P/1 – Primeiro Cris, vou pedir pra você falar pra gente o seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R – Maria Cristina Gimenez Gonçalves de Queiroz. Nasci no dia 14 de outubro de 1970, tenho 43 anos, nasci em Santos.
P/1 – Agora o nome completo da sua mãe e do seu pai, se você souber a data e o local de nascimento dos dois também.
R – A minha mãe nasceu em Recife, Pernambuco, Raquel Odilon Gimenez; e meu pai é Benedito Gimenez, ele nasceu em Santos.
P/1 – E o que seus pais faziam ou fazem profissionalmente?
R – O meu pai trabalhava com carroça e minha mãe trabalha com artesanato. Ela faz biscuit, meia de seda, faz artesanatos manuais. E na época de eleição, que nem esse ano, ela trabalha sempre (risos), todo o ano. Meu pai faleceu eu tinha oito anos, faz bastante tempo que ele faleceu.
P/1 – Sua mãe trabalha nas eleições também? Com o quê?
R – Sempre com algum candidato, acho que alguém sempre recomenda ela e ela sempre trabalha na eleição. Meu pai faleceu quando eu tinha oito anos. Quando eu era pequena ele caiu na carroça e ele amputou uma perna porque ele não cuidou, tirou o gesso antes, aí deu gangrena e ele precisou amputar a perna. Depois passado um tempo esse problema ocasionou o câncer na cabeça e ele veio a falecer.
P/1 – Você tem irmãos?
R – Eu tenho duas irmãs e um irmão.
P/1 – Qual o nome dos seus irmãos e o que eles fazem?
R – A Kátia é a mais velha, ela trabalha no hospital no Centro de Hemoterapia, ela mexe com transfusão de sangue e fracionamento. A Débora é a caçula, ela está trabalhando atualmente dando aula no hospital que ela fez faculdade e ela fez um outro curso pra poder dar aula, ela trabalha no Hospital Cachoeirinha dando aula de instrumentadora. E o meu irmão, o nome dele é Luís Claudio e ele trabalha com montagem e desmontagem de móveis, mas ele trabalha por conta própria, as pessoas ligam pra ele e aí ele vai na casa das pessoas pra montar e desmontar os móveis.
P/1 – Você sabe qual é a origem da sua família, Cris? Seus antepassados, de onde vieram?
R – Por parte do meu pai eu sou descendente de italiano com espanhol. E por parte da minha mãe é Pernambuco, índio, tudo misturado, porque a minha avó era morena e tinha o cabelo bem compridão, lisão.
P/1 – E por parte do seu pai você falou que são italianos e espanhóis. E eram avós, bisavós, você sabe quem veio pro Brasil, primeiro?
R – Foram os avós dele que vieram pro Brasil. E os pais dele nasceram em Santos.
P/1 – E você sabe por que os seus bisavós vieram pro Brasil? Alguma vez alguém te contou essa história? Por que eles vieram, o que eles vieram fazer quando chegaram aqui?
R – Eu não sei te dizer o porquê, sei que teve uma época aqui no Brasil que vieram muitas pessoas de outros estados, não sei se teve guerra no país deles, se estavam com problema, que antigamente tinha muito esses problemas de saúde de febre, de um monte de coisa assim, passaram guerra, muita coisa. Então eu sei que, tanto que os outros perguntam pra mim: “Você é parente da Luciana Gimenez?”, eu falo: “Não que eu saiba” (risos), por causa do sobrenome, né? E ela também é descendente de italiano com espanhol. Eu falo: “Não sei se eu tenho algum parentesco, da minha parte eu não sei”. Mas eu creio que tenha sido por algum motivo de guerra que eles vieram pro Brasil, porque nessa época que eles vieram pra cá era a época que tinha guerra nos outros países, né? Ou então eles se apaixonaram pelo Brasil (risos). Minha irmã mais velha, a Kátia, a aventura é que ela se casou tem um ano e pouco com um português que ela conheceu na internet! (risos) Foi amor à distância, né? Veio pra cá.
P/1 – Eles moram no Brasil?
R – Eles moram no Brasil, ele veio pra cá pra se casar com ela. Porque ela já tinha sido casada, então ela tem duas filhas do relacionamento anterior, então ela não ia sair do Brasil pra ir pra lá, era mais fácil ele vir pra cá do que ele ir pra lá. Ela trabalha nesse hospital, no Centro de Hemoterapia, faz uns 23 anos ou vai fazer, já faz muito tempo que ela trabalha no mesmo lugar.
P/1 – Conta um pouquinho pra gente, Cris, como seu pai era e como sua mãe é de jeito, de personalidade? Como você descreveria eles pra alguém que não conhece?
R – Meu pai eu não lembro muita coisa dele porque ele faleceu eu tinha oito anos, mas com mais ou menos uns seis ou sete anos minha mãe separou dele, viemos pra São Paulo e ele ficou em Santos. Eu lembro que ele era loiro, pele clara, minha mãe já é mais morena, mais pra negra do que pra branca. Eu lembro que meu pai era uma pessoa brava, as pessoas tinham muito medo dele (risos). Eu e minha irmã, a gente ia comprar as coisas no nome dele e a gente ia bagunçando na rua. E se você falasse alguma coisa as pessoas contavam pra ele depois. Agora que saiu esse negócio de Face, essas coisas, alguns meses atrás eu encontrei a família do meu pai no Face. As minhas primas, os filhos das minhas tias. Porque depois que minha mãe saiu de lá, nós viemos pra São Paulo, não tivemos mais nenhum contato com a família do meu pai.
P/1 – Como foi esse reencontro no Face? Você entrou em contato com eles?
R – Então, minha irmã falou assim: “Filha, eu encontrei uns parentes da gente, uns são de Itanhaém e outros estão em Ribeirão Preto”. Eu tenho um tio chamado Valentim, com ele eu não tive nenhum contato pelo Face, mas com as filhas; a minha tia Adélia eu tive contato com as filhas dela pela internet e pelo Face. Mas pessoalmente a gente ainda não se viu porque, acaba, mesmo que você conheça outras pessoas, porque assim, elas trabalham, eu não trabalho fora, mas eu cuido de casa, eu vou pra escola, eu faço fisioterapia. Então, mesmo que você queira, no final de semana que seria pra você poder ver as pessoas, de final de semana eu costumo sair, eu vou pra alguns eventos, vou pra feiras artesanais, feira do Japão, fui pra Bienal do Livro esses dias, então sempre que tem oportunidade de ir pra algum lugar eu vou. Já fui pra Brasília, já fui pra Águas de Lindóia, já fui pra Atibaia, tudo em conferências. Porque nós temos um trabalho com pessoas com deficiência, então a gente tenta lutar por esse direito das pessoas com deficiência. Porque assim, a gente precisa de transporte, então a gente vai lá resolver brigar por essa causa; sobre a questão do INSS, porque às vezes os deficientes querem trabalhar, mas se eles trabalharem eles perdem o benefício, se eles perderem o benefício, eles não conseguem de volta. E às vezes muitos não têm qualificação, o estudo é pouco pra poder trabalhar fora. Então, acaba prendendo o deficiente e ele acaba se acomodando na parte de receber o benefício porque se ele trabalhar ele perde. Então, às vezes ele quer ir trabalhar, ele quer ir lutar, mas pra você sair da sua casa, pra você ganhar o mesmo que você ganha na sua casa sem você fazer nada? E você ainda tem perigo de perder e não conseguir de novo? A pessoa acaba não fazendo nada por causa disso. Nós já fomos várias vezes brigar por esse direito em Brasília, da pessoa, vou trabalhar, perco o benefício, mas aí não consigo trabalho eu conseguir o benefício de volta, e não é assim. Se você perder o benefício você fica anos e anos tentando e você não consegue. Teve pessoas que perderam o benefício pra ir trabalhar e o que aconteceu? Eles morreram tentando conseguir de volta e não conseguiram. Aí os outros falam: “Não, mas está cheio de trabalho pro deficiente”. Tem trabalho pro deficiente, mas às vezes ele não tem a qualificação necessária que eles precisam. Eu já deixei meu nome em empresas pra trabalhar, eles me ligaram e falaram: “Olha, a gente está precisando de uma pessoa pra trabalhar com deficiência”, eu falo: “Ah, eu sou de cadeira de rodas” “No nosso estabelecimento não tem adaptação”. Então, às vezes a pessoa quer, mas acaba esbarrando, se não for na adaptação, esbarra nesse problema de perder o benefício. Porque eu pago aluguel, por exemplo, então se eu perder o benefício eu vou morar embaixo da ponte.
P/1 – Cris, a gente vai conversar bastante ainda sobre essas questões, tá? Só quero voltar um pouquinho...
R – Da família.
P/1 – Isso. Antes. Mas a gente vai chegar nisso, quero que você me conte. Você descreveu um pouco seu pai, queria que você descrevesse um pouco da sua mãe.
R – Ah, minha mãe sempre ia trabalhar fora e a gente cuidava, um cuidava do outro, quatro irmãos, aí ela precisava trabalhar e um cuidava do outro. E aí ela sempre, não tem gente que só olha e não precisa falar? Se você fizesse alguma coisa errada, ela só olhava e você já sabia (risos), já ia. Os outros irmãos não, mas eu sempre tive muito medo dela. Tanto que ela fala que até para comer alguma coisa na geladeira eu pedia antes (risos). Mas cada pessoa é diferente da outra, né? Então assim, minha mãe foi sempre muito amiga da gente, mas mesmo assim eu sempre tive um medo dela. É uma coisa minha (risos), é um defeito meu, às vezes eu falo assim: “Tem gente que às vezes está velhinho e ainda tem medo da mãe”. Ela falava assim: “Você não me respeita, posso estar velhinha de bengala, eu bato!” (risos). Então a gente sempre, mas nós trabalhamos muito juntas, eu e ela, porque ela sempre gostou de trabalhar com artesanato. E eu sempre fui a única filha que também fazia artesanato, ela aprendia as coisas e me ensinava, então a gente trabalhava muito junto. Também trabalhamos na feira quando eu era pequena e eu ia vender com ela também, porque desde pequena eu sempre tive muito, eu falo que é um dom, pra você vender as coisas você tem que ter um dom, e eu sempre fui muito boa com coisas de venda, então eu sempre trabalhei junto com ela. A gente fazia bastante coisa assim.
P/1 – Você diz que vocês trabalharam um tempo na feira. É na feira livre mesmo, numa feira de artesanato?
R – A gente trabalhou na feira livre, em feira, nós vendíamos banana. E de artesanato eu fazia artesanato com ela em casa, a gente fazia chinelo, jogo de banheiro, boneca, essas coisas e ela saía pra vender na rua.
P/1 – Desde que idade você tinha quando você começou a ajudar?
R – Eu comecei, desde os sete anos que eu trabalhava na feira, na rua com ela, vendendo.
