Programa Conte a sua História
Depoimento de Neusa Ramos Ferraz
Entrevistada por Carol Margiotte e Nori Navarro O. Marchini
São Paulo, 23/05/2018
Realização: Museu da Pessoa
PCSH_HV680_Neusa Ramos Ferraz
Transcrito por Eliane Miraglia
Revisado e editado por Viviane Aguiar
P/1 – Obrigada, Neusa. Neusa, boa tarde!
R – Boa tarde.
P/1 – Obrigada por estar aqui hoje com a gente.
R – O prazer é todo meu.
P/1 – E, para começar, por gentileza, seu nome completo.
R – Neusa Ramos Ferraz.
P/1 – O local e a data de nascimento.
R – Nasci em São Paulo, capital, na Maternidade São Paulo, no dia 19 de novembro de 1937.
P/1 – E seus pais contavam a história do dia do seu nascimento? Como foi?
R – Foi nascimento tranquilo. Eu nasci numa maternidade – para a época... –, Maternidade São Paulo. Só que depois do parto minha mãe teve uma hemorragia. Mas foi controlada, foi supercontrolada e ficou tudo normal, sem problema. Eu tinha uma avó que morava ali, na rua da maternidade, na Frei Caneca. Eu sei que depois do parto nós fomos para lá. Minha mãe acho que ficou uma semana lá, depois nós fomos para nossa casa.
P/1 – E a senhora sabe por que foi batizada de Neusa?
R – Não, nunca ninguém... Aliás, eu sei de uma história interessantíssima! Que eu, era para eu me chamar Margarida. E parece que tinha uma enfermeira, chamada Neusa, que minha mãe gostou muito e me pôs. Eu agradeci muito a ela, porque eu falei que, se ela me pusesse Margarida, ela ia ter que trocar o nome. Ela teria que colocar um outro nome em mim. Mas aí ficou Neusa. Eu acho que foi mais ou menos uma história assim.
P/1 – Muito bom. E o nome dos seus pais?
R – É Gentil Ferraz de Oliveira e Clementina Ramos Ferraz.
P/1 – E a senhora pode falar um pouco sobre eles? Quem eles foram? Como eles eram de aparência, no jeito?
R – De aparência, eram lindos, os dois. Muito bonitos. Se conheceram num baile, os dois, lá em Santana. Os meus avós... Meu avô levava as minhas tias, minha mãe e minhas tias para o baile. E, coincidentemente, meu pai – que morava no Pacaembu – foi num baile lá em Santana, se conheceram, começaram a namorar. E meu pai fazia esse caminho, eu acho que não diariamente, isso eles nunca me falaram, mas ele saía daqui do Pacaembu para ir para lá, para o sítio onde minha mãe morava. E só tinha condução até o Mandaqui. Do Mandaqui até onde meu avô morava, porque era longe, tinha que ir a pé. Então, acho que foi uma história de amor. Para mim, foi. Para mim, só pode ter sido, porque a distância e tudo o mais. Mas namoraram, casaram e foram felizes, com alguma coisa que, depois de adulta, a gente percebeu... Mas foram felizes, sim. Viveram 49 anos casados muito bem.
P/1 – E as duas famílias são de São Paulo?
R – Não. Meus avós eram de Portugal, portugueses, nasceram em Portugal. Minha avó, em Trás-os-Montes e meu avô, em Figueira da Foz. Vieram de lá. Tem uma história bastante interessante que minha avó veio grávida e no meio da viagem ela teve um filho, que é o meu tio mais velho, que chama-se Antônio, que é o mesmo nome do meu avô. E a família do meu pai é de Leme. Eles nasceram em Leme, mas não sei muito da família. Sei pouquíssimo da família do meu pai. Mas sei que eles eram naturais de Leme, meu pai nasceu em Leme também. A minha mãe nasceu aqui em São Paulo, bairro do Pari.
P/1 – E, ainda na parte dos avós de mãe, da parte de mãe, que vieram de Portugal, eles contavam ou sua mãe contava a história que ela já conhecia sobre a vinda deles? Por que que eles vieram? Como foi essa gravidez no navio?
R – Olha, eles vieram. Eu sei de história que foi contada, porque, quando a gente era criança naquela época, não podia ouvir histórias. A gente era tirada da sala para não ouvir história nenhuma. Mas eu sei que o meu avô tinha um primo aqui, que morava aqui, lá na região que ele foi, e chamou o meu avô para cá, naturalmente dizendo que o Brasil era um país de futuro, que ele ia ter futuro. E meu avô veio com dinheiro porque, quando ele chegou aqui, ele comprou terras para morar. Sei lá, acho que foi uma aventura, que ele veio para se aventurar, porque não tem outra explicação. Para mim, foi isso que aconteceu. E ficaram aqui até morrer. Morreram aqui. Ele, meu avô... Eles nunca voltaram para Portugal. A minha avó trouxe a mãe dela para cá, que eu não cheguei a conhecer. Ela morreu antes de eu nascer, minha bisavó. Mas viveu com eles também, o tempo todo. Foi enterrada aqui também. E não sei da família deles lá, isso eles nunca falaram. Então, não sei da família deles que ficaram. Eu tenho o nome dos meus bisavós. O pai do meu avô, os pais do meu avô e os pais da minha avó, eu tenho os nomes deles, data de nascimento, tudo, foto. Mas não sei a história, por que ele veio, também não sei. Acho que foi para se aventurar.
P/1 – A senhora sabe de cabeça o nome dos bisavós?
R – Eu devia ter trazido, porque eu tinha... Não lembro.
P/1 – Fica tranquila. Só se lembrar mesmo.
R – A bisavó é Joaquina, a mãe da minha mãe. E o avô, acho que um era José, um bisavô era José, porque meu tio mais velho tinha o nome do avô dele, e depois os outros dois eu não me lembro.
P/1 – E os seus avós maternos como se chamavam?
R – Antônio e Ana. Mas a gente chamava de Anita. A vida inteira ficou Anita. Ficou conhecida como Anita.
P/1 – E eles contavam a história desse parto no meio do oceano?
R – Não. Naquela época, não se falava com criança. Então, eu fiquei sabendo depois de adulta, que a minha mãe comentou isso, que o meu tio nasceu em alto mar e tinha dupla nacionalidade, isso eu fiquei sabendo. Mas não sei como foi. Nasceu, porque ele viveu e viveu muitos anos ainda aqui no Brasil.
P/1 – E, quando eles chegaram ao Brasil, onde que eles se instalaram, seus avós? A qual cidade eles vieram?
R – São Paulo, direto. Mas onde ficaram, isso eu não sei. Isso eu não sei. Até que ele comprasse as terras, eu não sei onde ficou. E sei que eles compraram terras no Alto de Pinheiros. Depois esse primo dele fez ele mudar de ideia e ir lá para o Horto Florestal, não sei por quê. Porque ele tinha comprado no Alto de Pinheiros terras. Aí eles mudaram para lá, mas só isso que eu sei também porque não tinha muita história que a gente pudesse ouvir. Eles conversavam entre eles, mas a gente não ouvia naquela época.
P/1 – E por parte pai, qual o nome dos avós?
R – Benedito e Maria Madalena.
P/1 – A senhora chegou a conhecê-los?
R – Conheci. Os dois, bastante, bastante. Meu avô era um doce. Era uma graça. Minha avó era mais... Mas meu avô era muito, muito, muito bom. Uma pessoa boa, amigável, amorosa. Minha avó já não era, já era seca. Por parte de pai. O oposto dos meus avós por parte de mãe. Bem opostos.
P/1 – Por que? Os da parte de mãe como eram?
R – Superamigos, superamorosos. Minha avó era superconselheira, sempre ensinava a gente, desde pequena, como a gente devia agir, como devia ser, como devia se postar. Ela sempre foi muito sábia, e eu acho que inteligente para a época dela, porque ela ensinou muitas coisas que eu guardo, que eu acho que tenho em mim até hoje. Eu acho. A Nori diz isso: que eu herdei muito do que me foi ensinado naquela época.
P/1 – E a senhora se lembra de algum ensinamento que tenha sido marcante dessa sua avó por parte de mãe?
R – Uma coisa que ela ensinava a gente era a amar todas as pessoas. A minha avó ensinou a amar, a se respeitar e, numa época que não se beijavam primos, a minha avó fazia a gente se beijar. Ela fazia! Ela dizia que isso fazia parte do amor que a gente tinha pela pessoa. Então, ela fazia a gente beijar, tudo. Com todo respeito, tudo, mas ela ensinava a gente a como se portar, como se vestir, não demonstrar muito sentimento em público. Isso tudo ela ensinou para a gente.
