Conte a Sua História - Vivências LGBTQIAPN+
Entrevista de Jacqueline Chanel
Entrevistada por Genivaldo Cavalcanti Filho e Bruna Oliveira
São Paulo, 25 de agosto de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PCSH_HV1410
Transcrita por Mônica Alves
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(00:21) P/1 - Boa tarde, Jacqueline. Tudo bom?
R - Boa tarde! Muito obrigada pelo convite e pela oportunidade de estar aqui.
(00:30) P/1 - A gente que agradece! Qual é o seu nome completo, o local e a sua data de nascimento?
R - Jacqueline Chanel, acho que só isso aí está bom. Mais conhecida como Jacque Chanel. Eu sou de Belém do Pará e nasci [no] dia 20/12/64.
(00:54) P/1 - Certo. O que você lembra, [quais] as primeiras lembranças que vêm na sua cabeça, da sua infância?
R - Da minha infância… As primeiras coisas, pai e mãe brigando comigo (risos) São as primeiras lembranças, brigando comigo por eu ser uma criança afeminada. E depois na escola, as outras crianças, principalmente os meninos, zoando comigo, me chamando de mariquinha, e eu não sabia porque aquilo acontecia, eu não sabia porque aquilo estava acontecendo. Eu não conseguia entender porque eu não era maliciosa, eu era uma criança que eu não tinha malícia, mas percebia que tinha algo diferente, algo estranho nessa história e assim eu fui tentando me entender.
Tenho algumas lembranças de cinco anos, quando eu era bem menor ainda, e tenho algumas lembranças de quando eu tinha sete anos, que eu comecei a estudar. Aquele início de escola foi muito marcado por essa questão dos meninos me chamarem de mariquinha e eu não entendia o porquê. E a maioria das crianças, mesmo naquela época, elas já tinham aquelas… Eu não sei nem como chamar, porque naquela época não podia se chamar uma relação, mas elas tinham aquelas ‘pegaçõezinhas’ de um ficar pegando no outro, ficar tentando experimentar o outro, menino com menina, menino com menino, mas eu...
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Entrevista de Jacqueline Chanel
Entrevistada por Genivaldo Cavalcanti Filho e Bruna Oliveira
São Paulo, 25 de agosto de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PCSH_HV1410
Transcrita por Mônica Alves
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(00:21) P/1 - Boa tarde, Jacqueline. Tudo bom?
R - Boa tarde! Muito obrigada pelo convite e pela oportunidade de estar aqui.
(00:30) P/1 - A gente que agradece! Qual é o seu nome completo, o local e a sua data de nascimento?
R - Jacqueline Chanel, acho que só isso aí está bom. Mais conhecida como Jacque Chanel. Eu sou de Belém do Pará e nasci [no] dia 20/12/64.
(00:54) P/1 - Certo. O que você lembra, [quais] as primeiras lembranças que vêm na sua cabeça, da sua infância?
R - Da minha infância… As primeiras coisas, pai e mãe brigando comigo (risos) São as primeiras lembranças, brigando comigo por eu ser uma criança afeminada. E depois na escola, as outras crianças, principalmente os meninos, zoando comigo, me chamando de mariquinha, e eu não sabia porque aquilo acontecia, eu não sabia porque aquilo estava acontecendo. Eu não conseguia entender porque eu não era maliciosa, eu era uma criança que eu não tinha malícia, mas percebia que tinha algo diferente, algo estranho nessa história e assim eu fui tentando me entender.
Tenho algumas lembranças de cinco anos, quando eu era bem menor ainda, e tenho algumas lembranças de quando eu tinha sete anos, que eu comecei a estudar. Aquele início de escola foi muito marcado por essa questão dos meninos me chamarem de mariquinha e eu não entendia o porquê. E a maioria das crianças, mesmo naquela época, elas já tinham aquelas… Eu não sei nem como chamar, porque naquela época não podia se chamar uma relação, mas elas tinham aquelas ‘pegaçõezinhas’ de um ficar pegando no outro, ficar tentando experimentar o outro, menino com menina, menino com menino, mas eu não tinha essa malícia, eu não queria aquilo para mim. E isso ficou muito marcado em mim.
Tinha algumas [vezes] que eu partia para cima dos moleques. Eu pegava guarda-chuva, alguma coisa que eu tivesse na mão e jogava pra cima deles, ou avisava meu pai, avisava minha mãe, aí lá ia o meu pai ou a minha mãe na escola brigar, chamar atenção. Eu me lembro disso da minha infância, da mais tenra infância.
(03:41) P/1 - E nessa época do que você gostava de brincar?
R - Não era exatamente de carrinho, mas também não era exatamente de boneca. Eu me lembro que a minha mãe tentava me preservar de todo jeito, tanto da companhia de menino, como da companhia de menina. Eu via as crianças brincarem da minha janela, tipo de bola, a maior parte - eram todos meninos, na época - e eu ficava na janela. Na janela eles vinham brincar comigo, puxar o meu peito, pegar no meu peito, zoar comigo de alguma forma, mas não passava disso, porque eu estava preso, a minha mãe não me queria ali. E ela deixava minha irmã ir brincar com eles, com bola, entendeu? Ela mesmo criava uma situação difícil para nós. Eu, que era o menino, ela não deixava eu ir brincar de bola; a minha irmã, que era menina, ela a deixava ir brincar de bola com os meninos.
Acabou que depois de algum tempo, ela teve mais um menino e ficou assim: a minha irmã lésbica, o meu irmão, o outro que nasceu depois, gay e eu trans, mas quem era descriminada dentro de casa era eu. Eu era a trans, naquela época nem se usava esse termo, né? Era como o pessoal usava na época, mariquinha, viadinho, sabe? Essas coisas assim, essas palavras eram o que nos definia, mas sem prática, sem nunca ter feito absolutamente nada.
Para mim, ao meu modo de ver, naquela época eu era uma criança afeminada e ponto, só isso! Não existia prática, não existia nem sequer um toque ou alguma coisa do tipo, a não ser brincadeiras, quando os meninos vinham, mas a intenção deles era zoar, não era sensualizar. Inclusive hoje, quando as pessoas dizem: ‘Ai, porque as crianças”... Quem tem todo esse pseudocuidado com as crianças de hoje, essa articulação toda em cima das crianças trans e que [diz] “não pode não sei o que com criança”... As crianças são muito mais espertas do que essas pessoas adultas que estão aí, falando bobagem, besteira, porque se as crianças do meu tempo já eram muito espertas, imagine as crianças de hoje, com acesso à internet, celular na mão; a gente não tinha nada dessas coisas naquela época e as crianças eram bem espertas.
Eu me lembro que tinha aqueles calendários de… Eu não me lembro exatamente do que, mas eu sei que existia um calendário de mulher pelada. Os menininhos da escola, daquela primeira turma, eles pegavam aquele calendário e esfregavam no pinto. O que é aquilo? Primeira turma, de sete anos, eles faziam isso. Você acha que aquelas crianças eram atrasadas em relação às crianças de hoje, [que] as crianças de hoje, tendo muito mais acesso, muito mais informação, não vão ser muito mais espertas do que aquelas crianças? Então não cabe toda essa sensação que é criada em torno das crianças, porque criança não é boba para viver o que essas pessoas querem impor para elas. Elas podem até viver porque o pai e a mãe tem esse poder de impor as coisas para essas crianças, mas a realidade não é exatamente essa, com certeza.
(08:14) P/2 - Eu queria te perguntar se você quer contar o nome da sua mãe e do seu pai e se você quer falar um pouco deles e como foi sua relação com eles?
R - O nome eu não quero falar, não…
(08:26) P/2 - Tudo bem.
R - Mas eu quero falar que foi uma infância muito difícil para mim. Eu acho que todas as crianças LGBT trazem essa história. Normalmente, as pessoas vivem uma infância muito difícil, uma infância muito atribulada, muito cheia de pressão. Eu tive tanta pressão na vida que foi muito difícil para eu me aceitar. Para você ter uma ideia, eu passei por três suicídios. A pressão é muito grande, você sente essa pressão e essa pressão vem da família, vem dos amigos, vem dos vizinhos. Todas aquelas pessoas, nessa época que você é criança, elas te julgam, te condenam e você às vezes não está sabendo de nada, absolutamente nada do porquê você está naquela situação.
Uma das lembranças mais fortes que eu tenho é da minha mãe me ameaçando de me colocar em um colégio interno. A frente dessa escola era muito grande, me lembro que tinha grades e uma mureta, e as crianças estavam todas sentadas por trás daquela grade; dava a impressão de que era um presídio de crianças. Ela ameaçou me colocar ali se eu continuasse sendo daquele jeito, quer dizer, sendo afeminada, sendo uma criança afeminada. Ela ameaçou me colocar naquele lugar e disse: “Se você continuar desse jeito eu vou te colocar aí”. E eu, desesperada, na porta daquele lugar, porque a impressão que eu tinha é que aquilo era um presídio de crianças, entendeu? Isso é muito forte para você, na sua mente, sabe? Não é muito forte, de repente, para você, um adulto que está olhando para aquela cena; o que estava fazendo aquela cena, como a minha mãe fez comigo, para ela não fosse, talvez, muito forte, mas para mim aquilo era desesperador. Eu não sabia porque que aquilo estava acontecendo comigo. Só depois é que eu consigo entender que era porque eu era uma criança afeminada, porque eu não tinha feito absolutamente nada, eu não tinha nem tentado passar a mão em alguém, porque eu não tinha essa malícia comigo.
Isso é muito difícil, é uma das coisas que eu me lembro com mais tristeza daquele período de infância, sabe? Aquilo é muito forte. E depois se torna uma rotina viver nessa condição, nessa situação; você já passa mais… “Não estou nem aí”.
Com treze anos, ela me entregou na porta da igreja, para o pastor terminar de me criar. Foi desesperador novamente passar por aquela situação, mas ao mesmo tempo foi como se fosse um presente, porque eu ganhei paz na minha vida. Fiquei no… O pastor me colocou no quarto lá na igreja e disse que não ia me levar para casa dele, porque não tinha nada a ver ele me levar para casa dele, mas que iria me dar um cantinho lá e ia cuidar de mim. E pronto, ali naquele lugar eu encontrei paz; encontrei Deus, encontrei paz.