P/1 – Conta um pouco pra gente como era nessa fase ainda de infância, a casa em que você morava? Descreve um pouco como era a casa, bairro na época?
R – Nós moramos muito tempo no Jardim Rosana, a gente morava numa casa de aluguel. O meu padrasto trabalhava no depósito de banana, então ele trazia as bananas pra casa e nós íamos vender na feira. Montava, colocava uns caixotes, uns paus lá na feira e vendia. Uma época eu vendi, só eu e ele, meu padrasto, nós vendíamos no centro da cidade, ali no centro de Pinheiros. Nós montávamos uma barraca e ficávamos ali vendendo. Ele falava pra mim assim: “Como eu não sou bom com venda eu vou deixar você sozinha”, porque ele saía e quando voltava não tinha mais nada, eu já tinha vendido tudo. Ele falava: “Se eu ficar aí você não vai vender nada, nem eu, nem você”. E a gente sempre trabalhou com essas coisas. Teve uma época que o meu padrasto queria ir pra Pernambuco, que a família dele era de lá e nós fomos pra Pernambuco. Ficamos seis meses lá, ficamos um pouco em Garanhuns e um pouco em Caruaru.
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Nessa época eu tinha uns 13 pra 14 anos, quando fomos pra Pernambuco.
P/1 – Deixa eu voltar um pouquinho antes. Nessa fase de infância ainda, você falou que você já morava com seu padrasto e com a sua mãe, né? Como era essa casa que você passou a infância e o bairro? Como era o bairro na época? Pode descrever pra gente as ruas, as casas, a casa em que você morava.
R – A casa era bonita, mas teve uma época que as pessoas ouviam muito rádio e ficavam ouvindo aquelas histórias horrorosas, cabeludas e a gente ficava com medo de sair; Afanásio, Gil Gomes, essas coisas (risos), então a gente tinha medo. Era um lugar tranquilo o bairro que a gente morava. A casa era boa, tinha quintal e a gente ficava brincando. Mas de tanto o pessoal ficar ouvindo aquelas histórias você acaba ficando meio traumatizada, ninguém quer sair (risos). É como hoje, se você ficar assistindo muita televisão, se torcer sai um pouquinho de sangue, né? E a mesma coisa era o pessoal ficava ouvindo essas coisas, aqueles casos, aí todo mundo ficava com medo de ir pra rua.
P/1 – E do que você brincava? Com quem você brincava nessa fase de infância?
R – Eu brincava com as minhas irmãs, porque como eram duas irmãs e só tenho um irmão, só foi um homem, a gente ficava brincando de casinha, pegava as panelinhas, ficava brincando lá. Mas só que assim, primeiro a gente fazia o serviço de casa e depois a gente brincava, porque tinha que ter a responsabilidade, as duas partes. Tanto que eu e a Kátia, ela é só um ano de diferença de mim. Minha mãe sempre foi muito severa com as coisas e a Kátia tomava banho e largava a toalha jogada e eu (risos) deixava a gaveta bagunçada. A minha mãe deixou nós duas um mês de castigo, as duas, por causa disso (risos).
P/1 – Vocês ajudavam na casa?
R – A gente ajudava na casa sim. Aí ela: “Não, tem que ter responsabilidade”. Uma vez ela saiu, falou pra Kátia: “Faz a marmita”, pro meu padrasto levar pro trabalho. E ela não fez. Quando minha mãe chegou ela ficou brava com ela, deixou ela de castigo também (risos).
P/1 – Nessa idade você já saía pra trabalhar na feira, pra ajudar sua mãe?
R – Já.
P/1 – E como era? Essa era a barraquinha que vocês montavam ali em Pinheiros ou não, era uma outra feira? Conta um pouquinho onde era a feira, como era o trabalho que você fazia, se era todo dia.
R – Quando a gente trabalhava na feira eu não me lembro se era todo dia, mas quando a gente foi vender em Pinheiros, eu e meu padrasto, a gente ia todo dia vender. Porque eu falo, não sei se meu irmão tem dislexia, eu não sei se eu tenho um pouco, porque eu falo assim. Na minha infância teve uma época que eu fiz quatro vezes a primeira série, até nove anos eu calçava o sapato errado (risos). Quando eu andava minha tia chamava eu de pata, ela dizia que eu andava meio estranha assim. Então eu falo, eu não sei, talvez eu tenha porque tem coisas que eu lembro muito bem, tem coisas muito vivas, só que tem algumas coisas que apagaram, não tenho muita lembrança. Por exemplo, a gente ia pra feira, mas você vai me perguntar: “Onde era essa feira?”. Porque quando a gente era pequena, como nós morávamos de aluguel minha mãe sempre mudava, a gente já morou em tantos bairros aqui em São Paulo (risos), se eu te falar você vai falar: “Não acredito”. Eu já morei em Maria Sampaio, Jardim Rosana, Vila Sônia, Jardim Colombo; já moramos em muitos lugares, porque a minha mãe sempre mudou muito. Porque quando você não tem casa própria, que você mora de aluguel, você sempre está mudando, né?
P/1 – Vocês moraram em vários lugares diferentes.
R – Nós moramos em vários lugares. Teve ano, no ano que a gente foi pra Pernambuco mesmo, nós estudamos em três escolas num ano, e antes disso acho que uns dois ou três anos nós estudamos em três escolas em um ano só.
P/1 – E quais são as primeiras lembranças que você tem da escola, Cris? Quantos anos você tinha quando você começou a frequentar e o que você se lembra?
R – Eu comecei a escola em Santos ainda, quando eu era pequena. Eu tinha uns seis anos, mais ou menos. A lembrança que eu tenho da escola não é muito legal (risos) porque eu e a Kátia, a gente sempre foi muito unida, então a gente ficava brincando de apostar corrida e eu brincando de apostar corrida com ela caí dentro do poço. Só ficou só o chinelinho boiando em cima (risos). Eu lembro de eu na escola tremendo, batendo os dentes, a professora: “Eu vou buscar alguma sopa, alguma coisa pra você ficar quente” (risos).
P/1 – Dentro do poço isso?
R – Meu tio me tirou do poço e depois a gente tinha que ir pra escola. E quando cheguei na escola, porque fiquei debaixo d’água, eu tremia muito. Quando chegou lá na escola a professora veio, quis dar alguma coisa pra esquentar, pra melhorar, mas eu falo, a gente sempre foi meio traquina (risos). A gente ficava apostando corrida uma com a outra, caía dentro do poço, tanto que eu não me lembro porque eu era muito pequena, quando eu tinha uns dois anos, mais ou menos, um ano e pouco, o cavalo ia passar em cima de mim e a Kátia pegou eu pelo macacãozinho assim e saiu puxando no quintal. Porque ela era medrosa, tinha medo de escuro e eu não. E meu pai mandava ela no quintal sozinha, de noite. E tudo tinha mato porque era tipo interior, tinha cavalo, pato, galinha, essas coisas. Meu pai queria que ela fosse sozinha e ela tinha medo, e eu ia escondida sem ele ver, para ela não ficar com medo de ir lá fora. Outro dia eu estava lembrando quando a gente era pequena lá em Santos tinha uma parte, vinha uns caminhões com uma tela bem grande e todo mundo sentava na rua com cadeira, tapete, pra poder assistir o filme que ia passar. Por isso que eu falo pra você, tem umas coisas que são mais antigas, que eu tenho mais lembrança do que algumas coisas mais novas. Minha mãe fala que é porque eu sempre fui, quando eu era pequena eu tinha bronquite asmática, então eu vivia mais internada do que em casa; saía na porta do hospital com bronquite, volta de novo, porque ficava roxa. Então algumas coisas são meio apagadas, meio esquecidas da mente.
P/1 – Esses caminhões que vinham com a tela, que projetavam filmes, você se lembra de alguma coisa que você tenha assistido? Foi a primeira vez que você viu um filme como se fosse cinema?
R – Foi a primeira vez. De quando eu era pequena, sim. Quando a gente ficou lá em Santos, minha mãe tinha vindo pra cá e eu e a Kátia tinha ficado lá, porque a minha mãe separou do meu pai. Então, essa era uma época de muita dificuldade financeira pra gente. E eu falo que naquela época se criança pegasse piolho eles raspavam a cabeça, não cuidava. Eu lembro de eu careca, com as toquinhas feitas de pano, sei lá se era a minha avó que fazia. Um paninho amarrado assim na cabeça, uns negócios (risos). Tanto que quando eu era pequena a Kátia ficou um pouco mais lá em Santos e eu vim primeiro porque como eu ficava muito doente, meu pai falou: “Vai embora pra morrer lá com a sua mãe” (risos). Porque eu era muito doente.
P/1 – E dessa fase de escola que a gente comentou agora há pouco teve algum professor marcante? Alguém que você se lembre? Um professor que tenha te marcado mesmo?
R – Na verdade eu não lembro do nome, nem de nada. Eu lembro que tinha um professor que minha mãe tinha falado assim, quando eu pedisse pra ir no banheiro que era pra deixar. E o professor não quis deixar. E aí eu não aguentei, sujei a roupa e o professor com dó arrumou roupa, sapato, um monte de coisa. Não tenho assim lembrança de como era a pessoa, se era homem, se era mulher; lembro dessa parte porque quando eu era pequena, como a gente andava descalço, com pato, com animal, cavalo, esse monte de coisa, a gente não tinha uma saúde boa. Água de poço. Então a saúde era uma beleza. Se desse vontade de ir no banheiro tinha que ir e o professor não queria deixar, achava que era frescura. Até hoje, às vezes, eu lembro que quando na minha infância eu ia no médico porque eu sentia dor na barriga, ele falava: “Deixa de mentir, menina! Fica falando pra sua mãe mentira, você não tem nada!” (risos) Tanto que já tem uns 14 anos que eu estava com dor na barriga, ia no médico e ele falava que não tinha nada. Eu falava: “Não é possível que uma pessoa tenha alguma dor e não tenha nada”.
P/1 – Você se lembra nessa fase assim, quando você era criança, ou na adolescência já, se você queria ser alguma coisa quando crescesse, profissionalmente? Você tinha alguma vontade? Você falava: “Ah, quero ser tal coisa quando crescer”.
R – Eu tinha vontade de cantar, de ser cantora. Nessa fase quando eu era pequena a gente ia na igreja. E eu cantava na igreja. Eu falava: “Quando eu crescer eu vou ser cantora”. Mas aí a gente, eu continuo cantando na igreja, mas não sou cantora, não (risos). Mas assim, é muito difícil você querer uma coisa, difícil você conseguir. Porque até a fase que você não tem a deficiência você é independente, você não precisa das pessoas pra fazer nada; no momento que começou o problema com a deficiência, aí você já fica dependendo dos outros. Então é mais difícil de você conseguir fazer alguma coisa. Tanto que eu estou com 43 anos e agora que eu voltei a estudar. Ano passado eu me matriculei, mas a escola era muito longe, então não tinha como eu ir. Agora eu falei: “Se eu tenho oportunidade de ir pra escola, tem um carro pra me pegar em casa pra ir pra escola e depois pra trazer de volta eu vou”. Voltei a estudar no mês de junho desse ano.
