E1: Olá, obrigado uma vez mais por ter aceite o nosso convite para participar nas entrevistas para o Museu da Pessoa. Eu gostava primeiro que se apresentasse, dissesse o seu nome, data de nascimento e local de nascimento.
Maria do Rosário, é preciso completo?
E1: Se quiser pode dizer todo.
Maria do Rosário, 19 do 6 de 44, e nasci na freguesia de São Brás de Samões.
E1: Como se chamavam os seus pais?
A minha mãe era Felicidade Rosa de Sales Gonçalves e o meu pai Francisco Sales Gonçalves.
E1: O que é que os seus pais faziam?
Portanto, na altura, eles tinham o comércio, eram os dois mais ou menos ligados ao comércio. E o meu pai tinha também a parte agrícola.
E1: Qual era o comércio que tinham? Era em Samões?
Era em Samões. Nessa altura vendia-se tudo, praticamente, o que corresponde hoje aos supermercados. E de lá, relativamente… Não era nada comprado com as designações atuais, mas em relação, por exemplo, aos outros, porque estava num sítio em que tinha, fornecia aquelas aldeias todas. Portanto, tinha… Antes era um comércio da aldeia, com as características próprias, com todos os produtos, desde mercearia, desde… Parte de lanifícios e disso tudo, e louças, e essas vertentes.
E1: Lembra-se de algum costume que a sua família tinha que tenha marcado o seu período de infância, de vivências também ligadas com essas profissões dos seus pais?
O meu pai eu não o conheci, ele faleceu eu tinha 2 anos e… 2 anos e… Quase 3 anos. E, portanto, as memórias que eu tenho são muito… Talvez, transmitidas mais até pelas outras pessoas do que pela vivência. A minha mãe…
E1: Algum costume que tivessem em família? Tem irmãos?
Não, tive um irmão que faleceu antes de mim, muito pequenino. Não sei, tínhamos vários costumes, sem dúvida, mas um pouco relacionados com a época e até mesmo com o contexto de aldeia. Não tenho ideia que muitas famílias tinham o terço à noite. Fazíamos as nossas orações. A ideia mais presente...
Continuar leituraE1: Olá, obrigado uma vez mais por ter aceite o nosso convite para participar nas entrevistas para o Museu da Pessoa. Eu gostava primeiro que se apresentasse, dissesse o seu nome, data de nascimento e local de nascimento.
Maria do Rosário, é preciso completo?
E1: Se quiser pode dizer todo.
Maria do Rosário, 19 do 6 de 44, e nasci na freguesia de São Brás de Samões.
E1: Como se chamavam os seus pais?
A minha mãe era Felicidade Rosa de Sales Gonçalves e o meu pai Francisco Sales Gonçalves.
E1: O que é que os seus pais faziam?
Portanto, na altura, eles tinham o comércio, eram os dois mais ou menos ligados ao comércio. E o meu pai tinha também a parte agrícola.
E1: Qual era o comércio que tinham? Era em Samões?
Era em Samões. Nessa altura vendia-se tudo, praticamente, o que corresponde hoje aos supermercados. E de lá, relativamente… Não era nada comprado com as designações atuais, mas em relação, por exemplo, aos outros, porque estava num sítio em que tinha, fornecia aquelas aldeias todas. Portanto, tinha… Antes era um comércio da aldeia, com as características próprias, com todos os produtos, desde mercearia, desde… Parte de lanifícios e disso tudo, e louças, e essas vertentes.
E1: Lembra-se de algum costume que a sua família tinha que tenha marcado o seu período de infância, de vivências também ligadas com essas profissões dos seus pais?
O meu pai eu não o conheci, ele faleceu eu tinha 2 anos e… 2 anos e… Quase 3 anos. E, portanto, as memórias que eu tenho são muito… Talvez, transmitidas mais até pelas outras pessoas do que pela vivência. A minha mãe…
E1: Algum costume que tivessem em família? Tem irmãos?
Não, tive um irmão que faleceu antes de mim, muito pequenino. Não sei, tínhamos vários costumes, sem dúvida, mas um pouco relacionados com a época e até mesmo com o contexto de aldeia. Não tenho ideia que muitas famílias tinham o terço à noite. Fazíamos as nossas orações. A ideia mais presente que eu tenha mais presente, talvez, é capaz de ser ligada ao meu avô. Eu penso que sim, que foi uma presença masculina muito, muito forte. E, portanto, as histórias e isso tudo estão muito relacionadas com as que ele me contava. Mais até do que com a minha mãe, de facto. Ela tinha…. Após a morte do meu pai, ficou com, digamos, uma responsabilidade maior e uma atividade maior e, portanto, penso que essa, essa parte das histórias e desses, daquelas coisas de criança, de ouvir, das histórias antigas e contaram-me. Tenho a impressão que são mais relacionadas com o meu avô do que propriamente com a minha mãe, acho eu.
E1: Lembra-se muito bem de ouvir histórias desse avô, dessas histórias?
Além de ele contar muitas, ter muitas, tinha muito jeito para contar. Tinha muita piada. Uma coisa que acho que mais ninguém herdou, ele tinha…. Era malandreco. Gostava de contar aquelas histórias com palavras que para a altura eram terríveis. Aquelas palavras, meu Deus, que hoje não têm sentido nenhum. E gostava de contar essas histórias. E depois havia as histórias dos lobos, a essa altura havia muitos lobos por lá, era muito frequente aparecerem lobos. E eu gostava. Ficava assustada, mas gostava imenso de ouvir. E contava-me muitas histórias dos lobos. Uma vez iam não sei para onde e um lobo depois apareceu, e depois apareceu, essas histórias eu… Eu gostava de ouvir. Ele contava-me muitas histórias. Algumas muito… Não sei se depois ele as romanceava, não sei se não. Mas algumas eram muito interessantes.
E1: E eram todos, então, de Samões…. Lembra-se ou sabe a origem da sua família?
O meu avô não era de Samões. O meu avô era de uma aldeia que eu agora já não me recordo bem o nome. Sabia, mas de momento não me recordo. Suponho que do concelho de Mirandela. E venho para lá trabalhar, para casa da minha avó, com quem depois veio a casar. O resto era tudo de Samões, tanto o meu pai como a minha mãe eram de samões.
E1: E lembra-se dessa casa onde passou a sua infância?
Ai, muito bem.
E1: E como era essa casa?
Ela foi… Portanto, sendo a atual, foi reestruturada várias vezes. Aumentos, conforme a família, claro, aumentou. Mas, recorda-me, portanto, tinha a parte de baixo. A parte de cima era uma sala de jantar, a sala de cozinha, que era grande, muito grande. Havia uma divisão mais pequenina, que eu já não me recordo muito bem. Eu tinha 8 anos quando as obras maiores foram feitas. Mas suponho que seria uma espécie de salinha de estar. Não era muito grande, era pequena. A sala de estar é que era bastante grande. Depois tinha dois quartos relativamente grandes e dois quartos interiores. Depois foi aumentada, nessa altura não tínhamos casa de banho. Tínhamos casa de banho exterior. Já tínhamos uma casa de banho exterior. Depois foi aumentada e ficou então bastante aumentada. Ficou com, praticamente, com o tamanho, aliás, que tem hoje e que era bastante, pronto, era grandinha.
E1: Com quem é que vivia?
Da família nuclear era: a minha mãe, o meu avô e uma empregada que acabou por ser nossa até ao falecimento dela o ano passado. E, depois, tinha tios e primos que me eram bastante presentes. Mas… O dia a dia éramos só nós. Tínhamos também uma prima, que era uma prima direita da minha mãe, bastante mais velha do que a minha mãe, que era solteira. A família já tinha morrido toda, os pais, os irmãos e tudo. E, portanto, viviam, praticamente… Não vivia na nossa casa, mas acabou por falecer em nossa casa e fazia o dia todo em nossa casa. Aliás, era a maior mandona. Era ela que: “Não fazes, humhum!”.
E1: Então, cresceu rodeada de adultos, também?
Sim.
E1: E como é que era a altura? Havia muitas crianças?
Havia muitas, muitas crianças. Mas muitas mesmo. E eu gostava muito de conviver… Não deixava, com muita pena minha, mas eu quando podia, eu fugia de casa.
E1: O que é que fazia quando fugia de casa para ir brincar?
Ia brincar na rua. Porque as meninas iam para lá brincar, mas claro que para mim própria não era a mesma graça que brincar na rua com os outros. Mas… Mas tinha sempre a casa cheia de miúdas, tinha. Mas gostava, quando apanhava. A minha mãe, como eu já disse, ela tinha uma responsabilidade grande na parte agrícola comercial. Portanto, imaginem que a Gina, que era essa senhora que tomava conta. “Não vai para a rua! Não vai para a rua!”. Quando apanhava a Gina distraída, normalmente a minha vingança era, depois de almoço, ia-me deitar, eu fingia que dormia, ela adormecia e eu [bate palmas] fugia.
E1: E que brincadeiras é que tinham?