Ali eu passei a viver, cuidar daquele espaço, tipo ser uma zeladora daquele espaço e ao mesmo tempo participar também das atividades, como os cultos, as reuniões de jovens, as reuniões… Todas as reuniões que tinham na igreja eu participava. Participava… E também estudava. Eu saía para fazer um horário de estudo, voltava e participava das atividades o tempo todo, todos os dias.
E assim foi passando o tempo, até chegar os meus vinte anos, que foi quando o meu pastor foi assassinado. Essa igreja era bem localizada, mas ficava na esquina de uma comunidade, então os traficantes daquele lugar sempre ameaçavam ele; eu não sei exatamente o porquê, mas sempre ameaçavam. E um belo dia o pegaram e o assassinaram.
A partir daquele momento eu digo: “Agora eu vou cuidar de mim. Eu não aguento mais ficar aqui nesse lugar, com as memórias que eu vou ter dele. E eu vou ter que fazer alguma coisa por mim, me entender, me encontrar, me aceitar”. Porque até então eu estava como se fosse em uma caixinha, estava dando um tempo ali para ver o que que ia acontecer. Aí aconteceu essa tragédia e eu disse: “Bem, eu vou aproveitar e vou sair, vou me afastar e vou me resolver”.
Foi o que aconteceu. Levei mais ou menos uns três anos para me aceitar, para resolver a minha vida e poder recomeçar tudo de novo. Nesse período eu pedi para eles, para o meu pai e para minha mãe, para voltar para casa; voltei, mas foram poucos dias. Eles não suportavam a ideia de que eu fosse uma pessoa assumida, de que todo mundo sabia quem eu era. Isso era muito forte para eles, tanto para um como para o outro. Eles aceitavam os meus irmãos, mas não me aceitavam; nunca me aceitaram, até hoje. É algo muito forte, é algo que chega a ser cruel na vida da gente, porque toda travesti, toda transexual, sempre, nessa faixa dos treze anos, a mãe não aguenta, o pai não aguenta, porque nós não conseguimos esconder quem nós somos. O gay, ele consegue esconder, ele consegue passar por um homem cis, assim como a lésbica também e outras variantes também às vezes conseguem se esconder, mas uma travesti, uma transexual não consegue se esconder, não consegue esconder quem ela é, qual é a essência dela, e se você não consegue se aceitar você não consegue viver, né?
Eu não posso nem falar muito dessa área, porque eu não consegui ficar dentro de um armário; um armário não foi feito para mim. Eu sou muito realista, sou muito verdadeira. Eu não conseguiria jamais me esconder atrás de um sistema hetero-cis-normativo, não tenho como me enquadrar em um conceito desse. Eu sempre estive muito exposta e infelizmente a minha família não me aceitou, mas eu não deixei de ser eu. Passei por muito sofrimento, por muitas dores, eu ainda vivo muitas dores.
Você sabe que a sociedade tem uma dívida com a gente, né? Porque nós somos o retrocesso dessa sociedade e por conta disso a gente tem muitas perdas. Eu perdi faculdade, perdi empregos bons; cheguei a perder o emprego de uma multinacional em Belém e não consegui mais trabalho justamente porque eu tinha essa referência, só tinha essa referência.
Depois eu venho para São Paulo, faço o concurso para antiga Telesp e eu sou dispensada. Eu consegui ser dispensada, mesmo sendo concursada, por conta justamente de eu ser travesti. O gerente usou de alto e bom tom para dizer isso na minha cara: “Você não está recebendo o seu aumento”. Primeiro eu comecei a reclamar por causa do meu aumento periódico, que todos os funcionários tinham direito, mas eu não tive esse direito. Aí eu comecei a questionar com um, com o outro, supervisor, chefe disso, chefe daquilo, até chegar no diretor. E aí o diretor disse: “Eu tirei o seu aumento periódico porque você é travesti, porque você denigre a imagem da minha empresa”. Aí eu disse para ele: “Mas você não prefere a competência da pessoa do que saber o que ela faz entre quatro paredes e prejudicá-la por conta disso?” Aí ele continuou afirmando a mesma coisa.
Eu disse: “Você sabe que lá embaixo…” A sala dele era no último andar de um prédio. “Você sabe que lá embaixo, à boca pequena, todas as pessoas falam que você tem vida dupla, que você é gay? Isso tira a tua competência? Não, né? Se bem que afeta a sua competência, porque para você ter melindres com uma travesti que chega na tua empresa e que não teve nenhuma reclamação… Se eu tivesse tido alguma reclamação, tudo bem, mas eu não tive nenhuma reclamação, então eu sou tão competente quanto você! Só que a minha condição lhe fere, não sei exatamente o porquê”.
Foram situações vividas por conta desse preconceito que existe contra uma travesti, contra uma transexual e que infelizmente ainda perduram, ainda hoje. Eu estou sem trabalhar, porque tem muitas pessoas que não dão trabalho para uma travesti. Eu sou cabeleireira, sou especializada com trabalho de alongamento, com trabalho de megahair e, ainda assim, estou desde o início da pandemia sem trabalhar. E como uma travesti sobrevive sem trabalho? Aliás, como uma pessoa, uma pessoa qualquer sobrevive sem trabalho, sem dignidade? Sem nenhuma dignidade, como se fosse um bicho, um cachorro?
Eu tenho medo, às vezes, de chegar ao nível de que eu tenha que ir para rua, tenha que ir morar na rua, porque não tem condição de você sobreviver sem um trabalho, sem dignidade.
(21:02) P/1 - Conte um pouco para gente como foi essa sua vinda para São Paulo. Foi logo depois que você passou alguns dias na casa dos seus pais? Você já tinha alguma ideia do que você iria fazer aqui ou você veio de improviso, “a gente vê no que vai dar depois”?
R - [Foi] bem assim, porque quando eu saí da igreja e voltei para a casa dos meus pais, logo eles me pediram para sair, mais uma vez, porque já tinham me entregue na porta da igreja, mas agora eles me pediram para sair de casa.
Eu fui morar fora de casa, em um quartinho alugado. E por conta de eu não ter trabalho também, já naquela época, por conta de ser travesti, por conta de ser transexual, então eu me joguei na prostituição. Foi a única forma de sobreviver, não tinha outra, não tinha outra forma digna. Muito embora eu já estivesse na faculdade… Cheguei a fazer até o terceiro ano completo, faltou um ano só para terminar, mas devido a ter saído da empresa não tinha mais como pagar, porque era uma faculdade particular, então eu tive que me jogar na prostituição para sobreviver.
Como eu perdi a faculdade, perdi o trabalho, perdi o marido que eu tinha. Foram muitas perdas, perdi a família mais uma vez. Aquilo me deixou muito frustrada com toda a situação vivida ali, e eu resolvi vir para São Paulo. Eu já tinha esse pensamento por conta justamente do clima, porque eu odiava aquele clima de Belém, então eu queria vir para São Paulo por causa do clima também, mas eu ouvia falar muito bem de São Paulo, que você não ficava parada, sem trabalho em São Paulo, que a vida era muito melhor. Então um belo dia eu digo: “Eu já perdi tudo mesmo, eu vou embora”. E foi o que eu resolvi, vim embora com a cara e a coragem.
Eu não tinha nenhuma referência de nada, aliás, a única referência que eu tinha era a Avenida Paulista, que era a avenida top de São Paulo. Eu digo: “Eu quero ficar pelo menos perto da Avenida Paulista”. E foi o que eu fiz, vim e fiquei perto da Paulista, e comecei a trabalhar.
Comecei a trabalhar primeiro em um restaurante, eu nem escolhi o trabalho. Depois que eu comecei a trabalhar foi que eu comecei a escolher trabalho. Depois do restaurante eu fui trabalhar no escritório de contabilidade de um Hospital, Beneficência Portuguesa. Enquanto isso, também fiz o concurso para antiga Telesp e trabalhei mais um pouquinho de tempo no Hospital Beneficência Portuguesa.
Comecei a ter o mesmo problema de Belém, só que agora como trans, e aí eu digo: “Meu Deus do céu!” Aí a antiga Telesp me chamou para o concurso. Eu digo: “Eu vou ter que burlar o sistema, né?” Tive que me desmontar, prender o cabelo, colocar um boné, colocar uma roupa masculina que eu tive que comprar no brechó. E foi assim que eu fui para a Telesp. Saí de lá contratada, com crachá e tudo mais. E aí começou o processo dentro da Telesp, foram quase quatro anos.
Nesses quatro anos eu fui atendente comercial um de posto de serviço, no centro de São Paulo, ali na [Rua] Sete de Abril. Depois eu passei para ser atendente de loja, numa loja na Vila Mariana. Depois eu fiz o concurso para supervisora, aí passei, fiz a inscrição para São Paulo, mas aí eles quiseram me jogar para cidade do interior, e eu não quis, porque eu não sou do interior. Eu odeio interior, nem para passear, eu não gosto, entendeu? Porque eu gosto de vida, eu gosto disso aqui, dessa movimentação, dessa muvuca e se não tem isso, também não tem vida, entendeu?
Foi o período em que o outro lá tinha encerrado o processo dele e a supervisão da loja começou a dar em cima de mim por causa do visual e não sei o quê, porque eu prejudicava a imagem da empresa.
Um belo dia o meu marido foi me buscar e nós saímos para conversar na outra rua. Eu sabia que ia dar em briga, por isso que fui para a outra rua. Eles ficaram sabendo que eu briguei com meu marido na outra rua e [com] isso, junto com o histórico, eles me colocaram para fora da empresa, me deram uma dispensa.
Fiquei muito revoltada na época, mas disse: “Eu não vou processar”. E deixei para lá. Passei a investir no cabelo, até eu conseguir alugar minha sala, e fiquei na sala uns dez anos.