P/1 – Cris, e como é que começou a se manifestar a questão da deficiência? Você tinha que idade?
R – A deficiência começou a manifestar com 17 anos, mas ninguém sabe se ela foi adquirida ou se eu já nasci com ela. Eu acho que eu já nasci com ela, só que ela demorou pra manifestar porque geralmente esse problema começa daqui da parte da coluna pra cima, e o meu começou invertido, começou de baixo pra cima e não de cima pra baixo. Porque quando eu era pequena eu vivia sempre com os joelhos ralados, eu sempre caía, estava com o joelho sempre esfolado. Eu falo, eu acho que ela já estava lá, como ela foi ao contrário, aí demorou mais pra aparecer. Porque eu conheço pessoas que têm esse mesmo problema e que não conseguem pegar um copo de água sozinho, não tem esse movimento, porque é uma lesão que pega a medula toda, atinge a parte da respiração, porque é uma doença degenerativa que eles chamam. Eu comecei a sentir dor no solado do pé direito e aí foi piorando, passou pro esquerdo. Aí eu fui no médico porque os outros falavam: “Isso é psicológico da sua cabeça, você não tem nada”. O psicólogo falou pra mim: “Não, o seu problema não é psicológico, o seu problema é de saúde”, aí eu fui no hospital e o médico falou: “Não é nada, se você sentir dor você toma ASS ou Aspirina”. Mas ele não fez nada, tirou um raio X, falou que não era nada. Só que aí foi piorando cada vez mais, foi perdendo a força de uma perna, depois foi pra outra, foi piorando. E como você precisa de médico público é mais difícil você conseguir um diagnóstico porque eles não vão logo de cara pedir uma ressonância, eles vão passar raio X, vão passar uma tomografia, vão passar outras coisas. Tanto que quando eu fiquei grávida do meu filho em 92 eles queriam tirar um raio X, eu grávida. Tiraram o líquido da medula, que não constou nada, e queriam tirar um raio X. Só que eu só fui fazer uma ressonância em 94, dois anos depois que ele tinha nascido.
P/1 – Com quantos anos você estava?
R – Quando eu comecei com esse problema?
P/1 – Não, quando você engravidou, você engravidou com quantos anos?
R – Eu engravidei com 21 pra 22 anos, mais ou menos.
P/1 – E aos 17 que você começou sentir esses sinais mais fortes. E como chegou no diagnóstico? Como foi?
R – Então, primeiro eu fui no psicólogo, que eu falei pra você, depois eu fui no Hospital do Mandaqui, que o médico falou pra tomar ASS ou Aspirina. Aí eu comecei, depois que eu fiquei grávida do meu filho, eu conheci uma madre e ela começou a ir comigo no Hospital São Paulo, me levar lá. Só que por causa da gravidez eu parei porque não podia tirar raio X, quando eu tive ele, já aproveitei e já fiz a tomografia, também não constou nada. Só conseguiu ver quando fez a ressonância. Porque geralmente começa da parte torácica e o meu começou da parte lombar, invertido. E aí achou, só que o Hospital São Paulo não quis operar e a AACD, na época, queria quatro mil reais pra fazer a cirurgia. Para uma pessoa que mora numa favela, num barraco, pagar quatro mil reais pra fazer uma cirurgia. Minha mãe falou que o médico disse que era só pra não morrer mais cedo, não era pra ter cura. Uns dois anos atrás foi que um médico falou pra mim: “Se tivesse operado você estava boa, andando”. E aí, foi piorando, piorando, porque primeiro começou a dor no pé. Só que depois, o que aconteceu? Conforme eu estava andando eu sentia que parecia que alguém me empurrava, do nada eu caía. Quando estava doendo embaixo do pé eu parava em algum lugar, segurava, esperava passar a dor. Mas assim, você vai em um lugar, vai em outro, todo mundo fala que não é nada, vai deixando, né? Não é nada. É que nem essa dor que eu estava falando, você vai sentindo, vai sentindo, você vai no médico: “Ah não é nada, é normal, é normal, é normal”, até você conseguir alguém que fale: “Não, vamos fazer uma ressonância”, tem o interesse do diagnóstico, né? E aí eu fiz a ressonância no Hospital São Paulo em 94 e Hospital São Paulo não quis operar e a AACD cobrou quatro mil. A minha mãe não quis mexer, falou que podia mexer e piorar, ficar pior do que já estava, aí acabou não mexendo. Depois eu só voltei lá na AACD em 2000, que eles insistiram em querer operar. Só que o que aconteceu? De 94 pra 2000 ele cresceu; em 94 ele estava só na parte da medula, na lombar, e aí de 94 pra 2000 ele veio pra parte torácica. E aí você podia ter uma operação e não ter um resultado porque ele evoluiu e tem uma rejeição porque eles iam colocar uma válvula, que nem aquelas crianças que têm hidro, eles iam colocar uma válvula na medula, que é pra tirar esse líquido; esse problema meu, ele tem excesso de líquido, se é pra medula estar dessa finura, ela está dessa largura porque tem líquido demais, então essa válvula era para tirar esse líquido. Mas não era certeza que ia ficar bem. Eu falo, se for pra mexer e piorar eu prefiro não mexer. Porque assim, bom ou ruim do jeito que eu estou, eu lavo a minha louça, eu faço a minha comida, eu faço as minhas coisas sozinha, eu sou independente. E se mexer e eu ficar dependente, em cima de uma cama, eu vou ficar dependendo dos outros pra fazer outras coisas? E por exemplo, mora eu e o meu filho, então eu prefiro ficar assim, que pelo menos assim eu vou pra lá, vou pra cá do meu jeito, que do jeito que dá eu vou fazer minhas coisas, corro atrás daquilo que eu preciso. E você em cima de uma cama não, né?
P/1 – Qual foi o diagnóstico que eles te deram, Cris?
R – Uma doença degenerativa chamada siringomielia. Se tivesse operado em 94 tinha dado jeito, mas como ela cresceu, evoluiu. Mas graças a Deus ela está estável, de 2000 pra cá ela não aumentou nada, ela ficou no mesmo lugar. Porque senão poderia, se tivesse evoluído eu poderia perder os movimentos das mãos.
P/1 – E quando eles te deram o diagnóstico o médico conversou contigo, como foi esse momento?
R – Quando eles deram o diagnóstico eles conversaram com a minha mãe, eles não conversaram comigo. E aí a minha mãe não quis mexer, ela não quis fazer a cirurgia, porque ela sempre pensou se for pra operar e piorar é melhor deixar do jeito que está, ela não quis mexer. Ela sempre falava: “Eu sempre peço pra Deus se esse problema que você está é por minha causa, que ele tenha misericórdia de você e cure”. Eu falo, mas tem coisas que às vezes, no começo, por exemplo, pra uma pessoa que não tinha deficiência, que andava normalmente, estudava, trabalhava, fazia uma coisa ou outra é muito difícil você aceitar a deficiência. Foi muito difícil para eu aceitar. E se você não tem um apoio da sua família, se a sua família também não aceita é mais difícil ainda. Eu vivia pensando: “Será que se eu tomar 60 Diazepam eu morro?” (risos) “Se eu me jogar daqui de cima lá pra baixo, será que eu morro?”. Eu pensava: “E se eu me jogar e piorar? E se eu tomar o Diazepam e em vez de eu morrer, eu ficar em cima de uma cama dependendo dos outros?”. Tem hora que você fala: “Eu não tenho o que fazer, então o que eu posso fazer?” É aceitar e tentar conviver com aquele problema do melhor jeito que der. Por quê? Se você faz uma coisa dessa e você fica pior, fica em cima de uma cama, você vai ficar dependendo dos outros pra tudo. E aí eu falei: “Não tenho outra coisa pra fazer, o que eu posso fazer é aceitar”. Foi aí que eu comecei a correr atrás dos objetivos, procurar uma cadeira de rodas, correr atrás de um benefício, procurar alguma coisa pra mim. Porque assim, quando o meu filho era pequeno eu não recebia benefício nenhum, eu sempre trabalhei muito com vendas, até hoje eu ainda vendo revistinha (risos). Vendo revista de produtos. Aí eu fui atrás, eu fui procurar aquilo que eu precisava, tanto que depois que eu comecei a ir atrás da cadeira de rodas, atrás dessas coisas, foi que eu comecei a me envolver com outras pessoas com deficiência e comecei a sair de casa, porque eu vivia dentro de casa trancada, não ia pra lugar nenhum, só vivia trancada, se saísse uma vez por mês era muito. Quando saía. E aí eu fui atrás de uma cadeira pra mim na Várzea do Carmo, eu conheci uma pessoa lá, eu dei meu telefone pra ela, ela passou meu telefone pra outra pessoa; foi aí que eu comecei a ir nos passeios, nos eventos, nas reuniões. Porque antes eu só ficava dentro de casa, trancada.
P/1 – Cris, deixa eu voltar. Eu vou querer voltar bem mais sobre essa fase, mas quero voltar um pouquinho porque a gente começou a falar sobre a descoberta e deixou um pouco a sua adolescência pra trás. Queria saber assim, quando você mudou dessa fase da infância pra adolescência, pra juventude, antes da descoberta da doença, o que mudou na sua vida em termos de amigos, de lazer, se você saía, o que você fazia pra se divertir? O que você gostava de fazer nessa época?
R – Na nossa adolescência nós fomos pra Pernambuco, que eu tinha falado, e voltamos pra cá. Aí nós fomos morar na zona Leste, que antes de ir pra Pernambuco nós morávamos na zona Sul; nós fomos pra zona Leste. Às vezes eu ia pra baile, ia num barzinho, tinha amizade com as meninas, às vezes arrumava namorado, saía de moto. Minha mãe falava: “Dez horas quero em casa” (risos). “Dez horas tem que estar em casa”, e às vezes a gente corria, corria, faltava poucos minutos pras dez, chegava em casa com a língua pra fora de tanto que corria pra chegar no horário (risos). Mas assim, eu falo, na fase que eu andava assim, eu sempre saí bastante. Até os outros falam pra mim assim: “Se você não estivesse na cadeira de rodas ninguém ia nem te ver”, porque eu falo: “A gente não sabe quanto tempo a gente vai viver, então a gente tem que aproveitar as oportunidades de sair, de conhecer, de ir em outros lugares”. A primeira vez que eu fui em um baile eu tinha 17 anos.
P/1 – E como foi esse baile? Como é que era?
