Correios – 350 anos aproximando pessoas
Depoimento de Maria da Glória Schimidt
Entrevistada por Isla Nakano
São Paulo, 23 de julho de 2013
HVC048_Maria da Glória Schimidt
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Claudia Lucena
MW Transcrições
P/1 – Dona Maria da Glória, primeiro eu queria agradecer a presença da senhora, queria agradecer a senhora de ter tirado um pouquinho do teu tempo, receber a gente na tua casa para participar do nosso projeto. Para a gente começar e deixar registrado eu queria que a senhora falasse o seu nome completo, a sua data de nascimento e onde a senhora nasceu.
R – Maria da Glória Botelho Schimidt, nasci em primeiro de fevereiro de 1924, em Barra do Piraí, Estado do Rio.
P/1 – Qual é o nome dos pais da senhora?
R – Francisco Xavier Botelho.
P/1 – E da mãe?
R – Irene Pimenta Botelho.
P/1 – A senhora chegou a conhecer seus avós?
R – Eu era bem pequena, conheci bem o vovô Botelho, até uns dez anos, eu me lembro bem dele.
P/1 – Como era o nome dele?
R – Juvenal Xavier Botelho.
P/1 – Me conta um pouquinho qual que é a origem da sua família, a senhora contou que tem umas origens de fora do Brasil.
R – É, o meu avô Pimenta veio da Holanda e se estabeleceu em Juiz de Fora, conheceu a vovó Anita, mineira, se deram muito bem, tiveram oito filhos, foi uma família muito grande, eu tinha 15 primas quando eu era mocinha e era muito interessante na minha cidade, apesar dos problemas de doença.
P/1 – Eu queria que a senhora contasse pra gente um pouco, falasse um pouquinho dos seus pais, da tua mãe, do teu pai.
R – Papai estudou em Lavrinhas, num colégio de padres, fez o Ginásio lá, antigamente o Ginásio era o curso mais importante, o Superior era só para os ricos, muito ricos, que podiam ficar no Rio ou São Paulo, não havia escolas no interior. E depois ele, quando mudamos pra cidade por doença da mamãe, se atrapalhou bastante porque não havia emprego, não havia fábricas, nada, ele procurava um trabalho, foi difícil pra ele encontrar, até que veio trabalhar em Volta Redonda, em 1940 mais ou menos, mudamos pra lá em 1944. Eu ia visitar com as amiguinhas, os namorados, visitávamos o alto forno, subíamos naquelas coisas lá e em 1944.
P/1 – Maria da Glória, se a senhora pudesse falar um pouquinho da personalidade do teu pai ou de alguma memória boa.
R – Papai era muito amoroso, era boêmio, era poeta, gostava da natureza, se levantava muito cedo, ia pro quintal ouvir os pássaros cantarem, eu guardo dele muita coisa boa.
P/1 – E a mãe da senhora?
R – Mamãe ficou doente logo, foi pro hospital, ficou algum tempo hospitalizada, veio a falecer em 41, 1941.
P/1 – O que ela teve?
R – Olha, não havia diagnóstico, antigamente era muito complicado, ela ficou fraca da cabeça e não havia diagnóstico, em matéria de medicina e tudo, era uma pobreza, como já dizia Iraci, era tudo muito precário.
P/1 – Conta um pouquinho pra gente agora da infância da senhora, como que era.
R – Ah, que brinquei muito, eu fui uma criança muito feliz até os dez anos, eu, na fazenda, brincava muito, tomava muito sol, corria, andava a cavalo, eram duas famílias, da fazenda, então eram muitas moças, muitas primas, tinha aquela vida de família, muitas coisas interessantes. Na inauguração da luz elétrica foi um banquete, uma festa muito bonita na fazenda, a fazenda era alugada, o meu tio alugou a fazenda e nós morávamos lá.
P/1 – Quantos irmãos que a senhora tem?
R – Isso foi outra fazenda, primeiro foi a fazenda do meu avô, então ali já era a segunda fazenda, éramos cinco irmãos, Ito José, o mais velho, a nossa avó que escolheu o nome, é um nome japonês, Ito, e para ser batizado tinha que ter o José, um nome em português, então ele ficou Ito José, depois veio a Regina Valesca, que está com 94 anos, viva, Lair, eu era a quarta filha e dez, 11 anos depois veio Ana Clotilde, foi a pequena. Foi uma menina muito boa, criada com muito amor, dedicamos muito amor a ela e ela foi uma irmã muito boa, veio a ser, morava junto com um rapaz, não se casou, faleceram num desastre de avião, os dois.
P/1 – Dona Maria da Glória, como é que era a casa da senhora? Conta um pouquinho de algumas outras lembranças que a senhora tem.
R – Tinha sempre o quarto das meninas e o dos meninos.
P/1 – Se a senhora puder contar um pouquinho da tua infância, bem lá atrás, quando a senhora ainda era pequenininha, quando a senhora ainda era criança. Tinha festas nessa família?
R – Teve, não era comum, sabe, não era como hoje, não, havia dificuldade de tudo, financeira e não era costume de muita festa, era tudo muito simples, as pessoas tinham, todas as pessoas tinham dificuldade, então não havia lá em casa. Depois que a mamãe ficou doente e ficamos sem ela nós não tivemos mais gosto de fazer comemoração.
P/1 – A senhora brincava com os irmãos?
R – Brincava, brincava muito, brincava sozinha, brincava sempre, sempre acompanhava papai, andava a cavalo, eu era a sombra do meu pai (risos).
P/1 – Dona Maria da Glória, me conta uma coisa, a senhora falou que foi pra escola um tempinho, como que era a sua escola?
R – Ah, a minha escola era uma escola da prefeitura, era uma escola rural, uma escola rural, cantava-se o hino nacional quase todos os dias, as crianças eram patriotas, nós tínhamos uma formação que hoje não tem, foi uma pena essa mudança pra pior. Tanto que eu sempre cantei o hino nacional, quando eu entrei para o coral nós sabíamos, todos sabíamos o hino nacional, as moças que frequentavam o coral, agora é uma pena.
P/1 – O que a senhora mais gostava na escola?
R – Ah, eu sempre gostei muito de música, aliás, eu nasci na fazenda de Santa Cecília e sou aquariana e é muito engraçado que eu nasci na beira do Rio Paraíba do Sul e viemos, a vida veio me trazendo até eu morar junto do aquário em Santos, uma coincidência, a um quarteirão do aquário. Então eu sempre levei aquilo muito a sério, e nós mudamos pra esse lugar no dia de Santa Cecília, dia 22 de novembro, eu sempre anoto as coisas por isso, não é muito interessante, não é? E me marca muito, nossa, as coisas me marcam muito.