A minha vida profissional foi mais ou menos isso. Fiquei nessa sala uns dez, quinze anos porque tive duas salas na [Avenida] Brigadeiro Luiz Antônio, perto da Paulista, que era a minha referência. Enquanto isso também tive a minha vida religiosa; fui expulsa de diversas igrejas, porque o pessoal não me aceitava. Eu disse: “Meu Deus do céu! Eu jamais pensei viver isso aqui em São Paulo, que é a maior cidade do país. Como é que pode alguém passar por um preconceito desse tamanho?” Pois eu passei, passei em diversas igrejas, no mínimo umas quinze igrejas. Consegui um feito, eu consegui ser expulsa dessas quinze igrejas. E mais, depois que eu conheci o evangelho inclusivo, que faz pouco tempo, faz cerca de uns quinze anos, eu também consegui ser expulsa do evangelho inclusivo, então é impressionante, sabe? O lugar do qual eu fui expulsa, esse lugar foi feito para acolher, esse lugar foi feito para acolhimento, para inclusão, sabe? E eu consegui ser expulsa desse lugar também. Por aí você vê como é difícil para as pessoas lidarem, aceitarem uma travesti, uma transexual, entendeu? Mas infelizmente essa é a minha história de vida.
Foi bom, porque eu passei a militar também nesse lugar. Passei a perceber que existia, existe e vai continuar existindo a necessidade de nós termos espaços nossos. Tanto é que na primeira oportunidade que eu tive dentro da igreja atual, onde eu estou, que é ICM, que é uma igreja que vem dos Estados Unidos, com mais de cinquenta anos de história e que tem lugar de destaque para travestis e transexuais… A revolta de Stonewall aconteceu, a bem dizer, no porão da nossa igreja. E duas travestis foram fundamentais para essa história acontecer: Marsha Johnson, aí a outra esqueci agora. As duas foram essenciais para isso acontecer, porque elas que… Não sei se vocês ouviram falar dessa revolta de Stonewall. Teve duas travestis que deram essa batalha, que deram garrafada nos policiais e elas eram da nossa igreja, uma delas era nossa presbítera, então eles passaram a perceber a importância e dar o devido lugar de destaque para as travestis e transexuais.
Eu me encontrei no caminho dessa igreja e tive a oportunidade de ser consagrada pastora, principalmente agora na pandemia, que se intensificou um trabalho social e religioso para as pessoas moradoras de rua. Devido a esse trabalho a igreja me chamou e me consagrou como pastora, e me colocou à disposição um ministério, que eu iria chamar de meu e que eu podia escolher o nome desse ministério. Eu digo: “Ah, não, eu não tenho a menor dúvida, meu amor, que é a Igreja Trans. Nós precisamos desse espaço, que não é um gueto, mas nós precisamos, neste momento nós ainda precisamos, infelizmente, porque eu fui expulsa de dez igrejas. Isso porque eu estava comprometida com Deus, imagina quem não é comprometida com Deus, na primeira ela já desiste e entrega a alma ao Satanás, entrega a alma ao diabo. E ela, tendo essa oportunidade de ter uma porta aberta, que pode incluí-la, que pode acolhê-la, a história dela vai ser diferente, com certeza.” Então eu abri, pedi para eles que abrissem a primeira igreja trans.
Como militante eu me sinto muito satisfeita, muito realizada, muito digna, superfeliz por ter conseguido essa proeza, esse lugar de destaque para minha comunidade, que a minha comunidade não só precisa, mas a minha comunidade merece. A minha comunidade merece dignidade! O que falta para toda a sociedade entender que travestis e transexuais precisam de dignidade, precisam de respeito, precisam ser humanizadas? Enquanto isso não acontecer nós vamos ser, vamos continuar sendo essa história de marginalidade que as pessoas conhecem e que vai continuar existindo. Porque nos faltam esses lugares, nos falta a igreja, nos falta a escola, para que a gente possa ter dignidade e que a gente possa entregar para essa sociedade que aí está, no mínimo, resultados positivos. Assim como eu, apesar de tudo, eu não desisti, eu não desisti do meu Deus e continuo tentando fazer algo pela minha comunidade.
Hoje eu faço aquele trabalho de marmitas solidárias e comecei no lugar onde tinham muitas travestis e transexuais, que é lá perto de casa, na Zona Norte, onde tem meninas que se prostituem na rua. Com a maior parte jogada na droga, então depois que se prostitui, ela pega aquele dinheiro e vai para o traficante, usa droga até não querer mais, acaba o dinheiro e não tem nem com o que se alimentar. Quando passa todo o efeito das drogas, elas vão aonde? Vão lá naquele lugar que servem as quentinhas, as marmitas e elas vão se alimentar, então eu comecei o meu trabalho com marmitas solidárias lá.
Como eu estava dizendo para Bruna, eu levava uma caixa de som e cumprimentava o pessoal, fazia oração com eles e depois eu determinava, eu dizia: “Agora, por questão de ordem, primeiro as mulheres na fila, segundo travestis, terceiro transexuais. Segunda fila para os idosos, para as pessoas idosas, homens e mulheres. E na terceira fila o restante”. Isso me deixava muito feliz, porque ali eu conseguia priorizar as minhas travestis e transexuais, a minha comunidade, aquelas que eu sei que estão na extrema vulnerabilidade social, assim como eu. Então é questão de sobrevivência, sabe? A questão é muito maior do que militância, é questão fundamental de respeito ao ser humano e dignidade. É isso, basicamente é isso.
(35:26) P/2 - Jacque, você estava me contando sobre Belém e eu queria saber como era Belém naquela época que você ainda estava lá, como era Belém para pessoas LGBT.
R - Cruel, simplesmente cruel, assim como São Paulo também é cruel. Eu acredito que muita coisa acontece por aí e a gente não fica sabendo, justamente porque a população é muito discriminada, é altamente discriminada e já existe um número muito grande de bandidagem hetero-cis-normativa, então nós acabamos ficando em segundo plano nas notícias.
Lá em Belém era um absurdo. Era como eu disse para você, todos os dias matavam uma travesti, todos os dias matavam um gay, então eu não conseguia ver aquilo e ficar de braços cruzados.
Eu tive uma experiência que foi muito importante em Belém, que foi participar do projeto Rondon. O projeto Rondon era para os universitários e ele trazia uma nova realidade pra gente. A maioria das pessoas que entravam para a faculdade eram jovens, nunca tinham saído do seu mundinho ali, nunca tinham tido uma experiência que fosse relevante para elas. E a minha primeira experiência de sair do meu quadradinho foi fazer um censo, tipo um censo, que eles chamavam naquele momento de diagnóstico municipal. O grande censo era para as grandes cidades, mas para essas pequenas cidades, era o diagnóstico municipal.
Eu cheguei em uma cidade a uma hora de Belém, aqui [em] uma hora você ainda está dentro do mesmo município, lá já era outra cidade e com uma realidade totalmente cruel. As pessoas que moravam naquele lugar moravam em casas que não tinham nem porta, nem janela, eram panos e eu nunca tinha visto aquilo, eu nunca pensei que alguém pudesse morar naquelas condições, nunca pensei que alguém pudesse viver naquelas condições. Eu me achava pobre, achava que a nossa situação era pobre, mas aquela situação era cruel, era para lá de pobre. E como eu não tinha muitos… Acho que nem tinha morador de rua em Belém naquele momento, então para mim foi assustadora aquela realidade. E aquilo me chamou atenção, me despertou vários gatilhos para outras coisas, entre elas a violência dessa nossa comunidade, porque agora eu já tinha consciência de quem eu era. Eu não era mais aquela criança boba que não sabia o que não queria, não sabia o que era, não sabia o que representava; eu já tinha essa consciência.
Aquilo para mim era muito triste e eu tinha que fazer alguma coisa, então eu participei de um concurso onde ganhei e fiquei nos holofotes. Eu disse: “Tenho que aproveitar isso para reverter uma coisa a favor da nossa comunidade, a favor do nosso grupo, do nosso movimento.” Naquela época, acho que nem se usava muito o termo comunidade. Foi aí que eu pedi o apoio do Luiz Mott, na Bahia. Ele já tinha experiência de ter criado o GGB da Bahia, o Grupo Gay da Bahia, então eu pedi para ele todo o apoio, toda orientação, tudo que ele pudesse fazer para nos ajudar em Belém. Ele deu todo apoio, e com isso eu consegui articular em Belém o primeiro movimento de luta, o MHB, Movimento Homossexual de Belém.
Eu não quis criar outro GGB, ou então GGBEL, alguma coisa do tipo, porque já existia o GGB, então eu quis criar [algo] diferente. Fiquei mais ou menos um ano articulando, nós conseguimos articular com a Secretaria de Saúde para entrega de preservativo naquela época, que era o boom da AIDS, e conseguimos articular com o Centro de Defesa do Negro do Pará. Eu sempre achei muito importante essa luta de pretos, negros, pardos e todo o grupo, enfim, porque eu sempre achei inadmissível essa questão do preconceito, essa questão das discriminações, então eu articulei com o Centro de Defesa do Negro do Pará, que é o Cedenpa. Consegui articular com o primeiro grupo de prostitutas da área central, Gempac [Grupo de Mulheres Prostitutas do Estado do Pará].
Consegui articular com o Padre Bruno, que era um padre que tinha um trabalho extremamente relevante feito para crianças; em determinada data do ano ele recolhia móveis usados e transformava esses móveis, vendia, fazia um grande bazar e a renda ele revertia para as crianças, para as escolas, para os estudos. Ele fazia um trabalho grandioso em Belém - que Deus o tenha, acho que ele já morreu. E conseguimos, um belo dia, articular com uma ONG do exterior que nos prometeu trazer dez mil dólares, mas nós nem chegamos a pegar nesse dinheiro, porque em uma das nossas reuniões, quando eu cheguei, escutei os meus colegas falando que esse dinheiro… Era para eles terem muito cuidado, eles tinham que ter muito cuidado com esse dinheiro que vinha em dólar, que seriam dez mil dólares que o representante da ONG tinha prometido para o grupo, porque eu era pobre, eu era muito pobre, então poderia ser que eu lançasse mão desse dinheiro. Aquilo me deixou muito triste! Entrei na reunião e disse para eles: “Olha, antes que o medo de vocês possa se concretizar, eu vou fazer algo diferente. Eu vou na minha casa, vou buscar todo o material que eu tenho como sendo do MHB, vou trazer de volta e entrego para vocês. Vocês levam adiante o MHB, porque eu não consigo trabalhar com vocês, não consigo mais olhar nos olhos de vocês sabendo que vocês estão desconfiando de mim. E os dez mil dólares podem ser um valor relevante, mas não me abre os olhos para querer pegar esse dinheiro. Se eu estou tão empenhada, eu estive tão empenhada até aqui em fazer o bem pela minha comunidade, pelo meu grupo, sem a intenção de absolutamente nada, não são dez mil dólares que vão me comprar. Então eu vou entregar para vocês e vou embora, a partir de agora o movimento é de vocês”.