R – Ah (risos), eu vou te falar que eu fiquei ansiosa, não comi naquele dia, quase que eu desmaiei porque a pressão ficou baixa (risos). Eu fui com um rapaz, ele trabalhava no Correios. Era em Santo André esse baile e eu fui com ele. Depois eu comecei a ir com umas meninas que tinha no mesmo prédio que eu morava, que lá era Cohab. A gente morava num prédio lá, antes era bairro Castro Alves, agora é Barro Branco, perto da Cidade Tiradentes, nós morávamos lá. A gente ia no final de semana, ia pros bailes, ia pro Parque do Carmo, levava o filho dos outros, levava aquele monte de mochila,de bagunça, pra fazer piquenique. Eu sempre gostei de sair, de passear. Quando eu tinha uns 12 anos, mais ou menos, por parte do meu avô, quando ele casou ele já tinha três filhas e todas elas moravam em Santos. Então assim, perto de férias a gente ia pra lá (risos), ia pro Guarujá, pra Santos, aproveitava. Meu primeiro, em 96 ou 97 foi a primeira vez que eu pulei carnaval. Tinha um salão perto da casa da minha prima, que morava no Guarujá e aí eu fui com a minha prima lá e pulamos os três dias de carnaval. Eu falava pra ela assim: “Você não tem peso na consciência, não? Sua mãe internada no hospital e você aqui pulando carnaval comigo?” Mas jovem não está nem aí com nada, né? (risos)
P/1 – E como é que foi esse carnaval? Conta um pouco. Como era esse salão, o que tocava de música, como foi pular carnaval pela primeira vez?
R – Ai, aquelas músicas antigas, aquelas marchinhas que o pessoal falava. Como era perto da praia, todo mundo estava de shorts, de camiseta, colocava aquelas, tipo umas florzinhas assim de havaianas, aqueles negócios. Aí nesse carnaval eu conheci um menino lá, mas os outros não falam que namoro não sobe (risos)? De litoral não sobe. O pessoal fala. O rapaz veio atrás de mim em São Paulo (risos).
P/1 – Vocês namoraram?
R – Quando eu menos esperava estava ele batendo lá na porta. Eu falei: “Meu filho, o que você veio fazer aqui?” (risos)
P/1 – E você chegou a namorar esse rapaz, Cris?
R – Só quando eu estava lá no litoral, quando eu vim pra cá eu falei: “Meu filho, volta pra lá” (risos) Tinha um rapaz do lado do apartamento que eu morava que eu gostava dele. Eu falei: “Meu filho, volta pra lá, fica lá, (risos) não sobe não, desce” (risos). Ele voltou pra lá e não tive mais contato com ele porque essa minha prima mora perto onde fica os barcos, do fundo da casa dela dá pra ver onde ficam os barcos ancorados. E ele era vizinho, morava quase do lado da casa dela. E a gente, ah, não ficar sozinha (risos), aí depois ele veio. Eu falei: “Gente, vocês não dizem que as pessoas não vêm atrás da outra, em outro lugar?” Ele veio atrás de mim e foi embora depois.
P/1 – E nessa fase de adolescência teve alguém marcante nesse lado mais amoroso? Um namorado, uma paixão, primeira amor?
R – Tinha, o filho da vizinha (risos).
P/1 – E como foi que você se apaixonou por ele?
R – Na verdade ele não era filho da vizinha, mas é como fosse porque ele era enteado dela. Era o Moisés, ele era muito bonito. A gente começou a namorar, ficamos namorando um tempo, alguns meses. Mas aí depois ele saiu da casa dela porque ela tinha os filhos dela e o marido dela tinha os filhos dele, né? E às vezes quando tem muito filho, muita gente, porque esses apartamentos de Cohab são pequenos, aí a gente acabou terminando. Depois eu me apaixonei por uma pessoa mais velha, eu tinha 17 e ele tinha uns 26 anos. A gente montava na rabeira da moto e saía por aí (risos). Era muito, um tempo desses atrás eu fui lá perto da casa dele onde a minha tia morava, que a minha tia mora lá na zona Leste. Eu senti vontade de ir lá perto da casa dele pra ver se ele ainda morava lá (risos), mas não fui não porque eu fui fazer uma caminhada, a gente saiu andando de um lugar até perto do hospital que tem lá, aí eu falei: “Não”. Mesmo que more, a pessoa já está casada, já tem filho, já deve ter outra coisa, outra vida diferente, né?”. Apesar que tem um rapaz que mora perto da casa da minha tia e teve um Natal, Ano-Novo que eu estava sozinha em casa, aí eu fui pra casa da minha tia. A gente ficou no quintal da minha tia, no balanço. Aí a gente deu uns beijinhos. Até hoje, depois de todos esses anos ele falou que a gente só teve começo, a gente não teve meio e não teve fim. Ele falou pra mim: “Se você quiser eu largo da minha esposa e fico com você” (risos). Eu falei: “Meu filho, pra mim teve fim, se não teve pra você eu não posso fazer nada” (risos). Porque ele é mais novo do que eu acho que uns quatro anos, sei que eu tinha uns 17 e ele tinha uns 14, ele só tinha tamanho, até hoje (risos). Então eu falo, era só ficar (risos). A minha tia fala: “Mesmo ela tendo ficado na cadeira, você ficava com ela?” “É claro que eu ficava, não tem problema nenhum” porque infelizmente as pessoas falam que não têm preconceito, mas têm. E até dentro da família da gente mesmo tem preconceito, não aceita a deficiência sua. Quanto mais as pessoas de fora. Eu falo: “Se a sua família não te aceita a pessoa de fora é obrigada a aceitar? Não é, né?” Porque não tem como. Se a sua própria mãe não te aceita, como as outras pessoas vão te aceitar? Então é complicado.
P/1 – Nessa fase de adolescência você frequentava escola durante todo o tempo, Cris? Como foi?
R – Eu estava estudando, mas eu sempre fui... porque assim, quando você trabalha, você faz outras coisas, às vezes você chega na sala de aula e em vez de você estudar você começa a dormir, o professor está falando e você não está entendendo nada. Principalmente Matemática, essa professora que está aí é adivinha de Matemática (risos). Matemática nunca foi meu forte, minhas notas sempre foram péssimas. De uns anos pra cá que não sei qual foi o milagre que as notas de Matemática são boas. E aí eu estudava, mas o que aconteceu? Quando eu voltei mesmo pra estudar, que eu quis voltar a estudar eu tive pneumonia e infecção renal aguda, então fiquei internada uns cinco dias. Depois que eu saí do hospital eu ainda fiquei muitos dias em casa ruim, sentindo dor. Já chega na sala de aula dormindo, depende dos outros pra te levar na escola e ainda com dor, vai fazer o quê na escola depois de ter perdido aula tanto tempo? Depois disso eu saí de lá, eu saí da zona Leste e vim morar no Real Parque, no Morumbi. Aí aqui no Morumbi eu já não voltei mais a estudar, já conheci o pai do meu filho.
P/1 – Você estava com quantos anos?
R – Aí eu estava com 19 pra 20 anos, mais ou menos. Com 20 anos que eu comecei a namorar com o pai do meu filho.
P/1 – E até que idade você estudou então?
R – Eu estudei até 90. Em 90 eu parei por causa do problema de saúde.
P/1 – Você estava com quantos anos em 90?
R – Eu estava com 19 anos.
P/1 – E aí, eu queria saber qual foi o primeiro trabalho que você teve que você ganhava dinheiro? Qual foi o primeiro salário, foi com que trabalho?
R – Eu trabalhei ali no Aricanduva, tinha o Carrefour. Eles tinham aquelas galerias no mercado do lado de fora. Eu trabalhei numa lanchonete lá, entrei pra trabalhar como balconista, mas não fiquei muito tempo porque eu entrei pra ser balconista e acabei na cozinha, ajudante de cozinha. Todo mundo ia embora e eu ficava lá lavando prato; dava o horário todo mundo ia embora e eu continuava lá lavando o prato. Eu falei: “Mas olha, eu fui contratada pra ser balconista, não pra ser ajudante de cozinha”, ele falou: “Não está satisfeita, segunda-feira vem buscar suas contas”. Aí eu fui e peguei. Saí de lá e fui trabalhar em uma casa de família.
P/1 – Esse foi o seu primeiro emprego remunerado?
R – Foi.
P/1 – Você lembra o que você fez com os primeiros salários? Deu pra comprar alguma coisa que você queria? Como você usou os primeiros salários?
R – Ah, eu sempre gostei muito de roupa (risos). Eu fui lá na loja do Carrefour mesmo e comprei um monte de roupa, porque lá vendia roupa, sapato, um monte de coisa assim. Fui lá e comprei um monte de coisa. Depois eu fui trabalhar na casa de família e o último acho que foi, eu trabalhei numa casa de família de uns coreanos, minha tia que tinha arrumado pra mim. Só que os coreanos não queriam que viesse pra casa toda semana, eles queriam que viesse pra casa de 15 em 15 dias. E aí pra mim não era interessante, porque você já fica na casa dos outros a semana toda, já come uma comida que não é a sua, que você não gosta, até o cheiro da comida deles incomodava, e aí você não pode vir no final de semana pra casa? Eu saí de lá também por causa disso, não dava pra ficar num lugar que você vai comer, eles comem aquela comida, como você não come a comida deles, o que era comida? Arroz e ovo, arroz com salsicha. Aí não. Eu falo assim: “Gente, eu nunca ouvi eles ligando o chuveiro nem uma vez” (risos). E eles não queriam que lavasse a roupa na máquina, não queriam que esfregasse no tanque. Eu falava: “Não, eu não aguento uma coisa dessas, não sou obrigada” (risos). Aí acabei saindo de lá por causa disso, porque além da comida não podia, a roupa da criança tinha que ser toda fervida, a roupa deles não podia bater na máquina, tinha que lavar tudo na mão. Tinha uma senhorinha que ficava (imita som de outro idioma) falando. Eu falava: “Meu Deus, se ela estiver me xingando eu vou xingar ela também, porque eu não entendo o que ela fala, ela não entende o que eu falo” (risos). Ficava o tempo todo, eu na beira do tanque e a mulher lá falando, falando, falando. Aí eu falei pra minha tia: “Ah tia, pra mim não dá não, eu vou sair de lá porque você vir pra casa só de 15 em 15 dias, não comer o que você gosta, não dá”. Eu saí de lá, eles pagavam até bem, que eu lembro que eu comprei muita coisa com o dinheiro que eu ganhei lá deles.
P/1 – O que você comprou? Foi uma coisa importante pra você, você se lembra, alguma coisa especial?
R – Nessa época eu já estava morando com um rapaz que eu estava namorando, então eu comprei coisas pra casa, prato, copo, essas coisas. Comprei roupa, comprei um monte de coisa. Comprei muita coisa, eu trabalhei pouco, mas o dinheiro que eu ganhei lá eu comprei bastante coisa.
P/1 – E esse rapaz se tornou seu marido depois ou é uma outra pessoa?
R – Não, uma outra pessoa.
P/1 – E como você conheceu o seu marido? Conta como vocês se conheceram.