P/1 – E em que momento você ia para a casa de seus avós, tanto de mãe quanto de pai?
R – Bom, dos meus avós maternos, todo final de semana. Sábado e domingo, a gente estava lá! A gente convivia direto. Nas férias, a gente passava uma temporada lá no sítio, porque era longe naquela época. A gente tinha que tomar um trem na estação da Luz, uma maria-fumaça, para chegar lá onde eles moravam. E era uma festa! Pegar o trem para ir passear lá, para a gente era uma festa. E lá era muito grande, muito aberto, juntava com a floresta, do governo, que vinha lá da Cantareira até ali. Depois foi tudo criando bairros, não tem mais. E a gente passeava por lá, andava, explorava, era uma delícia! Era muito bom.
P/1 – E tem alguma imagem dessa presença dos seus avós?
R – Tenho. Sempre bom. Meu avô, para não dizer... Nunca brigaram com a gente. Nunca chamaram a atenção. Gostavam da gente. A única coisa, quando a gente fazia muita folia, meu avô virava e falava: “Valha-me Deus!”. Por causa da molecada. Mas era a única coisa que ele falava, quando ele via que era muita folia junta da criançada. Mas não era bagunça. Muita farra. Porque nós éramos uma porção, muitos primos. Mas sempre bom. Eu me lembro de a gente chegar lá, ele tinha um sítio enorme porque, enquanto minha mãe era solteira, ele fornecia frutas e verduras para o mercadão aqui da Cantareira. Ele fornecia. Então, ele tinha muita fruta, muita fruta gostosa. E, quando a gente chegava, ele já vinha trazer para a gente, a que ele já tinha colhido do pé. Ele ia pegar ovo – é uma história muito interessante – ele ia pegar ovo da galinha enquanto estava quente. Ele fazia um furinho em cima, embaixo, fazia a gente chupar quentinho, que ele dizia que fazia bem para a saúde. Muito! Comi muito, muito ovo cru. Não tinha perigo de salmonela. Porque as aves eram criadas ali no pasto, na frente de casa, no sítio, andavam por lá. Tinha uma vaca também, que ele tirava leite quente e dava pra gente tomar. Então, a gente era saudável, viu? A gente foi bem saudável, porque tinha fruta, verdura, legume, tudo no sítio dele. A gente comia tudo de lá.
P/1 – Tem lembrança de alguma fruta que ele oferecia para você?
R – Caqui! Um caqui que já não existe mais, que era desse tamanho assim! Chamava caqui “coração de boi”. Ai, gente! Pena que eu não tirei foto. Ele era imenso e ele era doce, doce, doce, doce demais. Era uma delícia! E ele sempre pegava os mais bonitos e guardava para a gente quando chegava. Era muito bom. E a minha avó fazia batata-doce assada no forno a lenha porque eu gostava. Então, sempre que eu chegava lá tinha batata-doce assada para eu comer. Eu gosto até hoje, viu? Até hoje. Então, eles faziam essas coisas pra gente. E a gente brincava no meio dos bichos: tinha pato, tinha galinha, tinha porquinho, tinha boi, tinha cavalo. A gente andava a cavalo, era uma delícia! Era muito gostoso. Eu tive uma infância bem gostosa, bem livre, bem no campo, andando bem à vontade, embora eu tivesse bronquite e, de vez em quando, eu tivesse uns acessos. Mas, fora isso, eu brincava bastante.
P/2 – Era na Serra da Cantareira, então, era São Paulo?
R – São Paulo, São Paulo. Não, agora, onde era o sítio do meu avô é um bairro. Chama Vila Amélia onde era o sítio dele. Para você ver!
P/2 – Era uma vida de campo dentro da cidade de São Paulo.
R – Era, era, dentro da cidade de São Paulo. Era uma delícia. E o passeio de trem daqui até lá, a gente voltava de vestido queimadinho porque aquela fagulha do trem vinha e queimava o vestido da gente. Depois era uma festa. A gente achava engraçado até. Muito, muito gostoso, muito. Eu tenho lembranças e saudade daquele tempo, muita saudade.
P/1 – E a senhora tem recordação do dia anterior à ida para a casa dos seus avós? Como é que eram os preparativos de mala? Levava mala?
R – Não. Acho que a gente tinha roupa lá, porque eu não lembro de levar mala, de levar sacolas, essas coisas, não. A gente trazia. Porque meu avó, minha avó preparavam verdura, legume, fruta pra gente trazer. Depois meu pai comprou um carro. Aí já tinha uma estrada. Muito interessante também, porque era uma estrada com mato dos dois lados e, de vez em quando, vinha boiada. Quando vinha boiada, tinha que parar o carro. E esperar passar do lado para depois o carro seguir. Mas muito interessante.
P/1 – E essa estrada hoje qual que é?
R – É a Estrada de Santa Inês, que sai daqui da Voluntários da Pátria, pega a Estrada de Santa Inês e vai para lá.
P/1 – E os avós por parte de pai moravam onde?
R – De pai? Moravam na Frei Caneca, durante muitos anos, que eu frequentei também a casa deles. E depois também mudaram para perto da minha casa, no bairro, depois mudaram para a Capitão Macedo, numa casa que meus pais moraram, que era alugada. Meus pais compraram uma casa, e eles foram morar de aluguel naquela que a gente morava. Foi conversado com o dono, e ele passou o aluguel para eles.
P/1 – E quais as lembranças dessas visitas à casa dos seus avós paternos?
R – Eu frequentava, mas menos do que os outros. Frequentava. Na Frei Caneca a gente se divertia muito. Eu tinha uma prima um ano mais velha que eu, então, tem umas histórias bem interessantes. E tinha uma amiga que chamava Neneia, que éramos nós três. E as irmãs do meu pai eram carolas, mas daquelas carolas de ir para a igreja e ficar fazendo ladainha, ladainha. Elas puxavam a gente e levavam. Só que, quando chegava lá, íamos nós três, adivinha o que acontece? A maior bagunça. A gente caía na risada. Quando começava aquela ladainha, a gente achava uma graça. A gente ria. A gente levava tanto pito, tanto beliscão! Porque estava fazendo barulho. Mas não adiantava. Era melhor não levar. Queria levar, aí já viu! Mas também foi muito interessante. Muito engraçado. Pegado à casa da minha avó, tinha uma família de negros, na época. Eu não tinha nada contra eles, só que eles não gostavam de mim. O preconceito era deles contra mim. Eles gostavam da minha prima, e eu, eles me chamavam de branquela azeda. Não queriam nada comigo. Muito engraçado. O preconceito foi o contrário. Se fosse hoje, eu ia dizer que era bullying comigo, não? (risos) Na época, eu nem ligava. Mas eles não gostavam. Era um mundo de criança também. Era uma família e tinha um mundo de criança. E minha avó paterna também tinha umas amigas, que eram Dona Lavínia, Dulce, que era filha dela, que elas trabalhavam nessas casas chiques aqui da Paulista, naqueles palácios que tinham antigamente. Elas eram cozinheiras e faziam uma comida e uns doces deliciosos. E, quando tinha festinha lá, elas que iam fazer a comida, era muito boa a comida, viu? Muito gostosa, muito. Minha avó, por parte de pai, também fazia uma bala de coco. De vez em quando, ela fazia a gente puxar aquilo que era quente, um horror. Um horror aquilo. A gente tinha pavor. Quando ela começava a fazer aquilo, a gente saía correndo, ia embora, para não ter que ajudar a puxar aquilo.
P/1 – Aí depois vocês comiam?
R – Ah, com certeza! Era gostoso, era bom. Era muito boa. Umas lembranças assim... Morava ali, bem perto da Avenida Paulista, então, a gente subia e ia brincar no Trianon. Quando estava lá na casa delas, a gente fugia. Não é que a gente fugia. A gente fugia. Eu e a minha prima, que chamava Eunice, e a Neneia, a gente fugia e ia brincar no Trianon. Porque a Avenida Paulista não era o que é hoje. Você podia atravessar a rua tranquilamente. Só passava bonde lá. Carro era um ou outro. Então, a gente ia brincar no Trianon lá.
P/2 – Que não era um parque fechado. Era aberto?
R – Era aberto! Era totalmente aberto o Trianon, totalmente. E a gente brincava lá. Não tinha perigo nenhum também. A gente brincava e depois voltava. Era pertinho, era só virar ali, descer a Frei Caneca. Minha avó morava em frente à Igreja do Divino, que acho que ainda existe essa igreja ali. Minha avó morava ali. Que tinha até um cônego que morava do lado. De vez em quando, a gente ia na casa dele. É um barato! Tinha uma senhora que cuidava dele, de vez em quando, a gente ia lá. Era muito engraçado. Quando meu pai faleceu, ele me telefonou até. Ele soube que o meu pai tinha falecido, ele me ligou. Porque ele conhecia bem a gente.
