E: Então, primeiro eu ia lhe perguntar e pedia que se apresentasse, dizendo o seu nome, o local de nascimento e a data de nascimento.
e: Eu sou Joaquim António Vieira Lopes, nasci numa localidade aqui perto, do Largo do Torre, em Alentém, concelho de Lousada, distrito do Porto. Como todas as cria...Continuar leitura
E: Então, primeiro eu ia lhe perguntar e pedia que se apresentasse, dizendo o seu nome, o local de nascimento e a data de nascimento.
e: Eu sou Joaquim António Vieira Lopes, nasci numa localidade aqui perto, do Largo do Torre, em Alentém, concelho de Lousada, distrito do Porto. Como todas as crianças, tive uma juventude feliz. Era o único rapaz da família e tenho quatro irmãs, duas mais velhas e outras duas mais novas. Na aldeia, éramos sete rapazes, mas eu sempre fui criado num ambiente feminino. Aos cinco anos fui para um seminário em Santo Tirso, e estive lá até aos doze anos. Depois, uma irmã minha mais velha disse-me que os padres cortavam as pilinhas… [risos] e eu comecei a ficar com aquilo na cabeça e acabei por um dia fugir. Eu não voltei. Daí fui para o ciclo preparatório, só fiz um ano no ciclo, passei logo para o Liceu, mas já trazia estudo do Seminário, então estava aventado. Gosto muito de pintar, de desenhar, de ler. Gosto muito de cinema e teatro. Gosto de arte. Sou muito aventureiro. Estive na Marinha de Guerra Portuguesa, estive lá quatro anos. E de há vinte anos para cá, isto é, desde 2006 para cá, a minha vida mudou. Eu divorciei-me. Tive um casamento normal, como toda a gente. Tenho quatro filhos, três meninas e um rapaz. Em 2006, quando tinha, como diz o outro, [impercetível], quando tinha drogas, álcool, era muito dinheiro e estava perdido. Acabei por pedir o divórcio, divorciei-me e fui embora. Parti. Fiz a mala, fechei e fui embora. Estive 16 anos sem vir a Portugal. E, por assim dizer, fazia a vida de “playboy”. Trabalhava… Eu gosto de trabalhar, de me sentir a fazer coisas bonitas. Gosto de servir - sou serviçal por natureza. E, digamos, nestes vinte anos… Não sei, não dei conta deles muito bem. Mas, há três anos, vim cá para renovar o Bilhete de Identidade a Portugal, e com esta coisa do Covid… a minha vida teve um câmbio dramático, uma mudança drástica, por assim dizer. Eu dei conta que os filhos já eram grandes, estavam todos em grande, e que eu não tinha nada. Como a mãe já tinha morrido… costuma-se dizer que quando morre a mãe, morre metade do ser, não é? E, deu-me conta que estava sozinho, perdido. E ainda estou, se não estava aqui, claro. Não estava no albergue. Foi coisa que eu nunca me imaginei, que um dia viesse a ter necessidade de um teto. E é isso. É assim, lá, alto, como sempre.
E: Eu vou voltar um bocadinho atrás. Acho que não me disse a sua data de nascimento...
e:
A minha data de nascimento é 1 de abril de 1963.
E: Como é que lhe chamavam na altura?
e: Quim. Na escola, era Vieira Lopes. Mas, em casa, era o Quim.
E: E qual era o nome dos seus pais?
e: O pai era Manuel Lopes da Silva, e a minha mãe era Maria do Carmo Vieira.
E: E o que é que eles faziam?
e: O pai era carpinteiro. Andava na escola, na oficina de carpintaria em Vila do Conde. E era um carpinteiro desses que vão ao monte, cortam árvores… fazem tudo aquilo que se pode fazer no mato. E a mãe foi sempre doméstica e comerciante. Vendia doces regionais, nas festas. Quando eu ia ver o meu pai, porque o meu pai andava sempre por fora, quando, por exemplo, quando ia a Bragança, sempre levava bordados, e trazia castanha, ou azeite, coisas assim do género. E vendia lá na terra. Vendia os bordados aos senhores, os engenheiros, os diretores e tal. E na volta, trazia azeite, ou tudo que tinha na época, castanha, ou assim, trazia para vender na aldeia. Sempre foi um comerciante. O sonho dela era ter um restaurante ou um café. Nunca o fez, porque as minhas irmãs não queriam ir lá sozinhas e também não sabiam… E eu, com 16 anos, também saí de casa. Tornei-me independente. Fui para Lisboa fazer o curso de indústria hoteleira (cozinheiro, pasteleiro, doceiro, biscoiteiro). E já não voltei para casa. Então, foi acabar o serviço militar e casar-me.