R – O pai do meu filho, eu conheci ele porque meu irmão sempre teve muito amigo, então esse era um dos amigos dele que ia lá. E direto ficava um monte de menino lá, tudo na porta, querendo namorar comigo. E meu irmão ficava bravo, querendo botar todo mundo pra correr. Aí nós começamos a namorar. Ele trabalhava numa pizzaria, ele era entregador de pizza, aí ele estava sempre lá em casa, rondando pra lá e pra cá, nunca tinha namorado. Dezoito anos ele tinha, nunca tinha namorado. E aí a gente começou a namorar, acho que um mês e pouquinho, sei que foi pouco tempo, a gente foi morar junto. Porque meu irmão sempre foi muito briguento, ele sempre brigou com a gente. E nesse dia, eu fui um dia na casa da mãe do meu namorado e nesse dia meu irmão tinha me batido, me bateu com um cabo de vassoura e ficou o vergão no braço. Porque meu namorado entrou na frente pra me proteger, só que em vez dele ajudar, ele atrapalhou, porque aí que ele bateu. Se ele não tivesse entrado eu tinha me defendido (risos). Aí ele entrou na frente e ficou um vergão aqui. Eu fui lá, dormi um dia. Aí, meu padrasto falou: “É, se ela quiser voltar, ela não pode voltar mais, não”. Eu falei: “Eu não queria voltar mais mesmo”. Aí foi lá em casa pegou uma mala, foi pra casa dele e fiquei lá. Depois de alguns meses eu fiquei grávida do meu filho. Morei lá alguns meses também, depois que eu fiquei grávida, aí a gente arrumou um quartinho pra morar. Era do tio dele, o tio dele foi embora e deixou a gente ficar lá; a gente ia comprar, só que depois o tio dele se arrependeu e quis voltar pra lá e a gente teve que procurar um outro lugar. Mas nesse quartinho do tio dele foi difícil, porque você grávida em um lugar onde você não tem nem banheiro, foi muito difícil. Nós conseguimos comprar um barraco, só que imagina que o barraco tinha só o telhado e as paredes (risos), não tinha chão, não tinha vaso, não tinha nada. Nada, nada, nada. Aí ele colocou o vaso sanitário e uma torneira. Só. Não tinha mais nada lá. Forrou o chão com esses tapetes e eu falei: “E agora?”, grávida, sem fogão, sem nada. Compramos um fogão daqueles – ainda em alguns lugares eu passo e vejo – aqueles fogãozinhos com duas bocas que tem um forninho? Compramos um daquele lá. O fogão era azul (risos), o armário era vermelho e branco, daquele vermelhão velho (risos) e assim a gente foi se estabelecendo. Quando meu filho nasceu eu já tinha comprado um colchão e ele tinha ganhado dois berços, a minha mãe tinha dado um guarda-roupa e a gente foi arrumando as coisinhas. Mas até aí ainda foi bem complicado. Depois que a gente vendeu esse e comprou um maior, que dava pra fazer uns três cômodos em um lugar. Mas mesmo assim, tinha o banheiro e não tinha o chuveiro. Tinha o chuveiro gelado, não tinha eletricidade 220 na casa. Foi muito difícil. Eu falo, você imagine você grávida, sem você estar grávida você sente fome e quer comer; você imagine você grávida sem um fogão dentro de casa, tendo que esperar alguém trazer um prato de comida pra você? Depois que a gente comprou o fogão e o colchão deu uma melhorada. Ele começou a trabalhar de segurança, que antes ele trabalhou como jardineiro, entregador de pizza, aí ele fez um curso e começou a trabalhar de segurança. Aí a gente trocou esse pequeno, colocou mais um dinheiro e comprou um maior. Mas até aí demorou um pouco, demorou um ano e pouco, porque até você se estabilizar. Porque onde a gente estava morando, que era do tio dele, a gente estava pagando pra comprar, só que o tio dele desistiu. No que o tio dele desistiu, ele não devolveu o dinheiro que já tinha dado, aí tinha que fazer outro dinheiro pra poder comprar outro lugar.
P/1 – E como foi o nascimento do seu filho nessa época? O parto, como é que foi?
R – Então, nessa época, como a gente morava numa favela, até a polícia tinha medo de entrar. Táxi não entrava, a polícia não entrava. A bolsa estourou era meia-noite e meia, ele nasceu era dez e 53 da manhã. Até conseguir algum carro que tivesse coragem de entrar lá, por medo dos bandidos do lugar. O meu padrasto trabalhava em um hospital no Campo Limpo, ele pegou a ambulância e foi lá me pegar pra levar, porque ninguém queria entrar, todo mundo tinha medo. Aí eu fui lá pro hospital do Campo Limpo, cheguei lá o médico examinou, falou: “Vai ser cesárea”, porque não tinha dilatação pra poder ser parto normal. Eu fiquei lá uns, meu filho era o pai do berçário, pra você ter ideia. Sabe quantos dias eu fiquei no hospital? Geralmente as pessoas não ficam três dias, quatro dias? Eu fiquei 24 dias no hospital porque o médico falou: “Você só vai sair daqui quando você fizer a tomografia”. No hospital que eu ganhei ele não fazia tomografia, então ficou esperando pra sair do hospital do Campo Limpo e ir no hospital do Jabaquara pra fazer essa tomografia. Também ele teve icterícia e ele ficou na incubadora também. Saímos depois de 24 dias. Foi bom porque, como foi cesárea e eu não tive ninguém pra me ajudar em casa, aí foi bom porque eu pude fazer tudo sozinha. Porque sendo cesárea, tem problema, dificuldade para andar, já é difícil você não ter ninguém pra te ajudar e ainda mais com as duas coisas, com o problema da deficiência e a cesárea, aí eu fui me virando sozinha, fazendo as coisas sozinha. O difícil foi que não tinha tanque, não tinha pia. Aí tinha um tanque lá que era pra por, eu falei: “Eu não quero nem saber como vocês vão por esse tanque, essa pia aí, mas vão colocar”, e colocaram. Mas naquela época não tinha fralda descartável, que hoje em dia é uma mão na roda, era fralda de pano, viu? (risos). Era muito difícil porque tinha que lavar as fraldas de pano e pôr no varal. Eu falava: “Meu Deus, como o povo faz isso? É muito nojento!”, morria de nojo de lavar as fraldas. Aí uma mulher veio em casa e falou: “Eu vou te ensinar como faz”, porque eu não queria lavar as fraldas, tinha nojo pra lavar (risos). Ela me ensinou: “Não, você faz assim, põe debaixo da água com a torneira ligada, vai esfregando”. Eu falo: “Olha, hoje em dia as mulheres são privilegiadas, vai ali e compra fralda descartável” (risos), porque nessa época não era não, era tudo de pano, tinha que se virar e lavar as fraldas pra colocar na criança. Mas foi tão bom que com dez meses ele andou, corria de um lado pro outro dentro de casa. Não me deu trabalho que os outros falam que o filho deu. Não deu trabalho, andou logo, falou logo. Eu falo assim, o nome do meu filho significa presente de Deus e eu falo que ele é realmente um presente de Deus, porque ele tem 22 anos, ele foi criado dentro de uma favela e, graças a Deus, ele nunca se envolveu com coisa errada. Eu falo que não sei se o nome tem a ver, mas faz jus ao significado do nome dele, nunca me deu trabalho nenhum.
P/1 – Cris, como foi ser mãe? Como você se sentiu, o que mudou na sua vida?
R – Ah, o que mudou na minha vida? Tem gente que fala assim: “Graças a Deus que eu não tenho filho”, eu falo assim: “Coitada de você, porque eu falo graças a Deus que eu tenho o meu filho”. É outra coisa, é uma pessoa que depende de você. E eu falo assim, às vezes eu falo pra ele: “Eu vou embora, vou te abandonar” (risos), mas é só da boca pra fora. Às vezes a gente vê as mães que abandonam as crianças, maltratam, eu falo: “Eu não sei como consegue”, quando eu vejo alguém maltratando uma criança eu fico revoltada, aquilo dói em mim. A criança não é nem nada minha, mas dói em mim. O pai dele falava assim: “Eu nunca fiz nada perfeito na vida, mas pelo menos eu vou te falar, o filho eu fiz” (risos) “O filho eu fiz perfeito”. Foi muito bom. Eu sempre quis, antes do meu filho eu já tinha ficado grávida três vezes e eu perdia. E antes de eu ficar grávida dele eu tomei um remédio que seria pra não perder, aí eu fiquei grávida dele, ele nasceu de nove meses. Foi uma gravidez muito sossegada porque pressão alta, infecção urinária, mas graças a Deus, mesmo com esses problemas, ele não tendo tomado aquela vacina que, às vezes a gente é um pouco leiga e às vezes as pessoas não informam a gente. Eu precisava ter tomado uma vacina pro meu filho não nascer com nenhuma deficiência. Por quê? No caso da minha mãe, ela teve sete filhos e desses sete só ficaram vivos quatro porque o sangue dela era negativo e o sangue do pai era positivo, então o que acontecia? Os filhos nasciam com problema de saúde, eles vinham a falecer ou já nasciam com algum problema de saúde por causa do sangue. Dele eu não tomei e graças a Deus ele não tem nada, ele é perfeito.
P/1 – E Cris, por quanto tempo você viveu com esse marido que é o pai do seu filho?
R – Nós ficamos quatro anos juntos. Quando ele tinha uns dois anos e meio a gente separou. Hoje ele está no terceiro relacionamento (risos). Depois dele eu tive um casamento e aí eu fiquei viúva, mas assim a gente não tem contato porque o meu filho mora comigo e ele mora aqui na zona Sul, eu moro lá na zona Norte. Mas a avó dele, eu sempre falo pra ele: “Você não quer ir ver seu pai você não precisa, mas a sua avó é a sua segunda mãe”. Porque quando eu não pude ficar com ele quem ficou foi ela. Teve uma fase de 94, mais ou menos, até 2006 que ele não pôde morar comigo. Ele vinha pra ficar comigo nas férias no meio do ano, nas férias no final do ano. Ele só podia vir, ficar uns dias e ir embora, eu não podia ficar com ele direto, morando comigo. Porque uma parte eu morei com a minha irmã e quando eu morei com minha irmã ele morava comigo, mas aí eu fui morar com a minha mãe, meu padrasto, todo mundo junto na mesma casa, aí eu não pude ficar com ele. Depois eu fui pra casa da minha mãe, fiquei na minha mãe mais um tempo. Saí da casa da minha mãe em 2001 e fui pra casa da minha irmã e fiquei até 2006, quando eu me casei novamente. Quando eu me casei que eu fui lá e busquei ele pra morar comigo. Porque ele morava com a avó dele aqui no Real Parque. Eu fui lá, liguei pra ela, falei que eu ia buscar ele e ela deixou a gente pegar ele lá.
P/1 – E como foi esse seu segundo casamento, Cris? Como você conheceu seu segundo marido?