Eu sei lá, lá em casa brincava muito mais. Porque eu é que tinha brinquedos, na altura as miúdas não tinham, praticamente, brinquedos. Tinham os que faziam. Eu tinha uma caixinha com os brinquedos e, portanto, eu tinha os brinquedos e elas gostavam de ir para lá. Mas tinha muito mais piada andar cá fora em liberdade a correr. Tinha uma amiga que o nosso prazer era, já maiorzita saí com os nossos 6 anos, 7 anos. Era porque era uma corda e dar a volta ao povo a saltar à corda, a ver quem é que saltava mais as duas. E a Gina não me deixava fazer isso. E, portanto, era nas fugazinhas. Ela às vezes ficava danada. Depois começou a descobrir, às vezes depois de ter dormido 1 ou 2 horas bem dormidas, e eu já tinha andado cá fora. Isto não quer dizer que fosse todos os dias. Mas gostava de brincar cá fora. Isto não quer dizer que fosse todos os dias, mas gostava de brincar cá fora.
E1: Mas, então, as condições não são completamente distintas do que são atuais e mesmo no início da sua infância, não tinham uma casa de banho, por exemplo. Lembra-se como é que era tanto a aldeia, como a Vila, nessa altura desse período da sua infância?
Lembro-me muito bem. Nem quero imaginar. É impossível as pessoas agora imaginarem o que era. E… Mas de facto fui uma criança privilegiada. E… Porque de facto… A miséria era muito, muito, muito grande. Havia duas ou três famílias… Porque mesmo as que tinham alguma, até casas de abrigo maiores do que a minha, mas puseram essencialmente pessoas que viviam daquilo e para aquilo. Portanto, nunca tinham vindo ao Porto, não conheciam nada disso. Praticamente eu só tinha… Mais ou menos equiparado a mim. Tinha duas amigas. Não é? No verão tinha mais, que havia pessoas que viviam em Lisboa e que iam… Mas essas viviam lá permanente. Vieram depois para o Porto estudar também. Mas essas… Éramos muito, muito amigas. Infelizmente, uma delas já faleceu. Que éramos exatamente da mesma idade e que éramos muito, muito, muito amigas. E, com essas, eu ia diretamente para casa delas ou elas iam para minha casa. Mas para as outras miúdas é que iam lá para casa. A miséria era muito grande, muito grande. Havia famílias que não tinham… Dormiam no chão, em sacos de lona, mas isso é, isso era frequente. Havia muita, muita, muita miséria. E quando eu digo que não tinha casa de banho, não tínhamos casa de banho interior. Mas tínhamos uma banheira que se montava e se desmontava para tomarmos banho em casa. E tínhamos uma casa de banho exterior. Pronto, só para…
E1: Sim, sim, claro.
Que era uma coisa… Havia muita, muita miséria. Penso que, mesmo as pessoas que conhecem a atual, não imaginam o que é uma miséria diferente da de hoje. Não é? Mesmo a do sem abrigo. É uma miséria diferente. Até porque muitos sem abrigo é opção, não é por necessidade. Portanto a miséria é uma coisa que custa muito a recordar e a falar. O meu marido, que é de Samões, ele próprio não tem noção de toda aquela miséria. Porque ia de férias. Quem estava lá, quem via, quem se… Era de facto uma miséria muito grande. Vila Flor, claro, que aí já havia as duas vertentes. Claro, porque já era uma Vila. Já tinha… Embora uma Vila pequena e assim, mas era diferente mesmo a questão do saneamento. A luz lá em Samões foi inaugurada eu tinha 11 anos, com luz elétrica. E foi a primeira aldeia do concelho e umas das primeiras do distrito de Bragança. Que havia um misto conhecido. A questão das águas ainda foi mais tarde. Da ligação para as casas. Por acaso nós também tínhamos, não porque nos tinham dado prejuízo… Depois isso já são outros quantos. E houve uma casa ou duas que tinham uma ligação e saneamentos, que não havia. Mas isso se calhar até… Claro que é fundamental. Também era mais visível. Visível era a miséria, mesmo. Não é? As crianças rotas, as crianças cheias de doenças. Embora eu tenha muito boas recordações, mas era muito triste. Não se imagina o que era Portugal naquele tempo. A sério. Era muito… Muito longe. Das comunicações, dos grandes centros. De longe das comunicações, dos grandes centros, como há as crianças que há agora. Quando ia lá ao carro, quando era mais pequenina, depois já não, havia a camionete que ia todos os dias de Vila Flor para a estação. Já havia comboio e essa coisa toda. Mas cá os rapazes juntavam-se todos para ver o carro. O carro era assim uma coisa inovadora.
E1: O que queria ser quando crescesse?
Queria ser Srª. Professora, comprar um carro que na altura havia, que era o Joaninha, que era um carro pequenino. Mais pequenino que o Fiat 500/600. Era muito pequenino. Não sei se a marca era Joaninha, se chamavam Joaninha. Mas o Joaninha era o meu sonho para ir com a minha mãe passear. Queria ser Srª. Professora e comprar um Joaninha.
E1: Cumpriu algum desses sonhos?
E2: Nem um, nem outro.
A piada é que não me tinha lembrado disto agora de repente. Não, a joaninha já não havia a não ser as do jardim. E Professora, não. Não me senti depois com vocação para isso.
E1: Então, já que falou agora de querer ser Professora, andou na escola lá em Samões? Foi a escola primária? Lembra-se como ia para a escola?
A primeira fase da escola, mas foi só… penso que nem chegou a um ano. Ainda era mista. E, depois, porque não era nas escolas que estão atuais. Depois fizeram aquele edifício. O Estado Novo, já com a escola separada, rapazes e raparigas. E… Pronto, já havia separada. Era muito perto de casa, e eu ia todos os dias para a escola. Fiz a escola primária lá toda. Tinha pena de ver as miúdas, isto antes de ir para a escola, de ver as miúdas passar. E fugia, ainda fugi uma ou duas vezes de casa para a escola. E, depois, a minha mãe foi falar com a Professora a ver se eu podia ir para lá. Não para frequentar, pronto, para estar. Uma vez que estava em casa sozinha e que tinha pena. Mas que tinha que ser o Diretor lá, não sei como se chama o velhote. Mas como não tinha direito às carteiras da escola, levava um banquinho e uma lousa, daquelas lousas, que lá está. Acho que não aprendi nada. Só depois é que fui mesmo para a escola.
E1: Lembra-se de algum Professor que a tenha marcado nessa altura?
Eh… Vários. Só tenho uma lembrança negativa sobre uma, não é. De resto as outras tive sempre um relacionamento muito bom. Eu nessa altura também era muito espertinha. Uma mulher muito espertinha. Tinha umas condições que as outras crianças não tinham. Mas… Mas essa Professora, que foi a minha Professora na terceira classe, e que era de uma aldeia próxima, da Vilariça - de Lodões. E, portanto, sendo a aldeia agora próxima. Os acessos não são o que são hoje, e portanto ela ficou hospedada em casa de uma tia minha. Que também é sozinha. E tudo muito bem. As más recordações que eu tenho dela é que nesse ano fui operada à garganta e às amígdalas. Fui operada, e portanto estive não sei quantos dias no Porto, já não me recordo, porque fui operada aqui no Porto. E quando fui ela tinha dado matéria, que eu agora já não sei precisar que matéria é que ia dar, e pronto. A Professora chamou uma “menina”, e a menina não soube. Chamou outra menina, e a menina não soube. E, claro, que apanharam grande. Não é? Com aquela reguinha e a vara na cabeça, aquilo era… Até que resolveu chamar-me a mim. E eu cheguei lá e disse-lhe “Ó senhora Professora, eu estive doente e não dei isso”. Só que ela achou que perante as outras crianças eu tinha os mesmos direitos e portanto também tinha que apanhar. As miúdas não entenderam isso, foi uma revolta total. Vieram para as mães queixar-se que a senhora Professora me tinha batido e que eu não tinha merecido e que eu tinha estado… Elas sabiam perfeitamente que eu tinha estado doente. E eu nunca lhe perdoei. E, entretanto veio um primo, filho dessa minha tia, e depois casou com ela. Mas eu nunca lhe perdoei. Mas aliás tinha razão para não perdoar porque ela era mázinha, mesmo já depois era má. Retorcida. E interesseira. Foi a única que me marcou. De resto confesso que não tinha más recordações.
E1: Alguma memória positiva de um outro Professor que a tenha marcado ao longo do percurso?
Sim, acho que as outras, praticamente todas. O sentido de querer um relacionamento, por exemplo, quando… Eu em pequenina já não sei que idade tinha, estive muito, muito doente. E… E a Gina prometeu ir a Fátima ver se eu me salvasse. E cumpriu isso, depois entretanto melhorei, os anos foram passando, e ela cumpriu isso no meu primeiro ano de escola. E eu chorei muito, muito, com a partida dela. E a Professora, recorda-me perfeitamente, que foi muito carinhosa, muito meiguinha, aqueles dias que ela esteve ausente ela tentou de facto minorar a minha tristeza, porque estava muito triste, porque era a primeira vez… Quer dizer, não era a primeira vez que me separava dela, mas para aquele efeito. Porque, uma coisa era vir ao Porto com o meu avô para a praia, outra coisa era ela ter ido embora, não sei quantos, para ir a pé a Fátima. Era uma coisa assim do outro mundo, de facto. Portanto, essa talvez me tenha marcado mais nesse sentido, não tenho razão de queixa.
E1: Depois seguiu a escola lá ainda…
Não, depois vim fazer já a admissão ao Porto, ao colégio da Paz. Nessa altura fazia-se a admissão no Liceu, ao Liceu ou à Escola Técnica. Eu já fiz o Liceu, já vim fazer ao Colégio da Paz e depois continuei aqui.