E: Sabe a origem da sua família?
e: Sim, tenho a história, mais ou menos, um pouco dos meus pais. Mais da minha mãe, claro. Porque eu sou da aldeia dela, sou natural da mesma família, porque lá na aldeia, se for a ver, tudo é a minha família, não? Todos parentes. E do meu pai tenho pouca. Eu sei que tinha dois irmãos, que os conheci. São dali da zona de Vila do Conde, Santo Tirso. Mas não tivemos grande relacionamento, a não ser naqueles dias de festa, em que eles vinham fazer uma visita por ano. Da minha mãe sim, conheço tios, tios-avós, primos… Os meus filhos não sabem onde eu estou, porque não conhecem a minha situação… eu não digo grave, mas pronto, para mim, é grave. É grave a minha situação. Não sabem que eu estou a passar esta fase. É um orgulho besta, como diz o brasileiro, não é? Um orgulho besta, mas enfim... Como sempre fui muito autónomo, era mais para manter a confidencialidade. Não gostaria muito que eles soubessem que eu estou nesta situação, porque eles estão bem, porque estão todos na Suíça. E eu como, quando fui embora… eu fui embora por razões não económicas, porque eu estava bem, mas não estava enganchado. Eu não queria é que eles me tivessem de ver quer ao cemitério quer à cadeira. Não queria que os meus filhos tivessem de optar por cruzar para o outro lado da rua… passei um vermelho por cima de tudo e vim-me embora. Até hoje.
E: Mas, nesse tempo passado, quando vivia com a sua família, antes dos 16 anos, não é? Lembra-se de alguns costumes que tinham enquanto família? Coisas que faziam em conjunto?
e: Eu acho que tínhamos costumes, na altura, com todas as famílias. Nós festejávamos o Natal, com aquele espírito de família. A Páscoa era normal. A minha mãe teve sempre uma horta grande, eu lembro que eu me levantava de manhã, ia para o jardim, depois tínhamos para a horta… Eu fui uma pessoa que quando eu queria uma coisa, eles não me davam, eu tinha que trabalhar para a ganhar. Eu lembro que a primeira bicicleta custou 900 escudos, pois tive de ir um mês trabalhar na construção civil. Eu ganhava 30 escudos por dia que naquela altura era dinheiro, não é? Eu andava no ciclo preparatório, e quando já fui para a quinta classe já ia de bicicleta. Muitos trabalhadores iam a pé, porque não tinham dinheiro para bicicletas e eu, claro, já andava de bicicleta. Claro, andava sempre muito bem vestido. A minha mãe fazia questão, já que era o único menino em casa… e a minha educação foi muito boa, com muita empatia e sempre para me pôr no lugar da outra pessoa, para nunca julgar. Ganhei uma boa educação e os meus costumes eram esses. Todos os anos, nas férias grandes da escola, eu havia sempre de trabalhar. Os irmãos da minha mãe que eram padeiros, os três - que já está tudo falecido, infelizmente já chegou a vez deles - e eu sempre ia trabalhar com eles. Uma vez com um, outra com outro, nas Páscoas e nos Natais também, porque ali acaba-se sempre por fabricar mais produtos, então, sempre ia trabalhar com eles. Depois, durante o ano da escola já dá dinheiro para um geladinho ou um cafezinho, mas café não (risos). Tinha as minhas regalias. Era sempre com o dinheiro meu, o dinheiro ganho.
E: Foi sempre ensinado do valor do trabalho, não é?
e: Infelizmente, perdi o valor ao dinheiro, quando, desde o ano 2000 ou 2006, perdi o valor ao dinheiro, e também por outras coisas, coisas emocionais, etc., mas, mesmo no meu quotidiano e assim…
E: Alguém lhe contava histórias em criança? Gostava de ouvir histórias?
e: Sim, gostava muito. Eu tinha a minha irmã mais velha, contava-me muitas histórias. Ela tinha a Bíblia e contava muita história da Bíblia. Lembro-me que me ofereceu uma coletânea de livros do Júlio Verne. Eu gostei sempre muito de ler. Na altura, nós tínhamos a banda desenhada e então, quando os muitos andavam a dar tombos e as cambalhotas atrás de uma bola, eu gostava de ler, de escrever, de pintar…
E: Lembra-se da casa onde passou a sua infância? Como é que era a casa?