P/1 – Dona Maria da Glória, deixa eu perguntar uma coisa pra senhora, o fato dos avós da senhora terem essa descendência de fora, alguma, alguém recebia cartas, tinha alguma correspondência, o carteiro levava carta lá na fazenda?
R – Não, na fazenda não, não tinha muita correspondência, que a minha família morava em Barra do Piraí, na fazenda nós tínhamos ligação, não havia necessidade de carta, nessa época não havia muita correspondência. E as cartas foram depois que o meu filho foi pra Alemanha, eu tenho algumas cartas que eu vou procurar, no momento eu não me lembro.
P/1 – Deixa eu perguntar uma coisinha pra senhora, conforme a senhora foi crescendo, na sua juventude, a senhora falou que teve namorado, conta um pouquinho da juventude pra gente.
R – É, tive o meu primeiro namorado quando nós tínhamos 15 anos, aquele amor de jovem, foi tudo muito bonito, ele estava se formando no ginásio e queria que eu fosse madrinha, formatura de ginásio era uma coisa muito importante, o ginásio era importante nessa época, tanto quanto hoje é uma formatura de curso Superior. Então ele queria que eu fosse a madrinha e a minha irmã não queria, achava que não, preconceitos, mas as primas me ajudaram, aí eu fui, foi uma festa muito bonita, houve missa, depois à tarde a entrega dos diplomas no palco do Cine Esperança, era o único cinema do lugar. Foi tudo muito bonito e à noite um baile no Tênis Clube, também traje a rigor, eu mocinha, pena que eu não tirei nenhum retrato, e houve banquete na casa dele, o pai fazia questão de festa, comemorar, eram comerciantes bem situados.
P/1 – Como que a senhora o conheceu?
R – E nessa formatura eu tinha dois primos, então tava tudo em família (risos), eu o conheci no carnaval, numa brincadeira de carnaval nos conhecemos.
P/1 – Como é que eram os carnavais?
R – Ah, era muito bonito, era na rua, nós dançávamos na rua, com a música, alto falante e as famílias na rua dançando, carros com o corso, que chamava o corso, os carros enfeitados, as famílias ricas sentadas com as fantasias, lança-perfume, confete, serpentina. Então era muito bonito o carnaval, era família na rua, não havia ladrão, não havia maldade, não havia nada, podia se sair à noite, a qualquer hora, nunca houve um caso.
P/1 – A senhora lembra das marchinhas de carnaval?
R – Ah, muitas nós cantamos aqui, aqui também nós comemoramos as coisas.
P/1 – Daquela época?
R – Daquela época.
P/1 – Fala uma pra gente de exemplo.
R – “Meu consolo é você”, “Meu grande amor”, por aí vai (risos), “Jardineira”, muitas, e no carnaval eu e a minha prima, o cinema abriu as portas para que as pessoas, tinha um conjunto musical no palco e as portas do cinema abertas para quem quisesse entrar e dançar no palco. Então eu e a minha prima subimos no palco, eu tinha uns 15 anos, e demos um show, porque no dia seguinte todo mundo disse: “Ah, vocês ontem” (risos), foi muito engraçado (risos).
P/1 – Conta um pouco da sua trajetória durante a juventude, além do carnaval, o que foi acontecendo na vida da senhora.
R – Bom, o namorado depois não deu certo porque estávamos fazendo aqueles planos e a família, alguém resolveu pra ele entrar para o exército e ele então foi para o norte, Fortaleza, e aí foi o começo do fim, porque a distância, aí muitas cartas, eram cartas, muita coisa, ele foi muito correto, ele sentiu muito essa separação, eu não entendi bem o que aconteceu.
P/1 – A senhora trocou cartas então?
R – Muitas cartas, ele procurava me alegrar, ele sabia que eu tinha ficado triste, e depois ele veio pra Porto Alegre, foi transferido pra Porto Alegre, passou os dias de férias na terra dele, o nosso namoro continuou, mas depois terminou, a distância, né? Aí nós mudamos pra Volta Redonda essa época e aí tudo começou a se modificar lá, até que terminamos e então a minha irmã, que estava com dez anos, a mais velha casou-se, eu com 20 anos, a minha irmã mais nova com dez anos, não havia a possibilidade dela estudar lá, Volta Redonda era muito, muito difícil. Então papai resolveu: “Vamos colocá-la nesse colégio onde a mamãe estudou, no Bom Conselho”, foi uma grande mudança na minha vida, então papai se comunicou com as freiras e elas ficaram muito contentes que era uma filha da Irene, a minha irmã mais velha também tinha estudado lá com dez anos. Então começamos a tratar do enxoval da minha irmã para o colégio, que era um enxoval de noiva, como noiva, tanta coisa que precisava levar, eu passei a fazer compras, eu não conhecia assim o que era algodão, o que era isso. Foi difícil, mas eu fiz, e eu não tinha ninguém que me ensinasse nada, estava num lugar estranho, por sorte conheci uma costureira que foi a minha salvação, então eu saía, fazia as compras, eu recebia a lista do colégio, uma lista enorme, e eu saía pra fazer as compras das fazendas, levava na costureira e eu e a costureira resolvíamos os problemas da roupa. Fui acumulando tudo e depois fomos levá-la em Taubaté, eu e papai, em Taubaté foi muito bom, fomos conhecer, fui conhecer o frio pela primeira vez, que onde morava não fazia frio, e fomos a primeira vez, levamos a filha, estivemos lá uns três dias. Quando fomos a segunda vez, estávamos passeando à noite com umas mocinhas da pensão onde estávamos e eu conheci Ivan, o meu namorado, próximo namorado, essa noite também mudou tudo (risos), aí passamos a trocar correspondência. Um ano depois estávamos noivos, eu fazendo outra vez o enxoval, a história se repetiu, eu ia no Rio fazer compras, ficava na casa da minha tia e fiz outro enxoval, era uma mala enorme, chamava arca, era de madeira.
P/1 – Dona Maria da Glória, quando a senhora conheceu o Ivan, conta um pouquinho como que a senhora conheceu ele exatamente, a senhora lembra?
R – Ah, sim, passeando na praça que se chamava footing, as moças e os rapazes me apresentaram, as mocinhas, começamos a nos olhar e a mocinha disse: “Ah, eu conheço esse moço, é o Professor Ivan”, ele tinha 20 ou 21 anos, mocinho: “É o Professor Ivan, ah, eu conheço”. Auando ele passou elas agarraram o Ivan e me apresentaram: “Ah, essa moça aqui está chegando” e começou aí (risos).