E1: Onde é que ficou a viver cá no Porto?
Em casa de uns tios, de um irmão da minha mãe.
E1: E lembra-se dessa mudança? Como é que foi vir viver… Já vinha ao Porto passar férias?
Não tenho ideia. A única ideia que eu tenho, claro que há 70 anos, tinha 9 anos quando fui. A única ideia que eu tenha… Eu era muito mimada, muito, muito mimada. Até exageradamente. E nesse aspecto até foi bom. Porque de facto era uma miúda extremamente mimada. E nalguns aspetos no sentido negativo. “Se não me dás eu choro”. E, portanto, tenho essa ideia de me ter custado muito deixar a minha mãe e a Gina e o meu avô. Porque a minha tia… tinha um ambiente muito bom aqui em casa dos meus tios. A minha tia era muito seca, mas não era para mim, era seca para toda a gente. Para os filhos… Nunca houve uma ternura, mas, não era uma diferença, era ela assim. E para os meus primos era a mesma coisa. E, portanto, do resto, assim, na adaptação não me custou.
E1: E os primos eram mais ou menos da sua idade?
Ai! Não, os meus primos, o mais novo tinha mais 11 anos do que eu e o outro 13. Já não estavam em casa.
E1: Ainda não tiveram essa… Passar a viver… Continuou a viver com adultos na mesma.
Continuei a viver com adultos. Eu com eles vivia nas férias. Eles iam passar as férias lá e eu vinha passar cá. Portanto, estávamos sempre, sempre juntos. E houve o carnaval, a páscoa, no Natal e isso tudo. E eu vinha cá fazer os meses de praia com eles. Mas na altura em que vinha estudar eles já estavam fora. A minha prima estava a estudar em Coimbra e o meu primo estava em Lisboa, o que é uma diferença muito grande de idade.
E1: E fez então aqui o Liceu…
Fiz aqui o Liceu e depois segui para a Faculdade.
E1: Para que faculdade?
Para Geologia.
E1: E porque é que escolheu geologia?
Não sei… Ai sei, sei, até sei. Porque eu detestava matemática, e na altura, quando eu estava, já no sétimo por aí… Era o único curso… Eu estava em ciências. Nessa altura só havia letras ou ciências. Eu estava em ciências. Não me pergunte porquê, porque eu era muito melhor aluna… Nunca fui uma grande aluna, mas era melhor a letras do que a ciências. Portanto, não sei muito bem porque é que fui para ciências. Deve ser daquelas coisas que a gente fazia… O que é certo é que geologia é o único curso… Eu não pensava nas engenharias que isso para mim era demais, ou as medicinas, ou isso… Seria Biologia, Geologia, Química, pronto… Era aqueles… O meu conceito. Farmácia… Aqueles conceitos que estariam mais acessíveis para mim. E era o único curso que não tinha matemática com precedência em cadeiras de faculdade. Pronto, acontece. Quando entrei mudou e precisamente apanhei com precedência. Quando fiz a missão não havia precedência. Havia Biologia e não havia em Geologia, no ano em que entrei. Portanto, pois. Fui para lá navegar.
E1: Como é que foi esse movimento da entrada na faculdade? Mudou alguma coisa na sua vida de ter entrado na faculdade?
Ai! Mudou imenso. Imenso, porque… Os meus tios, a minha tia sobretudo, era muito severa. Eu nunca tive chave de casa, não podia sair à noite, eu saía no colégio às 17h, ela dizia que eu tinha que estar em casa às 17h30. Ou 17h45. Tinha que ser tudo assim muito… Ora, claro que quando fui para a faculdade, eu não saí. Chave continuei a não ter, mas durante o dia, com a graça de Deus, podia mentir. Sabe como é. E aí foi uma liberdade enfim. Senti-me muito mais livre. Aliás, eu reprovei a matemática, no Liceu, e tive… Não, não é isso. No colégio, aqui, as notas no Natal foram mazotas. A matemática, já não sei precisar a outra, sei que matemática foram muito más. E a minha tia achou que devia ter uma conversa franca com a minha mãe. Ó mana, a Rosarinho não está num bom caminho, isto vai ser… Ela não vai conseguir fazer o sétimo ano, não sei quantos, eu acho que ela devia ter ido para interna. Claro que foi o meu melhor ano. Estive um ano interno na Póvoa, foi um ano fantástico, fantástico.
E1: Porque aí tinha a sua liberdade também?
Não tinha, o colégio era de freiras, estamos a falar há muitos anos, não é. E, portanto, era uma liberdade relativa. Mas tinha um convívio que não tinha em casa. Tinha uma franqueza, e depois como já fazia parte do grupo das grandes, porque era sétimo ano, de facto tínhamos uma liberdade que saíamos todas as noites, tomar cafézinho, não é, com uma freira. Mas havia sempre uma menina que queria fazer pau de cabeleira da freira e a gente dava uma voltinha. Portanto, foi um ano muito bom. Depois entrei na faculdade, tinha aulas ou não tinha, isso já não dava satisfação. Mas só nesse sentido. No resto… Assim, provavelmente a adaptação, muitas das minhas colegas foram comigo, várias colegas, foram comigo e, portanto, penso que não houve assim propriamente um choque muito grande, não é.
E1: Houve algum período marcante na fase do tempo em que esteve na faculdade? Algumas histórias que tenha recordado do período da faculdade? Algo que a tenha marcado depois na vida profissional, por exemplo?
Aí não, porque eu não tive na via profissional. Entrei na vida profissional já muito mais tarde. Mas, não sei, eu tive convívio com colegas, foi muito bom esse convívio. Esse primeiro ano da faculdade até foi muito bom. De facto. E, assim, não me recorda assim nada de especial. A professora de química geral que era vesga e que era um problema no anfiteatro. Ela apontava para nós, mas estava a olhar para o outro. E a gente fazia assim umas patifariazinhas. Penso que foi a única, assim, a única marca maior.
E1: Então, mencionou que a sair era assim uma, era difícil aqui com a tia, mas começou a sair quando estive interna no colégio. Com que idade começou a sair sozinha ou com os amigos?
Ai, sair sozinha, sozinha, foi quando fui para Lisboa.
E1: Então depois do período da faculdade foi para Lisboa?
Não, eu no primeiro ano da faculdade aqui reprovei a matemática. Na época de julho. E voltei a reprovar em outubro. E, depois, o meu primo, filho desses meus tios, com quem eu conversava bastante e era assim, espírito aberto. Exato… “Não gostas do que andas a fazer, porque é que não vais tirar um destes cursos mais modernos. Não forçosamente à faculdade, porque é que não vais para Lisboa? Há aí esses cursos novos, há de turismo, há de relações públicas, porque é que não vais para isso? E até podes continuar na faculdade se te entusiasmares”. Portanto, pedi a transferência para Lisboa, ainda fiz lá 3 ou 4 cadeiras, mas pouco. Porque de facto comecei-me a dedicar mais ao outro curso, que era o curso superior e gostei muito. Adorei, adorei. E entusiasmei-me e, de facto, o meu primo tinha casado há pouco tempo, eu vivia em Lisboa, tinha casado há pouco tempo, e recorda-me perfeitamente de a minha mãe me dizer-me “Olha, vais ao primo, vais ao Jorginho, mas não sejas aborrecida. És desejada, não sejas aborrecida.” Portanto, eu ia muitas vezes lá, mas de facto comecei a fazer a minha vida. Ter amigos, sair à noite. Nunca tinha saído à noite. Não é? O sair à noite nessa altura… Não seria o sair de hoje, mas saíamos à noite.
E1: O que é que faziam?
Quando íamos sair à noite? Íamos para… Eu já nem sei como se chamava, porque nessa altura havia as discotecas, havia os cabarets, e havia um… Assim, não sei, já não me recordo. Não sei como se chamava. Que era um sítio onde a gente estava só a conversar, mas que não havia mais… Eu vou dizer uma coisa que não quer dizer que corresponda. Não havia maldade mais nenhuma. Depois de a gente estar no café ou nas casas que não tínhamos, porque muitos de nós estávamos em casas a alugar, em quartos. E, portanto, era um sítio que… Pronto. A única coisa que tinha de diferente dos cafés é que era mais escuro, era sempre de luzes mais veladas. Mas não havia mais nada. Não dançávamos nem nada. Era só mesmo conversar. E não quer dizer que fizesse isso todos os dias, mas fiz algumas vezes.
E1: Como é que era o grupo de amigos?
Era muito bom. Eu tive uma receção em Lisboa… Nessa altura havia uma coisa terrível com o Norte. Assim uma coisa terrível. Mas uma coisa mesmo doentia, acintosa, violenta. Mas eu nunca tive problemas. Se calhar, também era assim meia coisa, e portanto, dei-me bem. Mas, por exemplo, tive colegas… Eu tive uma colega que era aqui de Vizela e só no último ano, no último ano, mas no fim do curto ano, é que ela disse que é daqui do Norte. Ela tinha vergonha de dizer que era daqui do Norte. E nem sequer era por uma questão de estrato social. Porque ela era de um estrato social alto, muito alto daqui. Mas havia muito má recepção. Eu confesso que não tive. E até se passou uma coisa que era… Que é um bocado vaidade, mas estão ali as provas, que é, no fim do curso, um dos Professores ofereceu-me um dos livros que ele tinha editado, com um grande elogio. Um grande elogio, quer dizer, comezinho, uma coisinha simples, que nunca tive vergonha de afirmar, uma coisa assim pequena. Devem estar para aí que eu guardei-os, claro. Mas… Mas era muito mal recebido o Porto, o Norte, o Norte - Porto. O Norte era Porto, não valia a pena, não era mais nada, era Porto. Mas eu tive uma boa recepção. Tive um grupo bastante jeitoso. Tanto alguns da Faculdade como do tal Instituto.