e: Sim… ainda existe! Está lá abandonada, mas ainda está! Era uma casa modesta. Por baixo, a gente tinha um quarto meu e uma casa de banho só utilizada por mim. E tinha um grande salão que era onde a minha mãe guardava as coisas da horta e outras coisas. Em cima tinha três quartos, uma sala grande e outra sala mais pequena, que era o comedouro. Depois tinha a cozinha – tinha e tem, que ainda lá está! – tinha o quarto dos meus pais e o quarto das meninas, que dormiam duas em cada quarto, e eu dormia em baixo, embora que dormia mais vezes em cima quando era criança por causa do frio, metia-me no meio de todas (risos). Às vezes íamos todos para o pé da mãe, porque o pai andava sempre fora. Tínhamos as noites do cinema… a minha família foi uma das primeiras a ter televisão na nossa aldeia. Na altura, porque os meus pais estavam a viver no Cachão, numa aldeia perto de Mirandela. Então, eu quando vim para a aldeia onde nasci já tinha 4 anos, então já trouxemos uma televisão. Vocês não imaginam, aquilo aos domingos à tarde… a nossa aldeia estava toda ali para ver a tourada, as tardes de cinema. Eu passei uma infância mesmo feliz. Às vezes penso que foi um sonho ou uma história também que criei, e fico na dúvida: será que foi de verdade? Não sei se estou a viver uma vida paralela, mas enfim...
E: Lembra-se de ter vivido no Cachão ou só tem memórias de...
e: Não me lembro… tenho memórias porque claro, eu tinha 4 anos e meio quando saí de lá, mas há sempre alguma coisa que identifico, mas a maior parte são memórias.
E: E o pai trabalhava na mesma lá e vinha?
e: Ele ficou lá a trabalhar ainda uns anos, mas depois quando se deu o 25 de Abril, aquilo ficou lá uma confusão e desmoronou por completo…
E: Eu estava-lhe a perguntar isso porque nós tivemos umas entrevistas em Vila Flor em que quase todas as pessoas que nós entrevistamos tinham familiares a trabalhar no Cachão, portanto, trabalhei efetivamente, devia ser uma...
e: Sim, porque foi uma indústria que nasceu do nada, não existia nada, a não ser uma estação de comboio, um apeadeiro. Não havia nada e na altura o Marcelo Caetano, que era quem governava enfim, e o Salazar fizeram aquela grande cooperativa e o meu pai foi um dos primeiros a ir para lá. Porque eu acho que há um museu, mesmo em Vila Flor, acho que tem lá um museu onde o meu pai está retratado, porque salvou lá umas pessoas. Um senhor que tinha caído naquelas cubas do bagaço e da aguardente, embora estivesse vazio, mas claro caiu e o meu pai encheu-se de força, foi lá baixo e buscá-los. Pronto, também foi um dos primeiros obreiros a ir para lá trabalhar. Era um encarregado geral de carpintaria.
E: Como é que era a aldeia onde cresceu?
e: No Cachão ou…
E: Não, agora aqui…
e: Aqui, é uma aldeia... é uma freguesia pequenina, tem uma grande quinta, o Bosque de Vilar, agora está tudo bem tratado, mas na altura estava tudo a monte. Tem uma festa muito grande que é realizada agora, também, no dia 15 de agosto, onde dizem que leva o andor mais alto do mundo. Claro, leva 100 pessoas… Depois tem uma ladeira que sobe um bocadinho. Mas é dividida pelo nacional número quinze, que é o porto que vai de Porto de Bragança. Então, a aldeia tem a Estrada Nacional e do lado sul pertence ao Concelho de Amarante, e do lado norte, neste caso, pertence aqui ao Concelho de Lousada, já no distrito Porto. Então, divide os distritos do Porto com o de Vila Real e o de Braga também, porque depois vai por Felgueiras. E a minha terra, que é na Vila de Lousada, fica muito centrada, porque tem Paços de Ferreira, faz fonteira com o Marco de Canaveses, com Penafiel, com Felgueiras, Penafiel e Amarante… então, fica mesmo no centro.
E: Havia muitas crianças na aldeia?
e: Não…
E: Ah, pois já me disse… que eram poucos rapazes
e: Infelizmente, já morreram todos, só ficou cá um. Sim, porque eles, dos sete que éramos, da primária, que íamos à escola, que íamos para o ciclo, e assim só fiquei eu. Mas éramos sete. Mais eram raparigas, embora houvesse mais rapazes, mas não eram todos, porque alguns viviam do outro lado para a estrada, então já tinham que ir a outra escola, já pertencia a outro concelho. Mas, claro, juntavam…
E: Juntávam-se. E quais eram as brincadeiras, as favoritas que tinham?
e: Pois, nós rapazes, tínhamos o jogo do pião, e tínhamos o jogo do espeto que era com um ferro, aquilo espetava no chão e depois rodinhas. Tínhamos o jogo dos botões, que eu tinha uma coleção de botões, que era uma alegria, que também era jogada típica como a carica. E o futebol, como todos, as pedradas, jogar à pedra, com a fisga. E os jogos tradicionais da altura. As meninas, era a macaca, saltar à corda, essas coisas assim.