P/1 – E aí a senhora trocou correspondência com ele por um tempo, como que foi isso? Conta pra gente.
R – Ah, sim, aí passamos a nos corresponder, foi um ano, de vez em quando nos víamos, no mais era por correspondência e no fim do ano fomos buscar a irmã de férias, houve festa do colégio, muito bonita, ela se apresentou no palco com outras crianças, as meninas do colégio e ele me levou pra conhecer a família dele. Ele já havia perdido o pai, eram cinco irmãos, ele morava com a mãe e a avó, já tinha dois irmãos casados e ficamos noivos, aí ficamos noivos e em dois anos nos casamos, em 48.
P/1 – A senhora falou que ele era professor, ele era professor de quê?
R – Ele tinha sido professor, ele já trabalhava então num banco, era funcionário de banco, depois passou a ser funcionário de uma firma, sempre procurando ganhar mais, era tudo muito difícil antigamente. Então nós moramos, quando me casei, dois anos com a minha sogra, foi muito bom, e o irmão dele já morava em São Paulo, mais velho, já estava bem de vida, tinha carro, casa, família, já tudo organizado. E em conversa, houve essa conversa, se ele não gostaria, o Ivan, de vir pra São Paulo porque em cidade pequena, interior, costuma-se dizer que fica-se marcando passo, então ele veio à São Paulo conhecer, trabalharia junto com o irmão e gostou. Eu disse que eu só moraria se fosse pra ele ir almoçar em casa, ficar próximo, que eu com duas crianças, então já não seria fácil, era só um por enquanto, e aí resolvemos vir pra São Paulo em 1950, quando inauguraram a Dutra, nós inauguramos a Dutra (riso).
P/1 – Dona Maria da Glória, eu vou querer saber mais da vinda da senhora pra São Paulo, mas quando a senhora conheceu o Seu Ivan a senhora falou que tava na praça com as amigas.
R – Sim.
P/1 – Como era naquela época, o que os jovens faziam, a senhora ia ao cinema, como é que era?
R – Eu não tinha muita possibilidade, não frequentava clube, essas coisas, não era comum, não era, quando eu era mocinha, com 20 anos, não se ia a um restaurante, família, isso é importante falar, não havia restaurante, família não frequentava restaurante, só viajantes, eu nunca fui a um restaurante. A primeira vez que eu fui num restaurante foi quando eu fiquei noiva, com 22 anos, então meu pai, meu irmão, nós fomos comemorar num restaurante em Barra Mansa, que era próximo, são coisas absurdas, mas acontecia (risos).
P/1 – A senhora lembra da moda, das roupas da época?
R – Ah, sim, a saia godê, não sei se você sabe, saia godê, salto alto, a moça era muito elegante, os rapazes só iam em bailes de terno, gravata, havia muito respeito, era tudo muito bonito, eu tenho saudade do tempo que eu frequentava, eu sempre gostei muito de dançar, ninguém me ensinou a dançar, eu sempre saí dançando (risos).
P/1 – O que a senhora gostava de dançar?
R – Ah, todas as músicas, no carnaval eles distribuíam um folheto com as músicas que seriam contadas no carnaval e nós tínhamos aquele prazer de decorar as músicas pra saber cantar no carnaval, não havia televisão, não havia telefone, não havia nada, não havia. Na minha cidade havia cinco táxis, o do médico, do prefeito, fazendeiro, os fazendeiros eram as pessoas mais importantes do lugar, tinham muita influência política, era tudo muito diferente.
P/1 – Dona Maria da Glória, a senhora era vaidosa?
R – Eu sempre fui vaidosa, sempre gostei de pintar as unhas, nunca fiz muita maquiagem, poucas vezes fiz maquiagem, sempre gostei de me cuidar, sempre, nasci assim, até hoje.
P/1 – Dessas marchinhas de carnaval e das músicas da época tem alguma música que tenha marcado esse tempo da vida da senhora?
R – Não, em especial não, todas foram, deixaram saudades, foi um tempo muito bom, a mocidade é sempre bonita.
P/1 – Como que era namorar naquela época?
R – Ah, era bonito (risos), havia muito respeito, era tudo difícil (risos), era muito bonito, então tinha mais sabor, diferente de hoje, eu não aprecio, não estou de acordo com essa maneira de viver da mocidade, vocês não têm culpa, mas eu, era mais bonito no nosso tempo, aliás, nós, em conversa com as amigas, nós todas pensamos assim, a mulher se desvalorizou muito, infelizmente é assim.
P/1 – E o Seu Ivan, ele levava a senhora pra passear?
R – Ele era muito diferente de mim, eu sou extrovertida, conversava, ele era muito reservado, talvez, ele perdeu o pai também mocinho, também teve problema com essa parte, ele ficou um pouco responsável pela família, então ele amadureceu também antes do tempo, era muito honesto, muito correto, estudioso, gostava de música, muito de livro, gostava muito de ler, tínhamos muitos, uma biblioteca.
P/1 – Como que foi o casamento da senhora?
R – Eu me casei em Aparecida porque, como eu era dona de casa, eu pensava: “Como que eu vou fazer um casamento, a noiva vai casar, a dona da casa”, então resolvemos, eu me casei em Aparecida, os parentes vieram, alguns de Barra, tios, primos e meu irmão, pai, a família, fomos para o hotel em Aparecida e a família dele veio de Taubaté pra Aparecida e o casamento foi lá.
P/1 – E teve festa?
R – Não, teve um almoço no hotel que nós estávamos teve um almoço comemorando a data.
P/1 – A senhora usou vestido de noiva?
R – Ah, sim.
P/1 – Como era o vestido da senhora?
R – Essa costureira que fez (risos), a costureira fez o vestido, fui no Rio, comprei as outras coisas também, tudo no Rio, eu tinha que resolver todos os problemas e não tinha quem me orientasse, porque como eu morava em Volta Redonda, era um lugar novo, os parentes eu deixei em Barra, então eu não tinha ninguém que me orientasse. Eu acho que eu sempre tive um anjo da guarda muito forte porque eu sabia resolver as coisas, eu tinha que resolver de qualquer maneira, eu pegava o dinheiro, uma bolsa cheia de dinheiro, ia no Rio fazer compras, eu com 20 anos não sabia de nada e fazia tudo direitinho, sempre agradeci muito a Deus.
P/1 – Dona Maria da Glória, deixa eu perguntar, antes da senhora casar a senhora acompanhou a trajetória do teu pai na, a senhora falou que ia até o alto forno, conta um pouquinho, a senhora falou que tava sempre grudada com ele.
