituras delas eram diferentes de agora. O meu pai vai-me registar Maria Helena no civil. A minha madrinha vem da américa para me batizar. Quando vê os papéis “eu não vos disse para ser este nome! Vós puseste este nome no civil, mas na ideia tem de ficar Helena Marina” e eu na igreja tinha o meu nome Helena Marina. Tenho dois nomes! Depois quando me casei, estava a dar problemas, porquê? Porque no registo civil tinha um nome e na igreja tinha outro, então o senhor padre alterou o meu nome e fiquei na igreja Maria Helena.
E onde é que a Maria Helena ou Marina nasceu? E em que data de nascimento?
9 do 11 de ‘58.
E foi aqui em Vila Flor?
Antigamente os partos eram em casa… Aqui em Samões. Sou natural de [inaudível] na minha aldeia.
E como é que se chamam os seus pais?
O meu pai chamava-se Manuel Luís e a minha mãe Aurora do Céu
Já faleceram ambos?
O meu pai já faleceu há 41 ano… faleceu com uma pneumonia e a minha mãe faleceu vai fazer 15 anos dia 27 numa altura em que eu mais precisava dela. Estava internada no IPO
O que é que os seus pais faziam?
A minha mãe era doméstica, mas o meu pai era agricultor. O meu pai ficou sem mãe com uns 4 anos e depois, antigamente, as casas eram ricas, não é? Acolheram-no, porque o meu avô voltou a casar e a madrasta do meu pai era muito má. E então o meu avô tinha 3 filhos mais velhos, o meu pai tinha fome e foi encetar um pão e a madrasta entalou-lhe a cabeça… antigamente eram arcas de madeira. E então os irmãos mais velhos bateram na madrasta, por causa de terem feito aquilo a uma criança de 4 anos. Depois as senhoras onde o meu pai foi criado levaram-no para casa e ele começou a trabalhar ainda pequeno. Nós fomos criados também nessa casa. Os meus pais trabalharam numa casa que se podia dizer rica! Antigamente, que se dizia uma casa rica! Hoje já somos todos “iguais”, não é? Antigamente havia diferença. Por exemplo, o meu pai trabalhava para elas, mas já era tudo a meias…tudo o que colhiam era metade para o meu pai, metade para elas. Portanto, nós graças a Deus tivemos sempre uma boa vida! Eu fiz a escola, fiz a 6ª classe que era a escola obrigatória, a partir daí fui trabalhar.
E a Marina tem irmãos?
Tenho.
Quantos são?
Agora… 6. Que uma já faleceu, faz amanhã 6 anos, dia 25.
E gostava de ouvir histórias quando era jovem? Quem é que lhe contava histórias na sua família?
Quer dizer, sim! Onde eu era criada eram duas senhoras já com uma idade… uma morreu com 96 anos! E então contava aquelas… era vida real! Mas para nós era uma história. Tudo aquilo que elas passavam, tudo aquilo eu era feito e eu adorava ouvi-las. Ainda hoje eu gosto de escutar as pessoas mais idosas do que eu. Porque no trabalho eu nunca me pus ao lado das pessoas mais jovens, pelo contrário! Eu gostava de estar ao pé das pessoas mais sábias! Era assim que nós dizíamos. Porque elas davam-nos aqueles conselhos como se fosse mães. Às vezes diziam assim “Aí tu estás sempre ao pé daquelas velhas!” e eu disse assim “Elas não são velhas! Elas são pessoas sábias!” Porque ao fim ao cabo elas davam-nos educação e respeito, porque nós éramos umas crianças. Eu comecei a trabalhar com 12 anos! E o respeito e a educação era totalmente diferente, porque eu criei 3 filhos e eu tenho muita honra nos filhos que eu tenho. Ainda hoje me dizem “tu criaste umas filhas como não há outras iguais”, porque eu fui mãe, fui pai… tive casada 39 anos, faltavam 2 meses, mas eu digo foram 39 de casamento, foram 39 anos de sofrimento! E não tenho vergonha nenhuma de o dizer agora… Portanto, o meu marido para as pessoas de fora era uma pessoa top! O avô da Ritinha era íntimo amigo do meu marido, tudo o quanto precisasse a menina Gina… Toda a gente! Mas em casa… Hoje, já falo, mas eu abafava tudo. Era daquelas pessoas consumia para mim própria. Eu fui mãe-pai. Ele fazia muitas asneiras! Portanto, eu é que trabalhava. Eu nunca comi pão dele, sempre tive o meu trabalhinho. Trabalhei 17 anos …chamava-se complexo agro-industrial do Cachão. Depois saí, fui para a Suíça e tive lá 5 anos. Trabalhava em limpezas e chegava a fazer 6km a pé para fazer 6 horas de limpeza. Nevava, chovia, mas eu sei que ao fim do mês tinha o meu dinheirinho. Portanto, eu nunca tive à espera de que ele me dissesse “toma lá dinheiro para ir às compras”. Depois vim, comecei a trabalhar no campo e as pessoas diziam-me assim “Olha agora! Então vens do estrangeiro e tens necessidade de trabalhar?”; disse-lhe assim “Quem não tem? O dinheiro não paga por tudo”. Eu comecei a trabalhar ali na Casa Bártolo e eles adoraram-me… à minha maneira. Não é para me gabar, mas eu fazia tudo! Ainda hoje, eu planto a minha horta, planto as minhas árvores no terreno, eu planto o meu jardim… tudo! Eu não estou à espera de ninguém! Portanto, eu não contava com o meu marido. Era eu própria que fui mãe-pai. Elas ainda hoje dizem… Eu tenho a minha filha mais velha que tudo que ela, no aniversário, é só “a minha guerreira”.
Eu queria só regressar…
A Ritinha já viu! A fotografia que a minha filha me ofereceu é “a minha mãe guerreira”. Portanto… E eu sinto-me uma lutadora! Porque eu sempre lutei para que às minhas filhas não faltasse nada. Eu sempre vivi de casas de aluguer. Hoje, não. A minha filha do meio comprou uma casa em Mirandela e meteu-me lá dentro. Por isso é que eu digo, nem todas as filhas faziam isso aos pais e eu tenho a honra de ter assim umas filhas, graças a Deus. Tenho o meu filho que está na Suíça, tem a vida dele, mas vou lá várias vezes ao pé deles. Quando morreu o pai, fui para lá 6 semanas, porque precisava de espairecer a minha cabeça, porque o meu marido morreu de cancro oral. Ele foi diagnosticado com um câncer grau 4 logo na língua, portanto, depois os médicos tanto operaram-no e ainda lhe disseram que se fosse uma pessoa muito idosa que não mexiam nele, mas como ainda era jovem com 57 anos “ vamos tentar”. Mas infelizmente ao fim de 16 meses… mas foram 16 meses, menina… fui muito muito sofrimento de dia e de noite, de dia e de noite. Eu punha-me a pé ao pé dele e ele só me dizia “vai-te deitar! Eu depois durante o dia durmo eu e tu tens de tomar conta da casa e fazer o comer” e eu dizia “não, tu também podes precisar”. Ele desde que foi diagnosticado até que faleceu nunca teve um momento sem dor e o dia em que esteve mais feliz, foi o último dia em que viveu e a última noite. Ele parecia que… eu não tenho palavras para explicar. Olhe, ele ria-se, ele contava anedotas, ele dormiu uma noite inteirinha, até que às 7h da manhã ele acordou, começou aos vómitos, começou a deitar… aquilo nem é sangue, é só porcaria, porque ele depois foi já diagnosticado com um tumor no pulmão direito e foi o pulmão direito que arrebentou, porque tudo quanto ele deitava era já do pulmão, até que faleceu nos meus braços. Portanto, é por isso que eu digo que eu sou uma guerreira, porque tenho enfrentado estes problemas todos!
Claro! Eu queria regressar um bocadinho à sua infância. Mencionou que tinha sido criada por duas senhoras mais velhas. Quem é que eram essas duas senhoras que tomaram conta de si? Eram da sua família?
Não, não eram família. Foi onde o meu pai foi criado.
Ok, nessa casa. E lembra-se dessa casa? Como é que era essa casa? Consegue descrever?
Essa casa ainda existe! É ao lado da [casa] da minha mãe.
Como é que ela é? Muito grande…? Confortável?
Era! Era, porque antigamente era um hotel. Faziam hotel, porque havia feiras pegado e ali as pessoas, a minha mãe dizia “Além douro”, portanto, as pessoas do lado de lá do douro vinham a pé, traziam os animais e ao chegar aqui a Samões ficavam ali hospedados. Eles tinham uns grandes, chamamos quinteiros, fechados e ali ficavam até que ao outro dia de manhã partiam para as feiras.