E1: Então fez os dois cursos ou depois desistiu da Faculdade?
Desisti. Andei por lá assim a navegar, fiz umas coisinhas, uma cadeirita ou isso, mas fiz muito poucas. Porque frequentar ainda frequentei bastantes, porque achava piada e… Mas a fazer exame provado, poucas. Não fiz muitas. E o outro é que completei. Completei até com uma boa nota, porque me entusiasmou, apaixonou-me mesmo. Depois estive um ano a fazer estágio lá, entretanto depois casei.
E1: E Vila Flor, neste período de tempo em que estamos a falar?
Só nas férias.
E1: E lembra-se desta diferença do regressar a casa? As coisas estavam num período de mudança, já, da miséria que tinha visto na sua infância?
Não, não. Alguma. Porque… Ora, portanto, eu fui para Lisboa… Em 64. 63/64, agora já não tenho a certeza. E isso apanhou a vaga enorme de emigração para a Europa. Havia emigração para o Brasil, para África, isso tudo, mas a vaga maior da migração para a Europa: França, Alemanha, Espanha, para as minas de Espanha, foi nos anos 60. E, portanto, houve de facto, uma grande evolução. Nem sempre talvez muito boa, porque vieram aquelas influências daquilo que nós chamávamos os avecs, no sentido pejorativo, portanto, não quer dizer que fosse uma boa influência. E não mudou estruturalmente. Mudou quem vinha. Que vinha cheio de vaidade e com carros e espavento e isso tudo. Os que estavam não tinham ainda mudado muito. A partir daí é que talvez, não é? Porque há essa primeira vaga de emigração, depois começa a ser menor e a virem alguns, porque já há filhos, já alguns ficaram. Outros até ficavam cá os filhos a estudar e depois, portanto, já tinham uma mentalidade… Já lhes davam as condições diferentes porque já iam estudar para Vila Flor. No meu ano, quando eu andava, andávamos pouquíssimos a estudar. Pouquíssimos a estudar. Depois, mais tarde é que começou o colégio em Vila Flor e aí também já se tornou mais acessível às pessoas de todo o lado. Mesmo pessoas com alguma possibilidade através da agricultura, que era, depois não tinham aquela visão para virem estudar. E as que foram… Mas isto não era geral. Havia… Houve raparigas que se formaram em Professoras e assim. E normalmente iam mais para Bragança. Para o Porto viemos menos. Era mais por Bragança.
E1: E depois quando é que começou a trabalhar, depois de ter terminado o seu curso, quando é que começou a trabalhar?
Não, é assim. Depois que acabei o curso tive um ano em Lisboa a estagiar numa empresa de turismo. E, depois, entretanto, pensamos em casar e eu vim para o Porto. E casámos quase logo. Casámos… Eu vim no fim do ano letivo, em setembro, ou isso, casámos depois em janeiro. E, nessa altura, tive uma oportunidade de trabalhar para o turismo. Fui chamada para uma empresa, para gerir a parte do turismo. Mas como tínhamos casado e tínhamos o fantasma da tropa à frente que não sabíamos se eu o poderia acompanhar ou não, deixamos-nos ficar em standby, portanto eu não cheguei a trabalhar.
E1: Ok, como é que conheceu o seu marido?
Desde de que nascemos. Era lá de Samões, nasceu. Portanto, o meu marido tem mais 9 meses, 8 meses e tal, não chega bem aos 9, a minha mãe e a minha sogra eram muito, muito amigas. Mas a minha sogra era mais nova 13 anos do que a minha mãe. A minha mãe era assim do género… Não era só uma questão social. Era uma questão da idade. Era, assim, orientadora, desabafava com ela, com a minha mãe, depois era a Presidente das filhas de Maria dessas coisas todas da igreja. Também era mais velha, não é? E, entretanto, pronto, a vida foi correndo, casaram, nasceu um irmão, morreu. Morreu pequenino. E, entretanto, a minha sogra casou, e nasce o meu marido e a minha mãe vai assistir ao nascimento. E, rezam as crónicas, a minha sogra é que lhe disse: “Ai, agora eu havia de lhe passar a doença”. E a minha mãe respondeu “já pegou!” E passado 9 meses estava aqui esta prenda. E, claro que, pronto, fomos sempre amigos. Fomos sempre do mesmo grupo de aldeia. Embora o meu marido aos 4 anos venha viver para o Porto. Os meus sogros vieram tentar a vida no Porto, mas ia nas férias sempre. Nas férias estávamos sempre juntos. Éramos do mesmo grupo todos. Os rapazes e as meninas, todos da mesma idade, éramos todos juntos. Mesmo que… E depois aos 12 anos descobrimos que havia mais qualquer coisa do que o grupo. Mas, claro, não foi nada. Foi assim daquelas coisas de infância. Até que depois resultou mesmo. Resultou mesmo. Mas, portanto, bom, digamos, que o início foi aos 12 anos.
E1: Ele estava a viver no Porto…
Ele estava a viver no Porto, nas férias ia, e mesmo aqui no Porto também nos víamos, claro que as famílias tinham contacto e tal. E quando eu fui operada, por exemplo, ainda anteriormente aos 18 anos, foi através da mãe, da minha sogra é que acompanhou a minha mãe. Eu estive lá em casa, estava em casa dos meus tios, mas ia lá, porque é onde se faz consultas, e como era mais perto eu fui operada no Hospital Maria Pia, na altura. E os meus sogros moravam mais para aquela zona, enquanto os meus tios moravam aqui nas Antas. Portanto, o convívio era contínuo.
E1: Sim…
Portanto, digamos que foi quase uma coisa natural. Não quer dizer que não houvesse outros rapazes, mas foi isto.
E1: E como é que foi o dia do seu casamento?
Ui, meu deus.
E2: Nós tivemos a ver os recibos outro dia, portanto não podes mentir.
Não, mas o resto não está lá nos recibos, é impossível estar. É um pouco difícil, porque parece narcisismo. Parece outra coisa qualquer nessa hora, mas o meu casamento foi muito especial. É impossível traduzir isto com toda a sinceridade. Porque não é só a questão dos noivos e do sentimento que tínhamos e isso tudo. Foi a vivência na aldeia. É que toda, toda a aldeia viveu o nosso casamento. Isso é inconcebível. A gente só associa isso a uma rainha com um rei, ou isso tudo, mas não faz ideia, é impossível. No ano seguinte casou o Vítor e não teve nada a ver com o nosso casamento. Do género de… Apareceu lá uma senhora… “Ó senhora felicidade tá aqui uma duzinha de ovos para fazer o bolinho para a menina”, “Ó senhora felicidade está aqui isto”. Felizmente não precisávamos, eram mimos, era carinho. É indescritível. Na véspera do casamento, na véspera do casamento, nós casamos dia 25 de janeiro, que era um sábado, e na véspera estávamos lá em casa, o marido estava em casa dos tios, da tia, que era mesmo em frente, era aquela casa em frente que agora está restaurada, mas que era uma casa da aldeia. E eles estavam lá, embora ele estivesse lá em casa e isso tudo. E, à noite, começámos a ouvir música. Então juntaram-se os homens da aldeia, foram-nos fazer uma serenata. Essas coisas… Quer dizer, isso não aparece nos recibos. Não… Porque é engraçado, há certas coisas que eu não sei bem explicar, porque havia outras meninas lá. Mas, eu fiz coisas durante o período mais de namoro que não era aceite nas outras pessoas e que em mim aceitavam. Não porque era uma pessoa privilegiada, não era essa a questão. Eu penso que seria o meu feitio um bocado maluco e eu ria-me e tal. Não sei, sei lá. O meu marido chegava, por exemplo, no verão anterior a casarmos, estava cá no Porto, estava a fazer até um estágio, assim uma coisa, e eu estava sem fazer nada porque tinha acabado o curso e ia começar a trabalhar porque estava lá em Samões. E ele chegava, eu borrifava-me para quem estivesse na rua, ia ter com ele, abraçava, pendurava-me em cima dele… Ninguém fazia isto, ninguém fazia isto. E as pessoas aceitavam. Nunca me criticavam. Porquê não me pergunte. Mas eu penso que era, se calhar… Quer dizer, tinha um feitio. Vocês também têm um bocado esse feitio, quer dizer, falasse com toda a gente, e eu de facto as outras meninas não falavam. Mesmo sendo de um… Algumas, pronto. Era uma questão de feitio. Não sei se é bom ou se era assim. Eu ia pela rua abaixo: “Ah, senhor António, então como está hoje? Então e essa perna já está melhor? E o filho tem-lhe escrito?”. Mas eu não fazia aquilo por ser simpática ou deixar de ser. Mas ainda hoje eu vou pela rua fora e falo com toda a gente. Quando esta menina nasceu ou estava para nascer (aponta para a Rita) toda a rua Nau Vitória soube que eu ia ter uma neta. Toda a rua. Quer dizer, não sei se é bom ou se é mau, mas é, pronto.