R – Isso na fazenda, quando eu morava nessa fazenda, depois que ele mudou, que mudamos pra Volta Redonda, aí foi diferente, ele já estava mais envelhecido, eu também, vivíamos bem, sempre com amor, com atenção, mas aí já não era mais a sombra dele, não. Ele trabalhou até quase 80 anos, ele ganhou um distintivo, ele se aposentou por idade, por obrigatório, ele trabalhou enquanto pôde, eu mostrei o retrato dele para vocês.
P/1 – E agora conta pra gente um pouquinho então dessa vinda da senhora para São Paulo, inaugurar a Dutra, como foi essa chegada.
R – Ah, a Dutra não tinha nada, só a estrada, não tinha um posto de gasolina, não tinha nada, via-se muito desastre porque as pessoas tinham prática de correr na Dutra, então eram desastres horrorosos, por incompetência, também muito carro velho, havia muito carro velho. E depois, então eu vou contar a outra parte, quando viemos pra São Paulo em 50, moramos em apartamento alugado primeiro, não tínhamos muita coisa, fizemos uma pequena mudança e fomos comprando, tudo era uma festa, quando chegou a primeira geladeira era como se chegasse um helicóptero hoje (risos), geladeira, depois a máquina de lavar roupa, cada vez, quando terminava de pagar uma comprávamos a outra e assim foi indo. Até que eu não me conformava de pagar, a metade do ordenado era pra pagar o aluguel do apartamento, eu achava um absurdo, eu sempre fui muito econômica por natureza, então eu dizia pra Ivan: “Vamos comprar uma coisa, pagar aluguel é horrível” e ele também concordou. Começamos a procurar no jornal, olhamos e encontramos logo em Vila Mariana, no Lar Brasileiro, que tem até hoje lá, uma construção grande, antiga, não sei se vocês conhecem, então compramos ali o primeiro apartamento, Augusto, o mais velho, começou no jardim da infância ali, ali nós vimos um disco voador, em 1954 mais ou menos, várias pessoas viram um disco voador, porque todo mundo viu a mesma coisa.
P/1 – Como que era isso? Conta essa história pra gente, Dona Maria da Glória.
R – O Augusto, os dois irmãozinhos, o Marcos tinham uns quatro ou cinco anos, estavam brincando na parte externa do apartamento, eram onze horas da manhã e o Augusto, o meu filho mais velho: “Mamãe, olha o disco voador, corre mamãe”, me chamou e eu fui lá fora, era uma coisa diferente, não era avião, não era nada, nunca tínhamos visto e passou uma luz esverdeada. E a minha sogra estava hospedada lá em casa e ela saiu, foi fazer uma visita, passou o dia fora, quando ela chegou à tarde, ela chegou em casa, quando ela entrou ela disse: “Vocês não sabem o que que eu vi hoje”, eu respondi logo: “Um disco voador”, ela disse: “Como é que você sabe?”, ela disse: “Ah, porque lá onde eu estive também todo mundo viu”. E o Ivan chegou de bonde, que ele vinha almoçar em casa, disse que no bonde também todos viram o disco voador, então foi muita coisa, em 1954, por aí, assim, quando inauguraram o Ibirapuera. Nessa época nós íamos, tomávamos um bonde ali no Jardim Ana Rosa, íamos para o Ibirapuera quase todo o domingo à tarde com os meninos, Augusto frequentava, brincava naqueles espaços todos lá, era muito agradável, tinha casa japonesa. Depois os filhos foram crescendo e íamos passear em Santos de vez em quando, nós não tínhamos carro, era muito agradável, a criançada na praia, era uma alegria. E aí fomos resolvendo mudar todo mundo pra Santos, vendemos a nossa propriedade, foi uma loucura, e mudamos pra Santos, vendemos, com o dinheiro montamos uma loja de comércio, comércio de material de construção em Santos.
P/1 – Dona Maria da Glória, o que o Seu Ivan fazia aqui em São Paulo?
R – Ele sempre foi contador, lidava com as finanças do patrão, vamos dizer assim.
P/1 – Eu queria antes te perguntar um pouquinho dessa outra fase, eu queria perguntar pra senhora, quando a senhora chegou em São Paulo onde que a senhora foi morar?
R – No Pari.
P/1 – No Pari.
R – É, junto da Igreja do Santo Antônio do Pari.
P/1 – Como foi essa adaptação numa cidade nova, todo mundo novo?
R – Olha, foi muito bom porque é sempre um progresso, tinha muitas coisas que a gente no interior não tem, embaixo do nosso prédio tinha um fotógrafo onde eu levava as crianças, tinha pizzaria, tinha padaria, tudo muito prático, tinha uma feira, a igreja, a pracinha. Foi bom porque o lugar era bom também, foi uma época muito boa, tinha muito casamento, era um lugar muito festivo, a Igreja do Santo Antônio, nós ficávamos na janela olhando aquele movimento todo, foi muito bom. E dali nós mudamos pra Vila Mariana, também foi bom, era um apartamento bem melhor, mais confortável e em cima tinha um comércio melhor, foi quando comemos a primeira pizza, foi num barzinho que havia ali, Vila Mariana, o Cine Cruzeiro. É, então nós comíamos a pizza em pé, a pizza era servida em pé, comíamos no balcão.
P/1 – De que era a pizza, tinha várias opções, como que era?
R – Ah, era só uma qualidade, muito saborosa, todos apreciavam muito, e nessa época também, uma coisa que eu guardei também foi a Martha Rocha, nessa época que moramos lá a Martha Rocha foi candidata, então nós fomos no Ibirapuera vê-la um dia, muito linda, muito linda.
P/1 – Onde que os filhos da senhora estudaram, aqui em São Paulo?
R – Não, o Augusto frequentou, eu não me lembro bem, era um jardim da infância, não me lembro bem, e logo nós fomos pra Santos, então lá eles continuaram o primário em Santos.
P/1 – E aí como é que foi essa mudança pra Santos?
R – Ah, foi muito boa porque só o mar valia tudo (risos), até com chuva nós íamos no mar, era uma coisa, um domingo com chuva, a gente saía, aos sábados, no domingo, então se estava serenando não tinha problema, todo mundo ia pro mar assim mesmo, era uma coisa, impressionante, cinco crianças, eram três do meu cunhado e os dois meus, e lá eles fizeram o primário, depois passaram ao ginásio. Três anos depois que estávamos lá, o comércio foi muito bom, eles abriram uma loja muito boa, muito interessante, mas eles não tiveram muita sorte com o comércio, eu não sei bem os problemas, financeiros também, como se diz, alguma falcatrua, essas coisas. Eles ficaram aborrecidos e venderam a loja, e aí o meu cunhado com a minha cunhada vieram pra São Paulo porque ela nunca tinha saído daqui, ela tinha a família dela, eles eram franceses, e ela não se deu bem lá. Eles vieram e nós ficamos em Santos, quando nasceu, em 1962, nasceu o meu caçula santista, aí a vida mudou também, foi mudando.