Então essa casa ainda existe?
Ainda existe, porque depois foi comprada por pessoas e estão ao lado da da minha mãe.
E que memórias é que tem, neste caso, da vila e da aldeia? Que memórias é que tem dessa altura, da sua infância?
Olhe eu de Vila Flor, tenho memórias… Havia a pensão Campos, que era uma pensão que antigamente havia em Vila Flor e eu era sobrinha dessas senhoras. E eu, então, ainda garotinha, ali toda arrebitadinha com uma cestinha no braço, ia eu levar os ovos todas as semanas. Tenho essa ideia… Eu com os meus 10 anos, ia por aí a fora, que há caminhos que cortam a estrada, não é? Então, eu levava a cestinha com os ovinhos que ia levar à pensão, porque era sobrinha dessas duas senhoras e depois, elas enchiam a cestinha com tangerinas, que antigamente quem é que tinha, não é? Coisinhas boas para eu depois trazer para elas. Ainda tenho essas ideias! Chegava lá e elas davam-me o pequeno-almoço: torradinhas com café e leite, daquele cafezinho que se fazia naqueles potinhos de barro, que a minha irmã ainda tem que era da minha mãe. Tenho essas ideias, que nunca me esqueci disso.
Mudou muito a vila ao longo destes anos?
Ah! Sim, bastante.
O que é que acha que mudou mais?
Coisas boas?
Hm hm.
Mas também saudades desses tempos… de certos tempo! Depois, pro exemplo, quando eu era mais jovem, eu já assim moçoila com 14/15 anos. Eu comecei a namorar com o meu marido aos 14 anos até aos 19, quando casei. Portanto, eramos amigas, companheiras. Antigamente, usavam-se os bailes da aldeia… Quando nós dizíamos assim “vamos fazer um baile?” “Já devia estar aqui o gira-discos!”. Porque chamávamos os gira-discos, porque não havia nada como agora. Era totalmente diferente. Em cada canto! Nós aqui, nestas ruas por aqui fora, nós fazíamos um baile fosse a donde fosse! Havia depois a festa do Cabeço, maio/setembro. O nosso grupo…mas eu era sempre as mais novas, mas andava sempre com as pessoas mais idosas. Portanto, há pessoas que hoje têm 70 anos, eu tenho 64. Mas eu era colega delas! Não dava um passo sem ser com elas. Lá íamos nós para a festa. Depois a festa, havia um bailarico na aldeia de vilas boas. Nós descíamos, não sei a menina conhece, umas escadas que há entre as arvores lá para baixo que dá numa fonte, que antes chamavam a fonte de Nossa Senhora da Assunção. Nós íamos por aí abaixo, depois vínhamos para casa umas 21h/22h/23h. Assim a minha mãe “Então, são horas de entrar em casa?!” “Ó mãe, então eu não podia vir sozinha, tinha que esperar por elas”. Isso tenho saudades desse tempo. Porquê? Eramos unidas, eramos fiéis. Hoje já não se pode confiar em ninguém. Porquê? Porque as pessoas convivem umas com as outras, mas só há falsidade. Falso! Falso! Estão-se a rir para nós, mas depois vão por trás “Olha, tu já viste? É isto! É aquilo!”. Às vezes, eu digo isso às minhas filhas “Sabes, filha…?”; “Ai, lá está a mãe com o tempo do antigamente!”. Não é o sermos mais pobres, até sermos pobres eramos mais felizes e nós nem sabíamos, que hoje temos tudo, graças a Deus! Mas antigamente não tínhamos as coisas, mas sabíamos dar o valor. Coisas que muitos filhos não dão esse valor! Aos pais, o sacrifício que fizeram ou fazem! Para hoje eles terem aquilo que são! Por exemplo, a minha filha mais velha, não quis… só quis fazer o 9ºano, mas ela hoje tem o stand de carros, que é aquele que está no cruzamento do Freixiel, ali. É da minha filha mais velha, está a trabalhar ela e o marido; ela trabalha no escritório; ela é tomadora de seguros; ela trabalha… ela teve de fazer exames pelo banco de Portugal, para que quem comprasse carro, depois pudesse fazer empréstimos. Faz exames, faz cursos para ela conseguir ser mais alguém na vida. Ela só tinha o 9º ano, mas ela depois meteu na cabeça “Não! Eu tenho de ter o 12º”. E ela então, por computador, com isso tudo ela conseguiu fazer o 12º ano. A outra não; a outra fez o 12º ano, saiu… acabou, pôs-se logo a trabalhar. Havia uma loja que antes se chamava “A loja dos incríveis”. Ela esteve lá 2 anos, depois um dia chegou a casa e diz-me ela “Ó mãe”, “Diz lá”, “olha, aqueles senhores que têm ali as bombas foram-me lá chamar. A mãe o que é que me diz?”, “ó filha, olha, tu é que sabes. Não quero que se mudares para pior ‘Ah, se a minha mãe não me dizia, eu se calhar não ia’. Se fores para melhor, vais pela tua cabeça”, “Oh, é para trabalhar no escritório, sempre é um trabalho mais, prontos…”. Diz-me ela “Vou-me despedir dos ‘incríveis’ e vou para lá”, “Vai filha!”. Como ela tinha o 12º ano, hoje são 20 anos que ela lá está. O rapaz, esse já é mais preguiçoso [risos]. Nem o 6º ano fez. Andava a passear os livros debaixo do braço. Mas também é uma pessoa educada, hoje trabalha como camionista, mas trabalhou muitos anos… ele já lá está há 18 anos, foi para a Suíça com 19. Portanto, já vai fazer 37 e as pessoas ficaram admiradas o garoto que era com 19 anos, o respeito e a educação que ele tinha. As pessoas ficaram admiradas, porque a mocidade hoje não aceita um conselho, uma palavra de ninguém e ele as pessoas dizem “ele ouve-nos, aceita todos os conselhos que nós lhe damos” E ele ensina isso tudo aos filhos, é muito exigente com o filho mais velho; vai fazer 11 anos em maio e tem uma que vai fazer 8 agora dia 8 de fevereiro. E o miúdo anda no karaté e ela ginástica artística. E ele, às vezes, é “Mirko, tens de estudar!” Os nomes um é Gaia e outro Mirko, porque a minha nora é italiana, mas fala bem português. Mas já aprendeu desde que casou com o meu filho. E eu digo-lhe “ó Claúdio, não sejas tão duro com o menino! Tu ainda fizeste pior!”, “Ó mãe, por eu ter feito pior é que eu quero que o meu filho seja alguém”.
E lembra-se quando a Marina tinha a idade dos seus netos? Lembra-se dessa altura? Quais eram as suas brincadeiras favoritas? O que é que gostava de fazer?
Eu nesta altura não tinha muitas brincadeiras, menina, porque já me faziam ir, nós chamávamos os tanques e eu com 10 anos já andava a lavar roupa para casa dessa senhora. E antigamente usavam aquelas saias de linho branquinho. Já viu o que é uma menina de 9 anos a esfregar a roupa à mão. Inverno era água muito gelada e eu fazia assim [cruza os braços sobre o peito]. Não havia bacias, como há hoje, eram cestinhos de verga e depois no fundo ponhamos um plástico… e torcer a roupa? Eu não tinha aquela força como as pessoas mais idosas, vinha assim meio torcida meio por torcer. E então para me olhar, porque depois vinha a pingar pelo caminho, aqueles tanques ali no fundo…. Era eu que levava a roupa da casa. Portanto, sempre fui e para dizer ainda hoje gosto de lavar a roupa à mão. No verão a minha roupa é toda lavada à mão. Eu tenho um tanque ainda e eu lavo a minha roupa à mão.
Então não eram muitas crianças a brincar? Essas memórias que tem…
Brincávamos na escola! Na escola brincávamos às pedrinhas, à macaca, à corda e também tínhamos aquele jogo que eram os rapazes e as raparigas, nós ainda éramos piores que eles, “arranca trigo, para cima do meu amigo”. Punhamos assim, a cabeça em cima do ombro do outro [gesticula com as mãos, explicando que se colocavam em fila]. Essas brincadeiras ainda me lembro, na escola. Mas na escola, chegávamos e comíamos lá, porque a nossa aldeia era a chance que tínhamos de ter uma cantina, porque mandaram construir, um homem que estava em África. E nós, portanto, por exemplo, quem tinha batatas, quem tinha arroz, levávamos um quilinho de arroz e, portanto, juntávamos assim mercearia, batata, feijão e depois fazia-se a sopa ou assim para todo o ano na escola. Comíamos na escola e depois ao fim íamos brincar. E antes de começar a escola, rezávamos o terço. Era uma professora que se chamava dona Isabelinha. Ela tinha assim um problema na perna, mancava um bocadinho, mas tinha assim uma mão… acho que lhe tinha dado uma meningite quando era pequena, mas tinha assim uma mão morta, mas quando dava assim uma tapada na cara. Mas quando ela metia na cabeça que tínhamos de passar, nós não podíamos ficar no mesmo ano. “Tu tens de meter a matemática na cabeça, tu tens que…”, porque era totalmente diferente os estudos de antigamente para hoje, porque eu fiz a 4ª classe com exame escrito e prova oral. Depois fiz o 6º ano com prova escrita e prova oral e eu fui a que tirei a melhor nota nessa altura. Depois fiz o 9º ano com um curso de geriatria.