E1: Então, depois, no casamento apareceu muita gente, com certeza que estava muita gente ansiosa?
Toda a aldeia foi ao casamento, toda. Ao casamento, banquete. À igreja, às flores, ao arroz, encheram-me de arroz, eu comi arroz que me fartei porque me atiravam assim para a boca. E eu ria-me, mas me atiravam. Pronto, praticamente toda a aldeia. Eu acho que não houve ninguém… Só se calhar alguém que estivesse impossibilitado, o resto foi lá tudo. E depois, bem, depois, então, tínhamos os convidados, os amigos, os amigos mais diretos, claro está, mas depois a minha mãe era uma pessoa especial de facto, claro que era minha mãe mas era uma pessoa especial. Toda a gente com quem falava, toda a gente. E depois, ao fim do dia, a Gina, e mais duas pessoas, claro, pessoas que não precisavam, foram levar um pratinho de arroz doce, mais uns bolinhos, mais uma coisinha, praticamente toda a aldeia esteve no meu casamento. Os que foram convidados. Depois passou-se uma coisa engraçada. Nós não tínhamos carro, e então, os nossos sogros, que estavam lá e que vinham depois para o Porto, e então tinha-se combinado emprestarem-nos o carro para virmos, não é? Porque havia as camionetes e isso tudo, mas era mais difícil. Trazíamos o carro até ao Porto e o que estava pensado era ficarmos cá nessa noite, depois deixávamos o carro e eles depois lá vinham de comboio e isso tudo e o carro cá estava à espera e nós depois fomos para a Lua de Mel. E depois foi engraçado porque eles sabiam que nós vínhamos embora, então a minha mãe e a minha sogra, coitados, para nós não fazermos despesa à noite, arranjaram-nos, nessa altura não havia tupperwares, mas eram umas caixinhas de alumínio, com as melhores coisinhas para trazermos, mas nós fugimos antes delas tirem isso pronto porque nós não tínhamos percebido. E, portanto, depois até foi uma senhora de quem até não gostávamos muito que levou essa coisa. Mas depois nós tínhamos lá muitos jovens no casamento. Lá no casamento havia um grupo grande de rapazes que eram aqui do Porto, que eram amigos do meu marido e dos meus cunhados. E, então, juntaram-se todos e com essas minhas amigas de Samões, juntaram-se todos e com essas minhas amigas lá de Samões e outros do nosso grupo lá de Samões e encheram-nos o carro de batom e de latas de salsichas e de batom e nós não nos apercebemos. Nós já sabíamos mais ou menos que aquilo era uma tradição, agora já não, mas nessa altura dizia-se, quando uma menina se portava mal, diziam assim, olha amarra-lhe uma lata ao rabo. De maneira que, eu levei o carro cheio de latas, ficaram indignados. Então, nós paramos o carro um bocadinho adiante de Samões, onde está aquele pinheiro manso, ali, para tirar as latas. Andava por ali um Pastor, andava por Samões. “Isto não se concebe, amarraram o carro da menina cheia de latas, tiveram que parar além para tirar as latas todas.” O homem estava indignado, tiveram que lhe explicar que era uma tradição, que não era ofensa, mas foi uma canseira. O homem ia indignado. Nós só soubemos isso depois mais tarde.
E1: Depois de se casar veio viver para o Porto com o marido?
Vim viver para o Porto.
E1: E como é que foi o período a seguir? Teve filhos? Como é que foi esse período a seguir? Acabou por ir para a guerra o marido?
Vivemos aqui, depois nós casámos em janeiro, 25, dia 6 de abril foi mobilizado. Foi para o serviço militar, para Mafra. Esteve lá, vinha todos os fins de semana e isso tudo. E nós estávamos, portanto, nós não montamos casa porque tínhamos a noção, sem certezas, de que era muito difícil fugir ao recrutamento para o Ultramar. Era médico, não tínhamos pedidos nem tínhamos grandes estatutos, nem coiso. De maneira que era muito difícil isso acontecer. Embora pudesse acontecer, mas pronto. Uma casa dos meus sogros era uma casa antiga, assim neste género, mais ou menos, com pisos diferentes. E entrava-se e era muito semelhante, entrava-se e tinha um acesso para o piso de cima onde eles viviam, os dois pisos de cima. E embaixo tinha uma sala, tinha uma casa de banho e uma coisa. E os meus sogros deram-me um arranjo e ficámos com uma sala, com um quarto, com uma mini cozinha, com uma casa de banho. Embora tivéssemos quase sempre, eu estava sempre em cima com os meus sogros e os meus cunhados, enquanto o meu marido estava na tropa. Ele depois vinha nos fins de semana. Os fins de semana passávamos em baixo. E a 6 ele foi mobilizado, fez a recruta em Mafra, depois veio para Braga, para Espinho primeiro, bem, não interessa. Foi Espinho, e depois foi Braga e depois foi mobilizado para o Ultramar. Ele marcou dia 22 de janeiro, nós fazíamos um ano de casados dia 25. E foi, para o ultramar, para Angola. Mas foi em rendição individual. Não foi com batalhão, nem com, foi sozinho. Porque havia, na altura foi comunicado, havia uma minusculíssima terra, daquelas de cubatas, no sul da Angola, onde o médico tinha enlouquecido. E como eles não podiam estar sem médico ele ia substituir o médico. E, portanto, foi uma partida muito dolorosa, porque além da separação era o sítio para onde ele ia. Um sítio terrível, terrível. Só que pronto, a sortinha às vezes acontece, veio-me o euromilhões, ele chegou a Luanda e fazia falta um médico no regimento principal dos comandos. “Eu estou farto de pedir médicos”, mais ou menos isto. Olha, com outros enredos, mas mais ou menos isto. “Estou farto de pedir médicos, não me dão médicos, eu não posso estar sem médicos”. Porque, isto já não é do vosso tempo, mas a guerra era feita pelos comandos. Os outros eram de morrer. Os comandos é que… às vezes morriam durante os treinos que eram duríssimos do que nos combates. E, portanto, ele não podia estar sem médico no quartel principal de Luanda. “Portanto, o próximo médico é para mim e acabou”. Acontece, ficou em Luanda, embora fosse muitas vezes ao mato, fazer inspeções de recrutamentos e isso tudo, mas tivemos a vida toda desenrolou-se em Luanda. Ele chegou, acho que partiu dia 22, porque a viagem eram 10 dias, e ele dia 1 de Março estava a desembarcar a Luanda.
E1: E como é que foi chegar a um país novo?
Não sei se era um país novo, porque aquilo era tão falado, com a Guerra, e tão, e havia tantos imigrantes e todos os primos lá, tínhamos muitos primos aliás. Samões tinha imensa gente. Havia mesmo, sem ser militar, havia imensa gente lá. De maneira que… Claro que foi um choque. Aliás, a nossa estadia em Angola foi engraçada porque teve três fases. Os dois anos. A primeira fase foi, digamos, falando português, mesmo uma chatice. Porque… Tínhamos casado, íamos começar a vida, realizar a vida, e aquilo partiu-nos. Mesmo sendo, ficando em Luanda, tudo podia acontecer. Quem sabe. Uma dúvida enorme. E, portanto, interrompeu a carreira, não é? Ia começar a fazer o internato, nessa altura era o internato, fui eu tomar posse, naquele mês que estive cá, fui eu que tive que tomar posse para segurar o lugar. Pronto, quer dizer, era uma frustração em certa medida, grande, não é? Mas isso só não ouviu o aspeto pessoal. Porque o aspeto de cidade, era uma maravilha. Era uma abertura completa, a vida de Lisboa da altura não tinha nada a ver com Luanda, não tinha nada a ver. Lisboa era muito mais conservadora, muito mais primitiva, lá não, por isso aquilo era uma abertura, as pessoas conviviam na rua, a pessoa saia mesmo sem grandes ordenados, saia dos empregos e ia para um bar comer camarão, quer dizer… Era um… Era uma vida completamente diferente. Depois, à segunda fase, em que eu engravido, não é? Já não estávamos muito contentes porque já ia um ano e tal e consegui engravidar, eu engravido, e começamos a adaptarmo-nos à vida de Luanda, é praias, é praias, é praias. É uma vida de ar livre. Era. Pronto, e esse período foi muito bom. Depois nasce o meu filho, e tá o coiso todo, a minha mãe veio, os meus sogros também foram lá. E depois há a terceira fase que é saber que está a acabar o tempo e que vamos voltar. E, então, há a incógnita. O que é que vamos fazer. O que é que vamos encontrar. Ai que maravilha! Vamos regressar ao nosso! Chegamos cá foi uma frustração terrível. O Porto parecia que estava mais tacanho do que quando tínhamos ido. Mais parado no tempo… Não estaria, mas só que como vínhamos de lá de um país com um calor, e que as pessoas faziam uma vida assim, parecia ainda mais provinciano. Portanto, nesse aspeto foi assim uma coisa… Mas há aquele período em que estamos a desfazer-nos da casa, a marcar viagem e isso tudo, e ai que bom, vamos voltar, vamos voltar. Portanto, foram 3 fases, desse período de Angola.
E1: Em que ano é que regressaram?
Eu regressei em 73, portanto, eu vim fazer um ano dia 24 de fevereiro, faz agora, não é? E eu cheguei cá, 15, 18, por aí, assim uns dias antes, no princípio de fevereiro. E, depois, o meu marido ainda ficou mais um mês, e veio em princípio de, meados, em abril. Um mês e tal ficou. À espera do embarque e dessa coisa toda e veio depois.