R – Nós nos conhecemos no Atende. Que fora a fisioterapia que eles fazem durante a semana, no final de semana nós temos umas reuniões do Conselho da Pessoa com Deficiência. Aí o Atende veio na minha porta me pegar pra ir numa reunião dessa, era um encontro paulistano e ele estava na van. Ainda eu olhei e falei assim: “Nossa, que deficiente metidinho” (risos). Sempre ele e a mesma senhora que iam em casa me pegar. Isso foi mais ou menos em junho, em julho a gente começou a namorar. Minha mãe falou: “É, não aceito esse namoro”. Minha sogra falava que aceitava, mas também não aceitava (risos). Porque é muito difícil pros pais de pessoas com deficiência, familiares, aceitarem que a pessoa tenha um relacionamento com uma pessoa sem deficiência, imagine duas pessoas deficientes. Nós começamos a namorar. Minha mãe falou: “Não aceito”. Eu falei: “O que a gente vai fazer pra namorar?”. No dia que a gente ia pra reunião, em vez de eu voltar pra minha casa eu ia pra casa da mãe dele. Aí ficava lá no final de semana e depois eles me traziam até em casa. Essas idas e vindas duraram uns nove meses, mais ou menos, com oito meses de namoro, mais ou menos; fomos no cartório, colocamos os papéis pra correr e casamos no civil e na igreja. No civil casamos no dia 20 de maio e na igreja casamos no dia 27 de maio.
P/1 – Como foi o casamento na igreja? Conta um pouco.
R – Ah, foi assim, eu falo... a gente tinha uma coisa muito boa. Se eu falasse: “Nós vamos casar, mas não vou morar na casa da sua mãe, nem na casa da minha. Nós não vamos morar na casa de família. Vamos procurar uma casa pra alugar e vamos morar lá” “Ah tá bom, vamos casar” “Ah, mas como vocês vão casar? Vocês não têm nada” “Não tem problema”. Um deu o fogão, um deu o microondas, um deu o armário, outro deu cama, outro deu a mesa (risos), cada um deu alguma coisa. E ele tinha guarda-roupa, eu tinha cômoda, a gente já tinha algumas coisas. Então montamos a casa, aí: “Vamos fazer a festa? Vamos casar na igreja?” “Vamos”. Minha cunhada falou: “Eu faço o vestido e faço o bolo”. Aí o outro falou: “Ah, eu faço o doce”; outro: “Ah, eu dou o refrigerante”, outro: “Ah, eu dou a batata”, cada um falou que dava uma coisa. Nós ganhamos tudo, eu ganhei o cabelo, maquiagem, unha, vestido, tudo, nós ganhamos tudo pra festa de casamento. Na nossa festa, só da parte dele, ele mandou 200 convites! Duzentos convites de casamento. O meu não tinha muito, se eu mandei uns 20 foi muito, ele mandou 200. Aí as irmãs dele e a minha sogra sempre têm medo que faltem as coisas, fizeram três bolos. Pra você ter uma ideia sobraram dois bolos de casamento (risos). Tanto que um irmão dele falou: “Ê irmão, você casou e seu bolo era de isopor? Por que o bolo continua lá na mesa?” (risos). Ele falou: “Não, é porque a gente fez muito bolo, foi partindo o que estava lá dentro e o que estava na mesa continuou lá com os noivinhos”. Mas foi assim, era um sonho meu e era um sonho dele. Ele sempre teve um sonho de ter uma casa, de ter uma família, de casar. Porque eu tinha 35 quando a gente começou a namorar e ele tinha 50, ia fazer 51 anos. Então, você com uma idade dessa você nunca ter namorado ninguém, né? É uma coisa difícil de achar. Uma pessoa com 50 anos que nunca namorou? Eu falei pra ele: “Como foi que você se interessou por mim, se apaixonou?”. Ele falou: “Ah, na hora que você pegou meus óculos e limpou a lente dele. Nunca ninguém fez isso”. Ele estava de terno, gravata, todo arrumadinho, bonitinho e o óculos estava todo embaçado assim. Eu falo: “Gente, desse jeito a pessoa não está enxergando nada com óculos sujo desses”. Eu peguei e limpei. Ele foi lá na minha casa, me pediu em namoro. Minha mãe fez de conta que aceitou (risos), aí quando ele foi embora ela falou: “Não aceito esse namoro”. Mas aí a gente bateu o pé, eu bati o pé com a minha mãe e ele bateu o pé com a mãe dele e a gente levou em frente. Se era uma coisa que os dois queriam. Eu falo, às vezes a família da pessoa não aceita duas pessoas com deficiência namorarem, casarem. E no meio que a gente frequenta tem muitos deficientes físicos casados, deficiente físico com intelectual, pessoas com deficiência e sem deficiência casadas. Então eu falo que todas essas coisas estão dentro da cabeça da pessoa. O preconceito está dentro do ser humano. Porque não é porque você tem uma limitação e você está numa cadeira de rodas que você não tem direito de ir, vir, de se relacionar, de ter um relacionamento, de ter uma vida. Porque lá na escola que eu estudo mesmo é assim, tem pessoas com deficiência e são casadas, têm filhos.
P/1 – O seu marido tinha cadeira de rodas também, Cris?
R – Tinha. Ele teve paralisia infantil com um ano e meio. Na época que ele era bebê não tinha a vacina, a mãe dele levou ele no médico e o médico falou que não era nada. Depois foi em outro e o médico falou: “Olha mãezinha, eu sinto muito, mas o seu filho não vai andar mais. A paralisia dele foi muito forte”. Tanto que as pernas ficaram bem fininhas, não evoluíram. Daqui pra cima era normal, mas daqui pra baixo não evoluiu, mas a família dele, o pai dele, a mãe dele sempre levaram ele pra fazer cirurgia, fisioterapia. Ele andava com aparelho, ele andou bastante tempo com aparelho. Mas como ele andava com dificuldade, pra você andar com aparelho na rua é muito difícil porque as pessoas já não respeitam muito quem está de cadeira de rodas, imagine uma pessoa com duas muletas. Então ele achou melhor andar de cadeira do que com a muleta na rua pra ter um pouco mais de... de não acontecer nada, de ter uma segurança maior, né?
P/1 – E quantos anos vocês ficaram casados, Cris?
R – Infelizmente, no mesmo mês que ele faleceu ia fazer um ano que a gente estava casado. Ia fazer um ano de casado e dois meses depois ia fazer dois anos que a gente estava junto. Mas, infelizmente, doença é uma coisa que a gente, uma hora a pessoa está boa, amanhã a pessoa já não está. E as pessoas falam: “Ah, tem gente que nem fala câncer, tem medo até de falar essa palavra”. Eu falo, é uma doença feia, mas é uma doença que às vezes tem cura e às vezes não. Minha sogra vai fazer 84 anos agora, nesse mês. Ela já enterrou dois filhos com câncer e um filho assassinado. E ela já teve câncer, vai fazer nove anos que ela teve câncer. E ela está aí. Então dependendo do tipo tem jeito, e se está no comecinho e às vezes não tem. Meu pai também faleceu de câncer. Porque é uma doença que é agressiva demais, né?
P/1 – Cris, você tinha começado a contar pra gente lá atrás como foi o momento que você decidiu que você ia aceitar a questão da doença e ir atrás dos seus direitos, de ter uma vida, de fazer outras coisas. Conta um pouco pra mim como foi esse momento e quais são as atividades que você passou a fazer, como você organizou sua vida.
R – Eu morava com a minha mãe lá no Fontalis, que a minha mãe mora no Fontalis hoje em dia. E eu fui morar com a minha irmã na parte de cima, mais ou menos como se fosse uns três andares. Pra você ir pra rua era muito difícil. Então minha tia me convidou pra ir pra casa dela, ela mora na zona Leste. Arrumamos um carro, eu fui pra casa dela e fiquei uns dias lá, fiquei acho que um mês na casa da minha tia. E com a minha tia a gente ia pra rua, minha tia tem aqueles carrinhos de vender churros, aqueles negócios e eu ia pra rua vender com eles. A gente ia pra igreja, ia pra um lugar, ia pra outro. Eu falo assim, se você não pode resolver aquilo você tem que tentar. Até tem uma menina que eu me lembro que eu encontrei onde a minha tia mora, quando eu andava ela já era cadeirante, eu empurrava a cadeira dela pra ela passear por lá. E hoje em dia ela tem uma cadeira motorizada e vai pra todo lugar sozinha. Quando você tem uma cadeira motorizada você tem mais possibilidade de ir pros lugares sozinha, você não fica dependendo tanto dos outros, porque quando você mora em um lugar que tem ladeira, calçada esburacada, uma cadeira normal você cai fácil fácil. E com a cadeira motorizada não porque já tem um peso atrás, aquela bateria que carrega já impede a pessoa de cair com tanta facilidade. Aí eu fui lá pra casa da minha tia, resolvi ir pra igreja com ela, que ela vai na igreja. E aí eu me converti na igreja dela. Depois disso que eu parei com essa ideia que se eu tomasse o comprimido eu morria, se eu me jogasse ia resolver. Eu comecei ir na igreja lá no Fontalis.
P/1 – Como foi a conversão? Como foi esse momento de conversão?
R – Dois dias que eu fui na igreja era dia de batismo. Então você escuta a palavra e você escuta falando o seu nome. Você fala: “Está falando comigo”. E teve uma palavra que estava falando lá de Maria, eu falei: “Está falando de mim” (risos). Na primeira vez que eu fui eu não quis me batizar, na segunda vez eu fui, aí eu ouvi falando de Maria, tudo aquilo, eu falei: “Eu vou me batizar”. Eu fui lá atrás. Estava um frio, um frio, era mês de abril. Era dia seis de abril de 2003. Estava muito frio, estava um frio assim, enorme. Aí troquei de roupa, coloquei um macacão. E eu estava lá roxa, tremendo, que estava um frio. E aquele monte de gente, eu falava: “Meu Deus do céu, não vão me chamar nunca”. E alguém falou pra mim assim: “Pessoa nem vai ver a sua cara que você vai se batizar. Vão tacar você dentro de um lençol e vão te jogar lá dentro do tanque de água”. Engano. Todo mundo ia assim. Me colocaram numa cadeira sentada e colocaram eu do lado da água. Eu falei: “Tá vendo? Todo mundo falou que iam me jogar dentro do lençol, ninguém ia ver nada”. E foi assim, foi muito bom. Porque às vezes a gente fica dentro de casa, a gente fica pensando um monte de besteira, um monte de porcaria. Você fica pensando assim: “Ah, ninguém me ama, ninguém me quer, se eu morrer ninguém vai ligar”. Então aí eu peguei e comecei ir lá perto de casa. Saí da casa da minha tia e fui pra minha casa lá no Fontalis. Tinha uma Congregação lá, que eu comecei a ir na Congregação Cristã no Brasil. E tinha uns irmãos de lá e eles vinham me pegar uma vez na semana. O meu irmão me ajudava a descer as escadas no colo porque é muita escada pra poder descer. Lá é tudo ladeira, onde a minha mãe mora. Tanto que a minha mãe mora no Fontalis, eu moro no Jardim Brasil, nós moramos em lugares diferentes porque onde eu moro é tudo plano e onde minha mãe mora é tudo ladeira, tudo subida, descida. E aí eu comecei ir no Fontalis, fiquei indo de 2003 até quase 2006, mais ou menos. Depois que eu comecei a namorar teve um dia que meu padrasto chegou bêbado, brigou com o marido da mulher que me levavam, aí eles não quiseram mais me levar. Eu comecei a namorar e depois que eu casei eu fui morar lá no Jardim Brasil e comecei na Adorai a Cristo lá, foi a igreja que eu me casei, que também era mais perto do que na Congregação. E a Congregação não ia aceitar eu casar com uma pessoa que não era da igreja, só ia aceitar se eu casasse com uma pessoa da mesma igreja. E depois que nós nos casamos ele começou a ir comigo na Adorai a Cristo.