Para além dessa professora Isabelinha, lembra-se de algum professor que a tenha marcado nesse percurso escolar?
Ai! [risos] Foi quando saí da 4ª… quando começamos aqui a ter 5ª classe, eu andava na 4ª e fui para a escola que era dos rapazes. Eu dei 10 erros, levei 10 reguadas [imperceptível; risos]. Mas ela não era para o nosso mal, a gente compreendia, não é, que não era para o nosso mal. As nossas mães não ralhavam às professoras como hoje e havia respeito pelos professores, coisa que hoje não há! E eu estranhei muito isso. Um aluno virar-se a um professor e desrespeitá-lo. Eu acho que aqui há muita culpa também dos pais, porque se uma professora chama a atenção o miúdo vai-se queixar ao pai e o pai se for preciso tapa `a professora, trata-a mal… infelizmente tem-se visto tanto. E eu fui sempre das que fosse à professora “Se precisar de lhe carregar, carregue-lhe”. Porque a educação que eu tive, foi a educação que eu passei aos meus filhos e eles nunca foram… nunca desrespeitaram os professores. E hoje tenho um neto com 15 anos, que é muito mais alto que eu, e na escola os professores… a mãe já lhe disse” Oxalá que eu nunca receba…” e hoje tenho um bocadinho de receio, porque hoje temos droga! Que aqui em Vila Flor é um meio muito pequeno, mas é um meio com muita droga. Ainda hoje, o meu neto acompanhava com uma moça com 18 ou 19 anos e ela a minha filha hoje ao meio dia, na hora de almoço, “Olha o Leo, ele hoje está triste, porque um amigo dele foi preso por roubar”. E eu tenho aquele receio, às vezes não ser ele, mas alguém meter-lhe alguma coisa no bolso ou ele andar com eles e ele dizer assim “Não sou só eu sozinho” e afinal ele também tem! E nós tamos sempre a chamar-lhes a atenção, “olha meu filho, tu repara bem. Às vezes, nós és…”, para eles nºao ficarem sozinhos, têm de levar alguém que os acompanhe e eu tenho esse receio, porque tive o meu filho aqui criado até aos 19 anos nunca me deu um minuto de tristeza e eu também não queria que os meus netos me dessem. Porque tenho este com 15; outro com 11, ela com 7 que vai fazer agora 8 e outra com 4. Mas tenho uma que é neta adotiva, que é do companheiro da minha filha, que tem 18 anos, mas ela trata-me por avó. Está na universidade em Bragança.
Que bom! E como é que a Marina ia para escola nessa altura? Era a pé que ia para escola? Ia acompanhada…
A pé! Íamos todos!
Os colegas todos?
Era, porque nós chegamos a ir para Vila Flor. A professora dava-nos hora de manhã e nós íamos para lá de tarde, para ela nos dar mais explicações e nós irmos a ver os outros exames, porque não havia transporte como havia agora, menina. Íamos a pé e vínhamos cantar [imperceptível], porquê? Porque os rapazes também nos respeitavam. Havia respeitinho entre os rapazes… eles tinham o lado deles e nós tínhamos o nosso lado, porque senão nós mulheres também os metíamos no lugar deles. Porque havia respeito, coisa que hoje é mais… totalmente diferente.
Então, depois terminou os seus estudos com esse curso de geriatria?
Sim, como eu estava a dizer, depois eu trabalhava num restaurante como ajudante de cozinheira, mas era mais a cozinheira que a ajudante. Depois fiquei de férias, o meu menino, o meu neto mais velho tinha meses… ele nasceu em Março e isto foi em Setembro. A minha filha, andava a trabalhar part-time que eram… eram seguros… e ela nesse dia deixou-mo, no dia de folga, era a minha folga e eu fiquei com ele. Fui-lhe mudar a fralda e ele dá-me uma sapatada e eu… e conforme me dá uma sapatada no peito, eu fiquei com o peito dorido. E eu disse assim “Mas isto não é costume!”, como quem bate nalguma coisa num sofá, numa cadeira e a gente fica com a arte dorida. E eu ponho-me a apalpar o peito e encontro uma coisa que não devo. Aqui por baixo… E eu disse assim: "Mas isto não é normal!”. A minha filha veio à noite e eu contei-lhe. Deitei-me na cama e então na cama deitada já se notava muito, porque eu tinha o vício de fazer a palpação no duche. E eu tinha ido trabalhar e tinha dito assim à minha colega “Ai Conceição, parece que não descansei. Parece que ainda venho mais cansada do que quando fui de férias”. Eu fui à minha médica de família e disse “Então, doutora eu encontrei isto…”, “Ah cale-se lá, você está mais doente da cabeça do que aquilo que você tem”. [levanta as sobrancelhas] “Mas olhe, para descarga de consciência vou por então os exames na [nome da clínica impercetível] … Rua Santa Catarina ao cabo. Há uma rua que sobe São Bento, vai-se mesmo ter à [nome da clínica imperceptível. E eu, portanto, ela deixou-me esses papéis passados, eu marquei, marcaram-me depois os exames para dia 28 de setembro e eu dia 28 de setembro não fui porque era férias, os meus patrões podiam precisar de mim e eu adiei. Eu punha o trabalho à frente da minha saúde. Depois voltei a remarcar os exames, fui… sozinha! Passava aqui a camioneta às 6h da manhã, apanhei a camioneta, lá fui, desci da camioneta e a médica…. Primeiro fiz mamografia e mamografia não se via bem. Depois fiz eco e a medica estava-me a fazer a eco e diz-me ela assim “Ui! O que eu estou a ver é uma coisa muita grave! Olha, minha senhora, vou-lhe dizer já uma coisa, se fosse eu, fazia já uma biópsia antes de mais nada, porque o que eu estou a ver não é nada bom. Mas a senhora é de longe, monetariamente pode não estar prevenida e… Mas, volto-lhe a dizer já, aquilo que eu estou a ver…” – notava-se já a mancha grande. E eu disse-lhe assim “ó senhora Doutor, e então…” – ela chamava-se Manuela, ainda me lembra o nome dela, já lá vai 15 anos - “e então senhora doutora, quanto é que fica a biopsia?” “100€” … há 15 anos. E eu disse-lhe assim “ó senhora doutora, eu faço a biopsia que eu tenho dinheiro comigo” e ela ficou assim muito séria a olhar para mim, porque eu tinha muito o vicio, quando saia de casa, eu ia sempre com dinheiro, porque não sabia… A minha mãe ensinou-me a ter. E eu levava sempre dinheiro comigo, porque a gente não sabe o que é que pode acontecer. Diz-lhe ela “prontos, então eu faço-lhe a biopsia às 14h da tarde.” Eu fui, já tinha o telefone comigo, telefonei às minhas filhas a chorar, diz ela “Ó mãe, não pense nisso! Não pense. Olhe que não é nada! A médica disse-lhe isso, mas você vai ver que não vai ser nada. Mas também vá almoçar, estou a agora a tomar o pequeno-almoço…” – já era meio-dia e tal. Comi um bolinho e uma meia de leite, mas aquilo não corria. Às 14h lá vou eu fazer a biopsia. A agulha era assim [sinaliza com as mãos] – tudo a sangue-frio! Ela fez-me a biopsia e eu disse-lhe assim “ó senhora doutora, é mesmo ruim? Diga-me a verdade” e ela assim “ó, minha senhora, vou ser franca consigo Dona Helena. Você acha que se fosse bom que eu lhe fazia estar aqui a gastar o seu dinheiro?” E eu “prontos, faça praí à vontade!”