P/1 – E o que vocês faziam na casa do cônego?
R – Sei lá. A gente ia brincar. Porque a gente só brincava naquela época, não podia fazer outra coisa. Rezar, a gente não ia com certeza (risos). Não íamos. A gente ia brincar. Ele era uma pessoa boa. Então, a gente ia lá. Tinha uma senhora que cuidava da casa, a gente ia lá brincar.
P/1 – E, Neusa, quando seus pais se casaram, onde eles foram morar?
R – Ali mesmo, na Vila Clementino, na Rua Otonis, que é perto da minha casa. Só que era bem próximo da Domingos de Morais.
P/1 – Mas essa é a casa da sua infância?
R – Foi onde eu nasci, mas eu não lembro. Porque, logo depois, da minha infância, na mesma Rua Capitão Macedo 196. Essa foi a casa da minha infância.
P/1 – E, além da senhora, seus pais tiveram outros filhos?
R – Uma filha. Uma filha a mais, que é três anos e sete meses mais nova que eu.
P/1 – Que se chama?
R – Maria Célia.
P/1 – E como que era a casa onde você e sua irmã passaram a infância? Você consegue descrever ela para mim?
R – Consigo. É uma casa que está lá até hoje. Era uma casa com dois quartos. Lá em cima, tinha dois quartos só. Embaixo, tinha uma sala, cozinha e banheiro. Mas o quintal era enorme. O bonito era isso, porque tinha um quintal enorme. E a casa era desse tamanho, mas tinha um quintal muito grande, e meu pai – que gostava de marcenaria artística, que ele tinha feito um curso –, ele fez balanço, fez escorregador pra gente. Fez uma porção de brinquedos de criança daquela época. E era um jardinado bem grande, e ele pôs tudo lá, e a gente brincava ali. Mesmo a bicicleta, quando a gente ganhou, dava volta em volta da casa, a gente andava de bicicleta numa boa. Quando a gente não ia para o Ibirapuera andar de bicicleta, que era mato. Não tinha estrada, não tinha nada. Tinha caminho só. A gente pegava a bicicleta, descia e ia passear no Ibirapuera, lá dentro.
P/1 – Mas isso já não é tanto na infância, né?
R - Na juventude.
P/1 – Na juventude.
R – Passando da infância para a juventude.
P/1 – E ainda nessa infância, quais eram as brincadeiras de que vocês mais gostavam?
R – Ah, brincava de uma porção de coisa. De passa-anel, de esconde-esconde, de que mais, hein? Nem lembro mais. De amarelinha. O que mais? Umas coisas assim. Andava de bicicleta, eu sempre gostei de andar de bicicleta. De patim, eu tinha patim naquela época, que era um patim muito legal. Era de carrinho de rolimã, eram quatro rodas. Pesava uma tonelada. Mas eu punha no pé aquilo, saía pela rua, ia andar, passear, de tanto que eu gostava. A minha irmã nunca andou. Só eu.
P/1 – Quem chegou primeiro: a bicicleta ou os patins?
R – Acho que as duas coisas ao mesmo tempo. As duas coisas. Só que minha irmã não quis o patim. Ela não conseguia se equilibrar em cima do patim. Eu que andava bastante. E bicicleta, nós tivemos mais ou menos na mesma época. Devia ter dez, onze anos, por aí, quando ganhei a bicicleta.
P/1 – A senhora lembra quando a senhora ganhou a bicicleta?
R – Eu acho que devia ter dez, onze anos, por aí. Porque já era uma bicicleta grande, que, depois de jovem, eu continuei andando nela. Já era grande.
P/1 – Mas foi um presente em alguma data comemorativa?
R – Não, eu acho que meu pai comprou para a gente, para a gente se exercitar um pouquinho. Ele sempre foi muito atleta, meu pai. Fazia sempre ginástica. Na época dele, ele sempre fez muita ginástica. Então, ele comprou para a gente se exercitar mesmo.
P/1 – E ainda na infância da senhora, como que era a rotina da casa?
R – Deixa eu lembrar. Acho que era uma rotina normal: acordar de manhã, ir para a escola, voltava da escola, fazia a lição. Aí, com sete anos, que foi quando eu comecei a estudar, minha mãe me pôs para estudar piano. Eu fui estudar piano. Estudava piano. E fazia as lições de casa. Depois, brincava, eu tinha tempo para brincar. Que hoje não dá mais para fazer tudo, mas eu acho que os dias eram mais longos, com certeza. Porque dava para tudo. Dava para estudar duas horas de piano por dia, dava tempo de fazer lição e dava tempo de brincar. Depois jantava. E depois do jantar, era cama, porque não tinha televisão, não tinha celular, não tinha nada. Era cama.
P/2 – Vocês tinham alguma tarefa na casa?
R – Minha mãe, quando a gente levantava, tinha que fazer a cama. Isso ela ensinou desde pequenininha: “Vocês levantem e arrumem seu quarto!”. E a roupa também, ela fazia a gente também arrumar, pendurar. Quando tinha que lavar, dar para ela lavar. Mas sempre deixar arrumadinho o quarto. Ela nunca admitiu que a gente deixasse bagunçado. Quando pegava copo, para tomar água, ela dizia: “Lava o seu copo”. Pegou uma xícara? “Lava a sua xícara e põe lá na pia, deixa escorrendo.” Isso ela ensinou, desde pequena, a fazer isso. Eu tenho o hábito, em qualquer lugar que eu vou, na casa de quem quer que eu vá, eu faço a mesma coisa. É, foi ensinado assim. Mas eu acho que é uma rotina normal a nossa. Aí, depois, a gente ia passear de bicicleta por ali, que não tinha perigo nenhum. Ia até o Ibirapuera, que não tinha perigo. Só passava um bondinho na Sena Madureira, depois que começou a passar um ônibus na Capitão Macedo, que vinha lá da... Não, o ponto final do bonde era ali e do ônibus também, na Capitão Macedo. E do bonde, onde é a Sena Madureira hoje, do bondinho, que ia para o Largo São Francisco. Ou ia para a Paulista também. Para ir para a minha casa, na casa dos meus avós paternos, a gente ia de bonde. Aí, a minha mãe dizia que no bonde eu começava a cantar a música do Touro Ferdinando. E agora está passando um filme, eu vou comprar o DVD para ver como é a música. Porque ela dizia que eu só cantava essa música do Touro Ferdinando. Eu não sei como é a música até hoje. Não, não. Ela diz que falava que o Touro Ferdinando comia as flores do jardim. Isso ela falava sempre, que era só eu subir no bonde e começava a cantar. Gosto de cantar desde criança, está vendo? Por isso que eu estou no coral lá.
P/1 – E, Neusa, a aula de piano, como se deu essa escolha para você estudar piano?
R – Não, não foi escolha. Foi minha mãe: “Vocês vão fazer!”. Naquela época, as moças tinham que fazer alguma coisa. Tinham que estudar alguma coisa de música. Rapaz, se fosse rapaz, era um instrumento qualquer. Mas tinha que fazer um instrumento. Era, como é que se diz? Era a prática das famílias. Era obrigado a fazer. Não é que você quisesse. A mãe obrigava. Mas eu agradeço a ela até hoje. Porque eu gosto muito de piano, gosto muito de música. Gosto de música em geral, mas gosto muito de música clássica. Muito, muito.
P/1 – E a senhora se lembra das primeiras aulas?
R – Lembro, a professora morava ali em frente, pegado à minha casa. Concheta! Era brava, que você nem imagina! Eu não tinha piano. No começo, comecei a ter aula sem piano. Depois, eu ganhei o piano que eu tenho até hoje, o piano que eu ganhei dos meus pais está na minha casa até hoje. Mas a aula era lá com ela. Nas primeiras aulas, é lindo: dó, ré, mi, fá, sol, fá, mi, ré, dó, é isso que a gente aprendia. Depois, foi desenvolvendo, desenvolvendo. Mas eu gostava. E estudava bastante e com vontade. A minha irmã depois foi fazer também. Mas acho que ela não gostava muito porque ela não estudava. Ela tinha um ouvido incrível para música, tem até hoje. Ela me ouvia tocar e ela sentava no piano e tocava o que eu tinha tocado sem pegar uma partitura musical. Sem nada. Ela ia na minha cola. Mas ela não se formou. Eu me formei no conservatório, ela não se formou. Porque ela não lia a partitura, não podia. Mas eu me formei e assim gosto até hoje. De vez em quando eu sento lá sozinha na minha casa e abro o piano, quando vai ver faz uma hora e meia que eu estou tocando. Eu gosto!