E: E o Joaquim também brincava com as meninas?
e: Sim, mais, quase sempre, porque
E: com as irmãs...
e: É com as irmãs, e depois eram só meninas ali, havia muitas meninas, e tal. Assim que eu entendo bem as mulheres [risos].
E: E então, iam para a escola todos juntos?
e: Claro.
E: Como é que iam, a pé?
e: Íamos a pé. Porque ainda ficou retirado da escola primária, até à escola, cá em baixo, ainda ficam uns mil e tal metros. E claro que, de inverno era muito frio, claro... lembro-me que a minha falecida avó, aquecia umas pedras, metia-as dentro de uma meia e a gente levava as pedras na mão, aquilo quentinho, e levávamos um cavaco ou dois, também que era para meter na lareira da escola, para aquecer um bocadinho a sala. E tínhamos escola de manhã e de tarde, não é como agora. Entrávamos às oito, saíamos às doze, depois entrávamos à uma e saíamos às cinco, às seis, de inverno é que saíamos às cinco. A professora, na altura, lembro-me que fizemos uma redação sobre a professora, e eu disse que a professora era a segunda mãe que eu tinha -"quem é a professora para ti?", a professora para mim, era uma segunda mãe, era a que estava mais presente, não é? Embora não gostasse dela, mas pronto.
E: Então por que é que não gostava dela?
e: Não gostava dela porque ela implicava lá com um menino, porque eu não sei o que a mãe lhe metia no cabelo, e ela implicava muito com ele. E era má, batia, dava réguadas, aquelas histórias se desses um erro de ortografia, já levavas umas reguadas, se desses dois, levavas duas. Eram outras mentalidades, não era? Quer dizer, naquela altura eu não aprendia a amar, eu aprendi a ter medo. E ela era má nesse sentido, hoje em dia isso não acontece. Acho bem, por um lado, às vezes também exageram, não é?, não podem tocar no menino, ou não podem ralhar, ou é logo processada a professora. Mas os pais também às vezes têm aqueles que são muito rebeldes, são diabinhos.
E: Mas o Joaquim não era diabinho, ou era?
e: Sim, sim [risos] era diabinho, era diabinho, fazia maldades também, mas maldades de
assustar. Gostava de assustar um bocado, quando saíram as meias de licra, lembro-me de uma altura, foi umas meias dessas de seda ou lá o que é, assim de lycra, roubei logo um par à minha mãe e enchi de areia, andei lá com tinta, a pintar de verde e não sei quantas cores. E então, fui à secretária da professora antes dela entrar, e depois da senhora que fazia a limpeza que era a Dona Emília, foi sempre em toda a vida, ainda hoje lá está, eu meti aquilo dentro da gaveta, depois não imagina o susto, porque a Dona Ivone apanhou quando abriu a gaveta. Havia outras coisas, colar coisas com cola, havia lá muitas sapatarias, então, uma altura também, queria cola, daquelas latas velhas, aquela cola de contacto e colei o apagador ao quadro, ainda do tempo de lousa e ela puxava, puxava e aquilo não saia. [risos] Devia estar pesada. É, fazia assim umas asneiras....
E: Mas tinha boas notas?
e: Tinha, exceto a matemática, e português que não é, mas tinha boas notas.
E: Também gostava de ler, portanto, também ajudava.