. Eu trincava os dentes, porque aquilo era duro! Espetar aquela agulha a sangue-frio… era só assim a enfermeira que estava a ajudar “Ai, esta senhora é uma senhora de coragem!” Prontos. Fiz a biopsia, diz ela “Olhe, vai demorar 10 dias”. Eu venho para cima, falei com a minha médica e ela voltou-me a dizer “Lá está você com as suas! Isso é o seu psicológico! Isso não vai ser nada! Olhe, mas pelo sim, pelo não, vou deixar os papeis feitos, quando vier a biopsia se for alguma coisa de grave, você traz aqui e mandam logo imediatamente para o IPO”. Prontos. Demorou 10 dias a biopsia, quando vai ver a carta, veio para mim, quando abro a carta “glândulas malignas”. Eu comecei a chorar, é normal, porque nós depois só pensa o pior. Ainda se fosse glândulas benignas…pronto. Mas logo malignas! Eu fui ao centro de saúde, elas automaticamente meteram tudo via fax, dei entrada no IPO dia 25 de outubro. Dia 6 de dezembro estava a ser operada. E elas disseram-me “olhe…”. Tiraram-me gânglios, logo 3, e onde eles fazem aquela análise rápida, mas nos gânglios ainda não estão contaminados. [impercetível] “Agora vai para analise para o instituto de medicina legal, daqui a um mês vem saber o resultado” – nem demorou tanto – “e depois já sabemos se for mais grave, se calhar temos de lhe fazer o esvaziamento axilar”. Lá vou eu à consulta, assim que entro diz-me o médico “Está tudo mal!”, “Ai porquê, senhor doutor?”, “Tem que ir outra vez à faca. Lá fui dia 31 de janeiro, à faca outra vez. Eu tava… Depois tive lá internada uma semana, domingo as minhas filhas tinham estado lá a ver-me… Sábado! As minhas filhas tinham estado lá a ver-me, domingo de manhã morre a minha mãe. E eu lá internada…. Acho que isso… Ainda hoje, eu sinto a dor de não estar lá ao pé dela. Não fazia nada, porque a minha mãe morreu a dormir, mas o ela partir e não estar à minha espera. Ainda hoje sinto muita falta dela [emociona-se], porque nas horas mais difíceis, eu não a tenho ao meu lado. Mas depois, [sorri] ponho tudo para trás das costas e disse “eu vou vencer esta. Eu não vou vir abaixo” e diz assim o médico “você é uma lutadora!”, “Claro, ó snehor doutor! Então tenho lá um menino com poucos meses, eu não tenho de o criar?”; diz ele “caramba, esta mulher é terrivel!” e eu disse-lhe “claro, nós somos transmontanas! Nós transmontanas somos duras!” e assim foi graças a Deus. Venci o primeiro. Ao fim de 5 anos, comecei a perder a voz. Comecei a andar no otorrino em Mirandela, dizia-me que era psicológico, que eu perdia a voz… lá voltava na mesma! [risos] Eu disse-lhe assim “Mas como é que pode ser psicológico? Porque se eu estou a falar bem e de uma hora para a outra perdia a voz…”. Calhou eu vir fazer uma consulta ao Porto e eu disse à minha médica oncológica. Diz-me ela “vá ver o que se passa!”, “ó senhor doutora, olhe, até vinha bem na camioneta, mas olhe agora estou rouca”. Diz ela “Não será a sua tiroide? Que lhe tá a dar…”, “não sei, senhora doutora!”, “olhe pra já, está aqui hoje, vamos já embora para o lado das biopsias”. Fiz a primeira, nada. Em consecutiva. Fiz a segunda em consecutiva, fiz a terceira… prontos. Lá vai mais uma lagrima no olho. Um tumor maligno. É que era logo tudo dos brabos, não era dos mansos. Saí para fora, a chorar, diz a minha filha “O que foi mãe?”, “Ó filha, é mais um. Lá tenho que ir mais uma vez à faca. Prontos”, “ó mãe tem de ser! [impercetivel]”. As minhas filhas… dou graças! “A mãe vai ver, vai ser desta!”. Pronto, lá fui! Fui à faca, tiraram-me logo toda. Só que eles estavam com medo que eu ficasse como a Eunice Muñoz ficou. Medico veio-me ao outro dia de manhã, o medico que me operou e eu falava normal como eu falo hoje. Quer dizer, eu tenho alturas que falo assim um bocadinho mais pró… Porque, eles dizem que é normal. Não perdi a voz como havia de perder, mas aquela voz nítida como eu tinha antigamente ficou… fica sempre um bocadinho afetada. Pois tive que fazer iodo. O iodo acho que faz tão mal como a quimio e como a rádio, ou ainda pior talvez, porque os meus dentes desfizeram-se como farinha, porque estes que tenho não são meus.
Portanto, foi uma fase assim complicada para si com essa…
Foi! Foi!
Transformação também… Depois de já ter sofrido.
Foi! Foi quando perdi o cabelo. A primeira vez que fui para o duche e o meu cabelo ficou todo no duche. Nós mulheres é maior coisa que nós sentimos, o nosso cabelo, sei lá... faz parte da nossa toalete, não é?! E hoje as pessoas verem-me com o meu cabelo normal, mas eu já sabia que me ia cair, porque eu já sentia tipo um problema na minha cabeça e eu disse à minha filha “ai, vou comprar um lenço já para pôr na cabeça”, “porquê mãe?”, porque eu fazia assim [faz movimento de passar a mão no cabelo] e a mão já vinha cheia de cabelos e depois picava! Picava muito! Já era o cabelo a cair. Eu fui para o duche, fiquei sem nadinha. Ao outro dia, era Domingo de Ramos. Eu fui à missa, já levava lencinho na cabeça e diz-me assim ali uma moça “Oh! Então ainda ontem te vi, o que é que tás a fazer aí o lenço na cabeça?” e eu fiz-lhe assim [movimento de levantar levemente o lenço], a rapariga começa a chorar. Disse-lhe assim “Não chores que eu não estou a chorar!”, diz-me ela “Mas ainda ontem te vi com o teu cabelo e hoje já não tens nada…”. A própria… a forma como eu fui para o duche, foi todo! Mas havia pessoas que lá diziam que ao princípio não se conseguiam olhar ao espelho, mas eu admirava-me todos os dias. Eu só punha um lencinho para dormir, quando o meu neto dormia comigo, porque eu tinha medo, como ele era bebe, que ele tivesse medo. Então, punha um lencinho para dormir, fazia assim [explica com as mãos] e atava aqui atrás. Durante o dia trazia, não é? Hoje já há novas fórmulas, porque eu não quis cabeleira, já há aqueles chapeuzinhos, aqueles gorrinhos, mas há 15 anos pouca coisa disso. Então, comprei aqueles lencinhos que eu atava, depois punha assim aqui à frente, mas eram pretos, por causa do luto pela minha mãe. Mas depois tive que tirar, que os médicos ralharam-me, eu tive que tirar o luto. Porque comecei a fazer a radioterapia e o preto junto com o tratamento queimava mais e o médico disse-me “pra próxima que cá a veja, não quero luto!” e eu então depois fui tirar. Não vesti aquele claro claro, mas…
Claro, mas arranjar-se diferente…
Disse para as minhas irmãs, desculpem, já vou tirar o luto da mãe, porque o médico proibiu-me e eu do meu marido não meti. Porque não é o luto, as pessoas criticavam-me muito que eu sei, onde é que me chamaram a “viúva alegre”, mas eu não me interessei, sabe? Porque quando ele mais precisou eu estava lá, mesmo ele não sendo um bom pai e um bom marido, eu estive…
A cuidar dele…
A cuidar dele, até que ele fechou os olhos.
E isso é um grande trabalho! O trabalho que tem feito com os seus filhos e depois fez com a sua família… Um grande trabalho!