P/1 – E fora a igreja, tem outras atividades que você passou a fazer? Você mencionou que chegou a ir em congressos, seminários. Estava ligada a alguma instituição ou à igreja?
R – Eu vou nas reuniões do Conselho da Pessoa com Deficiência. Quando tem alguma conferência de saúde eu vou. Quando tem alguma conferência de assistente social que eu fui pra Brasília na reunião de assistência. Eu fui pra Águas de Lindóia na Conferência de Assistência e eu fui pra Atibaia na Conferência de Assistência. Por quê? O meu sonho é fazer uma faculdade de Assistente Social. Porque quando você está nesse meio, você sabe o que as pessoas precisam, no que você pode ajudar ela. Então eu falo assim, se eu fizer uma faculdade eu vou saber muito bem quais são os direitos dela e eu vou saber no que eu posso ajudar. Porque, às vezes, eu procuro uma assistente social, ela não sabe o que ela vai fazer. Eu cheguei num assistente social do Cras, falei pra ele: “Eu preciso de uma declaração. Como eu recebo o benefício e o dinheiro que eu ganho não dá para eu pagar um aluguel, eu preciso de uma casa da CDHU, da Secretaria da Habitação”. Ele falou pra mim: “Eu não sei como faz isso”. Então eu quero fazer uma coisa que eu possa ajudar as pessoas porque eu sei o que tem que fazer, o que precisa fazer. Então a minha vontade maior, porque eu fui pra Brasília em 2011, fui pra Lindoia em 2011. Pra Atibaia eu fui no ano passado.
P/1 – E o que eram essas conferências, esses congressos? Qual era o tema?
R – Então, nesses congressos que eu vou, nós estamos tentando resolver a questão do INSS. Por exemplo, nós conhecemos pessoas que quatro pessoas na família são deficientes de cadeira de rodas, só um recebe o benefício, não pode receber dois ou mais. E uma família com quatro pessoas com deficiência dentro de casa, como ela vai trabalhar e essas pessoas vão ficar dentro de casa sozinhas? Não tem condições. Muitas mães que têm filhos com deficiência não trabalham, por quê? Quem que vai cuidar deles o tempo inteiro? Vai levar ele no médico, vai levar ele na escola, vai fazer uma coisa ou outra? Então, a briga é essa. Quando o meu esposo faleceu, ele recebia Loas, que é o BCP e eu também recebo. Quando ele faleceu, eu não tive direito do dele, eu só tenho o meu. Eu pago um aluguel e eu tenho que sobreviver com esse um. Então, a nossa briga é para que aconteça. A gente tenta diminuir a idade do idoso nessas conferências, aí eles aumentam e a gente tenta diminuir e eles aumentam, fica nessa briga o tempo todo, essa é uma das brigas. E a outra é aquela que eu te falei, de quando a pessoa trabalha perder o benefício e conseguir o benefício de volta. E nessas reuniões também fala sobre... tem mulheres que sofrem agressão dentro de casa, então o Cras e o Crea tratam de quê? De pessoas que estão nessa situação, então, eles ajudam a receber uma bolsa família, uma coisa ou outra, uma escola pras crianças, uma cesta básica pra quem precisa. Essas reuniões a gente trata sobre esses assuntos, de ajudar essas pessoas que estão mais necessitadas. É uma coisa que eu quero fazer e é uma coisa que eu gosto, por isso que eu gosto sempre de falar; tem algumas reuniões que eu não ligo muito não, mas se fala que tem uma reunião da saúde ou tem uma reunião da assistência eu faço questão de ir porque quando você vai numa reunião dessas, pra eles está tudo bem. Eles falam: “Ah, você vai hoje, marca consulta, no mês que vem você passa”. E não é assim. Você vai marcar uma consulta hoje, você vai passar daqui três, quatro meses. A gente fala: “Não está funcionando do jeito que vocês estão falando. Vocês estão falando que está funcionando assim e não está”. Então, nós vamos sempre nesses lugares para estar rebatendo, resolvendo, achando um jeito de resolver essas questões que para eles estão resolvidas e para nós não está.
P/1 – Cris, qual é essa associação que você faz parte, que você conversou comigo lá fora na hora que a gente estava vendo as fotos?
R – É a Acef, Associação Comunitária Esperança do Futuro. A presidente da associação é a dona Alcione Maria Lourenço e eu sou a secretária dela.
P/1 – E como você começou a fazer parte da Acef?
R – Meu esposo era um dos integrantes da Acef. Conforme ele faleceu eu fiquei no lugar dele. Eu falo pra ela assim: “Vai ter a Feira do Japão, vai ser tal dia”, aí ela vai atrás de ver o carro, de conseguir a permissão pra gente entrar lá sem pagar, se for paga. Eu falei pra ela: “Vai ter a Bienal do Livro, vamos agendar o carro”, agendou o carro, fomos. Todo ano a gente vai na Reatech; esse ano eu não fui porque eu fui pra uma conferência de saúde, mas todo ano eu vou. A gente agiliza o carro pra levar essas pessoas nesses eventos, porque tem pessoas que não saem de casa pra lugar nenhum e através desses passeios a pessoa tem oportunidade de sair, de conhecer outras pessoas, porque tem pessoa que não vai pra lugar nenhum, tem gente que só fica dentro de casa ali trancado e não tem como ir. Porque às vezes a pessoa não consegue empurrar a cadeira sozinha e não tem ninguém que vai com ela na rua, então, esses passeios são trabalhos inclusivos de autoestima. Ela fala que é um trabalho de autoestima, muitas pessoas que tinham problemas mais severos, tanto intelectual, melhoraram depois que começaram a sair de casa. O nervosismo, aquela pessoa que a pessoa tinha melhorou quando a pessoa começou a sair. Eu falo assim, às vezes a gente dá oportunidade para as pessoas saírem. E alguma pessoa que estiver interessada, a pessoa pode entrar em contato com o Conselho da Pessoa com Deficiência que fica na Rua Libero Badaró, a pessoa liga lá, pega o contato e se a pessoa quer ver, tentar resolver um negócio de trabalho, como conseguir um benefício, todas essas coisas, ela liga lá e eles tentam ajudar a pessoa. Ou mesmo algumas pessoas às vezes vão atrás da dona Alcione pra tentar pegar alguma informação sobre essas coisas. Que nem as pessoas falam pra mim: “Mas a cadeira de rodas é muito cara!”. Eu falo: “Mas você vai no médico, pede um pedido, leva no posto, entrega pra assistente social e o SUS vai pagar essa cadeira de rodas pra você”. Porque se não for pelo SUS, se você for por alguma organização como a AACD, ou mesmo o Lar Escola São Francisco, você vai pagar muito caro. Ou se você for esperar uma doação você vai ficar esperando três, quatro, cinco anos pra conseguir. E através disso, com três meses você consegue. Três meses você consegue sua cadeira. Eu falo: “Às vezes a gente tenta ajudar as pessoas dando a informação”. Um menino foi na minha casa, bateu: “A senhora poderia ajudar com um dinheirinho? Nós estamos tentando comprar a cadeira pro menino tem uns três anos”. Fui lá dentro de casa, peguei o endereço, dei para ele o endereço e telefone do lugar pra mãe do menino ir lá. Naquilo que a gente pode ajudar. Agora ela não está fazendo isso, mas ela ia no Banco de Alimentos e trazia o alimento pra casa e aí a gente separava, elas separavam esse alimento e ligava pras pessoas e as pessoas iam na casa dela pegar. Porque aqueles alimentos, que nem no sacolão, nesses negócios assim, empresa, eles doam esses alimentos pra você doar pras pessoas que precisam. Então ela pegava lá e fazia essa distribuição. Agora ela não está fazendo porque ela está sem ninguém pra ajudar ela. Eu falo pra ela que ela tem que esperar um pouquinho, ter um pouco de paciência, porque eu estou tentando uma cadeira motorizada porque a casa dela não é muito perto da minha, eu falo pra ela: “Tenha um pouco de paciência”. Agora esse mês eu vou pegar outro pedido pra tentar uma cadeira motorizada pra poder ter uma locomoção melhor, poder ir na casa dela e agilizar as coisas. Porque na casa dela ela tem computador, mas ela é deficiente visual, entendeu? E nem tudo ela consegue fazer no computador, porque ela estava fazendo um curso, nem sei se ela conseguiu terminar, que era na Vila Mariana esse curso que ela estava fazendo pra pessoas com deficiência visual e tem umas pessoas que faziam lá com ela, que eles são cegos e surdos, então eles têm um programa lá pras pessoas aprenderem a mexer no computador. Aí ela faz esse trabalho com o pessoal.
P/1 – E Cris, quando você resolveu voltar a estudar? Conta um pouco como você conheceu o Cieja, como foi esse retorno?