P/1 – E ainda nessa época em que a senhora estava aprendendo, tem alguma música que foi supermemorável, de ter aprendido a tocar no piano?
R – Eu sempre gostei muito de Chopin. Chopin, eu tocava a Polonaise de Chopin, que era muito, que era difícil para a época, mas eu gostava muito de tocar, muito. Mas muitas músicas, muitas, muitas. Beethoven eu gostava. Tinha que estudar Bach também, que foi dificílimo, mas fui obrigada a estudar. Villa-Lobos. Tudo! Mas que eu gostasse mesmo era Chopin.
P/1 – E tinha alguma apresentação?
R – Não, não tinha. Eu não gosto de me apresentar em público. Começa por aí. Tinha só nas provas, que você era obrigado a fazer na frente de professores, como se fosse uma banca examinadora, e do maestro, que era o diretor do conservatório. Aí, você era obrigada a tocar. Não tinha como. Tinha que sentar lá para ser aprovada. Você tinha que tocar. E, depois, na década de 70, eu fui aprender órgão. Porque órgão é diferente, você toca com a mão e com o pé. Eu fui aprender, fiz três anos, tirei diploma também. Hoje eu toco órgão e piano. Hoje eu toco órgão na igreja que eu frequento.
P/1 – E ainda eu quero saber da Neusa menina, da Neusa criança. O que ela queria ser quando crescesse?
R – O que eu queria ser? Acho que eu não sabia o que eu queria ser. Acho que naquela época a gente não tinha isso de querer. Porque tem gente... Outro dia, eu vi um senhor comentando que a neta dele falou assim para ele: “Vô, quando eu crescer, eu quero casar” (risos). Eu acho que eu não tinha disso não, porque eu não casei até hoje. Acho que eu tive uma infância tão comum, tão normal, que eu não sei, não sei te dizer o que eu queria. Eu estudei sempre, eu gostava de estudar, gostava de desenhar desde criança, porque eu lembro que no primário – eu, comentando com quem hoje? –, eu achei nos meus achados um caderno de música que eu fiz para uma aula de música e que as notas, eu fiz bonequinhos. Não era nota normal como hoje, era tudo cheio de bonequinho. Então, eu acho que gosto de desenhar desde criança. Gostava! Pegava um lápis e já desenhava alguma coisa. Mas nunca pensei o que eu queria ser, não.
P/1 – Mas a senhora foi desenvolvendo esse seu lado artístico na adolescência?
R – Na adolescência, não tive tempo de desenvolver, porque estudava, eu estudava piano, estudava isso, depois fui fazer colegial, depois fui para a faculdade, depois fui trabalhar. Eu desenvolvi quando eu me aposentei. Aí, eu entrei no Liceu de Artes e Ofícios, eu fiz desenho, pintura, pintura em tecido. Tudo isso eu fui fazer depois que eu me aposentei.
P/1 – Vamos chegar lá ainda. E como que foi entrar na adolescência? Como que foi esse período?
R – Foi, não sei. Foi um período assim, não sei se foi tranquilo, se foi turbulento, sei lá. Foi uma mudança, né? Ainda mais que eu peguei uma adolescência na década de 60, que foi aquela revolução dos Beatles e de Roberto Carlos e de não sei o quê. Então, foi meio que um impacto passar de uma fase para outra. Aí, depois que veio televisão. Depois que veio tudo isso. Eu tive uma infância bem quieta, bem tranquila, de repente teve um boom! Mas acho que eu me adaptei. Porque, não sei, fiquei meio assim. Acho que, na época, a gente fica meio assim, mas acho que foi normal. Eu tinha uma prima que era muito da minha idade, muito amiga, a gente se dava superbem, porque a minha irmã, como era quase quatro anos mais nova, a gente teve contato depois de bem moça. Enquanto criança, não, porque era muita diferença de idade. E a gente se dava bem, mas acho que a gente era mais molecona. Não é como as moças de hoje que, com 14, 15 anos, que já são quase mulheres. A gente, acho que a gente era mais moleca mesmo, viu?
P/1 – E como foi acompanhar a chegada desses eletrodomésticos em casa? A senhora acompanhou a chegada da televisão, a decisão da família de ter uma televisão, de comprar uma televisão?
R – Sim. Mas televisão na minha casa só entrou quando nasceram os netos da minha mãe. Até então não tinha televisão. Ninguém ligava. Minha mãe escutava, assistia, escutava novela pelo rádio. Só tinha rádio em casa. Rádio sempre teve, mas televisão não. A gente nem se importava. Ouvia falar que tinha televisão, mas a gente tinha uma vida assim, sempre fazendo alguma coisa ou outra. Foi quando os netos da minha mãe nasceram que entrou televisão na minha casa. Aí é que a gente começou a assistir. O que eu acho que, sei lá se valeu muito a pena, porque não tem nada. Você começa a assistir televisão... Eu, pelo menos, eu fico procurando alguma coisa que me interessa. Agora, o Arte 1 eu assisto. De vez em quando, eu passo para a Nori algumas coisas que eu vejo lá que são bem interessantes.
P/1 – E como a senhora foi acompanhando a mudança na cidade? A senhora chegou até a comentar da estradinha em que você ia de bicicleta para o Ibirapuera. Conta um pouco para a gente como que foi essa construção da cidade?
R – Foi um boom terrível, né? Porque, quando eu ia trabalhar, meu primeiro emprego foi na década de 60, 62. Eu pegava esse ônibus na minha rua para ir para o Vale do Anhangabaú, porque eu trabalhava na São João, esquina com a 24 de Maio. O ônibus ia super, hiperlotado, e voltava. E o percurso era horrível. O dia que chovia, aquilo tudo fechado. Era um horror andar naquele ônibus. Mas eu enfrentei e ia. Ia trabalhar assim. Não tinha outra coisa, senão o bonde. Que era uma das duas coisas. Mas o bonde eu acho que já tinha tirado na década de 60, só tinha o ônibus mesmo. E foi muita diferença! Eu estava comentando com o motorista que me trouxe da Faria Lima até aqui: eu trabalhei aqui na Costa Carvalho que é pertinho daqui, se eu tivesse que vir aqui hoje de carro, eu não saberia vir. Eu ia ter que pôr um Waze, um Google Maps, alguma coisa para falar para mim, para chegar aqui. Está completamente diferente. Completamente. E tudo! Onde eu morava eram chácaras. Tinha, era um bairro já formado, Vila Mariana foi um dos primeiros bairros de São Paulo, mas na frente da minha casa tinha uma chácara. Descia a rua – Osvaldo conta essa história, ele conhece porque ele era dali também –, depois da Sena Madureira, não existia avenida. Era uma rua em que passava bonde, embaixo eram só chácaras. E tinha um chacareiro lá que consertava pescoço, um barato. Braço, quando entortava, quando alguma coisa, você ia lá. Até o meu pai levou uma vez que eu tive torcicolo. Eu, sei lá, ele sabia fazer isso. Não sei como ele aprendeu. Mas eram só chácaras que tinham por ali. Agora, São Paulo, onde eu moro só tem prédios. Prédios de 20, 22 andares! Foi uma mudança drástica. A gente andava pelo bairro, era um bairro super-residencial. A gente podia andar, podia passear à vontade, podia andar à noite que não tinha problema nenhum. Hoje, você não pode sair de casa. Tem que ficar presa dentro de casa.
P/1 – E, falando dos espaços bons de São Paulo, a senhora estava mostrando pra gente a foto de inauguração do Ibirapuera. A senhora pode contar um pouco como foi esse momento, de espera, de expectativa, e de como foi o dia?