Nos últimos dois dias, foi sexta-feira, fui com ele para Mirandela, já carregado de febre e pronto, eu só depois, quando ele partiu é que fixei as palavras que o médico me disse em Mirandela; passei o dia todo em Mirandela. Mas eu também tinha uma sogra que não era uma pessoa muito ‘amorulhuda’, que fosse pro pé de mim e me dissesse assim “olhe, se precisar de alguma coisa, eu estou aqui…”. Não! Ela era diabética, era insulinodependente, e ela ainda sempre me dizia na cara que ela era mais doente do que eu e o filho. E eu… E eu ficava naquilo que me parecia… Tenho uma irmã, que muitas vezes vinha ali ao pé de mim e eu ia sempre fazer uma caminhada à tarde e ela ficava ali ao pé dele, para ele não ficar tão sozinho e diz a minha irmã “vai, vai dar uma volta!”, porque eu tar ali em casa também precisava de espairecer um bocadinho. Então, eu fui para Mirandela com ele, ele já tinha 40 de febre … o médico fizeram exames, deram antibiótico lá e o médico só me diz estas palavras quando eu vinha embora à tarde, eu todo o dia lá, diz-me ele assim “olhe minha senhora, boa sorte e coragem que a senhora vai precisar”, mas eu ao mesmo tempo não fixei essas palavras, porque ele tinha no computador… ele foi buscar o acompanhamento tudo o que tava no IPO, o processo estava ali todo e ele já tinha visto que o meu marido tinha… eu ainda não sabia! Porque nós tínhamos feito o exame em Agosto e ainda não tinha sido aberto… visto pelo médico e ele morreu dia 5 de setembro. E o médico já tinha visto que ele tinha o tumor no pulmão, mas eu ainda não sabia e foi essas palavras que eu só fixei depois que o meu marido faleceu. Diz ele, o médico quando me disse essas palavras “boa sorte, minha senhora e coragem, que vai precisar”, queria-se referir que o meu marido já não tinha grande tempo de vida. Não, porque só passou o domingo e ele morreu segunda-feira às 7 da manhã. Mas, eu…prontos, meti-me naquela coisa, sei lá… aquela revolta! Uma pessoa que anda na igreja, mas eu continuo. Revoltei-me aqueles dias, porque eu há sempre aquela coisa, não é? “Porquê?” “Porque só a mim é que acontece?” “Porque vejo pessoas felizes e eu… tanta felicidade me acontece, tanta desgraça!” Mas depois… uma vez, falei com o senhor padre Belmiro e diz-me ele assim “Não se ponha assim”. Disse que Deus dá o sofrimento às pessoas que mais gosta. E eu hoje estou na igreja, faço parte… ajudo o senhor padre, faço parte da comissão fabriqueira e tu e mais alguma coisa [riso] e o que ainda mais virá, não é Ritinha? Prontos. Há aquela coisa, prontos… O confinamento também acabou comigo, porque eu guardava o meu neto, fazia o almoço aos meus filhos e ao meu genro, porque os meus genros para mim são como os meus filhos. Eles tanto me cumprimentam a mim, como aos pais… é igual, não me diferençam. Vem o Natal, não me diferençam em prendas das mães deles ou… não não. Para ele… Eu tinha o meu telefone avariado, ele agarrou, diz ele “Ó Sandra, agarra o teu telefone e dá à tua mãe, que depois eu compro outro para ti”. E eu tenho aqui [mostra telefone] e não é dos…
São outros filhos, não é, também? Outros filhos que também cuidam de si agora…
Portanto, e eu disse assim “Não, meu filho, então agora…”, “Não, a Sandra já tem outro em casa”. Porque o meu já me estava a falhar e eu não era mãe dele, mas ele para ele… O meu marido deixou-me com graves problemas, que eu não sabia, mas problemas, mas muito graves! Porque diz ele assim, ele era ferreiro, ele tinha uma oficina, serralheiro mecânico, e eu dizia-lhe sempre “Olha lá, tu tens algum problema? Tu diz! Porque tentamos resolver”, “Ah não, não tenho nada…”. Depois de 10 anos de ele falecer, aparece-me uma dívida de 40 mil euros!
E foi mais uma batalha, não é? Para conseguir vencer...
Eu ainda não tinha recebido um cêntimo da pensão de sobrevivência ao fim de 10 anos. Uns diziam que a culpa era de Bragança, outros diziam que a culpa era de Lisboa… Lisboa dizia que Bragança.... Andei assim 10 anos, sem receber um cêntimo e eram as minhas filhas que me ajudavam! Depois fui a Lisboa ver uma minha irmã e a minha irmã conhecia uma senhora que trabalhou na segurança social. Às vezes, diz assim “Ah! Uma pequena ajuda…”, mas ajudou, porque a senhora ao fim de um mês, que ela falou com as amigas dela lá, eu tinha o meu problema resolvido. Ora, quando vem essa dívida de 40 mil, que era um banco. Depois, a minha filha como ela trabalhava com bancos, ela tentou se pagássemos a dívida, não pagássemos os juros. Porquê? Os 40 mil eram já os juros. A minha filha tentou renegociar, e diz o do banco “Sim, podemos negociar, se pagar a dívida toda de uma vez… Nós perdoamos os juros.” Prontos. A casa da minha mãe foi vendida à minha irmã, que viveu com ela até à hora da morte. A minha irmã quis ficar com a casa. Ela comprou por 40 mil euros. Éramos 8, dava 5 mil euros a cada um. Eu ainda tinha esse dinheiro no banco, 5 mil. Depois veio-me, então, a pensão de sobrevivência cá ao mesmo e como nós tivemos 5 anos na Suíça, eu também tinha direito a receber a pensão de viúva da Suíça. Juntei aquilo tudo! Foi mesmo na hora H! Eram 13.500€. Porque as minhas filhas, coitadas! Também estavam “E agora como é que vamos buscar o dinheiro?” e eu disse-lhes assim “Alto lá! O vosso pai era vosso pai, mas ele era meu marido. Eu vou pagar a dívida! Eu não quero que vocês tende problemas. Só vos peço, se eu precisar, que me acompanheis. Se eu um dia precisar de 100€ ou 200, que vos estejei lá para me [impercetível]”. E diz o meu genro “E então como é que minha sogra?”, “Olha, meu filho, estão aqui 5 mil da venda da casa, eu vou receber daqui da Suíça outros 5 mil e quase 4 mil de cá…. Portanto, é a continha certa”; diz ele “Pronto, minha sogra. Então se precisar, até lhe levo a mal que a senhora não me diga que precisa e ande a sentir necessidades”. Prontos. Ficou o problema resolvido.
Como é que conheceu o seu marido? Era quando…
O meu marido era daqui! Andamos os dois juntos na escola.
Com uns 17 anos, não é? Começaram a namorar ainda jovens... Essa fase, lembra-se como era essa fase? De ser uma jovem de 17 anos?
Lembra-me, porque… eu naquela altura trabalhava, chegávamos de camião e ele estava sempre à minha espera. Depois, naquela altura, a minha mãe, já sabia… eu disse logo à minha mãe que namorava com ele, mas não namorava em casa! Portanto, na rua da minha mãe faz assim uma esquininha - continua a ser a casa da minha mãe - e eu ficava ali a namorar. Naquela altura havia lá um marmeleiro, hoje há uma figueira e então eu ficava ali a namorar ao pé do marmeleiro. Aos domingos, a gente ia dar uma volta… passear até… nós chamamos ali o “barracão”, até ao Pinheiro Manso. Mas nunca íamos sozinhas! Era sempre os grupos e quase todas tínhamos os nossos namorados.
Sim! Iam às festas, aos bailes… [risos]
Isso é que era… Mas depois zangávamo-nos! E eu também namorei com ele, mas era aquele namoro… Não era aqueles namoros como hoje, era totalmente diferente! Não havia os beijinhos, não havia as mãozinhas dadas…. Era totalmente diferente! Depois ele também… às vezes, zangávamo-nos, ele namorava com outra rapariga e eu namorava com outro rapaz! [risos] Mas não havia aquela maldade, como há hoje, não é? Éramos..., a nossa simplicidade! Mas passado um mês já estamos a namorar outra vez. Portanto, até que nos casamos com 19 anos.
Como é que foi o casamento?
Olhe, foi um casamento simplesinho! Não quis vestido de noiva branco, não! Levei um fatinho, ainda me lembro, um fatinho… camisolinha de gola alta. Ele também levou camisola… fatinho e camisola de gola alta branca. E fizemos assim uma boda só para os familiares. A avó dele vivia ali embaixo numa casinha, foi lá, porque a minha mãe não queria que eu me casasse…. Porquê? Eu trabalhava e era um sustento para casa. E eu disse para a minha mãe “olha, eu vou-me casar”, "Ah! Ainda és muito nova… Olha, então sai de casa!” “Não, não saio” “Olha quando chegares do trabalho tens a mala na rua!” “Tenho? E eu meto-a dentro!”. Eu só saí de casa para me casar, mas não disse à minha mãe para ir ao casamento, nem às minhas irmãs, nem ao meu pai, mas eles depois apareceram todos no casamento. Veio tudo ao casamento! Sei lá, eu sentia-me… Então, se eu trabalhava, queria-me casar, queria-me casar. Se fosse hoje, não me casava! Era totalmente diferente, não é? Mas aquela mentalidade das pessoas: “Olha, vou-me casar!”. Prontos. Tinha… Quer dizer, nós éramos mais maduras com 15/16 anos, do que são algumas pessoas hoje com 20/25/30 anos, não é?
O que é que fazia nessa altura, quando se casou?
Eu ainda trabalhava no Cachão.
No Cachão… Ok.
Eu trabalhei lá até ’98.
E usava esse dinheiro para ajudar a família, não é?
’88 e ’89, fui para a Suíça e vim de lá em ’94.