Esse movimento chegou a estar em segundo lugar, depois do GGB. Foi um trabalho que também me rendeu um convite para ser candidata a vereadora na política, por um político lá do Belém que se chama Arnaldo Jordy. E também fui parar no Roda Viva, que é um programa da TV Cultura, lá em Belém também; fui ameaçada ao vivo no programa. Quando terminou a entrevista, eu disse: “Olha, para esse cidadão aí, que está me ameaçando, eu estou indo lá para a sede. Nós vamos nos reunir na avenida “tal”, número “tal”. Se você quiser resolver comigo, é só você ir lá”. E foi assim que eu passei pela história do MHB.
Quando eu vim para São Paulo, eu disse: “Eu não quero mais me envolver com militância, não quero mais me envolver em grupos, não quero me envolver mais em nada”. Mas não tem jeito, você já foi picada pelo “bichinho da militância”, você não consegue. As coisas estão aí, estão acontecendo todos os dias. Todos os dias a nossa comunidade está sendo morta, todos os dias o nosso sangue escorre de Norte a Sul deste país, em todos os Estados, em todas as cidades, e não tem como você ficar de braços cruzados. Você, às vezes, não consegue fazer tudo aquilo que você queria fazer, mas por onde eu passo vou deixando o meu rastro, vou deixando a minha marca e vou registrando tudo.
Acho um trabalho de extrema importância você se posicionar todos os dias, todas as horas, porque é necessário militar 24 horas por dia. Você colocou a cara na rua, você está militando, porque todo mundo está sabendo quem é você, e o pior é que elas imaginam coisas que você está fazendo, que você deixa de fazer, e por conta disso elas te discriminam, elas te matam, elas não te respeitam, então é necessário militar todos os dias.
(46:36) P/2 - Você estava falando um pouco da sua militância em São Paulo, mas eu queria voltar para a primeira impressão que você sentiu quando você chegou aqui. Qual foi?
R - A impressão era de que eu ia ser feliz aqui, que eu não ia nunca passar por alguma situação constrangedora referente a discriminação e preconceito.
Eu hoje consigo ter uma relação melhor com a sociedade, hoje eu consigo não ser tão discriminada, mas é uma questão minha, né? Na minha transição, hoje com 58 anos, eu sou, para quem me olha, uma senhora, para a maior parte das pessoas eu sou uma senhora, então hoje eu consegui um outro lugar. Mas eu sei que quando nós somos jovens, que nós estamos naquele período de transição, principalmente, a gente não consegue ser confundida, muito pelo contrário, você chama mais atenção do que você queria. Às vezes o nosso papel é esse, até de chamar atenção, justamente para peitar a sociedade, peitar as pessoas, assim como elas nos enfrentam. É por isso que às vezes a nossa comunidade responde com frieza, responde com falta de educação, responde com grosseria, responde com violência até, né. Por quê? É isso que a gente está recebendo, é isso que a sociedade nos dá, então é isso que a gente responde. Você tem que responder à altura, você não pode baixar a cabeça; como a maior parte passa por essas situações de violência, você não pode deixar que isso aconteça, porque senão você vai ser mais uma vítima, então você acaba enfrentando, e ao enfrentar, se você encontra do outro lado outra pessoa mais violenta, mais perigosa e se tiver uma arma na mão, pronto, acabou. Você sabe que para a gente perder a nossa vida é daqui para ali.
Eu tive sorte, porque cheguei nessa idade e conseguir fazer uma boa transição. Também tive sorte pelo fato de ter muita paz no meu coração, por conta da minha religião, por conta do meu Deus, que é tudo na minha vida; ele me traz uma condição muito boa para eu sobreviver, uma condição espiritual para eu sobreviver. E é por conta dessa vida, desse comprometimento com Deus, desse comprometimento com meu trabalho social é que eu acredito que cheguei até aqui, aos 58 anos, mesmo a gente sabendo que a nossa comunidade só vive 35, no máximo. E acredito que muitas pessoas morrem muito mais jovens, por conta disso tudo isso que a gente vive.
(50:21) P/1 - Antes da gente falar sobre o início da sua militância aqui em São Paulo, depois do movimento, que você veio de Belém, só queria que você contasse um pouquinho sobre esse período que você fez essa faculdade. Que curso você estava fazendo? Por que você tinha escolhido fazer o curso?
R - Eu não sei exatamente porque que eu escolhi, mas eu estava fazendo Administração de Empresas. Acho que talvez porque uma das coisas que eu pensei é que seria mais fácil conseguir trabalho.
Assim que eu entrei na faculdade, me inscrevi na agência de trabalho que tinha na faculdade, e com poucos dias me chamaram para uma empresa que se chama Companhia de Petróleo Ipiranga, da Narcisa, que tá na televisão. Foi essa empresa que me chamou e eu fui trabalhar no escritório deles.
Eu gostava muito de fazer o trabalho administrativo que eles me deram, só que em determinado momento chegou um gerente lá, mudou de gerência e esse gerente não gostou muito do meu jeito, do meu comportamento, das minhas atitudes. Ele ficava assim, atrás de mim, procurando [coisas]. Um belo dia ele encontrou minha assinatura, meu nome junto com o nome do meu ex-marido em uma caixa de lubrificantes da empresa e aí ele me perguntou: “O que significa isso, Jaque?” Aí eu disse: “Ah, eu que escrevi. Estava de bobeira aqui e escrevi o meu nome e o nome do meu marido”. Aí ele disse: “Você sabe que isso não se faz, né? Riscar a caixa nova de um produto da nossa empresa”. Encontrou a desculpa que ele queria. Ele levou isso adiante e isso foi o motivo da minha saída da empresa, quatro anos depois.
Foi o mesmo período que eu fiquei, mais ou menos, na Telesp também. Quando eu cheguei aqui, que fiz o concurso, foram mais ou menos esse período de quatro anos, três anos e pouco.
Esse trabalho eu só consegui por conta da faculdade. Fiz até o terceiro ano de Administração de Empresas e no último ano eu não consegui fazer, porque era uma faculdade particular e eu tinha que pagar. E como eu ia pagar sem ter dinheiro, sem estar trabalhando? Foi por conta disso que eu tive que cancelar a faculdade.
Depois, quando eu vim para São Paulo, agora, no período mais recente, eu comecei a fazer Teologia no Mackenzie. Era um curso maravilhoso, os professores [eram] maravilhosos. A faculdade, mesmo eu sendo trans… Eu não tive problema dentro da faculdade. Os meus próprios professores diziam: “Não para!”. “Eu vou ter que parar por conta de uma cirurgia”. Na época eu estava com uma hérnia muito grande e eu tinha que fazer a cirurgia de hérnia, então tive que parar por conta disso e por conta da mensalidade também, que era muito alta e eu não consegui bolsa, então não tinha como conseguir. Eu fiquei muito triste, arrasada, mas infelizmente tive que parar.
(54:17) P/1 - Conta pra gente como foi o início da sua militância aqui em São Paulo.
R - Aqui em São Paulo eu estava quietinha, tranquila, na minha. Quando eu abri o salão, que foi quando eu saí da Telesp, até então eu estava conseguindo me manter de boa, sem me envolver com a militância. (risos) E aí de repente, quando eu abri o salão, me aparece uma travesti chamada Márcia Lima na minha porta, mais ou menos da minha faixa etária também. Ela me convidou para voltar para a militância, eu falei toda a história para ela e ela me convidou para voltar para a militância. Era a desculpa que eu precisava para voltar.
Comecei a participar dos fóruns, aqui em São Paulo tinha na época o Fórum Municipal de Travestis e Transexuais, tinha Fórum Estadual de Travestis e Transexuais e tinha mais alguma coisa que eu não me lembro agora, mas esses dois eram os principais.
Eu me joguei e fui ficando, até eu descobrir algumas coisas que não me agradavam dentro dessa militância. Essa militância era diferente daquela que eu fazia em Belém, aquela lá era eu que estava articulando, então eu sabia bem para onde eu ia, onde tinham as necessidades a serem trabalhadas. E não me vendia, aceitei o dinheiro do moço da ONG, mas para investir no trabalho, não para mim, para meu benefício. Quando eu cheguei em São Paulo a militância era diferente. A militância se vendia, a militância queria fazer o que o prefeito determinava, ou que a Coordenadoria LGBT determinava, e isso não me agradava, mas eu continuei por um determinado período, até a pessoa “vender” definitivamente o movimento. Nós ficamos sem movimento em São Paulo, o município de São Paulo não teve mais e não tem até hoje um trabalho que defina nossa comunidade dentro dessa Coordenadoria.
Foi aí que eu passei a militar dentro da igreja inclusiva, que foi o período que eu conheci o trabalho. Na primeira reunião que eu fui tinham cerca de trezentos gays, e algumas, umas vinte lésbicas e duas travestis - uma porque era empresária, gerava um bom dízimo, a outra porque era faxineira da igreja. Ver essa condição… Eu aprendi a ver diagnóstico. Foi essa visão que eu tive do evangelho inclusivo, e eu disse: “Essa realidade tem que mudar”.