R – A gente costumava passear lá no meio do mato. Porque meu pai trabalhava no [Instituto] Biológico. Do Biológico para o Ibirapuera, a gente entrava por dentro do Biológico, onde meu pai trabalhava, e ia para o Ibirapuera, porque era tudo uma coisa só. Tinha um campo de futebol lá do instituto mesmo, que meu pai jogava futebol lá, e a gente ia brincar. De repente, começou a surgir. Mas isso eu já estava trabalhando, quando apareceu a 23 de Maio, quando foi começar a construção da 23 de Maio. E foi. A gente foi aceitando, aceitando, mas ninguém pensou que fosse chegar no que chegou hoje. Acho que foi muito rápido, de 1960 para cá que deu todo esse... E ficou muito grande, ficou uma cidade totalmente desorganizada, uma cidade abandonada, porque no meu tempo não. Era uma graça. E no meu tempo também... Ah, no meu tempo de criança! Ah, tem uma coisa que eu vou te falar agora: São Paulo era um nevoeiro só. Nessa época, à noite, se você saísse na rua, você não enxergava gente andando na sua frente porque eram garoa e névoa. Era um nevoeiro só e fazia muito frio. Fazia muito, muito frio aqui em São Paulo, por conta de não ter prédio. Porque casas, todo mundo tinha jardim em casa. As ruas eram totalmente arborizadas, ali na Vila Mariana, e eram cuidadas. Eu lembro que uma vez por ano eles podavam as árvores, passavam cal para elas ficarem bonitas. Então, o clima era diferente do que é hoje, completamente! Era muito, mas era muito frio aqui. Fazia muito frio. Muito, muito, muito, muito. Lá no sítio então, era insuportável o frio. E não tinha luz lá. No tempo que a gente era criança, não tinha luz lá. Era lampião, lamparina e vagalume. Tinha vagalume que você nem imagina! Não sei se você sabe o que é vagalume. Sabe? Então, tinha muito vagalume. À noite, era muito bonito se ver também. Mas aí foi. São Paulo também, ali na rua que eu moro, era paralelepípedo e tinha aquela lâmpada fraquinha na rua. À noite, era quase penumbra. Não é o que é hoje, assim claro. E foi mudando. O bairro em São Paulo mudou completamente. Olha, eu trabalhei aqui, na Sabesp [Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo], na década de 70. Hoje, eu não sei andar por aqui mais. Não adianta, eu me perco. Eu não sei. Eu preciso reaprender para andar aqui. Mas São Paulo toda mudou muito, muito, muito, muito.
P/1 – E a senhora comentou do seu pai, que ele trabalhava...
R – No Instituto Biológico.
P/1 – No Instituto Biológico. Qual a profissão dele?
R – Ele era pesquisador científico. Ele fazia pesquisas lá, no laboratório. Ele trabalhava no setor de biologia, era pesquisador científico, que foi como ele se aposentou, como pesquisador científico. Trabalhou 50 anos lá!
P/1 – A senhora e sua irmã chegaram a acompanhar um dia ele no trabalho?
R – Muitos, muitos! A gente ia lá, entrava onde ele trabalhava, ia ver ele trabalhar. Podia naquela época. A gente era curiosa, queria saber como é que era, a gente ia lá, acompanhava. Eu tinha até fotos, mas acho que minha irmã pegou, dele trabalhando, no trabalho. Eu tinha foto dele também. E podia entrar! A gente podia brincar lá no fundo do Biológico. Hoje eles não deixam mais. Se bem que eu fui um dia, eu conversei com o porteiro que meu pai tinha trabalhado lá, ele deixou eu subir. Eu subi no quinto andar para ver a sala em que ele trabalhava. Eles me deixaram entrar e ver, mas é porque ele, acho, gostou de mim. Ele falou: “Ah, deixa ela subir e ver”. E tinha uma pessoa que disse que tinha conhecido meu pai, no dia que eu fui. É, que tinha conhecido.
P/1 – E você ajudava, nessas idas, você ajudava o seu pai a fazer alguma coisa?
R – Não. Aí, não podia, porque era um trabalho todo científico, não podia. Ele tem uma porção de publicações. Ele publicou uma porção de... E tem publicações lá no Biológico, tinha em casa também. Mas deu cupim e comeu tudo. De publicações científicas que ele fazia lá no Biológico. Ele publicou uma porção de coisa. Ele era estudioso também.
P/1 – E, Neusa, conta para mim, como foi seu primeiro trabalho?
R – Eu gostei. Eu quis ir trabalhar. Foi muito interessante porque meu pai tinha um amigo, que era amigo da família também. E um dia ele foi almoçar com a gente, o nome dele era Mopir, ele era jornalista. Eu lembro disso até hoje. E no meio do almoço, eu falei assim: “Mopir, arruma um emprego pra mim?”. Ele falou: “Arrumo! Onde você quer trabalhar? Na Cosipa [Companhia Siderúrgica Paulista] ou na Assembleia?”. Eu falei: “Onde você arrumar!”. E ele me arrumou emprego. Foi aí que eu comecei a trabalhar. Assim, do nada!
P/2 – Quantos anos você tinha?
R – 20, ia fazer 22. Para trabalhar naquela época, para moça trabalhar naquela época, minha mãe e meu pai ficaram de orelha em pé. Eu falei: “Mas eu quero! Eu quero trabalhar, quero ganhar o meu dinheiro, quero ser eu”. E fui trabalhar, trabalhei.
P/2 – E você escolheu o que primeiro: Cosipa ou Assembleia?
R – Ele escolheu. Ele escolheu Cosipa. Ele tinha um diretor que era amigo dele e ele falou com esse diretor, e eu fui trabalhar lá. Eu trabalhei de 62 até 70 na Cosipa. Foi aí que eu vim para a Sabesp, convidada. Mas trabalhei. Era bom, embora enfrentasse todo esse percurso de ir, vir, levava marmita. Olha que delícia. Mudou completamente a minha vida. Ou comia lá, ou, senão, levava marmita para comer. Eu adorava, gostava do que eu fazia. Gostei de ter ido trabalhar fora.
P/1 – Mas qual era a sua ocupação lá? A senhora entrou fazendo o quê?
R – Comecei como auxiliar administrativo. Nunca tinha trabalhado na vida! Eu fui aprender a trabalhar. Fui aprender. Comecei como auxiliar administrativo.
P/1 – E quais eram as primeiras obrigações?
R – Era mais aprendizado, né?
P/1 – Mas a senhora lembra do primeiro dia ou da primeira semana?
R – Eu lembro que eu fui apresentada. Então, ficou todo mundo, acho que como fariam hoje: chegou uma apresentada do diretor financeiro – Breno Asprino, lembro do nome dele até hoje. Olha, apresentada dele. Eu fui lá no departamento pessoal, ficou todo mundo de orelha em pé, né? Um diretor traz uma moça para vir trabalhar aqui. Mas no fim eu me enturmei com todo mundo, eles também acabaram me aceitando, porque viram que não... Eu queria trabalhar, só isso!
P/1 – E o que a senhora fazia com o salário?
R – Ah, ficou para mim praticamente o salário. Porque até então meus pais me davam uma mesada. Eu achava que aquilo não tinha muita... Esse negócio de dar mesada. Ele não tinha obrigação, já na idade que ele estava, de me dar mesada, pagar minha faculdade. Eu achei que já estava na hora de eu fazer alguma coisa. E foi completamente o oposto da minha irmã. Minha irmã nunca pensou assim. Mas eu pensei. Eu falei: “Não! Está na hora de eu ir e defender o meu! E fazer o que eu quero. Aí, o que eu quiser comprar eu compro. Se eu quiser passear, eu passeio. Mas com o meu dinheiro. Sem sair do orçamento deles”. Foi o que eu pensei e era isso que eu fazia.
P/1 – Mas a senhora já estava na faculdade nessa época?
R – Estava na faculdade. Aí, eu parei porque eu tinha que me transferir para a noite. Eu ia sair 11 e meia da noite para chegar em casa não sei que horas, porque eu ia depender de bonde e de ônibus para depois, no dia seguinte, acordar e, 8 horas, chegar no serviço. Aí, eu parei.
P/1 – A senhora pode contar para a gente como é que foi essa escolha pelo curso? Qual esse curso?
R – Eu fui fazer Direito. Não sei se foi muita escolha. Naquele tempo, tinha o clássico e o científico. O científico ia ou para a área de medicina ou de eu não sei se de engenharia, não sei o que era, só sei que era. E o clássico você optava por outra faculdade, Pedagogia, Direito. E eu me entrosei mais no clássico porque no científico tinha muita matemática, química, biologia, que eu não era muito, não gostava dessas matérias. Fiz, mas não gostava. Então, eu acho que, mais por isso que eu fiz. Mas aí eu não sei, não gostei muito do curso de Direito. Eu podia ter mudado, se eu não tivesse trabalhado. Eu poderia ter mudado para outra coisa. Mas, como eu decidi trabalhar... Mas eu não me arrependo também, não, porque eu fui bem sucedida no meu trabalho, muito bem.
P/1 – A senhora ficou até quando nesse primeiro trabalho?
R – De 62 até 1970.
P/1 – Porque, depois, a senhora acabou fazendo o quê?