Ok. Ainda foram alguns anos também na Suíça…
5!
O que fazia lá?
Eu trabalhava em limpezas, só que nunca descontei, foi o meu mal! Se não tinha lá ido buscar 500 eurinhos de reforma em 5 anos.
Como é que foi a viagem para a Suíça na altura?
Ai, muito difícil! Muito difícil! 24 horas. Ainda hoje! Mesmo de autocarro…. Antigamente, íamos de carrinhas, eram 3 carrinhas, carregas…. Eramos… Eu só levei o meu Claúdio, o mais novo comigo, as outras duas ficaram cá, mas depois mandei-as ir!
E qual foi a sua primeira impressão a chegar à Suíça? Um país novo… Vinda da…
Sei lá! Foi diferente, porque eu não sabia falar a língua. Já viu o que é? Eu não os entendia! Depois, quando comecei a fazer limpeza, eu ia para casa de pessoas que falavam alemão. E depois vê-los a falar a eles os dois, por exemplo, à mesa. Eles gostavam muito de fazer uma pausa. O marido – eu trabalhava numa casa de ela era psicóloga na universidade e ele também era professor e escritor. Ele, às vezes, ficava em casa ou nos dias em que ela não desse aulas, depois fazíamos uma pausa à mesa, conversávamos. Ela perguntava se eu não tinha problemas, como psicóloga! Ela gostava muito de conversar comigo. Também trabalhava a fazer limpeza na casa de um jornalista, que dava as notícias… Portanto, eu trabalhava em casa assim chiques [risos], como diz a outra! Não, não. Eram pessoas…
E aprendeu depois, então, a falar a língua.
Eu aprendi com a televisão e com o jornal. E ainda hoje me desenrasco! Eu vou à Suíça e não preciso que a minha nora me desenrasque! Eu vou, falo e às vezes é assim o meu filho “Lá está você a falar com os garotos em francês!” “Ah, então, meu filho, é para eu não esquecendo”. Mas ele queria que eu falasse em português, porque ele fala em português para eles. Porque os meus netos é difícil. Ele tem que estudar alemão, a mãe fala-lhe italiano, o português, o francês…
É muita coisa.
É muita coisa! E acho que agora o meu Mirko ainda vai ter de fazer o inglês. É muita coisa!
Mas é bom, também têm mais abertura para falar.
As minhas filhas ainda hoje escrevem bem em francês! Ora, eu já vim de lá em ’94. A minha Sandra, portanto, ano passado faleceu-me um cunhado, fez agora um ano dia 9, faleceu em Cabo verde. Foi de férias e num mergulho… Ele tava na Suíça, fez um mergulho e esse mergulho foi… fez pré-afogamento, acho que é um país de outro mundo e não temos os cuidados necessários. E, portanto, ele tinha bens na Suíça, porque ele o irmão tinham comprado um prédio, onde é que tem um restaurante e um café. Portanto, as minhas filhas… Eu, como eu casei em separação de vens com o meu marido, são os meus filhos que têm… E, portanto, ele cá tinha um seguro de vida, com um empréstimo que tinha, porque tinha morrido a minha sogra e ele queria ficar com a casa da minha sogra, mas depois os mais velhos não queriam vender… Olhe, aquilo é uma complicação! E, então, de cá já meio resolvido, que os meus filhos o que é do seguro de vida já receberam. Agora, lá está um bocado complicado porque o sócio dele não quer dar… Tem sido um bocado difícil… Mas a minha filha, as cartas, tudo quanto vai, ela resolve tudo para lá, manda emails em francês, tudo! A mais velha. A mais nova já não se desenrasca assim tão bem, mas a minha mais velha sim!
E para além da sua dificuldade com a língua, quando chegou à Suíça, que mais dificuldades é que teve assim no início, quando chegaram?
Quer dizer, eu como sempre fui uma pessoa muito vivida… habituada a tentar-me desenrascar derivado aos problemas da minha vida, que tive não é, porque a minha vida não é fácil com o meu marido… Foi sempre para me desenrascar! Sempre! Sempre! Sempre! Eu fazia amizade com aquelas senhoras, quando passavam por mim, eu fazia amizades com aquelas pessoas… Às vezes, chegava à porta de casa, eu tinha lá roupa para os meus filhos, cortinados para a casa… tudo! Às vezes, só me telefonavam “Madame Cruz, olhe fui eu! Sou a Madame tal, deixei-lhe isso à porta.” “Ai, então, muitíssimo obrigada”. Depois eu fazia crochês e elas adoravam o nosso croché português e depois oferecia uma garrafinha de vinho de Porto, porque eles adoravam o nosso vinho do Porto. Mas assim dificuldades… eu não encontrei nada! Eu desenrasco-me em tudo! Olhe, houve uma vez que fui à Suíça e tive hora e meia na bicha para despachar a mala e eu tinha de despachar a mala duas horas antes, mas eu tive hora e meia na bicha para despachar a mala… Diz-me uma senhora “A senhora já não parte” “Ai parto, parto! Eu não tenho culpa de estar aqui hora e meia! O avião que espere!”. Mas eu tinha visto lá no placard, que o avião para o Porto estava atrasado 2 horas. Era assim a minha nora “Outro bilhete não lho tiro!” “Não te aflijas, calma! Olha que eu não vou ficar cá.”. Diz-me ela “Então, despacha-se! Rápido!”. Lá fui eu por lá fora cima, passei a fronteira, pus tudo, tirei tudo… a gente tem que tirar relógio… tudo! Meti tudo dentro, o saco aberto, a carteira, não é? O telemóvel também temos levar à vista, não se pode levar dentro da carteira. Pus tudo dentro daquelas caixinhas, eu lá passei. O meu filho a telefonar-me “Mãe!” “Já estou cá dentro, meu filho!” Só que o meu dinheiro era pouco! No telemóvel… e comia-me muito, porquê? Porque tava roaming. Fiquei sem dinheiro. Ele tava a falar com ele, fiquei sem dinheiro… Mas eu tava ao telefone e diz-me assim.. Vem uma senhora, que estava lá, não é, no escritoriozinho: “A menina está com problema?”; eu disse-lhe assim “É que o meu filho está-me a perguntar, porque eu vou para o Porto e está-me a perguntar se eu realmente não perco o avião” “Não perde não, menina” – era brasileira – “Porque está atrasado duas horas” e eu disse-lhe assim “Olha filho” e nisto acaba o telefone! [risos] E ele então telefona para a minha filha para aqui “Olha, não consigo contactar a mãe! Não consigo contactar a mãe e ela agora lá dentro… Ai meu Deus, se calhar… Olha, eu nem vou sair daqui, a ver se ela sai para fora e perde o avião”; diz-lhe a minha filha “Mas tu achas que a mãe não se sabe desenrascar?! Ó rapaz, se não for em Portugal… A mãe, sabes que a mãe fala francês. Ela desenrasca-se muito bem!” “Eu sei lá! E lá não me atende o telefone!” “Olha porque se calhar acabou-se-lhe o dinheiro. Olha, vai te embora e deixas a tua mãe em paz, porque olha que ela não se perde lá dentro”. Graças a Deus não me perdi, porque depois eu vi o sítio… a porta qual era. “Por favor” – em francês – “pode-me dizer se é aqui a porta?” - porque nessa altura eu vinha na TAP - “para apanhar o avião” “Ai, sim, sim! Sim, sim, Madame, mas está atrasado muito tempo” “Ah, obrigada! Merci!”. Dizia “Merci”. Prontos. “Obrigada”. Passou-se… Eu desenrasco-me! Uma vez a minha nora, diz-me ela assim “Ah olhe Marina, precisa de ir ali e tal” “Vamos lá”. Fomos a uma drogaria.
Na Suíça?
Na Suíça. Foi na altura quando morreu o meu marido, perdi 12 quilos, fui muito abaixo! Porque depois também perdi logo um irmão! E fui-me abaixo e ela foi lá saber de umas vitaminas e eu dizia “Não quero nada! Não quero nada!” “Vamos lá!”. E engraçado, eu tinha trabalhado para o avô dele, a fazer limpezas e começamos ali a conversar os dois e diz ele assim “Olhe, diga-me lá, há quantos anos já não está cá na Suíça?” “Eu fui-me embora em ‘94” “Credo! A senhora [imperceptível] em ’94!” e eu nunca mais tinha ido à Suíça – fui no ano em que tinha falecido o meu marido em 2016. Pois, vai fazer 7 anos em setembro. Eu conversava com ele como se tivesse toda a vida na Suíça. Diz ele “Credo!”, vira-se para a minha nora “Ela não precisa que ninguém a desenrasque. Ela desenrasca-se sozinha!” Portanto, eu sou assim uma pessoa…
E gosta da Suíça?