P/1 – Depois que fechou o comércio com o que o seu Ivan foi trabalhar?
R – O meu marido entrou para uma loja de roupas, comerciantes, grandes comerciantes antigos em Santos, portugueses, Gomes, Lojas Gomes, meu marido trabalhou 11 anos com eles, foi muito bom, era um pessoal muito bom, nos agradavam muito, sempre assim. E aí então o meu menino, nesse ano, em 62 nós mudamos, nós morávamos em São Vicente, depois do comércio vendido nós mudamos pra Santos, nós já morávamos em Santos, em 62 nasceu o meu último filho. Mudamos de casa porque morávamos numa casa alugada, então empregamos o dinheiro numa casa muito boa, que queríamos a nossa segurança, e foi quando também o Ivan entrou, foram três coisas no mesmo ano, 62, ele começou nessa Lojas Gomes.
P/1 – Dona Maria da Glória, o Seu Ivan, ele tinha família descendente alemã e ele tinha algum contato com a cultura alemã?
R – Não, não, ele não, ele teve um tio que foi estudar, ele contava, ele teve um tio que foi estudar na Alemanha quando moço e não foi bem tratado, veio de lá com muitas reclamações, então parece que ele ficou aborrecido com aquilo, vamos dizer assim, sabe, ele, ele nunca se interessou muito pela Alemanha, talvez pelas coisas. Ele tinha motivo, um motivo sentimental, ele sempre contava isso, respeitava, mas não se interessava, e a minha sogra era de Taubaté, daquela região mesmo.
P/1 – Me conta uma coisa, Dona Maria da Glória, a senhora se comunicava com os irmãos, com o pai, como que era?
R – Olha, não havia telefone, ninguém tinha telefone e eu tinha muito serviço pra estar escrevendo carta pra todo mundo, então eu passei a me restringir a me corresponder só com a família, com meus irmãos, era muito parente, muita gente, eu não podiam, tinha muito serviço, criança. Então eu me restringi sempre aos irmãos, uma prima ou outra, tem até hoje lá a Iris, foi demais, a amizade ficou maior, mas as cartas, eu me correspondi muito com as minhas irmãs, com a minha irmã mais velha, mas não guardei muita carta, a gente também não pode guardar tudo, eu tenho poucas cartas. Depois que os meus filhos cresceram, nós aí então, por motivo, o meu menino com 12 anos, dez, 12 anos, nós éramos sócios de um clube na ponta da praia, tenho que contar esse detalhe, e era longe pra o menino frequentar o clube, nós morávamos no canal dois e o clube na ponta da praia, era um distância enorme e não havia nada que nos prendesse ali. Era uma casa muito boa, muito bonitinha, sólida, fomos felizes ali, mas mudamos, aí então vendemos a casa por 40, 400, não me lembro que dinheiro era, 1970, em 74 nós fizemos 50 anos nessa casa, eu e meu marido, houve comemoração, foram vários parentes. Então vendemos a casa e compramos um apartamento, esse apartamento foi a última residência em Santos, junto do aquário, e lá então os filhos começaram a crescer, a casar, já os mais velhos, e o mais novo quando estava com 21 anos, que já estava aqui em São Paulo na faculdade. Os dois estudaram em Minas, foram quatro anos frequentando essa Fernão Dias aí, que era um horror, foi muito difícil, mas graças a Deus deu tudo certo, começaram a trabalhar, nunca ficaram desempregados, porque a eletrônica já estava no começo. E o meu filho veio pra São Paulo e descobriu essa facilidade de estudar na Alemanha, aí a vida mudou de novo, porque o caçula era nosso companheiro, ele trabalhava na Varig e estudava na Faculdade Metodista, ele estudou na Metodista, depois eu não me lembro bem se ele foi pra outra faculdade aqui em São Paulo. Então quando ele ficou de férias na Varig ele ganhou a passagem de prêmio, um bônus, e ele então resolveu que ia estudar alemão, e lá foi ele, eu não queria, ele era nosso xodozinho, mas foi a sorte dele. Já sabia o inglês, tinha um carrinho aqui, era sócio do Clube Internacional, era um clube melhor, tudo ele vendeu, fez o dinheiro, o pai também ajudou, precisava de muito dinheiro pra ficar lá fora, e fomos levar no aeroporto e por aí, depois de oito anos ele se casou, a vida foi mudando. Ele passou, no primeiro ano tirou o diploma de alemão, começou a trabalhar, estudava, trabalhava, ganhava muito bem, ficou animado, com uma bicicleta ele resolvia todos os problemas dele na cidade, havia muita facilidade, ele dizia: “Mamãe, é muito bom, eu vou voltar”, eu não queria que ele voltasse. Ele dizia: “Não, mamãe, é muito bom, lá eu tenho muita facilidade, em São Paulo é tudo muito complicado”, e oito anos depois ele se casou e disse: “Agora vocês tem que vir”, então fomos conhecer, fomos visitar, foi tudo muito bom, fomos quatro vezes, os netinhos foram chegando.
P/1 – Que lugar da Alemanha ele foi morar?