E1: Como falou agora que teve um filho ainda em Luanda, como é que foi a fase da maternidade e do primeiro filho?
Ai, foi uma maravilha. Foi uma coisa, assim, uma coisa normal. Até me esquecia que também há vida, só havia uma coisa, é que eu comia que era uma vergonha. Comia tanto, tanto, tanto, tanto. O marido tinha vergonha de ir comigo a qualquer lado, porque eu comia e ainda estava à espera do que ele deixava para rapar do prato. E não engordei. Engordei muito pouco. Foi uma maravilha. Boa gravidez, boa acompanhamento, que tive um acompanhamento excecional, porque… Estavam lá colegas do meu marido daqui e, concretamente, um já especialista, não é? E foi o que me acompanhou a gravidez e que depois quando regressámos acompanhou as outras. Porque ele depois, entretanto, também regressou. E tive o apoio desses primos todos. Foram inexcedíveis.
E1: E, depois, quanto mais filhos é que teve?
A minha filha já veio feita de lá e, depois, o Francisco nasceu já mais tarde.
E1: E também foram gravidezes e processos de maternidade…
Sempre a aviar, sempre a aviar…
E1: Tranquilos?
Tranquilíssimos. O médico, dizia-me muitas vezes “olha se não te pões a pau não fazes mais nada durante a vida”. Porque de facto o parto e a gravidez foram muito boas, muito boas mesmo.
E1: E depois foi doméstica? Cuidava dos filhos?
Depois fui doméstica e é engraçado que eu… Havia amigas nessa altura que diziam “Ai, não sei quê, não percebo, não te sentes mal?”. Eu nunca me senti mal. Porque nunca me senti doméstica. É que eu acho que é uma diferença muito grande. Quer dizer, eu fazia a minha vida de casa, enquanto o meu marido tinha uma vida no exterior. Pronto, e eu colaborava muito com ele no consultório. Talvez foi por isso, não é, colaborava muito com ele no consultório. E, portanto, nunca me senti daquele género de dona de casa, fazer camas, nunca me senti assim atrofiada.
E1: Peço desculpa. Então, era doméstica, mas nunca se sentiu como um…
Não, aquele conceito, não, nunca me senti. Não, porque… Por isso, talvez por isso, talvez porque me dividia muito, não é? Porque… acompanhava os filhos, era o ballet, era a natação, era o judô, tatata, como um herodes não é? Por outro lado, colaborava muito com o meu marido no consultório. Parte de escrita feita por mim, não acredito, não é escrita comercial, era a escrita, a parte da saúde. Relatórios e essas coisas todas. Isso era comigo. Portanto, achava assim. E, depois, por exemplo, quando aconteceu, lembro-me perfeitamente, ter acontecido mais do que uma vez, ele chegar a casa cansado e dizer assim: “Ah, apetecia-me dar uma voltinha”. Eu se estivesse a fazer uma cama não acabava de fazer. Aconteceu isso mais do que uma vez. Os meninos estavam na escola, por exemplo, portanto eu não me sentia: “Ai, agora não porque tenho”. Talvez por isso eu nunca me senti tão mal. Depois, entretanto, de facto, a minha paixão era a história. E é por isso que eu ainda hoje não sei porque é que fui para ciências. Não sei, sinceramente. Ninguém me coagiu, ninguém me obrigou. É certo que havia muito mais facilidade na faculdade da parte de ciências do que em letras, aqui no Porto. Mas eu nunca me recordo da minha mãe me dizer assim: “Oh, filha, não vás para isso porque…”. Não tenho ideia. E gostava muito de história. E da maneira que depois, já depois com eles, ainda fiz alguns cursozitos, destes cursos de 15 dias que há na soares dos reis, 8 dias, coisas assim… Para a terceira idade, mas que na altura não era a terceira idade. Nem havia nas universidades nem nada. E, depois, sobretudo insistia “porque é que não vais para a faculdade? Porque é que não vais para a faculdade? Porque é que não vais estudar história? Tu gostas tanto, tu gostas tanto.” E acabei por ir quando eles entraram na faculdade. Quando entrou a minha filha e o meu filho mais velho.
E1: E como é que foi regressar à faculdade?
Fomos os três. Olha, eu acho que foi muito giro, porque… A faculdade já não tinha nada a ver com o meu tempo. Mas acho que por outro lado foi interessante. Primeiro porque eram todas da idade - as minhas colegas eram, a maior parte, havia duas ou três assim velhas, mas a maior parte era da idade dos meus filhos. E tratavam-me assim… Trataram-me sempre por tu, que eu fui sempre… Não era por respeito. Era assim, quer dizer, era… Era… Digamos que era mãe sem ser maternalista. E… Por outro lado acho que foi giro porque eu tive a noção nessa altura das dificuldades minhas, do meu estudo, e pelas dificuldades das minhas colegas. Quando às vezes a gente se queixa dos professores, como ter alguma noção em relação a isso em que muitas vezes os pais não têm, não é? Normalmente a razão é do professor. Mas eu como estava bem, quer por mim, quer pelas colegas que se queixavam e que não precisavam do meu aval para se queixar, como um filho precisa de se desculpar. Eu acho que foi uma experiência muito gira. Sinceramente, acho que se foi abstraindo do aspeto cultural. Quer dizer, nesse aspeto acho que foi uma experiência muito interessante.
E1: E gostou do curso?
Gostei muito, muito.
E1: Depois exerceu?
Depois exerci muitos anos. Não foi bem, quer dizer, foi muito ligada à história, mas não foi bem na história da arte. Porque depois fui para uma fundação fazer inventariado de espólio. Portanto, isso é uma parte ligada à história e à parte bibliotecária e essa coisa toda. E pronto. Portanto, estive lá 16 anos.
E1: Lembra-se bem então desse período de trabalhar? Como é que eram as relações com as outras pessoas no trabalho?
As relações eram poucas, quer dizer, eram poucas porque só éramos duas funcionárias. Era eu que era, digamos, quadro superior e havia outra senhora que era, por exemplo, para ir ao correio, para me ajudar e isso tudo. Pronto, foi. Por acaso acabou mal, mas isso já são outros quantos. Acabou mal, não por mim, mas porque as pessoas de facto não tinham a dignidade que deviam ter. Mas isso, pronto. Isso já nem interessa para o caso. Mas a experiência na parte do trabalho foi interessante. Porque, estava numa fundação, e além de, quer dizer, eu quando entrei para a fundação… A ideia com que entrei era para fazer a inventariação do espólio. Havia muitos documentos, cartas pessoais, livros, essa coisa toda. Só que depois isso acabou, porque não, eu fiz muito pouco disso. Porque acabei por fazer… o resto. Ia a Lisboa falar com os ministros, ia à biblioteca nacional porque tinha que resolver assuntos na biblioteca nacional, tínhamos atividades, e, portanto, a parte, digamos, eu fazia a parte social, que era marcar os almoços, marcar os jantares com os convidados, portanto, acabou por ser muito interessante. Foi uma coisa gira. Foi muito gira, foi gira e, quer dizer, adaptava-se ao meu feitio. Gosto de falar, gosto de comunicar. Acho que foi giro.
E1: E depois quando terminou, reformou-se? Ou teve ainda outras atividades?
Não, não, depois reformei-me. Depois fui para empregada do meu marido para o consultório.
E1: E fazia as atividades que fazia antes?
Exato, aqui, agora já mais… Porque, enquanto eles foram pequeninos e era… Eu só fazia a parte de… Como é que hei de dizer, o consultório tinha duas vertentes, que era a parte económica, que era o contabilista que fazia, a parte de dinheiros e disso tudo. E havia a parte de renovações com as seguranças sociais, com os bancos, com a ADSE, essa parte é que era comigo. Isso era o que eu fazia. Depois, entretanto, o meu marido tinha uma sociedade médica e continuei por essa mesma atividade lá. Quando depois nos reformamos é que abrimos o consultório Aí eu já fazia tudo, era a empregada do consultório. Até recebi gorjetas, diga-se de passagem! Não, a primeira vez que me deram gorjeta, fiquei um bocado coisa. Mas depois vi que as pessoas ficavam ofendidas. Quer dizer, elas não percebiam, e não sabiam, ou nem todas sabiam, que era mulher de um médico, não é? E, portanto, a primeira vez disse “ai não, não esteja…”. Mas depois vi que as pessoas ficaram muito tristes. E não aconteceu isto muitas vezes, aconteceu uma vez ou ou duas, pronto. Duas ou três. Mas depois compreendi que para as pessoas era uma ofensa. Elas não percebiam, não é. Houve uma altura em que eu disse “olhe, não, muito obrigado” eu sou, sabe que eu sou… Pronto, isso eu disse. Mas houve um francês que estava cá e o senhor estava completamente “Não quer?” Assim, parece, quase que a insinuar que era pouco o que me estaria a dar, não é? De maneira que… até tive gorjetas.
E1: E perante toda esta história e o seu percurso tenho que lhe perguntar que significado tem para si ser mulher?