Foi aí que eu comecei a fazer um trabalho para mudar essa realidade, onde travestis e transexuais fossem incluídos. Passei a ser incluída, já levei de cara uma amiga minha, que foi incluída também, e comecei a participar “por engano” em algumas reuniões de diretoria. Aí eu dizia: “Ah, me desculpem! Eu não sabia que essa reunião era de diretoria”. E aí eles diziam: “Não, pode ficar, pode participar. No final você pode dar até seu palpite, sua opinião”. “Ah, que ótimo!”
No final eu caía matando: “É preciso ser feito um trabalho para a comunidade de travestis e transexuais serem incluídas. Vocês não podem fazer um trabalho de evangelização desse tamanho, dessa magnitude, sem incluir travestis e transexuais. As travestis e transexuais têm que participar, elas têm que estar incluídas”. E assim foram acontecendo algumas reuniões, até que um belo dia disseram: “Já chega, eu já entendi. Eu vou te dar um ministério para travestis e transexuais e você vai fazer o que você quer fazer. Eu só não vou te dar apoio financeiro, mas eu vou te dar o espaço e você se vira”. Foi aí que eu comecei a fazer esse trabalho.
Eu passei pela igreja, passei pelo CRD [Centro de Referência e Defesa da Diversidade], passei pela Associação da Parada e cheguei na ICM [Igreja da Comuidade Metropolitana]. Nesses lugares todos, a igreja me expulsou porque eles viram a grande repercussão do projeto Séfora, do Ministério Séfora que eles me entregaram - sendo da estrutura da igreja, eles me entregaram como ministério. Depois de algum tempo, eles me chamaram para participar de uma reunião de liderança, onde eu fui premiada e depois de um mês conseguiram me expulsar dessa igreja. Fiquei sem entender, e disse: “Meu Deus do céu, como é que pode?”
(01:00:43) P/1 - Mas qual foi a justificativa?
R - Foi uma situação que criaram para mim, porque eu fazia as minhas reuniões num espaço diferente do da igreja; foram eles que estabeleceram dessa forma. Lá existia um banheiro e alguém, algum gênio, criou uma situação; depois de um culto que eu fiz, encontraram dentro do banheiro uma camisinha. A mente fértil dele, que só alguém que usava desse mesmo comportamento poderia pensar, pensou que fui eu que usei a tal camisinha depois da reunião, então ele me expulsou por conta disso.
Eu nem questionei, porque eu disse: “Olhe, eu estou num outro lugar. Não é que eu não pense em sexo. Depois que eu saio daqui eu encontro o meu marido, aí é outra coisa. Agora aqui dentro, onde eu faço a minha reunião, onde eu faço as minhas orações, onde eu prego a palavra, aqui dentro não! Eu não me permito.” Aí eles dizem: “Não, então vamos fazer assim, eu vou criar outra situação. Eu não vou te expulsar, mas você vai fazer tudo que eu mandar. A partir de hoje tudo sou eu que vou resolver, tudo sou eu que vou fazer e você vai só ficar como se fosse você que estivesse fazendo, mas não é você, quem vai fazer sou eu.” Eu disse: “Você acha que eu vou me prestar a esse papel? Eu já não presto para mais nada na sociedade e ainda vou me prestar a esse papel de ser quem eu não sou, de fazer o que eu não faço?”
Ele me fez umas propostas de que esse grupo teria que ser fechado, não poderia receber os homens, as travestis não poderiam receber os seus maridos dentro daquele espaço, não poderiam receber os amigos. Não iria mais ter jantar, porque ele achava que o jantar era que estava trazendo muita gente para a reunião - a reunião estava com uma frequência de cinquenta pessoas - e algumas outras coisas bobas. Eu disse: “Eu não consigo fechar. O trabalho é aberto, o evangelho de Jesus é aberto e eu jamais fecharei, porque o trabalho de Jesus é aberto e se ele nos deu um exemplo, é para a gente seguir esse exemplo. Se eu não for seguir o exemplo de Jesus, então para que eu vou estar dentro de uma igreja?”
Outra coisa que ele disse é que… Agora eu me esqueci, acabei de falar e me esqueci. São situações assim, totalmente constrangedoras para comunidade e situações que eu não aceitaria jamais. Aí eu disse para ele: “Amanhã eu publico uma carta de desligamento. Você voltou atrás na expulsão, mas eu não aceito essas condições.”
No dia seguinte eu publiquei a minha carta, me desligando do projeto, do ministério e fui para casa, chorar feito uma louca. No outro dia eu saí, eu disse: “O Senhor está comigo e se o Senhor está comigo, o Senhor vai abrir outra porta.” Fui ao CRD, que é o Centro de Referência da Diversidade, que é do Eduardo Barbosa, que já me dava o apoio com a cozinha, porque eles não só não me deram dinheiro para fazer alguma coisa pelo ministério, eles me negaram a cozinha. Então tive que ir ao CRD, articular com o CRD e eles me emprestavam a cozinha no dia da nossa reunião. Os meninos iam buscar as panelas e os Tupperwares com as comidas prontas e levavam para onde eu fazia a união.
Como eles já conheciam o trabalho, eu pedi para ele o espaço. Ele cedeu e comecei a fazer lá. Lá nós chegamos a fazer reunião com duzentas meninas, no mesmo modelo, entendeu? Então eu consegui, eu percebi que cresceu mais ainda, que nós tínhamos uma reunião de cinquenta e fomos para duzentas, então houve um crescimento considerável, né?
Uns dois anos, ano e meio depois, o Eduardo, percebendo… Digamos que aquela reunião, ela estava com uma frequência boa. Era às quartas-feiras, se não me engano. Toda quarta tinha aquele número de pessoas, tanto para participar da reunião, como para comer também. Passou a ser uma referência na comunidade de rua, como uma boca de rango - uma boca de rango nada mais é do que um lugar onde eu posso ir para a reunião e me alimentar, depois dessa reunião. Esse alimento também é referência de Jesus na Bíblia, esse exemplo Deus também nos deu quando ele alimentou uma multidão de cinco mil pessoas que seguiam Jesus. E aquelas pessoas nada mais eram do que os moradores de rua de hoje, porque eram pessoas andarilhas, pessoas que caminhavam, pessoas que não tinha condições, e Jesus alimentou aquelas pessoas, então esse exemplo está muito vivo.
Aquela determinada igreja, quando me dispensou, disse que eu só estava conseguindo muitas pessoas naquela reunião porque eu estava dando alimento. Eu digo: “Mas Jesus deu alimento, ele trouxe e traz para a gente esse exemplo, então não estou fazendo nada errado”. Inclusive, quando passei no Mackenzie, foi uma das coisas que eu perguntava quase para todos os professores e todos tinham o mesmo posicionamento: o evangelho de Jesus é isso, é o trabalho social, é a assistência social e o evangelho em si. Ninguém consegue dissociar um do outro, ninguém consegue separar um do outro, Jesus deu exemplo, então eu tinha, tenho certeza absoluta que estou no caminho certo, fazendo a coisa certa. Não há nada de extraordinário em fazer isso. O que é fora do comum é um crente, é um cristão que se nega a fazer esse trabalho, isso que é fora do comum. Isso é não ter amor pelo seu próximo, isso é não ter amor pelo seu semelhante, porque se você não tiver amor pelo seu semelhante que você vê, como é que você vai ter amor por Deus, que você não vê? Essa é a questão colocada e eu tenho certeza absoluta que estou fazendo a coisa certa, estou no caminho certo e se eu pudesse fazer muito mais, muito mais eu faria, pelos meus amigos, pelos meus semelhantes, pelos moradores de rua, enfim, por todos que precisam de um prato de comida.
(01:09:33) P/2 - Jaque, eu queria saber se na sua adolescência, no início da sua vida adulta lá em Belém, se você tinha referências de outras pessoas LGBT perto de você ou se isso não era uma realidade.
R - Não, não era uma realidade. Quando era bem criança eu tive uma referência perto de mim que era um vizinho meu, mas para mim não funcionava como uma referência positiva, funcionava como uma referência negativa. Era tudo aquilo que eu não queria ser. Era um menininho que eu não me lembro nem o nome, mas era assim, ele tinha mais ou menos uns dez anos, eu também, e ele andava “assim”, sabe? Era o jeito dele, ele era assim. E aquilo era uma referência negativa para mim, porque eu me lembro que todo mundo falava mal dele. Eu não queria ser daquele jeito, eu aceitava o meu jeito, mas eu não aceitava aquele jeito e era algo que eu não queria para minha vida, era algo que eu sempre me policiei, porque você ser feminina é uma coisa, e ser isso “aqui” é outra coisa, e isso eu não queria para mim. Isso era algo que eu podia escolher para mim, não ser daquele jeito, tanto é que eu me policio para não ser exatamente assim, eu tento ser o mais natural possível.
Quando eu me tornei um pouquinho mais adulta, minha referência passou a ser Rogéria. Rogéria para mim era um ícone, Rogéria para mim era tudo, Rogério para mim era referência. Tanto é que quando eu organizei o movimento, teve um momento que ela passou por Belém, ela foi fazer show em Belém e eu marquei um encontro com ela, fui no hotel conversar com ela. A única coisa negativa é que ela “aquendava a taba” [fumava maconha] e eu não gostei disso porque nunca foi minha praia, acho que até pela religião, mas também por questões médicas eu nunca me aproximei de drogas, nunca tive nenhuma experiência sequer com drogas. Mas a pessoa em si me fascinava, sabe? Aquilo me deixou louca de conhecê-la pessoalmente, então de viver como ela era, aquela coisa viva, muito feia de vida. Era aquela referência de uma artista que todas nós sabíamos que ela tinha nascido masculina, mas que ela conseguia viver feminina. E naquele momento que eu conheci, ela já estava com mais idade, então acredito que muito mais segura, muito mais empoderada, mas ela fazia questão de dizer que era artista: “Eu não sou uma travesti, eu não sou uma transexual, exatamente, mas eu sou uma artista”.