e: Mas fazia muitos erros ortográficos, ainda hoje, não sei se é porque andei por muitos países, e também andei muitos anos em Espanha, e mesmo hoje, quando estou a escrever, a cada passo, não me sai português, ou português que nós usámos, porque ele está no dicionário igual, só que... quase como o português do Brasil. Eu sempre fui um menino bem-comportado. A questão é o respeito, eu sempre fui muito respeitador. Sempre respeitei os maiores, foi uma coisa que já deu... Não sei se já nasceu comigo, se foi a educação também dos pais, porque a educação foi sempre presente. E a honestidade também. Aquilo que não é meu... Também, uma roubei 5 coroas porque a minha irmã mais velha estava a vender castanha, minto estava a vender melões, lá à beira da estrada, hoje já não se faz, porque vai tudo pela auto estrada, mas naquela altura, aquilo tinha muito trânsito, e ela disse "fica aqui um bocadinho, que eu vou preparar o almoço à mãe". E chegou-se um dos colegas "ah vamos comprar um Kentucky", que era um maço de tabaco que trazia dez cigarritos, e toda a gente pegou em dois e quinhentos e fomos lá comprar os cigarros. E fomos lá para a pedreira, fumar os cigarros, eu e ele e outro, que para isso aparecem sempre mais. E claro, a minha irmã chegou lá, não encontrou lá um quilo, fez as contas, em vez de ter mais, tinha menos, lá foi atrás de nós, e depois tivemos uma conversa eu e ela em casa. Essa minha irmã ainda é viva, são todos vivos os meus irmãos, está em Espanha, também emigrou, muito jovem. E claro, tive uma lição. E às vezes fazia asneiras, os vizinhos queixavam-se de algo, e ela levava-me para casa e dizia "berra, grita!", mas ela não me batia, só fazia que, para a vizinha ficar contente, mas fora disso nada. [risos]Agora malandro fui sempre, um bocado malandro, principalmente com as mulheres. Era, como me chamavam, rouba corações. Fora disso, não, nunca fui assim muito mau. Se disser por estes últimos vinte anos, aí que já tive uma vida um bocado mais complicada...
E: Então, depois dessa altura, começa a crescer, é um jovem. Quando é que começou a sair sozinho, ou com um grupo de amigos?
e: Eu comecei a sair, já andava no liceu, andava em Paredes, e comprei uma motorizada uma casal de duas, claro, depois com a motorizada comecei a abandonar os estudos. E começava a faltar, tinha muitas faltas, portanto, fiquei mal no nono ano por faltas, não foi por outra coisa. E saía, não era muito de... não sou assim aquela pessoa muito social de sair com a malta por aí, não sou, prefiro andar sozinho, ou andar com dois ou três, sempre gostei mais de andar com pessoas maiores, velhinhos, sentar no parque a conversar com pessoas maiores, às vezes íamos a passeios, assim da escola, e eu sempre, ia sempre ao lado de pessoas que soubessem. Portanto, se eu quiser saber, se eu quiser aprender, tem de ser com pessoas maiores, não é com pessoas que têm a mesma idade que eu, porque esses pensam o mesmo que eu. Claro que ia às festas, como toda a gente, claro, quando tinha motorizada, não me faltavam amigos... Mas nunca fui muito de sair, principalmente, eu andava sempre mais com meninas, com raparigas.
E: E esse grupo de amigos, eram amigos da escola, ou eram amigos...?
e: Não, eram amigos da escola. Aos 16 anos estava a trabalhar como pasteleiro aos fins de semana
E: Aí abandonou a escola, então.
e: Abandonei a escola. Fui trabalhar numa pastelaria, lá na Trovoada, como se chama a localidade. E um dia, nos pacotes da margarina, do folhado, tinha um envelope, vê-se que já está pré-pago, né?, não precisa de selo, para fazer cursos de pastelaria. Então, pus lá o meu nome e pus na caixa de correio, mas nunca mais me lembrou daquilo. Eles pagavam o curso, a dormida, a alimentação e davam-me 15 contos para eu ir para Lisboa. E eu lá fui para Lisboa. A minha mãe, minha falecida mãe, tem lá uma irmã, que é a única irmã viva dos irmãos, que é a minha madrinha também de batismo e lá fui para Lisboa. Embora que ela não vive em Lisboa, vivia no concelho de Oeiras, já é Linda-a-Velha, mas para mim era tudo Lisboa. E eu lá fui para Lisboa com 16 anos, lembro-me quando cheguei a Santa Apolónia, pensei que a minha tia vivia ali ao lado [risos], "E agora como é que eu vou para lá?". Até lá ainda foi fácil, porque fui de comboio para Campanha, fui de comboio, era à meia-noite, saía para Lisboa, estava cheio de soldados, na altura havia muito soldado, o comboio estava repleto, uns em cima, outros no chão, aquilo era uma confusão! Eu meti-me lá onde metem as malas e foi lá que viajei, que fiz a minha viagem quase toda, sete horas ali metido. Lembro-me que quando eu saí em Santa Apolónia, "E agora como é que eu vou para lá?", mas lá me disseram e eu lá apanhei o elétrico, até ao Cais do Sodré, depois o comboio de Algés, depois de Algés lá apanhei o autocarro para Linda-a-Velha, para casa da minha madrinha. Onde fiquei lá de fim de semana, porque eu fui numa quinta-feira para baixo. Na segunda-feira, a minha madrinha já foi comigo, ali em Alcântara Mar, onde fui à entrevista, e já me deram a dormida, já me levaram lá a um hotel desses, uma pensão onde eu dormia.