R – Eu fui convidada... Naquele tempo, existiam sete empresas que forneciam água aqui em São Paulo, que eram DAE [Departamento de Água e Esgoto]... Tinha uma porção de nome que eu não lembro. E o governo acabou com elas, que fusionou em uma só que era a Sabesp. Foi criada a Sabesp. E, quando foi criada a Sabesp, foi designado para presidente um funcionário que era da Cosipa, que era um general, que era um graça, que eu amava, ele era uma gracinha. E ele me convidou para ir trabalhar com ele, porque ele precisava de alguém de confiança dele. Ele não podia ficar com ninguém das outras empresas, porque acho que estavam viciados com os problemas. Aí, eu fui para lá, trabalhar com ele. Trabalhei dois anos com ele na Sabesp. Além de unir, ele fez uma limpeza em tudo aquilo que já existia naquela época, como existe hoje. Eu acho que ele foi designado mais para isso mesmo. Para fazer uma limpeza lá para erguer a empresa. Para erguer. Não sei se valeu muito a pena. Mas, se ele fosse vivo hoje, acho que ele ia dizer: “Não valeu nada o meu esforço”. Mas foi, ele tentou, ele fez, e eu trabalhei com ele durante dois anos. Ele era uma pessoa incrível, eu gostava muito, muito. Numa época em que ninguém gostava de general... Mas ele era uma pessoa incrível! Ele era como um pai para mim. E ele me tratava como filha. E eu fiquei lá, de confiança com ele, fazendo todos os trabalhos que tinha que fazer.
P/1 – Qual o nome dele?
R – Luís Felipe Galvão Carneiro da Cunha. Ele era general do exército. Ele era amigo do General Figueiredo, que depois foi presidente da república, que na época era chefe do SNI [Serviço Nacional de Informações]. Acho que ele foi mais indicado por isso.
P/1 – Como era trabalhar nesse ambiente tão masculino? E com um tema não tão fácil, né?
R – Ah, eu me sentia à vontade, sem problema, sem problema. Desde que eu comecei, era mais masculino do que feminino. Tinham poucas mulheres trabalhando, mas eu sempre me sentia à vontade.
P/2 – Você era secretária dele?
R – Secretária. Secretária executiva dele. Porque na própria Cosipa eu passei para secretária executiva. Na Cosipa, eu comecei como auxiliar administrativo, depois eu trabalhei no departamento médico, cuidando de toda aquela parte de médicos, porque era como se fosse convênio médico. A empresa pagava, era uma escala progressiva: quem ganhava menos, pagava... Quem ganhava menos, pagava menos o plano, o tratamento. Quem ganhava mais, pagava...
P/1 – O equivalente.
R – O equivalente. E eu fazia todo esse serviço lá, burocrático, era eu que fazia. Eu fazia as guias que mandavam para o médico, depois fazia os cálculos. Quando voltava, tinha que fazer os cálculos, para ver o que um ia pagar, outro ia pagar. Eu fiquei trabalhando nisso. E depois eu passei para secretária executiva. Aí, eu assistia às reuniões de diretoria e fazia as atas de reunião de diretoria. Isso ainda na Cosipa. Eu que fazia as atas todas. Eu assistia às reuniões e fazia as atas. Foi aí que eu falei que eu fiquei cega, surda e muda. Porque, a partir daí, eu não ouvia, não falava e não sabia de nada. Por quê? Escutava de tudo e mais um pouco e tinha que selecionar tudo o que eu escutava para fazer uma ata de serviço. Mas me dei bem também, nunca reclamaram da minha presença lá, não.
P/1 – Mas tem alguma coisa que hoje a senhora pode contar para a gente do que rolava nessas reuniões? De assunto?
R – Tudo, tudo o que você possa imaginar, numa reunião de diretoria, de uma empresa grande, que era de economia mista, mas que pouco se podia escrever. Falava-se muito e pouco se podia escrever. Então, você tinha que selecionar o que você podia escrever.
P/1 – Mas a senhora passou por uma saia justa já em alguma dessas reuniões, de “coloco, não coloco, escrevo, não escrevo”?
R – Não, porque eu sempre ficava atenta no que estava se falando para ver o que eu podia pôr e o que não. Só um diretor financeiro que, de vez em quando, olhava para mim e falava assim: “A senhora não escreveu isso que eu falei, não, né?”. Aí eu dizia: “Não, pode ficar tranquilo, eu não escrevi”. Mas falava-se de tudo. Como devem ser hoje essas reuniões de ministério, essas coisas. Tudo o que vocês possam imaginar e não imaginar.
P/1 – Mas a senhora pode contar para a gente alguma?
R – Não.
P/1 – Ah! (risos)
R – Acho que não. Acho que não. É melhor não.
P/1 – Estou tentando aqui (risos).
R – Eu sou cega, surda e muda ainda. É melhor não falar. Até hoje.
P/1 – E como a senhora levava esses temas para casa? Como que era a volta do trabalho para casa?
R – Eu não misturava casa com serviço. Nunca misturei. Meu serviço era meu serviço, minha casa era minha casa. Então, em casa, eu era leve, livre e solta. Ouvia tudo, escutava tudo, falava o que eu queria. Ao contrário do emprego, em que não podia falar. Não podia! Eu acho que por conta disso é que eu fui convidada para ir para a Sabesp. Por conta disso me convidaram para esse general.
P/2 – Uma assessora de confiança, então?
R – De confiança, de confiança, é. Porque lá ele fazia também relatórios que ninguém podia saber, só eu e ele que sabíamos. Só eu e ele que sabíamos dos relatórios. Mais ninguém.
P/1 – E como foi essa transição para a Sabesp?
R – Eu fui licenciada da Cosipa, ele também. E nós fomos para a Sabesp e ficamos dois anos trabalhando lá. Trabalhamos juntos durante dois anos. Dois anos. E eu ficava trancada, de vez em quando, fazendo os relatórios para ele, que ninguém podia saber. De vez em quando, ele me mandava para casa, para fazer os relatórios, junto com o motorista, depois eu voltava e trazia. Ele mandava o motorista ir me buscar. Que era ultraconfidencial. Que só eu e ele podíamos saber, mais ninguém. Então, eu acho que foi mais por isso que ele... Mas ele era uma pessoa incrível. Muito, muito boa comigo. Sempre me tratou como se eu fosse uma filha dele, uma secretária filha. Ele me tratava sempre assim. Muito amorosamente, gostava muito dele, conhecia o filho, a esposa dele eu conheci também. Muito, muito. E ele tinha tanta confiança! Que eu falei, comentei, quando ele viajava, ele tinha medo de avião, ele deixava um cheque em branco comigo, dizia quanto ele tinha no banco, que se o avião caísse era para eu preencher o cheque e levar para a esposa dele. Tirar do banco o dinheiro e levar para a esposa dele. Olha como ele confiava. Eu fazia tudo isso. Mas ele era uma graça. Eu gostava muito dele.
P/1 – E a senhora recebia esse cheque e onde a senhora guardava?
R – Guardava comigo, na minha casa. Levava para casa e guardava comigo. Depois, quando ele voltava, trazia o cheque de volta para ele.
P/1 – Tinha algum comentário de “não foi dessa vez”?
R – Não! Mas ele sempre falava que tinha pavor de avião. Ele tinha pavor. Ele não gostava. Acho que na cabeça dele ele achava que o avião ia cair. Incrível. Ele era um senhor, mas ele achava que o avião ia cair. Mas não caiu, graças a Deus!
P/1 – (risos)
R – Mas fiquei, a gente ficou até amigos. Ele morava lá no Rio de Janeiro, me convidou várias vezes para ir lá na casa dele. Eu conhecia a esposa dele que, por sinal, o nome dela, não era o nome, era o apelido, era Lula também. Muito engraçado, era Lula a esposa dele. Muito. Mas era uma pessoa boníssima. Muito, muito.
P/1 – E, nessa fase de jovem, quase adulta, quais eram as diversões, nos momentos mais sociais, fora do trabalho?
R – Eu sempre tive muitos amigos, que a gente frequentava, ia para cinema também, que eu gosto – mas não gosto de teatro, então, pouquíssimas vezes fui. E frequentava lugares que eu gosto. Gosto de sair para jantar, para bater papo, para ouvir música. Para ir em teatro, mas mais musical, ou um teatro como o Teatro Municipal, Sala São Paulo, para assistir concertos, aí eu ia muito. Ainda vou de vez em quando agora, mas eu gosto.
P/1 – Teve alguma apresentação que foi memorável para a senhora?