Foram referências. Ela foi referência para mim, Roberta Close também, mas já fora do âmbito. E a estilista do concurso, que fez o meu vestido, foi o primeiro concurso em que eu participei de transformista. Eu não disse para vocês, mas eu também sou uma referência de beleza! Ganhei em Belém três concursos de transformista.. O primeiro convite: “Aceito, legal”. O segundo também. O terceiro eu fui assistir, acabei participando e acabei ganhando. [Isso] me deixou muito incomodada, porque eu sempre tentei me colocar na posição do outro, no lugar do outro e eu sabia que tinha muitas meninas que tinham ido novamente para aquele concurso com novas roupas, com novas produções e eu estava com a mesma produção do primeiro concurso, porque eu tinha ido só para assistir. (risos) Aí eles acabaram me convidando para fazer número e desse “fazer um número” acabei ganhando o concurso, então posso dizer que eu fui uma referência de beleza em Belém. Tudo bem que foram nos anos 80, mas fui uma referência, sou uma referência de beleza. Essa coisa foi muito importante também, para eu me ponderar.
E da estilista que eu tive como referência, é muito importante eu contar essa história, que foi assim. O meu amigo disse: “Eu vou marcar para você ir lá e depois você vai fazer o teste da maquiagem e do cabelo”. Quando eu cheguei na casa dela, era uma casa que tinha um corredor enorme e tinha um gay na porta, recebendo as pessoas que tinham horário para encaminhar. Ele me recebeu e disse: “Você aguarda um minutinho?”. Eu digo: “Tá”. Foi lá, falou com ela. Não demorou muito ele voltou e disse: “Você pode entrar”.
Quando eu entrei era uma sala imensa, [com] muitos tecidos pendurados decorando, muitos manequins e uma moça no canto. E qual era o nome do estilista? Era Ney, estilista. Aí eu olhei para os outros cantos: “Cadê o Ney? Moça, eu quero falar com o Ney”. Ela disse: “Sou eu, querida”. “Hã?” Ela disse: “Sou eu.” Menina, [fiquei] passada! Linda! Mulheríssima! E você não via um traço masculino nela. E eu: “Menina, mas eu não entendo como é que você se chama Ney? Você tinha que se chamar Maria ou qualquer outra coisa, menos Ney, né?” Ela disse: “Pois eu sou Ney.”
Aquilo se tornou uma referência para mim, era tudo o que eu queria para mim. Aquele dia, aquele mesmo dia, foi muito importante para mim também, foi como uma referência, porque quando fui fazer o teste da maquiagem, o maquiador e cabeleireiro me virou de costas para o espelho e disse: “Eu vou fazer sua maquiagem e depois eu viro você de frente.” Quando ele terminou e me virou de frente, ah, eu vi a mulher mais linda desse mundo! Eu vi muito mais do que isso, vi a minha alma naquele momento, porque eu passei a me reconhecer como mulher e passei a ver a minha alma como uma alma totalmente feminina, como eu nunca tinha visto antes.
Aquele foi um dos momentos de referência para mim, na minha vida um dos momentos mais lindos, porque eu não conseguia ver uma pessoa tão linda. Uma pessoa que eu precisava encontrar e encontrei naquela maquiagem; naquele teste de maquiagem eu encontrei a mulher que precisava encontrar. E aí passei a admirar muito mais a Rogéria, passei a admirar muito mais o Ney, que não tinha nada a ver com Ney, mas que era uma mulher.
Essas foram as minhas grandes referências de Belém. Depois eu passei a ter oportunidade de transitar mais no meio. Naquela época era só gay, era todo mundo num pandeiro só, todo mundo era gay, então passei a ter oportunidade de conviver com mais pessoas transformistas, com mais… Os transformistas na época eram muito mais travestis e transexuais do que na realidade gays, mas eles se apresentavam dessa forma, como transformistas. Isso de repente chamava até mais atenção, funcionava comercialmente, como hoje existem as drags, que também funcionam muito [de um jeito] comercial, né?
Essa é uma referência de Belém, acho muito lindo o jeito que aconteceu, do jeito que marcou a minha vida. Hoje eu consigo falar desse momento assim de boa, mas há pouco tempo eu não conseguia, eu chorava muito, porque me emocionava muito, sabe? Relembrar aquele momento… Foi como se uma pessoa tivesse começando a viver naquele momento, sabendo realmente quem era, o espaço que ocupava, sua missão e outras coisas todas referentes à essa mulher.
(01:19:14) P/1 - Voltando um pouquinho mais para os dias atuais, eu queria que você comentasse um pouquinho sobre a ICM, como você entrou, e o seu projeto de igreja trans. Como é que isso funcionou?
R - Bem, eu estava fazendo reunião na Associação da Parada quando a Reverenda Alexia, que é uma referência também na nossa igreja, referência trans e que conseguiu o lugar de reverenda, como a primeira reverenda da América Latina… Isso é uma referência enorme para nossa igreja e para nossa comunidade. E é como eu falei para vocês, a nossa igreja dá um espaço muito maior do que o que está estabelecido pela ordem, pela sociedade; ela dá um espaço muito maior para nossa comunidade, justamente por causa da referência que nós temos de Sylvia Rivera e Marcha Johnson. É muito importante essa referência das duas naquele momento do bar Stonewall, no momento em que explodiu aquela revolta e as duas faziam parte da nossa igreja. Então essa articulação toda foi feita, a bem dizer, nos porões da nossa igreja e essa referência é muito forte, a referência de uma trans dentro da igreja ICM é muito forte. Eu pude, graças a Deus, ter a oportunidade de sentir e viver de fato que a nossa comunidade é uma referência.
Quando eu cheguei lá já tinha a Alexia, depois a pastora Ivana também foi consagrada e por último eu, depois do trabalho que consegui fazer durante a pandemia. Eu me lembro bem que estava saindo para começar esse trabalho, porque naquele primeiro momento em que fecharam tudo por causa da pandemia não tinha ninguém na rua, você não via ninguém na rua. E eu me lembro que fui fazer uma das primeiras entregas lá pelo centro ainda e o Reverendo Cristiano, que é o nosso líder agora no Brasil, ele disse: “Você não vai fazer isso, né? Você não pode fazer isso, porque a prefeitura vai tomar conta de tudo, a prefeitura vai fazer tudo, você não precisa fazer nada.” “Uhum, tá bom”. Aí ele foi embora e eu fui fazer a entrega.
Passados alguns dias, teve uma reportagem. Eu disse para a menina: “Não escreve nada disso.” E ela escreveu. Então ele ficou sabendo através da notícia que eu não tinha respeitado a ordem dele e que eu continuava fazendo. Não só bastava não ter respeitado a ordem que ele deu, eu ainda continuava fazendo a mesma coisa, então ele diz assim: “Não se preocupe que eu não vou brigar com você. Você pode continuar fazendo o que você está fazendo.” Eu disse: “Ah, mas não precisava nem você autorizar, porque eu vou continuar fazendo mesmo.”
Esse trabalho a gente tem feito… Desde antes a gente já fazia, mas não era tão intenso, porque estava tudo fechado. A gente sentia a necessidade realmente de fazer um trabalho muito maior. A gente entregava em torno de cem marmitas; esse número foi crescendo para trezentas, chegou em quinhentas e a gente fazia três entregas por semana. Agora eu só consigo fazer uma entrega por semana de quinhentas porque caíram muito as doações. A gente fazia através de doações, mas ainda assim a gente consegue fazer.
Foi esse trabalho também que a igreja usou como argumento para me convidar para ser consagrada pastora. E foi como eu disse, eu aceitei e trouxe para o meu lado, eu disse: “Eu sei da minha luta, sei da luta das meninas que são travestis e transexuais, então eu tenho que trazer um ministério que possa abraçar a nossa comunidade.” E foi o que eu fiz, estou fazendo até hoje e vou continuar fazendo.
Esse é o motivo da minha luta, é o motivo da minha sobrevivência, é o que me faz sobreviver hoje em dia, entendeu? É o que me dá gás. Todo e qualquer trabalho voltado para travestis e transexuais eu estou junto, seja pela religião, seja pela militância. Eu também tenho um trabalho de extrema relevância dentro da militância, que depois eu acho que a gente vai abordar também.
(PAUSA)
(01:25:02) P/1 - Pode falar agora.
R - Pode? (risos)
(01:25:04) P/1 - Pode, pode contar.
R - É assim, há uns… Eu peguei o quê? Tem, acho que… Porque teve o período da pandemia que a gente não pôde fazer… Acho que é a quarta edição, mais ou menos, que eu vou fazer de um movimento que é muito importante para a gente, assim como a Parada, que é importante para toda a comunidade LGBTQIA+. Nós também temos um trabalho que é muito necessário para a nossa comunidade específica de trans, de travestis e transexuais, que é a Caminhada Trans de São Paulo. Esse ano nós vamos levar a sétima edição.
Eu peguei mais ou menos na quarta edição, como Caminhada da Paz, da minha amiga Renata Peron e que ela tinha entregue para a Amanda Marfree, só que a Amanda Marfree não conseguiu colocar na rua, então… Que Deus a tenha, ela faleceu na pandemia. Peguei a primeira edição dela faltava um mês. Com um mês eu consegui colocar na rua, com trio elétrico, com as faixas e tudo mais que a gente leva, balões… Conseguimos fazer.
Temos feito esse trabalho pela nossa militância também. É um trabalho que me enche de orgulho, de prazer de fazer, porque eu sei que é algo que vai repercutir futuramente, assim como a parada consegue reverter algumas benfeitorias para a nossa comunidade. E pensando nisso é que eu dei continuidade, continuo dando continuidade a esse trabalho de extrema importância e relevância para a nossa comunidade.
(01:26:58) P/1 - Você tinha falado sobre o período da pandemia e aí eu queria te perguntar em um nível pessoal. Como foi esse período, um período mais fechado, antes das vacinas? Como foi para você, pessoalmente?