R – Então, em 2008 ou 2009 eu me inscrevi no Inep, que você se inscreve, vai lá e faz a prova pra você terminar, eliminação de matéria que eles chamam. Só que o que aconteceu? Eles me mandaram pra Ponte do Limão, é longe, eu fui e não sabia que era assim, você tinha que ir de manhã cedo, de manhã você fazia prova de uma matéria e de tarde você fazia outra e eu fui à tarde. Aí eu fiz uma matéria e a de manhã eu perdi. No outro dia eu tentei chegar de manhã cedo pra fazer as duas provas, o que aconteceu? Não passava nenhum ônibus adaptado e os que passavam não tinha como entrar cadeira. E o homem falou: “Eu não vou levar você”. Aí eu consegui com muito custo, depois de muitas horas, eu consegui um adaptado, cheguei até o lugar, aí o rapaz falou: “Agora o portão está fechado, você tem que esperar terminar a primeira prova no segundo horário que eles abrem o portão”. As que eu fiz eu passei, só que ficou faltando outras matérias. O que eles fizeram? Agora não tinha mais essas provas, eles fizeram a prova do Enem, então você tinha que se matricular no Enem pra fazer a prova e tentar eliminar. Só que a primeira vez que eu me inscrevi, eu moro no Jardim Brasil, zona Norte, lá pelo lado do Jaçanã e eles me mandaram pro final da Avenida Santo Amaro, no finzão lá. Eu saí de casa cedo, só que nesse dia, que era o dia da prova do Enem tinha Fórmula 1, tinha o Teleton, tinha um monte de coisa e o trânsito estava uma loucura. Tentei chegar, quando deu uma hora eu falei: “Gente, não dá mais”, o portão ia fechar era uma hora. Se estivesse lá dentro entrava, se estivesse lá fora não tinha jeito. Eu voltei a primeira vez, não deu certo por causa disso. Aí me inscrevi depois de novo, um ano eu não consegui me inscrever, aí me inscrevi no outro ano e fui. Fiz a prova, fiz tudo direitinho, esqueci de passar a redação pra folha, deixei na prova de rascunho. Aí, não passei por causa disso. No ano passado eu tentei me inscrever, mas eu pedi pra minha mãe me inscrever porque eu ia fazer uma cirurgia e ela não fez a inscrição. Porque eu me inscrevi numa escola no Belém pra fazer o Cieja lá, pra fazer a eliminação de matérias. Só que não era como antes, antes a eliminação de matéria você se inscreveu, vai lá, faz a prova num dia, de umas matérias, vai no outro e faz a outra. Lá não, você tem que ir matéria por matéria, fazer trabalho, fazer um monte de coisa. Pra mim não dá porque do Belém pra minha casa é quase uma hora e você tem que atravessar uma avenida muito perigosa, muito carro, tudo. Eu falei: “Não vai adiantar eu me inscrever lá porque eu não vou conseguir atravessar essa avenida”. Eu liguei na Secretaria da Educação e eles falaram pra mim: “Olha, da Vila Sabrina tem o Cieja que você pode se inscrever lá”. Eu fui na escola, perguntei se estava fazendo a matrícula. Falou que estava e como eu já tinha pegado o histórico pra outra do Belém que eu não fui, aí eu tinha guardado, ainda bem que eu não entreguei lá pra eles (risos). Eu levei lá, levei os documentos, eles falaram: “Olha, você não deixa as coisas agora porque nós temos que confirmar com o tio da van pra ver se ele vai poder pegar você porque o carro dele já está lotado”. Eu falei: “Mas não tem problema, se não tem lugar pra colocar a cadeira fixa vocês podem fechar minha cadeira e eu sento no banco”. Eu comecei ir, mas assim, como tinha muita cadeira eu sento no banco, eles fecham a minha cadeira e põem do lado e eu vou, porque não tinha lugar porque ele já leva mais, na época ele já levava mais três cadeiras, agora ele leva mais três, são seis cadeiras de rodas.
P/1 – Cris, desde quando você está frequentando o Cieja?
R – Eu comecei a frequentar no mês de junho.
P/1 – Agora?
R – Isso. Eu falei pra professora: “Vocês me perdoem”, porque eu caí de cabeça dentro da escola, faz praticamente 24 anos que eu parei de estudar e entrei na semana de prova. Eu: “Mas não, gente, eu não posso fazer prova, eu não tenho nenhuma matéria no caderno” “Não, você tem que fazer essa prova pra gente avaliar qual é a série que você está mesmo”. Eu falei: “Mas eu já deixei o histórico ali pra dizer a série que eu estou” “Não, você tem que fazer a prova”. Aí eu tirei, Matemática que é a minha pior eu tirei P. Os outros falam: “Mas que P é esse?” “Plenamente satisfatório”. Tirei P e S, não tirei nenhuma nota ruim mesmo tendo ficado tantos anos sem estudar. Eu falo, então é uma coisa de louco porque a gente tem trabalho extraclasse, nós apresentamos Kiriku. Apresentamos, tivemos que cantar, dançar e ainda eu que li o texto no microfone (risos). Os outros falam: “Você está gostando?”, eu falo: “É bom porque você sai de casa, você conhece outras pessoas, você está aprendendo mais”. Porque assim, quando você convive com outras pessoas, elas te ensinam e você ensina a elas. Então é uma troca. Eu estou gostando muito, é uma coisa que eu falo: “Gente, se eu soubesse no outro ano em vez de eu ter me inscrito no Belém eu tinha me inscrito aqui, nesse ano já terminava já”. Mas eu vou continuar, eu vou terminar. Tem uma senhorinha na minha sala, tem 81 anos! Eu acho que vai da vontade da pessoa, não tem esse negócio de idade, de limite de idade pra estudar se a pessoa tem vontade de estudar, né?
P/1 – E, Cris, você está achando o Cieja diferente da lembrança que você tinha da escola? Como é que é, as pessoas que frequentam, as aulas?
R – Então, como na nossa sala tem pessoas mais jovens, mais velhas, pessoas com deficiência, então o professor tenta fazer o quê? Pra cada um com a sua limitação ele tenta fazer aquilo que a pessoa consegue fazer, ele não vai esforçar a pessoa pra fazer uma coisa que ela não tem... eu falo pra professora que ela pega pesado comigo, a professora de Matemática. Sabe o que ela falou: “Eu não tenho peninha de ninguém” (risos), eu falei: “Mas eu não quero que você tenha peninha, eu quero que você pegue leve, que seja igual pra todo mundo”. Ela falou: “Não, você já é uma pessoa experiente, já participou de concurso público”. Eu falei: “Não consegui participar de concurso público nenhum, eu fiz a prova do Enem mal e mal” “Nãoooo, você consegue” “Eu não consigo!” “Consegue sim!”. Os professores são muito bons, que nem a professora, uma das que estão aí é a de Informática, e antes eu nunca tinha tido aula de Informática. Tem hora que a professora passa uma lição lá no computador e eu falo pra ela: “Eu não vou conseguir, professor, eu sou analfabética de informática!”, ela: “Não, você consegue”. E eu estou gostando bastante. E eu faço fisioterapia também, desde 2007 eu comecei a fazer fisioterapia. Comecei em 2006, depois que eu me casei, no posto de saúde perto de casa. Em 2007 eu fui pra faculdade pra fazer e eu estou na faculdade desde 2008, aqui na zona Sul. Os outros falam: “Por que você não faz a fisioterapia na faculdade perto da sua casa?”. Eu falei: “Porque dependendo da sua deficiência, se eles acharem que você não tem jeito, com seis meses, um ano eles te dão alta. E por que eu estou aqui tão longe? Porque eu estou desde 2008”. E uma pessoa que eu conheci lá, que foi que me deu o contato para eu estar tentando fazer lá, ele ficou mais de dez anos fazendo fisioterapia no mesmo lugar. Eu falei: “É pra lá que eu vou”. Por isso que eu estou aí na FMU fazendo fisioterapia.
P/1 – Tá bom, Cris. Eu vou encaminhar agora pras nossas perguntas finais, vou te fazer três perguntas, mas queria que você me dissesse antes se tem alguma coisa que a gente não tenha perguntado e que você gostaria de acrescentar, qualquer coisa.
R – Eu falo assim, que às vezes as pessoas com deficiência, tem pessoas que têm deficiência que às vezes querem ser vistas como coitadas, mas não são todas. A gente quer ser tratado com igualdade, quer ter o mesmo direito de trabalhar, de estudar, de ter uma vida normal que nem todo mundo. Por que quem é normal e quem não é? Não é verdade? Porque aparentemente todo mundo é normal, mas às vezes lá dentro não é (risos). Então o que a gente quer é isso, é ter esse direito de ter uma vida normal. Que às vezes a própria família da pessoa não aceita ela, tem vergonha dela, não deixa ela ter uma vida normal. É uma coisa que eu falo assim, a pessoa tem que conviver pra ver como as pessoas são de verdade, que às vezes as pessoas julgam muito a pessoa pelo lado de fora e hoje em dia, por mais que fale: “Não, nós estamos no século não sei o quê”, mas não é isso. Pessoas deficientes sofrem preconceito, pessoas de cor sofrem preconceito, tem pessoas que têm preconceito de pessoas nordestinas. O preconceito é de várias formas. As pessoas olham assim, têm pessoas que olham e falam: “Coitada”. Coitada o quê? Coitado é do rato que nasceu pelado lá no meio do mato. Porque assim, eu faço muitas coisas que muitas pessoas que não têm deficiência não fazem, então eu não me sinto diferente de ninguém, não me sinto coitada por causa da deficiência. Acho que é isso, acho que a maioria das pessoas deficientes, o que elas querem é isso, serem respeitadas mesmo sendo deficientes, porque às vezes elas não são respeitadas. É isso.
P/1 – Cris, você falou pra mim lá atrás que você canta no coral da igreja desde pequena, né? Queria saber se tem alguma canção, se você tem uma música, uma canção preferida, que tenha te marcado, que seja especial pra você?
R – Não lembro agora (risos). Eu ia até trazer o DVD e acabei não trazendo. Foi uma que cantou no meu casamento, muito bonita. Eu ia trazer no DVD e acabei não trazendo.
P/1 – Você se lembra qual era a canção? Você lembra de um trechinho?
R – Não lembro... mas tem uma canção que eu falo que é muito bonita porque eu acho que serve pra qualquer pessoa. Eu fui uma vez na feira da Reatech e eles sempre fazem apresentação de pessoas com deficiência, de teatro, dança, tem uma moça que dança a dança do ventre com uma perna só. E eles fizeram uma apresentação de um teatro com as pessoas com cadeira de rodas e eles colocaram as pessoas com correntes, faixa na boca e eles cantaram aquela música da Jamily. Acho que não teve quem não se emocionou e não se arrepiou porque foi uma coisa muito bonita.
P/1 – Qual é a música?
R – (cantando) “Acredite que nenhum de nós já nasceu com jeito pra super-herói. Nosso sonho a gente é quem constrói, é vencer os limites, escalando as fortalezas, conquistando o impossível pela fé. Campeão, vencedor, Deus dá asas, faz seu voo. Campeão, vencedor, esta fé que te faz imbatível e te faz um vencedor”. Esse louvor é muito bonito, é uma coisa que toca muito na pessoa porque fala que ninguém é super-herói, a gente tem que batalhar, lutar e conquistar aquilo que a gente quer realmente.
P/1 – Tá certo, vou te fazer a penúltima pergunta então: Quais são seus sonhos?
R – Meus sonhos são terminar meus estudos, conseguir uma casa que seja minha porque eu moro de aluguel e um novo amor (risos), que é o mais difícil, eu acho. Eu acho que a casa e o estudo é até mais fácil, eu acho que o amor é o mais difícil.
P/1 – E por fim, como é que foi contar a sua história?
R – Ah, foi bom (risos).
P/1 – Tá bom, Cris, muito obrigada, viu?
FINAL DA ENTREVISTA
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