R – Baryshnikov, que eu fui assistir no Municipal quando ele veio para o Brasil. Eu assisti. Foi bem, bem marcante, porque ele era famoso na época: “Baryshnikov vem tocar aqui!”. Depois teve um outro que eu assisti também, Rampal, que é um flautista também famosíssimo que, quando veio ao Brasil, eu fui assisti-lo. E, mais recentemente, eu fui ver o André Rieu, que eu gosto também dele, quando ele se apresentou no Ibirapuera eu fui ver. Os dois shows, os dois anos que ele veio eu fui assistir. Ele é muito alegre, brincalhão. Eu gosto também. Então, isso eu gosto. Há pouco tempo, eu fui ver o sapateado da Cláudia Raia, no Municipal também. Desse tipo de coisa eu gosto de ver, de frequentar.
P/1 – E quais os planos para a vida que a Neusa tinha?
R – Nem sei. Viajar! Sempre quis muito viajar e viajei muito, muito, muito, muito. Eu queria conhecer uma boa parte do mundo. Eu conheci. Não conheci tudo, não. Mas conheci muita coisa. Sempre tive vontade de conhecer outros povos, outras formas de viver, porque, quando eu vou lá, eu não fico... Eu vou aos lugares que os guias levam. Mas eu adoro também parar para conversar com pessoas na rua para saber como elas vivem. Como é que é a vida delas ali. Eu lembro que, numa viagem que eu fiz para Paris, tinha... Uma noite, a gente saiu, uma tarde, final de tarde, começo de noite, tinha camelô na rua. Eu levei o maior susto. Falei: “Camelô aqui em Paris, que falam que é de primeiro mundo? Não acredito!”. Eram negros. Aí eu fui conversar com eles. Eles me disseram que eram africanos e que, para ajudar no custeio dos estudos, o governo deixava eles fazerem uns artesanatos, que eles faziam, até bonitos, eu até comprei uma vez, muito bonitos, que eles faziam. Eles expunham e vendiam nas ruas de Paris. Mas eu fui conversar para saber, por quê? Porque me chamou a atenção isso. Aí, se eu entrasse num lugar que vendesse doce, eu ia perguntar como é que fazia o doce, como é que era. Eu gosto de conversar com as pessoas, aonde eu vou. Eu gosto de saber como eles vivem. Como é o costume deles. Eu não gosto de ficar tirando fotografia. Eu tenho uma ou outra minha assim. Mas eu gosto de fotografar coisas que me chamam a atenção aonde eu vou. Mas foi uma coisa que eu sempre quis fazer, e fiz.
P/1 – Quando que a senhora começou a viajar? Qual foi a primeira viagem que a senhora organizou para ir?
R – Grande, grande foi para a Europa em 1970, que eu fiquei dois meses lá. Foi a primeira grande viagem que eu fiz. Aí, depois disso, já fui para os Estados Unidos, fui para Israel, Argentina, México. Estados Unidos conheço uma boa parte também. Aí, fui diversificando.
P/1 – Como que a senhora se prepara para as viagens?
R – Não me preparo. Eu gosto de ir. Por exemplo, agora, tem uma amiga lá da Cinemateca que, outro dia, ela estava falando: “O meu aniversário é em novembro, vontade de passar em Nova York”. Eu disse: “Então, eu vou com você porque eu sempre tive vontade de ir e nunca tive companhia. Vamos combinar de a gente em novembro ir para Nova York?”. “Vamos!” Assim! Não é que a gente programou nada. Eu gosto assim. A primeira viagem também. Eu estava trabalhando, meu chefe não me deixava tirar férias. A empresa me obrigou a tirar férias. Aí, eu tirei os dois meses e fui para a Europa. Já que eu estou com dois meses de férias, eu vou passear. Mas nunca que eu programe assim, não. Acontece.
P/1 – E a senhora estava falando da década de 70, né?
R – Pois é!
P/1 – Como que era uma mulher viajar sozinha?
R – Ah, eu fui e voltei. Intacta, inteirinha. Estou aqui até hoje. Porque não tinha ninguém que fosse comigo. Uma trabalhava, outra estudava, outra era casada, não sei o quê. Então, eu comprei o pacote de excursão, e fui embora, fui passear, me enturmei. Era uma turma muito boa que estava na excursão. Era tanta gente que foi dividido em dois ônibus. A gente fez a excursão de ônibus. Muito boa. Nosso guia era um historiador que sabia a história de todos os países onde a gente passou. Então, além de ter visto muita coisa bonita, eu aprendi de cada país. Porque ele era ótimo. Ele era formado em três faculdades. Falava sete línguas. Ele era um crânio! A gente teve sorte de pegá-lo nessa excursão. Aí, eu aprendi muito sobre a Europa.
P/1 – Mas e a senhora, nessa vontade de ter uma interação com as pessoas locais, a língua não acabava sendo um limitante?
R – Não, porque naquela época eu falava francês e falava um pouco de inglês. Inglês falava também. Então, dava para falar. Em todos esses países, o inglês você fala. Francês, na França, se você não fala francês, eles não te entendem e viram as costas para você. Ou você fala francês ou você não fala com ninguém. Então, como eu falava, não tive problema nenhum. E tinha o guia também junto. Então, tranquilamente! Com esses africanos, eu falei em francês com eles, eles me entenderam, a gente conversou bastante até. Mas numa boa!
P/1 – E alguma dessas viagens foi um sonho realizado?
R – Bom, eu sempre quis conhecer Paris. Não sei por quê, todo mundo fala, tudo, mas eu amo Paris. Já fui três vezes. Acho que eu gosto mesmo porque eu já voltei duas vezes depois. E, se puder, eu volto de novo. Porque eu gosto. Acho uma cidade, sei lá, é uma cidade diferente na Europa. Ela é uma cidade diferente das outras. Londres é uma cidade de pessoas muito brancas, não tem sol, é um pessoal mais, vamos dizer, é bem rainha lá, acho que é mais ou menos isso. Então, não é um pessoal alegre, sabe? Não é. E Paris não! Eles são alegres. Então, onde você sai, por onde você sai, eles falam que é cidade luz. É mesmo, né? Tem os cafés para você tomar, tem os shows que você vai assistir, de vedete, de uma porção de coisa. Então, é interessante.
P/1 – Teve alguma experiência que é bacana de contar que aconteceu em Paris? Algum encontro?
R – Ah, encontrei um casal que eu conheço aqui do Brasil. A gente estava andando, estava andando com uma amiga minha, de repente, a gente topou com eles, que estavam lá também, passando uns dias em Paris. Nós ficamos a semana, coincidentemente, no meio da rua, a gente estava andando, e se encontrou. Isso aconteceu também quando eu fui para Miami. Eu estava no hotel, aí, alguém grita o meu nome. Eu olhei para trás e falei: “Quem é?”. Uma amiga que tinha trabalhado comigo, que tinha mudado para o Rio Grande do Sul, e a gente foi se encontrar lá em Miami. Então, acontecem umas coisas surpreendentes. Fora o que a gente vai ver de bonito, né? Subir na Torre Eiffel até lá em cima...
P/1 – Qual a sensação?
R – Ah, uma delícia! Eu tenho uma foto lá em cima. No último andar lá, no mirante, lá em cima da Torre Eiffel. Uma delícia! Onde eu subi também no último andar foi no World Trade Center, antes de ele ruir, eu fui lá em cima, no último andar. Centésimo, acho que 111 andares ele tinha. Eu tirei foto lá de cima. A sensação de subir no elevador é horrível. Porque ele faz zum! E chegou lá em cima. Você chega muito rápido lá em cima, então, você chega quase sem fôlego. Mas são uns elevadores maiores do que essa sala aqui. E eu subi. Antes do incêndio.
P/1 – E, Neusa, a senhora se casou?
R – Não!
P/1 – Tanta certeza assim: não! Por quê?
R – Foi uma opção. Eu namorei. Tive decepção, mas poderia ter casado de novo, mas, aí, eu quis viajar, eu quis conhecer o mundo e eu pensei: “Se eu casar, eu não vou poder fazer nada disso porque eu vou ter uma obrigação na minha casa, com o meu marido, com os meus filhos”. E foi uma opção minha. E não me sinto frustrada por isso, não por não ter casado. Tem gente que sente, né? Eu tive uma chefe, e ela era terrível porque não tinha casado. Um gênio que ninguém suportava. E eu não. Na boa!
P/1 – E a senhora chegou a se mudar de casa, da casa dos seus pais?
R – Mudei. Morei sozinha agora, uma época. Depois, a minha mãe estava viúva, ficou meio doente, voltei a morar com ela, estou morando na casa que era dela. E a em que eu morava, que também era dela, ficou para minha irmã, que era muito grande. Então, ficou para minha irmã. E eu estou morando na casa que era dos meus pais. Estou morando lá.