R – Trier, junto de Luxemburgo, ele trabalha num banco e ele, com o sobrenome de alemão, falando alemão muito bem, ele disse que algumas vezes ele tinha que tirar documento pra provar que ele era brasileiro (risos), é engraçado, não acreditavam que ele fosse brasileiro. E Augusto aqui também, graças a Deus, sempre se deu muito bem com o trabalho dele, foi mudando, foi fazendo gravação, fez de tudo, com a internet agora. E Marco Antônio, perdemos o do meio, com 45 anos, a família do meu marido tem problema de coração, o pai, dois irmãos já haviam falecido do coração, e o meu filho talvez tenha herdado, a gente não sabe bem, tem o retrato dele, essa foi a nossa maior tristeza. Então moramos nesse apartamento 35 anos, vimos muita mudança no bairro, tudo muito prático, comércio, um apartamento muito bom, a praia, vizinhança, tudo muito bom, muito, deu tudo certo. E meu marido foi ficando com problema de rim, fez o tratamento, melhorou, mas de vez em quando ele tinha uma crise de rim, teve um dia que ele amanheceu com muitas dores e eu ficava desesperada, tinha médico no prédio, eu dizia: “Vou chamar o doutor”, ele: “Não, senhora, não chama que eu não quero”, se levantava (risos) e não deixava chamar o médico. Até que veio a piora e começou a ficar muito mal, começou a fazer os exames, foi dando tudo positivo, até que fomos abrigados a internar, ficamos 40 dias no hospital, foi muito triste, o Augusto tinha que ir de dois, três dias, eu ficava no hospital direto, então ele dizia: “Mamãe, pega o carro e vai pra casa”, 40 dias ele me assistiu muito bem. E o Júnior veio cinco dias depois que o pai estava no hospital, deixou tudo lá, veio, ficou 15 dias comigo, me deu também um apoio muito grande, que vivia de táxi pra baixo e pra cima, não tinha tempo de andar de ônibus e até que ele veio a falecer e eu fiquei. Uns dez anos antes disso nós queríamos morar num apartamento menor porque o nosso era muito grande, nós quisemos um apartamento com três quartos por causa dos filhos, o nosso quarto, o quarto dos meninos, sempre um quarto especial. Então nós começamos a procurar um apartamento menor pra facilitar tudo, visitamos uns dez apartamentos com corretora, que ia lá nos buscar, queria que nós arranjássemos uma coisa, mas não era pra acontecer, não achamos e continuamos ali mesmo. Afinal depois que ele faleceu eu fiquei sozinha e foi ficando difícil pra mim, eu sozinha, eu não gosto de empregada, eu sempre procurei resolver meus problemas com faxineira, sempre tive faxineira e resolvia tudo. E os meninos preocupados comigo, o Augusto aqui mais perto, sempre me dando atenção, o de lá veio, ele sempre veio uma vez por ano ou então nós íamos, até que eu comecei a pensar em me mudar, eu não estava aguentando muito, era um apartamento grande, eu fui ficando mais velha, tudo vai ficando complicado. Eu comecei a pensar: “Eu não quero morar com filho porque não dá certo”, a gente, velho é velho (risos) e comecei a pensar, me mudar pra um apartamento menor não sei se vai resolver, tava achando dificuldade, estava com esse pensamento. Então a minha amiga veio morar aqui, uma amiga de Santos, por motivo de doença ela veio pra cá e nos falávamos de vez em quando pelo telefone e eu um dia falei pro meu filho: “Ah, eu gostaria de conhecer, parece um lugar muito bom, né”. Ele foi lá, chamamos o táxi, viemos de táxi, chegamos aqui, viemos conhecer, almoçamos e vimos tudo, tudo muito bonito, um dia de sol, visitamos a minha amiga, aqui já estava desocupado, eu vim olhar, tinha um lago, aí estava tudo muito feio porque foi tudo reformado, o lago era um horror, um restaurante velho foi demolido, jogaram uma terra aí, olha, isso aqui ficou um caos, logo que eu cheguei, fazia uma poeira. Bom, mas aí o moço disse assim: “Olha, a senhora tem que resolver porque aqui tem fila, tem gente querendo morar, se a senhora não quer outros querem”, me deu três dias pra resolver. Então eu estava, falava com o Augusto, consultei o de lá, todo mundo, né: “Ah, mãe, a senhora faz o que a senhora quiser, a senhora resolve como quiser, a vida é sua, a senhora não tem problema, nós não temos objeção nenhuma”, eu rezei muito, pedi, eu nem dormia direito, fiquei, era uma resolução muito importante, muito séria (risos), só vendo como eu fiquei. E aí eu falei pro Augusto: “Sabe de uma coisa, eu vou”, porque eu achei tão prático, aqui tem muita coisa prática, facilita muito, eu resolvi, dei a resposta: “Eu vou” e eu sonhei, eu sonhei com três Jesus, sabe, eu vi assim, ao mesmo tempo eu vi três Jesus numa noite, aí que eu falei: “Ah, eu acho que é pra mim ir” (risos), foi uma coisa engraçada. Aí foi muito engraçado, no dia seguinte que eu vim, eu fui dar uma volta aí, descobri que tinha um Jesus, uma imagem de Jesus ali no lago, eu fiquei, fiquei, eu disse: “Foi esse Jesus aqui”, engraçado. E assim então tratei da mudança, foi muito trabalhoso porque eu tive que resolver tudo sozinha, eram três quartos, três armários cheios, eu levei três meses, aqui estava em reforma. Então o Augusto dizia: “Quanto mais demorar a reforma melhor porque a senhora tem mais tempo pra arrumar”, eu tirava tudo: “Isso vai, isso não vai”, aquela coisa toda, eu fiquei cansada, mas graças a Deus deu certo. Até que um dia o Augusto disse: “Mãe, fica”, a gente sempre falava do e-mail: “Fica com tudo arrumado aí que já está quase pronto”, eu sonhava com a casa, sonhava com um quartinho bonito, engraçado. E aí eles foram lá me buscar: “Olha, hoje nós vamos”, tava tudo arrumado, então como eu não tenho filha, eu gosto de explicar, eu não quis deixar muito trabalho pras noras, foi bom, foi muito bom, porque vai que eu morresse, que acontecesse alguma coisa comigo lá, eles que iam ter esse trabalho que eu tive, não é, dessa seleção: “Isso vai, isso não vai”, sabe, aquela coisa. Então eu só não mexi no quarto deles porque era tudo deles, mas o resto, desde a cozinha, eu fui resolvendo toda a miudeza, tudo que eu tinha, a faxineira saía com um saco sempre que vinha, já levava, fui fazendo doação de muita coisa. E aí quando cheguei aqui o Augusto disse: “Mamãe, a senhora vai levar isso tudo, isso tudo cabe lá? Esse armário é muito grande”, mas eu não quis deixar, eu tenho muito apego, infelizmente, o apego não é do espírita, eu sou um pouco espírita, ou bastante. Eu não tinha coragem de deixar, eu trouxe muita coisa, isso aqui ficou cheio de pacotes, de caixas, o Augusto dizia: “Mamãe, o que a senhora vai arrumar?” (risos) e até hoje eu ainda estou arrumando.
P/1 – Dona Maria da Glória, quando que foi que a senhora começou a desenvolver os dotes artísticos? Conta pra gente.