Gosto! Gosto muito da Suíça! É um país sossegado! E os suíços são racistas! Muito racistas eles! Mas também a Suíça…
Teve alguma situação de racismo com os portugueses?
Não, não tive, mas ele são… Os portugueses, porque não gostam de ver os portugueses melhor do que eles. Porque os portugueses são umas pessoas que se dedicam ao trabalho e toda a gente gosta dos portugueses a trabalhar. Porque eles não são matreiros a trabalhar. Uma pessoa… Nós, nós portuguesas sujeitamo-nos a tudo, coisa que as suíças não fazem. E a suíça é uma mulher porca. Há-las limpas, mas é uma mulher porca. E nós não, nós portuguesas gostamos, nós próprias de nos sentir bem e a nossa casa… que alguém entre e que se sinta bem lá dentro. Os suíços não se interessam, que esteja suja, que esteja isto, que esteja aquilo… não.
E hoje a Marina ainda trabalha?
Não. Nunca mais trabalhei desde que tive o cancro. Porque o médico me disse que tinha que parar, porque com o braço esquerdo depois de fazer o esvaziamento axilar, eles tiraram-me mais de 17 gânglios, portanto eu fiquei sem força no braço esquerdo. E depois inchou-me mais de 2 centímetros e meio. Portanto, eu o máximo que posso fazer são 2 quilos e, a partir daí, estive no desemprego e através do desemprego fiz o 9º ano e o curso de geriatria.
Como foi esse período do desemprego? Foi fácil?
Foi bom!
Foi bom?
Foi bom! Porque na escola, na camaradagem que nós andamos, não sei se foi 15/18 meses que lá andei, foi muito bom! Ainda hoje conservo amizades dessa altura. Ainda nesta semana estive, sexta-feira, com uma moça que fez o curso de geriatria comigo. Continuámos a dar muito bem … não nos vemos, mas quando nos vemos, ainda há sempre… aquele carinho, aquela amizade e com várias pessoas. Ainda continua o mesmo carinho, a mesma amizade.
Então, fez-lhe bem parar nesse período depois de tanta… tantos momentos mais…
Porque eu gosto de… eu gostava de trabalhar, só que agora ocupo-me noutras coisas. Agora é o Facebook…
É os netos [riso]
É os netos… Por exemplo, pus jogos para a mente não estar sempre a pensar no mesmo, porque, muitas vezes… O meu problema foi o confinamento [imperceptível] estar sozinha! Aqueles três primeiros meses, os primeiros, porque depois os outros as minhas filhas já não deixaram mais! Eu comecei a sofrer com ansiedade. Tive ataques de ansiedade, eu pensei que morria! Mesmo assim aqueles ataques fundos, que a água começa a correr parece que é uma torneira aberta, vómitos…parece que desmaia! Eu sozinha dentro de casa e não chamei ninguém. Fui para casa, tirei a roupa toda e engraçado que eu andava a cavar! Comecei a sentir-me assim mal disposta, com vómitos, a andar assim tudo… a água começou assim… via mesmo a água assim a cair de mim para baixo! Toda molhadinha! Eu levava assim a enxada assim de rasto, cai aqui, levantas-te além. Nisto deitei-me, mas muito mal, muito mal. Pensei assim “se calhar estou a ter algum AVC”. Mas ao mesmo tempo ainda me deitei com a roupa molhada, depois comecei a sentir frio; tirei aquela roupa toda e vesti o robe assim fofinho. Mas depois as minhas filhas como me costumavam telefonar, mesmo a de Mirandela, ao fim de semana é ao meio e à noite, sábados ou domingos é sempre. Diz ela “ó mãe, o que é que tem?” “eu não sei, filha. Eu não sei o que é que tenho. Olha aconteceu-me isto e isto” “então a mãe não me sabia chamar?!” “ó filha pra quê? O que é que havias de vir cá fazer? Eu agora já estou melhorzinha. Já estou bem”. Depois, contei-lhe o que é que me tinha acontecido, é que disseram: foi um ataque de ansiedade! E agora, quando tenho aqueles… Eu hoje não tomei a medicação, porque também não me queria habituar à medicação. Eu não tomo todos os dias, só quando vejo que realmente tenho de tomar, porque começo a tremer e as coisas começam a cair-me aqui da mão, então tenho que…
E fala-nos muito dos seus filhos. Quer recordar um bocadinho como é que foi o processo da maternidade? De quando engravidou?
A maternidade, olhe, foi uma coisa linda! Da minha mais velha, eu estava a trabalhar, vim do trabalho para a ter. Portanto, não nasceu pelo caminho, porque ela vinha dobrada! Da minha mais nova… prontos, a gente primeira vez mãe é a coisa mais linda que há! Depois, engravidei da minha Manuela sem querer. Não fiquei muito satisfeita, prontos, porque não estava na conta. Porque levam-se 22 meses de uma à outra. E aí também uma boa gravidez, trabalhei sempre! Só que da minha Sandra deu-me os enjoos no princípio e da minha Manuela deram-me os enjoos no fim – é muito pior, porque pode provocar parto! Porque nós…. Do meu filho, já foi uma gravidez diferente. Até aos 6 meses e meio tive uma gravidez uma maravilha! Aos 6 meses e meio comecei a ter hemorragias, até aos 8 em que mo tiraram. Eles diziam que era placenta prévia, é o nome que lhe dão, placenta prévia e ele foi gerado fora do útero. E, portanto, eu… tivemos quase à morte eu e ele. Porquê? Porque no último dia em que me deu hemorragia – “oh isto é normal; nem vale a pena estar a fazer caso, nem vou já para o hospital”. Mas depois tive que ir, porque já estava a ficar sem líquido, já estava o sangue a sair às postas. Chego a Mirandela, não havia médico – “Tem que ir pra Bragança” e ainda naquela altura, naqueles caminhos antigos…
Curvas e contracurvas! [risos]
Curva e contracurva… Há 36 anos! E depois, quando me disse, já estavam prontinhas para me fazer cesariana, quando lá cheguei; já estavam à minha espera na sala de partos. Quando acordei, disse assim “o que é que tive?” “um menino” “não acredito!” “teve, teve! Teve um menino, Dona Helena!” “Ah! Tá bem!”. Voltei a ficar a dormir. Ainda me lembra! Depois só conheci ao fim de 3 dias! Porque eu fiquei tão fraca, tão fraca, que eu não tinha nas pernas de ter perdido tanto sangue… E quando fui, o meu filho estava assim um bocadinho escuro. Ele já nasceu com anemia de eu perder tantos líquidos. Disse-lhe “Este é meu filho?! Não! Vocês trocaram-no. As minhas filhas são mais lindas; este meu filho… este não é meu filho! Ele é feio! É preto! E as minhas filhas nasceram tão lindas. Não pode ser!” “Ai sim sim, Dona Helena. Então, tem aqui o seu nome ‘Helena Cruz’” “Não pode ser! Não, não! As minhas filhas nasceram mais lindas! Este não é meu filho, vocês trocaram-no na sala de partos”. Ele tinha os olhinhos vedados…
Claro! Nasceu prematuro, não é?
Não é? Prematuro… Mas já tinha 2 quilos e 700 e tal, quando nasceu! Portanto, que ele só lá teve 4 ou 5 dias na incubadora. Ai, mas depois, logo aí, eu ia-lhe a dar de mamar, mas depois comecei a sentir-me mal, fraca, diz a enfermeira “Não não! É melhor a senhora ir pro quarto”. Mas só ao fim de três dias é que eu o conheci. Mas ele hoje é um rapaz lindo, não é? Que eu já mostrei a fotografia dele [mostra fotografia no telemóvel]
São os filhos?
São, sou e eles. Dois têm os olhos azuis e a outra não. Portanto, isto são os meus filhos! Eu digo, eu só queria que todo mundo tivesse os filhos que eu tenho! Porque muitas pessoas dizem assim “ai, tens umas filhas!”; graças a Deus, porque foi complicado a doença do pai, a minha e eles tiveram sempre ao meu lado. Sempre, sempre, sempre! Elas… os primeiros tempos, eu ainda fui sozinha ao Porto, mas depois nunca mais me deixaram ir sozinha! Nunca mais! Sempre que tinha consultas… Este ano passado é que já não foram, porque a Câmara dá ambulância e já fui na ambulância da Câmara, mas… Cheguei a ir semanas seguidas, elas sempre prontas e a pagar parque! Que agora já fica caríssimo! E então, quando estava lá o pai, íamos para lá dias inteirinhos! Quando era da operação, estávamos… na hora de ele ir para a sala de operações, que ele ia logo cedo, nós já lá estávamos sempre ao pé dele. Por isso, é que eu digo: só queria que toda a gente tivesse as filhas que eu tenho. Graças a Deus. E eu sinto-me uma mulher feliz! Portanto, eu hoje estou a viver a vida que não tive. Aproveito! Faço teatro, faço parte dos cavaquinhos, porque agora também está assim um bocadinho… Em Vila Flor, faço parte do grupo ‘Danças e Cantadas’ e se vier por aí mais qualquer coisita, ainda vai mais qualquer coisita! Com 64 anos. Mas eu digo que tenho 46! [risos]
E o que é que é mais importante no seu dia a dia para si? São estas atividades?