Eu acho que sou feminista e sou pelos direitos das mulheres, mas eu nunca me senti assim, nunca senti assim na pele aquela amargura, aquela coisa… Confesso que nunca senti. Eu penso que se calhar por vários fatores. Primeiro por feitio, também porque não sou assim muito… Embora às vezes pareça, e às vezes até aos filhos. A minha filha “Ai, não sei quê”. Às vezes as coisas não são assim tão lineares. De parecer tão dócil, ou ser tão dócil como se parece. E, por outro lado, não me posso muito queixar. Os homens são todos machistas. Não há volta a dar. Tanto faz serem do século XIX, do século XX ou do século XXI. Porque está no ADN, não há volta a dar. Agora, há uns que são e há outros que não são. Que não são, quer dizer. Nesse aspeto eu não sinto assim muito. Gosto muito de ser mulher. Sempre gostei. Desde o físico, embora gostasse de ter menos uns quilinhos, e mais um centímetro ou dois. Mas nunca me senti… Mesmo a minha experiência em Lisboa…
E1: É só coisas positivas.
É engraçado que uma vez, quando viemos de Angola, eu era muito mais magrinha, e só engordei depois de muito, de ter o meu filho mais novo e de ficar com a idade. E depois de virmos de Angola, tratamos de arranjar casa, não é. E, não sei porque carga de água, porque nunca tivemos muita tendência para ir para Gaia arranjar, procurar casa. Nessa altura o meu marido até nem estava lá a trabalhar. Mas fomos, acho que vimos no jornal, ou coisa assim, uma casa que parecia muito bem e não sei quê. E fomos para Gaia, e fomos lá os dois ver a casa e “nanana” e aquilo era numa zona que eu agora já nem faço ideia, que está tudo diferente, não faço a mínima ideia de onde é, eu só sei que era uma zona nova, a ser urbanizada, e, portanto, ainda havia pouca coisa, algumas casas já habitadas. Não havia um café, não havia… E nós fomos, levamos o carro, e entretanto… Eu tinha, a minha filha tinha nascido há pouco tempo, e eu fiquei mais magra do que era depois do nascimento dela, ao contrário do terceiro que já não aconteceu isso. Fiquei muito magrinha, estava muito… Estava (um brinco). E havia um, havia um… Estavam a começar estes supermercados maiores e assim essa coisa toda, e havia um na Boavista e nós fomos lá e eu, pronto, já não me recordo os pormenores todos, sei que eu comprei, de facto, lá alguma roupa, uma blusa… E eu comprei uma saia, era lindíssima. Ficava… Ela tinha assim, tinha um grande laço assim para trás. Ficava-me muito bem, fazia-me muito elegante. E eu tinha a saia nesse dia. E fomos lá e quando, não sei como é que, já nem me recordo como é que é essa coisa, porque parece que hoje que isso não é assim muito possível. Sei que travámos o carro e a chave lá dentro. E agora? O que é que acontece? Não havia telemóveis, não havia nada. E o meu marido disse assim, tu ficas aqui, ao pé de um carro, que a zona era assim bastante, não havia nada… Que eu vou para ali procurar um cafézinho e telefonar para casa, para o Nuno, que era o irmão, o tio Nuno, e abro uma gaveta onde havia o duplicado da chave e eu fiquei lá um bocado sozinha. Lembro-me que estava assim numa tarde de sol, isto era em maio. E nisto, passam dois rapazes, eu nessa altura tinha, portanto, foi em 73, eu tinha 29 anos, mas de facto não parecia. Passam dois rapazes, sei lá, de 20 anos, 20 e poucos, passaram e olharam e depois chegaram-se à frente e voltaram um bocadinho para trás. E diz um para o outro “Tu já viste? Mas que estampa?”. E eu, sozinha, começo a sentir assim um aperto. E diz um para o outro “linda, bendita mãe que tal filha teve”. Não disseram mais nada e foram-se embora. Nisto chega o meu marido e eu… As lágrimas… Eu chorava, chorava, chorava… E ele: “Mas o que é que se passou? Porque é que estás a chorar? Que ridículo, porque é que estás a chorar dessa maneira?”. “Ai, passaram… P.. - eu nem conseguia falar - Passaram aqui dois rapazes, lá lhe expliquei. “Então é por isso que estás a chorar?”. “É que eu tive tanto medo”. “Mas eles fizeram-te mal?”. “Não, até foram muito delicados e tudo, mas é que eu estava aqui sozinha”. Há cenas tão ridículas, tão ridículas. Então, é só estas coisas que a gente vai recordando. Portanto, mas isto foi para dizer que de facto isto de ser mulher não acho que tivesse assim grandes…
E1: Dificuldades por causa disso…
Não.
E1: Então agora assim mais em jeito de conclusão, gostaria que me dissesse que me dissesse o que é que faz hoje, quais são as coisas mais importantes do seu dia a dia hoje?
Neste momento, de facto, a vida está muito diferente. Com a reforma, sabe como é. E, sei lá, faço um bocadinho de ginástica, leio, faço crochê e renda, faço a vida de casa, claro. Não a mais violenta, que isso parte… Os ossos já não dão muito para isso. Lá saímos de vez em quando, ao cafezinho ou assim. Tenho um grupo de amigas que reatamos, amigas do colégio, portanto, há 70 anos, não é? E que retomamos e nos reencontramos para os almoços, para os passeios… Acho que mais ou menos é isso.
E1: Essas são as suas tarefas assim, então no dia a dia… É cuidar da casa… Ter os seus hobbies.
Cuidar da casa… Cuidar da casa, fazer a vida, fazer as compras, fazer isso. Depois ler um bocadinho, ler o jornal, que é uma coisa que eu adoro ler, de fio a pavio, e às vezes sentar-me um bocadinho, fazer uma coisa manual que gosto. De resto, assim, claro, os passeios, as saídas, uma ida a Lisboa, uma ida para Samões, ou isso, pronto, já não é diário. Agora, o dia a dia é isso, a vida de casa.
E1: Então, disse-me que o seu significado de ser mulher, felizmente, enquanto mulher passou uma vida bastante tranquila, não é? E, agora, pegando no facto de ter nascido em Trás-os-Montes, acha que influenciou o facto de ter nascido em Samões a sua trajetória e as suas experiências.
É assim. Eu acho que como o machismo está nos homens, no ADN, há um certo, não será muito acentuado no local onde nós nascemos. Sobretudo se vivermos como eu vivia até 8 anos e tal, não é. Portanto, claro que, sei lá, todas aquelas vivências e isso tudo me vêm. E acho que muito do meu procedimento também é consequência dessa vivência. Se eu tivesse nascido, sei lá, no Porto, numa rua quase desconhecida, ou até numa ilha, num bairro. Não sei porque não, quer dizer. Certamente que teria umas vivências diferentes, mas que eu me sinta assim aldeã mesmo, acho que não. Não, e não é por preconceito.
E1: Sim.
É porque de facto o resto da minha vida fez-se cá na cidade.
E1: Tanto em Luanda como no Porto.
Em Luanda foi uma passagem, como foi em Lisboa, não é? Foram 5 anos e tal em Lisboa, 2 anos em Luanda… Portanto isso são passagens. Tenho 78 e meio, vim com 9, portanto, quer dizer, grosso modo, tenho 70 anos do Porto. Pronto, tivemos os 5 de Lisboa, e os 2… São muitos anos. Eu de facto acho que, não renegando, que não renego, a minha aldeia da qual gosto… Houve uma altura que não gostava. Houve uma altura que não gostávamos de Samões, porque naquela fase… A seguir ao 25 de abril, era horrível. Era horrível porque… Abstraindo-me das conotações políticas ou não, toda a gente sabia a nossa posição. Nunca escondemos lá em Samões. Pronto, e não éramos hostilizados, mas por outro lado achavam que deviam aproveitar. O Sr. Dr. chegava e havia de estar a porta aberta para todos os favores e mais alguns, nem que nós não tínhamos. Se nós fizéssemos tudo aquilo que nos pediam para fazer, a gente não tinha sossego. E havia, de facto… Nós nunca fomos hostilizados, mas havia muito, muito, muito revanchismo, má vontade. Lá é um feudo PSD, CDS bastante, mas até era mais do PSD por causa desse meu primo. Ele foi um dos fundadores do PSD. Do PSD não, do PPD, com o Sá Carneiro e isso tudo. E, portanto, era… Ele teve muita influência lá, não propriamente em Samões, em Vila Flor, em Bragança… Portanto, foi um período sem hostilidades, não é a questão, o quê não era agradável chegarmos lá e irmos. Compreende?. Porque, havia assim um… Se calhar era hostilidade, mas que era… Violenta. Mas não era… Mas isso até penso que nem tem nada a ver com a aldeia. Tem a ver com o momento que se viveu.
E1: Claro.
Pronto, de resto eu gosto. Gosto disto. Não sou apaixonada pela aldeia, não sei se conseguiria num volte face muito grande ir viver para lá, sinceramente não sei. Até fazemos lá o mesmo que faço aqui, não sei se… Pronto. Mas gosto, gosto da minha aldeia. Mas quase que me considero tripeira, porque são muito anos. E são muitos anos, e são os anos fundamentais da adolescência e disso. Não sei… Mas eu sou transmontana e grito bem alto. Sou transmontana.
E1: Então em pequenina tinha o sonho de ser professora e de ter uma joaninha e agora quais são os seus sonhos e planos assim para o futuro próximo ou distante?
Confesso que agora já não tenho assim planos. Tenho planos, mas é assim, sei lá, ir passear, ir dar uma volta. Assim, planos, planos. Acho que não tenho.