R - Ah, para mim foi desesperador! Porque a nossa igreja, naquele momento, ela estava localizada pertinho daquele viaduto que chamam Minhocão e ali tem muitas pessoas em situação de rua. Como eu falei, a gente entregava em torno de cem marmitas e quando veio aquele momento desesperador de fechar tudo eu estava na companhia de algumas pessoas, inclusive um casal que era muito importante para mim naquele momento, que era um casal de professores. Eles foram fundamentais para criar um site que me ajudou muito a fazer um trabalho maior, porque naquele momento o meu salão fechou, quer dizer, o salão que eu trabalhava fechou e eu saí daquele salão com 170 reais para passar a temporada do bicho, do covid. O que você faz com 170 reais? Absolutamente nada, né? E o casal de professores criaram um site para mim, para me ajudar.
Eu saí de 170 reais para o primeiro mês de arrecadação, que deu nove mil e pouco, quase dez mil. No primeiro momento foi desesperador, mas quando esses dez mil reais chegaram da minha mão, para que eu pudesse fazer alguma coisa por aquelas pessoas, dez mil reais para mim significava dez milhões naquele momento. Pude fazer um trabalho grandioso, consegui montar uma cozinha industrial na minha casa e consegui fazer grandes entregas. E isso foi muito importante para mim, foi usado como referência pela igreja para que eu pudesse ser consagrada como pastora.
No primeiro momento eu tinha passado por grandes frustrações dentro da igreja, inclusive o fato de ser expulsa de uma igreja inclusiva - isso é algo inédito, só eu, acho, que consegui na vida ser expulsa de uma igreja inclusiva, né? Mas eu não queria mais, eu não queria mais saber dessas coisas de dentro da igreja, porque normalmente você entra e começa a se entregar e aí te convidam para ser obreira, de obreira você vai [para] diaconisa, de diaconisa para presbítera. Eu não queria mais saber disso, para mim eu estava muito bem resolvida com Deus e não queria mais saber de nada disso, então não estava esperando por isso, não estava procurando por isso. Mas quando isso chegou até mim, o convite para ser pastora, aí eu fiquei muito feliz! Eu disse: “Agora eu posso fazer algo maior e melhor pelas pessoas que estão na minha comunidade, pelas pessoas principalmente que estão na rua, que estão em condição de vulnerabilidade total. Agora eu consigo fazer um trabalho muito maior.”
Continuamos fazendo o mesmo trabalho que a gente já vinha fazendo, só que pudemos fazer um trabalho muito maior, oferecendo mais marmita solidárias, oferecendo bazar social, onde as meninas podiam chegar e pegar roupas que elas queriam e passamos a ofertar banho também, porque o banho é muito importante para quem está na rua, para quem está numa situação difícil. O trabalho ficou muito maior e ficou muito mais acessível à nossa comunidade. Isso me deixou muito feliz!
Agora nós estamos no momento em que estamos sem igreja, porque estamos esperando a resposta de um projeto da nossa igreja para alugar um espaço maior, onde a gente tenha condições de fazer muito mais pelas meninas também. E o nosso espaço é totalmente acolhedor e inclusivo para as pessoas negras, para as pessoas obesas, para todas as pessoas que são historicamente excluídas desses espaços. Eu não vejo as pessoas… Eu sei que tem pessoas que são assim, elas veem as pessoas pelo dízimo; se for um dízimo interessante continua na igreja, se não for um dízimo interessante não tem o menor interesse de manter essas pessoas.
É como eu te digo, como o espaço pode ser inclusivo e acolhedor se o líder daquele lugar, se o líder daquele trabalho só pensa em dízimo, oferta ou qualquer coisa desse tipo? Eu não consigo pensar dessa forma, não consigo ver o nosso trabalho dessa forma. Não consigo ver Jesus dessa forma, não consigo ver a nossa religião dessa forma, então a gente continua com o nosso trabalho, mas de uma outra forma, de um outro modo, um olhar totalmente diferente do que está estabelecido aí, principalmente pelos fundamentalistas.
É muito triste você ver do jeito que eles veem o amor de Deus, do jeito que eles vendem Jesus. Os que estão aí são os mesmos que crucificaram Jesus, sem a menor dúvida.
(01:33:40) P/2 - Eu queria saber se tem alguma história de alguma menina que você atendeu na igreja, na ICM, que tenha sido muito marcante e que você queira compartilhar.
R - Todos foram tão marcantes, cada um de uma forma, sabe? Mas todas foram muito marcantes e muito tristes, porque a maior parte das meninas está em condição de rua. Para você ter uma ideia, eu já tive meninas que moravam do outro lado da rua, a igreja está aqui e a menina morava em frente à igreja. Aquilo me deixava numa situação totalmente constrangedora, aquilo me deixava numa situação muito difícil, não poder fazer nada por ela naquele momento. Mas eu consegui pedir com um, com outro e onde eu moro consegui também um espaço para ela, consegui um apartamento, um quarto para ela. Nós conseguimos mudar a realidade dela, conseguimos um valor que nós alugamos e depois eu disse: “Olha, eu vou te ajudar com o primeiro mês, depois você vai se virar com teu marido para continuar lá, então vocês vão ter que pagar as mensalidades. Todo mês vocês vão ter que pagar o aluguel.” E foi assim que aconteceu, sabe?
Eu fico muito, muito emocionada quando elas me chamam de mãe, porque quando você consegue resolver, consegue ajudar em alguma coisa para elas, na vida delas, no dia a dia delas, aí elas ficam assim, tão agradecidas que começam a me chamar de mãe. No primeiro momento eu ficava muito tímida, com muita vergonha, sabe? Mas agora eu consigo ver a profundidade disso, a gratidão, porque aquele “mãe” não é simplesmente mãe, é gratidão. Quando você faz algo pela pessoa, que ela é grata para você, que ela consegue transmitir isso para você, isso te dá muita alegria, muita felicidade, muita realização, sentimento de realização. Eu me sinto muito feliz por cada pessoa que consigo ajudar de alguma forma e consigo sentir, perceber essa gratidão.
Tem algumas também que pegam cesta básica comigo e nossa, elas saem de casa chorando, uma porque eu faço… Doo e faço a oração, e nessa oração elas já ficam muito sensibilizadas e saem de casa chorando, muito agradecidas e me chamando de mãe: “Obrigada, mãe! Obrigada, mãe!” Isso não tem dinheiro no mundo que pague, essa sensação, sabe? De você perceber e sentir a gratidão, o carinho, o amor, tudo, enfim.
(01:37:23) P/1 - Então a gente vai para o último bloco de perguntas, essas são um pouco mais sobre a sua vida pessoal atualmente, tá?
R - Sim.
(01:37:32) P/1 - Primeiramente, o que você acha mais importante para você hoje em dia? Pode ser mais de uma coisa, é claro.
R - Para mim é só uma coisa, só essa minha relação com Deus. Deus me preparou a vida toda sem que eu soubesse, sem que eu imaginasse que ele era muito mais importante do que eu imaginava na minha vida. A minha vida toda passou pela religião, a minha vida toda passou por Deus, a minha vida toda passou por Jesus. Não fui eu que escolhi isso para mim, mas eu fui colocada nessa situação e depois que fui colocada nessa situação, de certa forma gostei, de certa forma amei, porque sou uma pessoa que tenho outro comportamento, que tenho outra atitude.
Queira ou não queira, tudo o que aconteceu na minha vida me leva hoje a imaginar o que? A pensar o que? Que Deus me escolheu, que Deus preparou um caminho para mim, porque não não foram duas, não foram dez, não foram cinquenta que tiveram esse mesmo caminho; acredito que somente eu, ou mais uma, ou mais duas.
Deus me preparou de certa forma para hoje estar aqui nesse lugar de igreja inclusiva, nesse lugar de acolhimento, de inclusão pela religião e isso para mim move a minha vida.
Foi muito difícil chegar até o momento de ter noção real desse comprometimento com Deus. Enquanto você não tem essa noção do comprometimento com Deus, na realidade, você vive uma vida que não deveria viver diante de Deus, você deveria ter esse comprometimento real. Mas como a vida acontece, você é criança, você é jovem, você é adulto, é a mesma coisa na fé, você também tenha fé na sua vida enquanto criança, enquanto jovem e depois de adulto, então eu aprendi a ter esse comprometimento com Deus. E a partir do momento que eu tive esse comprometimento com Deus, nada mais me tirou do meu foco, sabe?
Antigamente aconteciam algumas coisas assim, do tipo: “Ah, esse copo está fora do lugar.” E eu não questionava o copo estar fora do lugar: Alguém vai lavar, alguém vai colocar no lugar? Não, eu virava de costa e ia embora, entendeu? É alguma coisa assim. Falta comprometimento, falta você ser adulto, falta ter uma visão diferente.
Até você chegar nesse momento, enquanto você vai caminhando para chegar no momento ideal, que seria o do comprometimento, você erra muito na sua vida. A partir do momento que eu cheguei nesse comprometimento, a ter essa noção real do comprometimento com Deus, as coisas ficaram diferentes, as coisas fluíram, e os trabalhos e as pessoas parecem que estão mais abertas a perceber isso.
Quando eu recebi o ministério para travestis e transexuais, eu disse: “Meu Deus, era tudo que eu queria!” Mas quando recebi, eu disse: “Meu pai do céu! Será que eu vou dar conta? Será?”
Um belo dia eu ganhei uma viagem para a praia. Disse: “Eu vou encher esse ônibus de travestis.” E foi o que eu fiz, disse: “E seja o que Deus quiser!” Quando nós chegamos lá na praia, qual foi a minha surpresa? As meninas me perguntavam: “Jaque, o que eu posso fazer? Eu posso tomar uma cerveja?” “Meu amor, eu não estou aqui para cortar alguma coisa de alguém e proibir alguém de alguma coisa. Eu quero que vocês vivam e vivam intensamente, mas tudo tem limite, tudo dentro dos seus limites”. Nenhuma era cristã exatamente, elas estavam frequentando as nossas reuniões.
No final do dia, qual foi a minha surpresa? Eu convidei elas para fazer uma oração de agradecimento, e nós éramos mais ou menos 42, que eram os lugares do ônibus, e todas deram as mãos, todas oraram e todas agradeceram a Deus por aquele momento - e ainda ouvi mais, agradeceram pela minha vida.