E lá estive 8 meses a fazer o curso, adiantei um mês, não sei porque, mas adiantaram-me um mês, pela experiência que já tinham trabalho, que confeiteiro e tal. Fiz o curso, fui trabalhar, estagiei logo nos Pastéis de Belém, estive lá a estagiar três meses, estive no hotel Ritz, também na cozinha, esfregar panelas, fazer comer, claro também. No hotel Ritz, também a fazer as camas, andar com o respirador, tudo o que é trabalho, que se pode ter na hotelaria. Depois acabou-se o curso, e eu fiquei lá, arranjei lá trabalho numa cervejaria em Algés, numa marisqueira, e fiquei lá a trabalhar também um ano. Ao fim de dois anos e meio venho cá cima à terra, à aldeia, comprei outra motorizada, mais potente, e a minha mãe deu-me dinheiro para tirar a carta, mas eu peguei no dinheiro e meti-o nos correios, havia na altura umas coisas nos correios, e eu pus lá, 26 contos, não, 44 contos, ainda lá estão. Acho que eu [risos]. Daí eu ia para tirar a carta, mas claro, como trabalhava e, sou esbanjador, sou daquelas pessoas que, quando querem uma coisa, se a querem, o conseguem não desisto. Eu não atiro com a toalha assim muito facilmente. Porque, quando eu atiro com a toalha... eu já tenho um problema psicológico... se atiro com a toalha é muito mal. Eu luto se for mesmo de lutar para a frente, ultimamente não, mas prontos.
E: Desde a bicicleta que... já se demonstrava, não é? Tão jovem e "ah quero uma bicicleta, vou trabalhar para a construção civil", demonstrava esse caráter de querer trabalhar pelas coisas que queria, não é? Então, e foi de motorizada outra vez para Lisboa?
e: Não, não, deixei cá.
E: E foi depois lá para baixo?
e: Fui para Lisboa, depois de Lisboa fui para a França. Fui para a França trabalhar também numa pensão, mas não me dei. Na altura, eram as vindimas, fui para as vindimas, depois de lá fui para o Luxemburgo, cortar pinheiros e plantar também. E andai assim até ser chamado para a Marinha. Quando me chamaram para ir prestar serviço militar, que era obrigatório, eu estava em Bragança, na altura estava na escola psicotécnica de Bragança a trabalhar, estava a fazer um curso de viticultura. Embora não goste de vinho, nem gosto de álcool, não gosto, não consumo. Estava a fazer um curso de viticultura quando fui chamado para prestar serviço militar, em 83, e saí em 88. Quando saí da Marinha, tive problemas também da Marinha, que sou casmurro, as pessoas... quer dizer... não me berram, só porque... Quer dizer, ...se vejo que tenho razão, que tenho consciência, que não só eu, mas um coletivo, se acharmos que temos razão... Não sou político, não tenho uma afinidade religiosa, sou religioso, acredito em alguma coisa superior a mim, mas não sou aquele tipo. Acredito no santo vivo, o morto já não salva ninguém. Então, tive problemas na Marinha, fui castigado, fui expulso. No exército não se expulsa ninguém, mas eu fui, para mim, passaram-me à disponibilidade como quem diz "deste não vale a pena, não fazemos nada com ele é melhor passá-lo à disponibilidade". Passaram-me à disponibilidade. Eu daí fui embora, fui embora para a Espanha, estive em Espanha uns 7 ou 8 meses, e vim cá, a Portugal, tinha comprado uma moto na altura lá na Espanha - a Suzuki DR-1000, 7,5 de cilindrada, 2 anos sem cortar o cabelo, então vim a Portugal. E a minha irmã mais nova, que já estava namorava na altura, tinha tirado a carta, tinha comprado um renozito desses e tal e disse "ah vou ver o teu padrinho", que era irmão da minha mãe, que vivia ali naquela zona de Paços de Ferreira, embora pertença a Paredes, mas vivia ali perto de Paços de Ferreira, e eu assim também vou que quero aproveitar para ver, fomos ver o meu padrinho, e as minhas primas, que ele tinha muitas filhas, tinha que já morreu, mas elas ainda cá estão, felizmente. Estavam lá todas a lavar no tanque, eu no sábado, a gente tinha ido para a discoteca, e eu estava dentro do carro a dormir, e nisto ouvi um barulho e estavam lá umas raparigas, as minhas primas e outras miúdas, estavam lá a lavar a roupa, naquele tanque. Fui lavar a cara, fui passar a cara por água e tal, e tava lá uma miúda que eu pedi um bocado de sabão e ela foi assim muito... como hei de dizer... muito bruta, disse-me assim: "Quê?", e eu disse "olha podias ser mais simpática" e ela chamou-me "ai, ganzudo",
que tinha o cabelo grande e tal... Vinha de uma sociedade um bocadinho mais aberta, e não sei o que é que eu lhe disse... ah, pus-lhe a mão, e ela deu-me uma bofetada e eu na brincada disse-lhe esse bofetão pode levar-te ao altar! [risos] Foi o que me saiu na altura, mas levou mesmo! Aquilo passado uns dias, havia as festas lá na minha terra e ela andava lá com as minhas primas na festa, depois fomos lá almoçar a casa, e tal, depois eu fui com elas para a festa também, e passado um mês, estava a viver comigo, e passado cinco meses, ela disse-me que estava embaraçada, que estava de bebé, e disse-lhe "então e que queres? casar?", a gente já saia, saíamos quase todos os dias, eu na altura estava a trabalhar a ajudar um cunhado meu que tinha uma serralharia e eu andava lá com a camião, para trás e para a frente, a cada passo passava por um lá a vê-la. E ela também tinha motorizada, e é motoqueira. Em conclusão, casámos, em 91, dia 7 de dezembro de 1991.