R – Bom, quando nós mudamos pra esse apartamento na ponto da praia o Júnior, cinco anos depois ele veio pra São Paulo, eu fui ficando sozinha, os filhos foram saindo, eram homens, precisavam sair, é da vida, o Ivan também trabalhava, eu ficava muito sozinha. Então eu conheci, fui conhecendo as pessoas e eu recebi um conselho de um espírita, sabe, nós fomos num espírita e ele disse que eu tinha que fazer assim, que eu entendi que era pintura. Então no meu prédio, do lado, tinha uma professora de pintura, no dia seguinte eu atravessei, fui lá e combinei com ela, fiquei dez anos ali, toda a segunda-feira eu atravessava, só fazia assim, eu fiz dez anos de pintura. E aí passei a fazer, o Ivan depois de uns tempos se aposentou, passou a me ajudar, ficou uma distração, fazíamos exposição, eu tenho um currículo muito grande, ganhava prêmios, deixei algumas coisas lá porque não tinha onde por em casa. E nos distraíamos com isso, estudei violão, passei a ser voluntária numa casa de crianças com síndrome de down, fiquei 28 anos lá como voluntária, tenho papéis, muita fotografia, muita coisa, me dediquei muito a isso, uma vez por semana, às terças-feiras era sagrado, eu ia pra lá. Na segunda-feira eu ia na aula de pintura, depois deixei o violão, ia deixando, ia mudando, já fazia tapeçaria, tapeçaria foi primeiro, fiz muita tapeçaria, tricô, essa coisa toda, depois saí da pintura, fui deixando a pintura, cansa um pouco, e passei pro coral. Aí o coral preencheu muito a minha vida porque foi muito bom, fizemos mais de 200 apresentações, eu fiquei 18 anos, soprano, e como eu gosto de música, então era uma alegria dobrada. E viemos cantar no Memorial da América Latina, estudamos uma ópera, tem tudo aí, viemos cantar a ópera no Memorial, foi muito bonito, ela nos deu nota mil, cantamos com o Coral da USP, porque aqui eles faziam ensaio e nós a mesma coisa em Santos, depois viemos uma noite pra fazer um ensaio geral, deu tudo certo e viemos no dia da apresentação, foi muito bonito. Cantamos várias vezes em São Paulo, mais de 200 apresentações, ela é muito festeira, uma pessoa extraordinária, é uma vida, uma vitalidade, uma disposição, nunca vi pessoa igual a minha maestrina, Glorinha Veloso, está até hoje lá em Santos, com 80 anos também, e por fim ela estava já diminuindo porque com a idade as pessoas vão produzindo menos e tudo foi se modificando, deixou muita saudade, eu falo com ela de vez em quando, com várias amigas de Santos. E é isso, e aqui estou, gosto muito, faço a ginástica quase que diariamente, aqui tem muita coisa, muita atividade, eu gosto de participar, gosto de ajudar, eu digo pra eles, como dona de casa tenho meu olho clínico (risos).
P/1 – Então, Dona Maria da Glória, essas quatro vezes que a senhora foi pra Alemanha, conta um pouquinho pra gente, ficou só na Alemanha, passeou?
R – A Alemanha é uma Europa, tudo muito bonito, eles já estão prontos, lá está tudo pronto, aqui nós estamos fazendo, construindo, muito terreno abandonado, muita coisa por fazer e lá eles têm muito jardim, muita coisa pronta, é tudo muito bonito, o povo. Eu só conheci coisas boas, eu não posso, não tenho nada que me queixar, foi tudo muito bonito, eu vinha de lá, eu dizia, eu procuro contar sempre, não querendo falar que lá é melhor do que aqui, mas querendo ajudar a minha terra, falando das coisas boas que eu vi lá, muitas coisas interessantes, só vendo.
P/1 – Teve algum momento especial dessas viagens?
R – É, quando eu conheci o primeiro neto, fui conhecer, fomos conhecer ele tinha quatro meses, foi muito bonito, ele muito bonitinho, bebezinho, já trabalha, estuda e trabalha, muitas coisas bonitas.
P/1 – Dona Maria da Glória, conta pra gente agora um pouquinho das cartas, de trocar correspondência, eu sei que depois a senhora é super moderna, usa computador, Facebook, mas fala uma pouquinho de enviar carta pro filho, receber carta.
R – Ah, sim, com o Júnior também primeiro foi carta, muita carta, era uma alegria, nós morávamos ainda no apartamento e o zelador enfiava a carta por debaixo da porta, ele sabia que eu estava esperando a carta, quando eu olhava a carta, oh, que alegria. Até que começou a aparecer o Skype, aí ele deixou de escrever, porque isso é mais prático, então à noite, domingo falamos no Skype, eu ligo, ele liga, e tenho um bisneto agora aqui também, que gosta, sabe mais do que eu com seis anos (risos).
P/1 – Dona Maria da Glória, a senhora teve alguma carta dessas que chegaram que tenha tido uma notícia que a senhora tenha ficado muito feliz ou triste, que tenha marcado assim?
R – Ah, sim, sempre, a vida é cheia de surpresas, notícias boas, tem de tudo, não dá pra gente lembrar assim no momento, mas os Correios foi muito importante na minha vida porque a gente era dependente das coisas do correio (risos). O carteiro sempre gritava: “Correio”, ele andava com uma bolsa com as cartas e ele chegava e gritava: “Correio”, a gente corria, era uma carta, e no prédio era o zelador que colocava também embaixo da porta, quando eu olhava aquela carta vindo da Alemanha, querendo notícias dele, foi também muito agradável, foi muito importante na minha vida.
P/1 – E além das cartas teve algum pacote que a senhora tenha recebido ou enviado, talvez alguma coisa que o filho da senhora tenha ficado com saudades, que a senhora?
R – Sim, ele mandava da Alemanha, sempre mandou e ele manda flores, presente, flores em datas especiais, ele manda pelos Correios, entregam em casa, sempre tem, tem rosas, que ele manda duas dúzias de rosas vermelhas, eu fico distribuindo rosas pra todo mundo (risos). É uma instituição muito importante.
P/1 – Fala um pouquinho pra gente então dos netos da senhora.
R – Ah, os netos, tem o mais velho que está com 17 anos, Maximilian, Ana Eliza está com 14, uma moça, tenho o retratinho dela aí também e o neto mais velho é o de São Paulo, Martim Alexandre, é filho desse nosso filho que faleceu. E agora os bisnetos, um com seis anos e um com um ano que são umas gracinhas (risos), a gente se fala, se vê, ele passa e-mail pra mim no Facebook (risos), então a vida é cheia de surpresas, e a gente vai vivendo. Agora, ontem foi a surpresa do Papa, foi muito bonito, tomara que corra tudo bem com ele, e nasceu mais um principezinho ontem.
P/1 – Dona Maria da Glória, como que foi a adaptação da senhora aqui nesse espaço, o começo, o que foi mais difícil?