São momentos impagáveis, sabe? Você ver um monte de travestis… E eu própria imaginava que eu ia ter muita dor de cabeça, que elas iam me dar muito trabalho, alguma coisa assim, mas muito pelo contrário, sabe? Elas foram totalmente receptivas, receberam de boa aquelas orações, fizeram de boa. Então é algo impagável, você sentir que Deus pode operar na vida de qualquer pessoa, na vida de qualquer ser humano, na vida de travestis e transexuais.
É isso que me deixa muito feliz. Hoje é isso que me move, é isso que me impulsiona a fazer muito mais. E isso é a minha vida hoje, não tenho outra coisa a fazer, a seguir, é meu Deus e as minhas travestis e transexuais, que eu tento encaminhar para o melhor caminho possível.
Hoje eu já vejo muita gente, muitas trans, muitas travestis dizendo: “Graças a Deus.” Essa comunidade precisa disso, precisa exercer o direito à fé, precisa ter dignidade, precisa ter respeito, essas coisas que dignificam a vida de um ser humano, a vida de uma travesti, a vida de uma transexual.
(01:44:52) P/1 - E no seu tempo livre, quais lugares você gosta de frequentar aqui em São Paulo?
R - Igreja (risos). A igreja, a igreja e a igreja! É a minha vida, sabe? No outro dia eu viajei, para onde que eu fui? Fui para o Rio, para o aniversário da minha igreja, entendeu? Então é assim, tudo para mim está voltado para Deus, tudo para mim está voltado para igreja e se eu não estou na igreja, eu estou em algum culto ao ar livre, ou então no abrigo, sabe? Porque eu também levo o mesmo culto para dentro dos abrigos. Em alguns eu tenho uma certa resistência, mas em outros eu consigo entrar e fazer de boa. Então estou entrando, estou fazendo meu culto e é isso que eu sei, não sei fazer outra coisa, a não ser o trabalho.
O trabalho mesmo é diferente, que é o trabalho de ser cabeleireira, aí é outra história, é onde eu consigo sair literalmente do espaço da igreja, porque a igreja é o meu corpo, então eu consigo levar a igreja para onde eu for, e eu só consigo não viver igreja quando eu estou trabalhando literalmente, porque quando eu estou trabalhando não tem jeito.
Nas minhas entregas eu levo a caixa de som e consigo fazer também uma reunião, um culto muito rápido para entregar marmita para eles, senão você já viu o desespero, né? Mas eu consigo fazer um culto bem rápido e depois, durante a entrega, os louvores vão rolando. Tem uns que estão meio colocados, aí encostam do lado da caixa e começam a acompanhar o louvor. (risos) Mas vai a mensagem, o que vale a mensagem. E é isso.
(01:46:59) P/2 - Jaque, eu estava pensando, desde que você chegou em São Paulo, até hoje, queria saber se você encontrou acolhimento aqui em São Paulo.
R - Como assim?
(01:47:11) P/2 - Quando você chegou, você encontrou uma rede de apoio, um acolhimento?
R - Não.
(01:47:19) P/1 - Pessoas que te ajudaram, que te acolheram?
R - Não, não consegui ninguém. Aliás, não existe isso, entendeu? Não existe essa rede de apoio para quem chega, não existe mesmo, ainda mais naquele momento que eu estava fora da militância, porque eu estava chegando, então não tinha como. Se eu ainda estivesse na militância, talvez alguém ia se pronunciar, alguém ia fazer alguma coisa, mas não existiu, não. O acolhimento que eu tentei buscar foi na igreja, né.
Logo quando eu cheguei, a primeira igreja que eu comecei a frequentar… Comecei a frequentar por algum tempo, mas [tudo estava bem] só enquanto eu estava lá atrás, nos últimos bancos. Depois que eu comecei a chegar mais para frente, me articular com um grupo, que por sinal era LGBT, porque dentro das igrejas você encontra muito LGBT… Comecei a me articular com um grupinho e foi formando aquele grupo, até chegar umas quinze pessoas. Quando chegou nas quinze pessoas, aí eles devem ter pensado: “Vamos cortar a asa dessa bicha, senão ela vai crescer muito mais esse grupo”. E aí um belo dia eles nos chamaram na frente e nos expulsaram, literalmente. Isso aconteceu na igreja do bispo Edir Macedo.
Aquela foi só a primeira de uma série de igrejas que passei e que fui expulsa. Quando eu chegava e ficava lá atrás, estava tudo bem; quando eu passava do meio para frente, aí aqueles obreiros começaram a me chamar e a dizer que eu tinha aqueles espíritos: Pomba Gira, não sei o que Mulambo, esses espíritos assim, que eles denominam dessa forma. Eles começavam a fazer aquelas orações que punham a mão na testa, mas eles punham de uma tal forma que você quase caía para trás. Era algo covarde, chega a ser covarde e ridículo você passar por uma situação dessa. Mas enfim, esse foi o meu acolhimento.
(01:50:04) P/1 - E quais são os seus sonhos para o futuro?
R - Ah, os meus sonhos para o futuro são fortalecer essa ONG, que eu tenho fé em Deus que eu vou conseguir, e fortalecer também o nosso grupo na igreja, fazer um trabalho muito maior, crescer muito mais.
Eu quero deixar um belo legado para minha comunidade, porque eu sei que ainda há muito a se enfrentar. Às vezes a gente se engana: “Ai, já consegui o nome social, consegui não sei o quê.” Mas é muito pouco, é muito pouco o que se conquista, perto de tudo que a gente tem nas mãos, como a realidade da nossa comunidade. Existe um trabalho muito maior a ser feito e eu não posso estar satisfeita com que eu tenho feito até aqui, eu tenho que fazer muito mais. Então a caminhada vai continuar, esse trabalho de ONG tem que continuar, o trabalho de igreja também tem que continuar, não pode parar e espero que eu tenha meninas prontas para deixar como referência e continuidade desse trabalho que precisa ser feito.
(01:51:40) P/1 - Tem alguma coisa que a gente não falou durante essa conversa que você acha que merece destaque, que você gostaria de falar?
R - Não, eu acho que a gente falou tudo, né? Até o que eu tinha combinado para depois eu já falei.
Eu estou muito feliz de ter participado do projeto, agradeço muito o convite, também vou estar lá no outro museu concorrente. (risos) Fico muito feliz de poder ser uma referência do bem para minha comunidade, de poder ter feito alguma coisa. Às vezes eu acho que deveria ter feito muito mais, poderia ter feito muito mais, mas é aquela tal coisa, às vezes faltam condições também para você fazer. Mas de uma coisa eu estou certa, eu vivo feliz porque não me vendi para ninguém, não vendi os meus ideais e é aquilo que eu falo, às vezes por falta de condições você não teve a oportunidade de fazer trabalhos maiores.
Teve uma coisa também que eu não falei, que foi o meu lado mais político. Em Belém, devido ao trabalho, consegui ser convidada a ser vereadora, e não fui vereadora, não fui candidata porque o Luiz Mott não queria que o movimento se misturasse com a política - naquele momento ele tinha essa visão. Hoje é um espaço a ser conquistado, é um espaço legítimo de luta e é o único espaço através do qual a gente pode mudar nossa realidade. Você vê o trabalho que a Erika Hilton tem feito, que a Erica Malunguinho fez, que a Ana Carolina está fazendo, então é necessário nós ocuparmos o espaço da política.
No ano passado, nas últimas eleições eu fui candidata. Eu ia ser candidata estadual. A própria diretoria do PT me convidou para ser federal, só que não me deram o apoio que eu precisava para fazer aquela campanha e a minha votação foi muito pouco expressiva. Este ano eu espero que eles me deem apoio.
Eu já sou candidata a vereadora, não por minhas aspirações. Não é isso que eu queria para mim, não é isso que eu preciso para mim, mas é isso que eu quero para minha a comunidade, é isso que eu preciso para minha comunidade, é isso que eu preciso para tentar mudar um pouco a realidade da nossa comunidade. Estou me colocando novamente candidata na política, esse ano como vereadora, e eu espero conquistar esse espaço para que a gente possa tentar mudar um pouquinho a favor da nossa comunidade de travestis e transexuais, que no mínimo merece respeito. E entrando lá eu vou lutar pela minha comunidade, vou fazer tudo que tiver ao meu alcance para fazer um trabalho muito bom, a exemplo da Erika Hilton, do que ela tem feito.
Essa referência política é o que nós precisamos, é uma das coisas que nós precisamos para mudar as coisas a favor da nossa comunidade. Nós precisamos ocupar esses espaços e eu estou em busca disso através da minha candidatura como vereadora. Espero que seja de muita vitória, de muito êxito essa minha jornada.
(01:55:59) P/1 - Então a gente vai para a pergunta final. Como foi para você contar um pouco da sua história para gente hoje?
R - Carregado de emoções, de alegria, sentimento de coisas boas e realizadas a favor da minha comunidade. Em exemplo da outra entrevista também, eu fiquei muito tranquila, muito feliz, porque eu sei que eu estou entregando o melhor de mim, eu estou entregando a minha verdade; isso para mim é o mais importante, eu estar entregando a minha verdade, a minha vida, minha história.
Fico muito feliz por ter sido uma das pessoas escolhidas, é sinal de que a minha história está refletindo positivamente nessa sociedade e nós precisamos de mais exemplos assim.
Eu tenho uma referência aqui em São Paulo, que foi a Brenda Lee. Ela não é uma referência de uma pessoa religiosa, mas ela teve um comportamento muito positivo para nossa comunidade, foi uma referência para nossa comunidade. Fazer o que ela fez, viver o que ela viveu, é uma referência muito importante e é um exemplo de vida. Eu também fico muito feliz por ocupar um espaço semelhante com o meu trabalho, com a minha história de vida e sendo quem eu sou, representando que eu sou. Como eu disse, viver tudo que eu vivi foi uma preparação para chegar nesse momento e poder ser uma pessoa muito aberta, muito franca e dizer que sou militante, que sou ativista, que sou uma pastora trans, que sou articuladora do projeto Séforas. Isso tudo faz parte da minha história e isso tudo me deixa muito feliz e realizada.
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