E: Como é que foi o casamento?
e: Ah, casamento, casamento, eu levei 50 convidados, adultos, depois havia muita criança, fui eu que estreei o restaurante onde se fez o almoço, fui eu que o estreei, porque estava em obras ainda, ainda andei para lá colocar-me coisas nas janelas, porque era de inverno, fazia um bocado de frio. E durante 15, 15 anos ou 16, estivemos os dois casados, fomos um casal normal, ela sempre trabalhou, muito trabalhadora, uma mulher de vida não é, às vezes eu lembro-me que ... porque lhe saia um bocado aquele palavreado, quase como todos os portugueses, que em 4 palavras, 3 são asneiras, um palavrão, não sei porquê. Mas pronto, e ela pronto tinha um palavreado muito forte e eu às vezes, as discussões que tive com ela, foi quase sempre sobre isso, porque eu parava, porque claro estavam as crianças, elas tinham tempo de aprender essas coisas. Foi um casamento, foi um casamento feliz, fizemos uma casa, como ambos trabalhávamos, ela é muito trabalhadora, muito senhora de si e, daquelas que os filhos estão mesmo primeiro, e primeiro, também se não fosse assim não me casava com ela. Fiz esse estudo psicológico, eu normalmente tenho essa mania, tenho esse defeito, de sempre fazer um estudo à pessoa quando alguém se começa a acercar muito de mim, fazia-lhe um estudo, sobre como pensa, como age... se vier uma pessoa dizer mal de outra, eu tomo logo princípio que já não posso confiar nela, como é o ditado se hoje diz mal dela, amanhã vais dizer mal de mim, já não posso confiar a tanto com ela. Em 2006, 2007, quando eu me meti em problemas, queria acabar a casa, não queria fazer créditos, porque ela não é, não queria fazer crédito, mas eu nunca, eu nunca fiz.
E: E a casa era lá perto de Paços de Ferreira? À beira da zona dela, ou era?
e: Não, era na minha zona. Então, fizeram-me uma oferta, fazer uns recados, eu fiz uns recados, e depois...como é que hei de dizer, o grupo, a empresa, por assim dizer, foram todos presos, o único que ficou cá fora fui eu, claro, também fui sempre o mais cuidadoso, mas às vezes digo melhor que tivesse sido preso... porque depois comecei a consumir e quando me dei conta, já estava a gastar os lucros, e aquilo que não tinha, já estava a ser complicado. Então, na altura, foi quando ela descobriu, quando eu pedi ajuda, então fomos lá falar com a assistente social e eu fui por seis meses, para uma casa de reabilitação social, que fica em Famalicão, que é um apartamento, que estão lá sete ou oito pessoas. Eu fui para esse centro, todos os fins de semana ia a casa, ela ia-me buscar e levar. Sofri muito. Eu às vezes digo, eu no teu lugar abandonava-te à segunda, mas prontos ela não, ela não, ela nunca desistiu. Eu sim, desisti. Saí, tive seis ou sete meses limpo, como se diz, mas acabava sempre por cair. Estava limpo 3, 4 ou 5 meses e após sair de trabalhar, mais cedo ou mais tarde regressava, e já estava lá outra vez com o pé na poça. E disse não dá, não dá, arranjei trabalho e vim-me embora, fui para a Suíça na altura, foi para nós dois, e depois ela ficou, e foi quando eu pedi o divórcio. Ela não queria de maneira nenhuma, porque pensou que tínhamos que fazer divisões e não sei... e eu disse que não, que não tinha de fazer divisões nenhumas, que ficava ela com tudo, eu não quero nada, só quero isto, que era a mochila, não preciso de mais, fica tudo para ti. E ela assinou, continuei a pagar-lhe as pensões na mesma, até há cinco anos atrás, continuei a ir pagar as pensões que tinha estabelecido, embora faltasse alguma, mas ela também nunca ma reclamou...e prontos.