R – Olha, os dois primeiros dias eu estava muito cansada da mudança, essa coisa toda, então eu deixei meus pacotes aqui, ia lá pra fora, eu sou encantada, como o meu pai, pela natureza, e eu ficava olhando tudo isso, achei uma coisa muito linda, ficava sozinha sentada no banco de manhã, nove horas, aí os passarinhos cantando, nossa, parecia o paraíso, muito bonito. E aí no segundo dia à noite a Henriqueta, a moça que toma conta, veio, telefonou: “Dona Glória, a senhora quer ir no concerto, hoje nós vamos no concerto à noite, e aí a senhora se arruma e vem aqui às sete horas”, “Ah, já estou aí”, fazia tempo que eu não saía de noite porque eu sozinha, viúva, fiquei, me acomodei, não tinha, não achava graça sair. Então havendo essa facilidade, só chegar ali, procurava onde estava o vestido e o sapato (risos) e me arrumei e fomos na Sala São Paulo, o primeiro concerto foi muito bonito, deslumbrante, pra mim chegando assim do interior tudo tão diferente, eu falei: “A vida muda de novo” (risos), muito lindo, eu gosto muito de música. De outra vez assisti uma cantora, ainda hoje eu falei isso lá pro meu coralzinho: “Eu fui na Sala São Paulo assistir uma cantora, ela sem microfone, ela encheu aquela sala com a voz, mas uma coisa impressionante”, é enorme a sala, você imagina a voz dela chegar até o final daquilo tudo, encher aquela sala, eu achei uma coisa. Então é assim, aí chegamos aqui às 11 horas ou meia-noite, eu tinha medo porque era muito escuro e não estava acostumada, então vinham me trazer até a porta aqui, agora eu perdi o medo, foram várias emoções assim, a passagem do ano foi muito bonita, uma festa de passagem, eles fazem festas, eles são especialistas aqui.
P/1 – A senhora falou que aqui tem várias atividades, contou algumas delas pra gente, como que é, fala um pouquinho?
R – Ah, sim, deixa eu ver se eu acho aqui, isso aqui é uma página, é o bingo, o jogo do bingo, toda a quarta-feira tem e eu enquanto jogo vou fazendo uns desenhozinhos (risos), elas acham graça, aí eu trago alguns pra casa. E temos uma memória, um jogo de memória na biblioteca que eu adoro, é muito interessante, a biblioteca é uma boa biblioteca e é uma mesa grande, sentam umas dez pessoas e tem sempre uma pessoa, elas fazem parte da recreação, e é muito interessante, às vezes damos risadas, aquelas coisas que acontecem, eu não deixo de ir, sempre às segundas-feiras às quatro horas da tarde.
P/1 – Dona Maria da Glória, a senhora tem sonhos, o que a senhora, conta?
R – Mas na biblioteca eu fico muito admirada porque são várias professores, e tem uma que foi diretora da Escola Caetano de Campos, então o nível você já viu, e eu (risos) me saio bem, graças a Deus, volto contente de lá, são várias professoras, é um nível muito bom.
P/1 – Eu vou fazer mais algumas perguntinhas antes da gente encerrar. A senhora tem algum sonho?
R – Olha, nessa idade a vida é uma incógnita, eu costumo dizer assim: “O futuro a Deus pertence”, a gente entrega pra ele e deixa o barco correr (risos), não se sabe nada sobre o dia de amanhã.
P/1 – Hoje o que deixa a senhora mais feliz, qual que é a maior alegria da senhora?
R – Olha, a saúde da família, as crianças, esse movimento lá fora me deixou muito preocupada com todos, tenho pena de todo mundo que ficou na chuva, foram noites, essas reuniões, manifestações, eu fiquei muito preocupada com todo mundo, ficar com a roupa molhada na chuva, de noite, eu perdi o sono, e com os filhos, com todo mundo, então enquanto eu não tinha notícia de todo mundo eu sempre fico preocupada, eu sou assim, eu me preocupo muito.
P/1 – Olhando, assim, pra trás, desde lá da infância da senhora, toda essa vida da senhora, o que a senhora considera como sua maior conquista?
R – Ah, a minha vida toda eu tive que lutar, vamos dizer assim, a gente tem que lutar pra conseguir as coisas, não é fácil, lidamos com todo tipo de pessoas, de sentimentos, de educação, então a vida é difícil pra todos nós, cada um no seu métier, mas não é fácil, não é, temos que lutar. Admiro muito as mocinhas que trabalham aqui, saem cedo de casa, pra chegar aqui às oito horas, nove horas, tenho pena, com chuva, com sol, desde a cozinheira, todo mundo, eu tenho pena, se estão desagasalhadas eu digo: “Você não tem um agasalho, menina” (risos).
P/1 – Conta pra gente agora o que a senhora acha da gente resgatar essas histórias, contar um pouquinho do que os Correios representam na vida das pessoas, o que a senhora acha dessa ideia da gente gravar história de vida?
R – Ah, eu acho muito interessante, eu espero que sirva de exemplo pra alguém, acho que a nossa vida foi de muita luta, então que sirva de exemplo pra vocês que têm tantas facilidades hoje que nós não tivemos, tivemos outro tipo de coisas que vocês também não têm, mas foi vida de luta também pra todos nós, principalmente nessa parte de emprego, era muito difícil. Eu me lembro que no meu bairro, quando eu tinha meus dez, 15 anos, assim, havia só uma fábrica, uma fábrica de meias Lupo, que eu acho que está até hoje lá porque eu vi qualquer coisa, era a única fábrica, uma fabriqueta, vamos dizer assim, no meu bairro, aí você vê, uma única fábrica. Então o emprego era muito difícil, era uma vida difícil, as pessoas se acostumavam a ser econômicas por necessidade, não havia dinheiro pra gastar, mesmo nas festas, nas comemorações, ninguém tinha condição, poucos, sempre os melhores, mas de um modo geral ninguém tinha condição de fazer uma festa, os casamentos eram simples, os presentes eram baratos, tudo por aí, presente de casamento era uma coisa (risos), não havia facilidade. Então essa foi uma parte difícil que nós lidamos na época, eu acho que foi um atraso, o Brasil, a gente hoje pensando, o Brasil custou muito pra se desenvolver, custou muito, acho que ninguém queria que o Brasil fosse pra frente, na gente chega a essa conclusão.
P/1 – Então, Dona Maria da Glória, em nome do nosso projeto, em nome do Museu da Pessoa, eu agradeço de novo a senhora ter contado a sua história de vida pra gente.
R – Ah, eu que agradeço.
P/1 – Ter dividido tudo que a senhora dividiu, muito obrigada.
R – Eu que agradeço, espero que vocês sejam felizes no trabalho, eu que agradeço.
P/1 – Muito abrigada.
R – Nada.
FINAL DA ENTREVISTA
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