E1: Nem um sonho por cumprir?
Oh, isso. Valha-me Deus, isso acho que todos nós temos sempre algum sonho para cumprir. E, e, quer dizer, sabe que é muito difícil uma pessoa estar a falar de nós próprios, porque é… Por mais que se… Parece sempre que estamos a… Mas é assim, eu considero-me, isto com toda a franqueza, uma pessoa feliz. Não há ninguém completamente feliz. Não estou a dizer que não tive dissabores na vida, e tive tristezas, e tive essas coisas todas. Felizmente não em grande… Os sinais positivos são mais do que os negativos. Mas eu não considero-me infeliz, se calhar. E, volta aí, ninguém se faz… Pronto. E, portanto, isto nem sequer é mérito meu. O que está, se calhar a educação, se calhar um bocado de feitio. Mas é assim, eu considero-me feliz, porque eu basta-me aquilo que tenho. Isto é, eu quero ir passear para a semana, e vou passear para a semana, isso é um gosto. Mas quer dizer, eu… Não desejo, sei lá, neste momento desejo ter outra casa. Que esta tem muitas escadas. Mas, quer dizer, mas eu vou-me contentando. Quer dizer… Eu lembro-me perfeitamente que tinha uma colega no colégio, que a gente, coitadita, morreu lá no colégio, com uma peritonite, e… O sonho dela era casar com um príncipe. E, então, ela na altura, isto nós com 12, 13 anos, já ela nessa altura comprava as revistas que havia, os correspondentes, agora as Caras, a Maria, não era a Maria, era a Crónica feminina. Ela comprava que era para saber a vida dos solteiros, dos príncipes solteiros que havia. E sabia que tudo, havia um e ali outro, quer dizer. Eu nunca cheguei a… Porque ela morreu no nosso terceiro ou quarto ano, se aquilo era de facto uma ideia, se era aquele folclore, digamos. Mas queria ver, olha era esta rapariga morreu para ser feliz. Porque nunca concretizaria esse sonho. E é nesse sentido que eu digo, quer dizer, eu tive sonhos, tive sonhos, mas isso… Enquanto estive em Lisboa vivi o período de Lisboa, quando estive em Luanda vivi o período de Luanda, quando vim para o Porto vivi o período, eu e os meus filhos e os meus netos… Claro que há sempre coisas que a gente desejava, mas, aliás, acho que que também não me posso queixar muito da vida. Mesmo tendo ficado sem pai. Eu nunca notei a falta do meu pai. Nunca notei a falta do meu pai. Porque… Tive as presenças masculinas que… Presentes, do meu tio, do meu avô… E nisso, nesse aspeto, eu tenho que reconhecer que seria uma menina malcriada.
E1: Como é que foi contar a sua história?
E2: Porque acho que deixaste uma parte da tua vida também de ligação a Trás-os-Montes, que não explicaste a questão do segundo consultório... começaste a falar do trabalho que faziam, não é, os dois, mas não explicaste o contexto e da ligação, se quiseres explorar isso.
Pronto, a ligação, reformamos-mos e, entretanto, tínhamos... Eu não tinha atividade, estava mesmo reformada, e o meu marido tinha deixado o consultório daqui do Porto e, entretanto, deixou o Hospital e, portanto, acho que para um bem comercial, económico e para o bem mental, sobretudo, precisava de uma atividade. Aí foi ele que decidiu, e eu não... Se essa é uma questão de macho e fêmea, eu aí não tive, não, perguntou-me e eu sabia que era o gosto, concordei, claro. E, portanto, resolvemos abrir lá consultório.
E2: Lá em Vila Flor?
Lá em Vila Flor. Não havia nada, não havia um cardiologista... Não era em Vila Flor, era num distrito. Só havia nos Hospitais de Bragança e no Hospital de Mirandela, em clínica não havia. E tínhamos possibilidade de ter a casa e dar vida à casa, que só era ocupada temporariamente em férias e coisas assim. Também só passou a ser quando íamos para o consultório, mas de facto deu-se-lhe vida, ela estava a precisar de obras. Fizeram-se obras. Foi, de facto, uma experiência interessante. Foi, foi muito boa, porque acho que foi muito útil para o meu marido, porque, profissionalmente, continua ativo. Ainda foram 16 anos.
E1: Mas não viviam lá o tempo todo? Iam lá só uns dias por semana?
Não ir lá e voltar. Eu não me estava a imaginar a voltar completamente a viver.
E1: Claro.
Confesso que não me... E ele também estava com uma ligação ao Hospital, não económica e coisas assim. Mas eu não, eu se calhar até é difícil definir esta situação. Porque eu gosto daquilo. Eu gosto. Mas de facto não me imagino a viver lá. E se calhar é porque a vivência aqui é muito grande. Muito grande. E neste momento, porque também tínhamos os filhos e o filho, a filha cá, os netos, e isso tudo, não é? E é meio caminho para Lisboa. Lá é o dobro do caminho. Não sei. É engraçado porque até alguns dos nossos amigos estão lá agora, não é, estão mais ou menos nas faixas etárias em que também já estão muito mais disponíveis por lá. Mas, mas, não sei. Foi uma experiência muito interessante. Muito.... Voltar a conviver com aquela gente, agora numa vertente diferente, aí então agora as mentalidades não têm nada a ver com o tempo em que eu vivi lá, não tem. Agora, não tem nada a ver. Mas foi muito interessante. Foi uma opção gira. Acabamos o ano passado. O ano passado?
E2: Sim.
Não, 21, 21.
E2: Sim, foi naquela transição de 21 para 22.
É, é, foi. Agora ajudou a passar o que nós tivemos. Quer dizer, foi isso, foi mais do que para mim, foi para o meu marido.
E1: Claro, continuar dentro da área. Claro...
Claro que para mim também foi, porque eu, "agora" estou limitada à vida de casa. Naquela altura não. Estava no consultório. E tinha uma atividade não remunerada, mas tinha uma atividade.
E1: Diária.
E profissional, digamos. Mas, pronto. Não, mas, repare uma coisa, por exemplo, voltando à questão da mulher. Eu disse que o meu marido tem os seus defeitos, da época, do sexo, disso tudo que não vale a pena, eu acho que os meus filhos já são machistas e, no entanto, não foram educados, porque é uma coisa que lhes está intrínseca. Agora, claro que há o machismo doentio e violento, e há aquele que é quase ser mulher. E quando eu disse que nunca me senti muito dona de casa, que é assim, eu tive sempre o meu ordenado. O meu marido, como não ganhava, havia uma conta que era minha e que ele levava a mal se eu gastasse na casa, que era para mim e se eu quisesse para os filhos ou isso. Portanto, eu também, no mesmo aspeto económico, eu nunca me senti muito dependente.
E2: Claro.
Porque de facto, nesse aspeto, e aí é uma diferença entre o machismo, porque... Aquele machismo que às vezes a minha filha se mete, barafusta, porque ele não põe a mesa, ou não tira a mesa, eu acho que isso é quase insignificante. Porque o outro machismo de violência, de segregação, da mulher ter que estar a pedir isto e pedir aquilo, isso é que eu acho que é machismo mesmo. Isso, poderá ser, no fundo, algum machismo, mas é mais uma divisão de tarefas. Isto na minha mentalidade. Eu, o outro machismo, eu nunca senti. Porque eu tive sempre a minha independência económica. Havia a conta geral do casal e da vida de casa e havia uma conta mais pequena noutro banco até, e que era minha e só minha. Claro, se houvesse uma necessidade que precisasse, valha-me Deus, não é? Mas essa era... Eu podia fazer daquela conta o que eu quisesse.
E1: E posso-lhe perguntar o que é que fazia com esse dinheiro que ganhava ao longo...
Olha, nunca fiz muita grande coisa. Porque.... Comprava roupas se precisasse, se saísse com os miúdos comprava-lhes roupa e isso tudo...
E1: E para as suas coisas também quando ia com as suas colegas...
Nessa altura não, porque ainda não tinha este grupo. E, portanto, os amigos eram do casal. Portanto, nós se íamos jantar fora era eu/ele que pagava, não era dessa conta. Percebe?
E1: Claro.
E, por outro lado, acabava por gastar muito pouco. Por exemplo, sei lá, assim a fazer as compras do mês e se visse um cosmético comprava e não estava a dizer "ai este". Portanto, aquilo era mais até mais simbólico.
E1: Dava-lhe uma liberdade completamente diferente.
Era mais simbólico, propriamente, do que... E claro que gastava, quando precisava disso tudo, e tinha uma oferta para fazer e assim. Mas não...
E1: Mas tinha liberdade de o usar como quisesse...
Sempre, sempre. Nunca tive...
E1: Então, para terminar, pergunto-lhe como foi contar a sua história e para nós...
Foi mais fácil do que eu estava a imaginar. Porque... Quer dizer, se calhar por causa das entrevistadoras que estão à vontade. Mas, quer dizer, não sei... Acho que não... Eu tendo a ser o mais franca possível, mas se calhar em certas alturas apareceu assim um bocadinho de vaidade.
E1: Não, nada disso.
Não, mas se calhar também é.
E1: Não, não. Gostaria de acrescentar mais alguma coisa?
Não. Acho que está... Gostei.... Espero...
E2: Não tens mais nenhuma história para nos contar?
Ui! Histórias é o que eu tenho mais, filhas.
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