P/1 – Eu gostaria que a senhora contasse um pouco sobre como é a sua rotina hoje.
R – Minha rotina hoje é: acordar cedo, isso eu sempre acordei, porque eu ia para o colégio muito cedo, eu estudava no primário sempre no período da manhã. Quando eu fui para o Pasteur, eu tinha que chegar às sete e 20 da manhã na aula. Se chegasse sete e 21, o portão estava fechado, você não entrava! Quando tinha ginástica, tinha que chegar seis e meia lá, para fazer ginástica. Quando eu fui para o Mackenzie, a aula começava às sete horas da manhã no Mackenzie. Então, eu tinha que sair da minha casa de madrugada para chegar lá às sete horas, que era longe. Então, minha rotina é acordar cedo e, como eu tenho minhas atividades, de segunda-feira é o único dia livre que eu tenho. E tenho os afazeres de casa porque eu moro sozinha. Mas eu faço o que eu tenho que fazer. Tem uma senhora que vai toda semana lá, me ajudar a fazer o serviço de casa maior. Se eu tiver alguma coisa para fazer, eu faço. Se eu não tiver, eu vou passear também. Quando eu estou muito, não tem o que fazer dentro de casa, eu pego o carro e vou para o shopping, passeio lá no shopping, tomo um café gostoso, um doce, dou mais uma volta e volto para casa. Quando está calor, eu tomo sorvete. Às vezes, eu vou almoçar no shopping. Que eu não quero almoçar por ali, que eu não faço comida mais. Faço muito esporadicamente porque eu moro sozinha, então, eu acho que não vale a pena fazer. Tem dias que eu vou almoçar no shopping. Falo: “Ah, hoje eu vou almoçar no shopping”. Vou, passeio. Outro dia, eu encontrei uma amiga minha, logo depois do almoço, nós acabamos ficando até cinco horas da tarde lá. Aí, a gente foi tomar café e conversa, conversa, conversa, fiquei até cinco horas da tarde no shopping. E, depois, na terça-feira, eu faço um trabalho voluntário, na quinta-feira eu também faço o dia todo.
P/1 – Onde que é o trabalho voluntário?
R – Na igreja que eu frequento, lá na Mooca. É um trabalho para os pobres. Para as pessoas pobres. Então, é um trabalho voluntário muito diferente, que são compradas coisas para distribuir para os pobres. Eu fico mais no almoxarifado de roupas e calçados. Eu trabalho nesse almoxarifado onde é distribuído para todas as pessoas que necessitam, que precisam.
P/1 – Como veio essa oportunidade?
R – Me chamaram, depois que eu me aposentei. Eu tenho uma amiga que trabalha lá há muitos anos. Ela quase que chefia o trabalho lá, esse. E um dia ela me ligou, se eu queria ir trabalhar com ela. Como eu estava aposentada, sozinha, minha mãe tinha falecido, eu fui e me sinto supergratificada por fazer isso. É muito gratificante. Eu vou, nesses dois dias, eu fico das dez horas da manhã até umas quatro, quatro e meia da tarde lá. Aí, volto para casa, faço alguma coisinha, às vezes vou tomar uma sopa na padaria. Ou, senão, se eu tenho alguma coisa, como ali mesmo, fico ali. Quartas e sextas também eu vou na Cinemateca, que tem as atividades que são ótimas, muito boas, a gente faz ioga, faz tai chi, tem a Nori, que é ótima, a gente tem canto e agora vamos ter desenho também. Então, faço essas atividades lá. Geralmente, eu saio de lá com uma amiga ou duas, que é a Irene. Aí, a gente vai passear. Ela ama passear. Então, a gente está fazendo muito passeio turístico por São Paulo. A gente está passeando bastante. Bem, bem. A minha vida é assim.
P/1 – E a gente pulou uma parte. E como foi se aposentar?
R – Eu fiquei, uma hora, que eu estava com 52 anos e, aí, foi a própria empresa que... O meu chefe morreu, quando trabalhava na Camargo Corrêa, que foi meu último emprego, ele morreu, ele era um dos diretores. Eu passei para a Camargo Corrêa Metais. Mas chegou uma hora que essa empresa fechou, e eu já estava na hora de me aposentar, eu me aposentei. Aí, que eu fui fazer desenho, pintura, pintura em tecido. Foi aí que eu falei: “Eu preciso fazer alguma coisa. Não vou ficar parada”. Eu fui para o Liceu de Artes e Ofícios. Saía da minha casa, pegava o metrô, umas pastas enormes, lá ia eu para o Liceu aprender a desenhar, pintar. Fiz três anos isso, três anos. Muito bom. Muito, muito bom. Pintei. Tem umas telas em casa ainda. Muitos desenhos! Mas tem uma infinidade de desenhos que eu fiz. Fiz modelo vivo também, nu, aqui no... Ai, onde é? No Centro Cultural, ali descendo para a Liberdade, na Vergueiro. Fiz modelo nu ali também. Eu fui fazendo mais em arte, mais coisa em arte que eu fui fazendo. E continuo tocando meu piano até hoje.
P/2 – Hoje você está com quantos anos?
R – Hã?
P/2 – Quantos anos você tem hoje?
R – 80.
P/2 – 80.
R – 80 bem vividos, graças a Deus!
P/1 – Neusa, a gente está caminhando para o fim. Eu ainda tenho umas perguntas, mas, antes, tem alguma história que a senhora quer nos contar e que a gente acabou não estimulando a senhora a dizer para a gente?
R – Que eu me lembre, de momento, acho que não. Tem uma vida que a gente foi levando, mas história, história assim, alguma coisa assim emocionante, acho que não. Que eu me lembre, não.
P/1 – Muito bem. E como a senhora se sentiu contando sua história para a gente?
R – Muito bem. É bom. É bom a gente relembrar o passado. Eu falo que a gente lembra o passado, vive o presente e sonha com o futuro, né? Eu estou nessa fase. Eu relembro, estou vivendo o presente e ainda sonho com o futuro. Não sei quanto tempo eu ainda vou ficar aqui, mas o tempo que eu ficar eu ainda tenho sonhos também. Ainda tenho.
P/1 – Pois essa é a nossa última pergunta: quais são os seus sonhos hoje?
R – Ainda viajar. Ainda viajar, que eu gosto muito, que é o que eu gosto de fazer. Gostaria de mudar da minha casa, não consegui ainda por causa de inventário, essas coisas. Morar num apartamento menor, que eu moro em uma casa enorme. Mas eu estou levando também. Isso não está me estressando, não. Eu estou levando. Mas viajar é sempre um sonho que eu tenho. E um sonho que eu tenho é de conhecer a Croácia, que é um dos países que eu não conheço até hoje. E tenho esse sonho, ainda vou conhecer, se Deus quiser. Não sei por que, mas eu tenho vontade de conhecer a Croácia e voltar pela Costa Amalfitana da Itália, que eu já conheço, que é muito bonita. Fazer isso eu acho que vale a pena. Quem não fez, vale a pena fazer a Costa Amalfitana, que é muito bonita. Muito, muito. E não sei se tive, de alguma viagem interessante... Teve muita coisa. De eu subir num camelo em Israel. Nunca tinha subido, andar de camelo. Andei! Nos Estados Unidos também. À Disney eu fui uma vez, para não ir mais também. Gostei! Mas não é o meu fraco. Não é isso o que eu gosto. Passar o meu aniversário em Nova York também agora é um sonho. Se Deus quiser, eu vou. Espero que não esteja fazendo muito frio porque novembro lá já é frio. Espero que esse ano não faça muito, que fique um mês calminho para a gente aproveitar o passeio. Porque é bonito Nova York também. É muito bonito. Eu já conheço, vale a pena voltar. É muito cosmopolita, mas vale a pena voltar. E, se der, assiste a um espetáculo na Broadway, desses que de vez em quando vêm para cá. Praticamente é isso!
P/1 – Muito bem, Neusa. Então, em nome do Museu da Pessoa, muito obrigada pela sua história.
R – Ok! Agradeço eu de ter vindo aqui e ter exposto um pouco da minha vida para vocês.
P/1 – Obrigada pelas fotos também! Superimportante registrar isso.
R – Está ótimo!
P/1 – São fotos lindas! Muito obrigada mesmo por trazer, por ter trazido e também por ter contado essa história para a gente.
R – Eu tinha muito mais, mas não adiantava trazer, porque você ia ficar perdida no meio de tanta foto, viu?
P/1 – Obrigada, Neusa!
R – Obrigada eu, por tudo!
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