Para mim importante é ter os meus filhos ao meu lado. E vê-los felizes a eles, porque se eles têm um pequeno problema, eu tenho também. Eu sinto que tenho que tar do lado deles, tenho que… sei lá! Mas eu penso que como mãe, acho que qualquer mãe, pressente que os filhos não estão bem! Às vezes, vejo-os triste ou… Hoje é dia, sei que o meu filho logo à tarde me vai ligar, hoje é terça-feira. Certezinha, ele nem ligou à irmã, hoje certezinha que ele me vai ligar – terça-feira ele liga-me sempre. A primeira coisa é “ó velhota! Está tudo bem, velhota?” “eu digo-te se sou velhota!” [risos] “Então está bem, mãe?” “Estou, meu filho”. Agora modifiquei um pouquinho, porque os meus cabelos não eram assim, que a Ritinha no outro dia nem me conhecia [sorri], tinha os cabelos lisos. E eu disse assim “ai não, agora vou modificar um bocadinho”, disse “ano novo, vida nova” e modifiquei um bocadinho. “Oh!” – os meus netos começaram assim a mirar-me – “Tu fizeste o quê ao teu cabelo, avó?” “Porquê, filha?” “Oh, estás diferente!” “Pois, filha, a avó agora está mais nova.”. Quando eu andava a tratar os dentes, ela também perdeu um dente e depois diz ela assim muito rápido para o meu filho “ó pai, porquê que a avó não tem dentes?” “Olha, o pai vai-te explicar. Não vês que a avó esteve doente? Pois. E derivado às doenças da avó, a avó perdeu os dentes e agora ela anda a tratar a boca e depois ela vai pôr!” “Ah! Tá bem! Então não lhe vão nascer como o meu?” “Não, filha. A avó para ter dentes que pôr postiços” “Ah! Tá bem! Olha vês, avó? O meu tenho aqui [gesto de mostrar o dente entre os dedos], agora tu não tens nenhum!” “Pois não, filha. Não tenho nenhum, não” [risos] Ela é assim toda castiça, ele não. O meu neto não, é assim um paz d’alma. Agora ela?! Ela é o diabo em figura de gente! Ela é… Ela parece que manda no pai e na mãe! Ela é que controla tudo com 7 anos!
E ainda tem sonhos para conquistar agora no futuro?
Hoje já não tenho. Já não tenho! É viver o dia a dia e um de cada vez. Portanto, viver o dia de hoje até chegar e depois amanhã… E aconselho a toda a gente a aproveitar a vida, porque ela é tão curta! De um dia para o outro… Não sabe o que nos passará pela frente, ou o que nos acontece ou o podemos nem lá estar. É o conselho que eu dou a toda a gente. Porque a vida é muito curta e há que sabê-la aproveitar. Eu, hoje, aproveito. Ainda podia aproveitar mais, porque eu tinha o meu sonho de tirar as cartas, não as quis tirar quando tive a minha segunda – “Ai, não preciso!” -, mas depois arrependi-me. E quando estava a pensar tirá-las, agora depois de viúva, disse assim “Ah! Vou tirar as cartas. Comprar um carrito assim mais fraco”, mas depois foi tudo ao contrário. Não estou arrependida, porque limpei… Ter, dizer assim “Ninguém fala no nome do meu marido” é uma coisa que eu fico orgulhosa! Porque eu comprei-lhe o terreno, onde ele tá sepultado, pus-lhe a pedra por cima. Nada, os meus filhos não fizeram nada disso! Fui eu que fiz tudo! Porque nós tínhamos um terreno lá adiante, conforme se vai para a nossa senhora da Assunção e diz a minha filha “ó mãe, é melhor vocês venderem o terreno, porque está tudo a desvalorizar! Dão x por ele, é melhor agora, porque na altura da minha mãe tinham-nos mandado 50 mil euros e a minha mãe não quis vender. E vendemos por 23 mil. Já viu a diferença?! O que perdemos?!”. Eu ao vender esse terreno, aproveitei o dinheiro, pus a pedra e disse “olhem, meus filhos, não quero que vós gasteis dinheiro. Eu… a pedra sou eu que faço”. Não fui fazer assim uma coisa muito… porque eles estão ali, não há que ter inveja porque “ai a minha campa vai ter que ser melhor que a tua!”. Coisa mais simplesinha que houver: a pedrinha, só com os dizerzinhos dele, o livrinho… o livro até foi as minhas filhas, as minhas filhas gostam muito de escolher aqueles versos bonitos que toque assim cá no fundo. A minha sogra já tinha falecido, mas não tinha lá fotografia dela. A minha do meio, agarrou, falou com o senhor “eu pago o livro! Se os meus tios… nem quero que os meus tios paguem nada”. Ela mandou tirar o livro que estava, pôs o nome da avó, foram saber de uns dizeres, puseram-nos lá, mandaram… só disseram assim à minha cunhada “olha, vai aqui a fotografia. Gostaste? Olha se não gostaste, já não há nada a fazer! O serviço já está feito.” Porque as minhas filhas são assim também independentes! É tudo logo…
Muito guerreiras como a mãe também!
É. Elas são!
E perante uma mulher tão guerreira, tenho que lhe perguntar o que é significa para si ser mulher?
Ai, para mim significa muita coisa! Ser mãe, ser mulher… olhe, ser tudo! Eu para mim, significa tudo! Significa a minha vida. Não sei se para as outras pessoas será igual, Ritinha, mas para mim significa eu ser eu própria.
Pronto. Agora queria perguntar-lhe como é que foi contar a sua história? Algumas das suas histórias aqui…
Já não é a primeira vez que a conto, portanto… Sinto-me bem!
Sente-se bem?
Sinto! É como se tivesse ido à minha psicóloga!
Que bom! Que bom! E para terminar, queríamos saber se o facto de ter nascido em Trás-os-Montes influenciou a sua trajetória de vida e as suas experiências? O facto de ter nascido aqui?
Eu acho que sim. Eu acho que sim. Sabe porquê? Porque eu conheço pessoas de vários distritos e nós como mulheres transmontanas somos completamente diferentes! Por exemplo, a mulher minhota tem o seu… a sua história, mas nós a transmontana acho que somos diferentes! Somos, por exemplo, a porta aberta! Ainda não nos estão a bater à porta e nós já estamos a dizer “entra!”. Porque nem sabemos quem é! E temos as nossas tradições, coisas que nos outros sítios não tem. A nossa tradição transmontana é muito conhecida em vários sítios. Só o acolhimento que nós fazemos! Somos conhecidos só pelo acolher! Eu ainda estive um ano a viver no Minho e são totalmente diferentes. A nossa maneira de comer, as nossas comidas… Eles não sabem como é o Natal, como nós fazemos aqui! Eles lá só é o bacalhau, nós aqui temos o polvo, temos o bacalhau, temos o bolo rei… Lá é só bolo e chamam-lhe o ‘carvão’… Nós aqui temos aquela bela penca! Totalmente diferente! E conheci pessoas, mulheres na Suíça, totalmente diferente! Santa Maria da Feira, que ainda hoje tenho lá uma amiga, que muitas vezes vem; passa aqui a dar uma volta, lá me traz a fogaça…
É uma vida completamente diferente a transmontana.
Totalmente diferente! Mesmo… A maneira de nós nos vestirmos! Antigamente as minhotas, e, portanto, eu tive lá a viver um ano, a maneira de se vestirem delas, a maneira de cozinharem… elas iam pro pé de mim a ver como nós fazíamos. Nós adaptamo-nos a fazer uma costura, sem nunca aprendermos; elas ficavam admiradas como eu meti-a um fecho, um fecho éclair com a mão- elas diziam assim, “mas parece que foi feito à maquina”. É verdade. Portanto, totalmente diferente! Nós mulheres… E, portanto, eu sou mulher, sou aquilo que queria ser. Sou a vida. E a minha vida é eu ser mulher.
Muito obrigada! Muito obrigada pela sua entrevista. Foi muito bom!
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