E: E ela ficou lá na Suíça, então, com os filhos?
e: É, ainda lá está.
E: E então, e quando é que nasceram os filhos? Foi em que ano?
e: Pois a mais velha, a Marina, quando foi ao altar, ela já estava com cinco meses, quase seis. A Marina nasceu a um de maio de 1992.
E: Como é que foi ser pai, nessa altura? O que é que sentiu quando foi pai? Como é que foi esse momento?
e: Eu não sei porque, eu tive tantos bebés nos braços, das mulheres que tinha na casa... a minha casa parecia um Albergue. E, então, eu sempre tive muitas crianças, e ao pegar na minha filha, não sei ... como é que eu hei de dizer, era um bebé mais..., mas eu já tinha cuidado de tantos, mesmo, às vezes, as senhoras lá na terra, numa altura, miúdas novas, ainda com os seus 20 e 30 anos, que tinham os maridos na guerra, tinham bebés, e as vezes iam para os campos, e então, eu era o cuidado. Então, eu ficava com uns cinco ou seis bebés, outros que já caminhavam tinha de ir a correr atrás deles para não se perderem lá no meio do milho... E, agora, o ser pai senti um peso, sabia de antemão que era uma responsabilidade, já sabia, tinha essa consciência. Mas o facto de pegar no bebé, dar-lhe o carinho, já tinha feito tantas vezes, que já não era nada demais. Só que aquele bebé, quer era feio, não sei porque dizem que "ai que bebé tão bonito", com tanto tanto cabelo [risos], depois eu tive que ir lá cortar a coisa, mas quando a enfermeira me deu para a mão... já sabia como era um bebé, já sabia tudo. Só, acho que estava mais preocupado que a mãe, estava mais preocupado com ela porque ela... via-a assim tão desfalecida, tão... parece que tinha emagrecido uns 50 quilos, ela já por si, era baixinha, o seu peso era de 57, 60 quilos, nem isso, 57. Então, é isso, eu fiquei mais com pena dela, fiquei mais preocupado nela, do que propriamente com o bebé. O bebé pronto, era um bebé, era meu, sabia que era meu, estava contente, mas acho que nós que já nos conhecíamos, já tinha dormido tantas vezes comigo, sim, embora estivesse na barriga da mãe, mas já acho que tínhamos um relacionamento. Agora a mãe não, a mãe é que senti-me muito, muito por ela, muito mal, senti muita pena, não era pena, a pena, assim... era sentir que ela passou muito, a mulher deve ter passado por muito. Não queria ser mulher!
E: E depois os outros filhos?
e: Agora o rapaz quando nasceu já foi diferente, foi diferente, o rapaz quando nasceu, eu pensei no meu falecido pai, porque ele queria ter um neto, porque as minhas irmãs só tinham dado raparigas, e ele só tem um neto, que é o meu filho, e então, era como o Lopes III, não é? O Lopes III, só pensava no pai, a felicidade que ia ter quando o apresentasse. Não é tirando o valor à menina, mas acho que o rapaz que... O Lopes III e estava a pensar no meu falecido pai, na alegria, era isso. Acho que foi como conseguir o desejo dele. Desculpe lá emocionar-me
E: Claro, esteja à vontade
e: Foi, foi como conseguir o desejo dele. Foi assim... Realizei o teu desejo... e o meu claro. Mas o dele era esse e foi se calhar colocar-me no lugar dele e sentir o que ele ia sentir, tanto que me emocionei quando peguei no bebé, até a enfermeira disse "quê? não é o primeiro!" [risos], "não, eu sei que não", mas eu sentia outra coisa. E foi, foi um momento, de felicidade, que não volta. A não ser que algum filho meu me dê um. Eu também só tenho um, que é o tal que estamos falando, que é o tal Alexandre, que também está na Suíça, também. Está bem, tem uma empresa, comprou agora um carro de 110 mil euros, e eu digo "porque é que não compraste uma casa cá?" e ele diz "para que é que eu quero a casa?", "ah compras um carro, daqui por uns dias não vale por nada"..., mas pronto, ele é que sabe, não tou nem aí. E é isso, assim. Que mais desejavam as doutoras saber?
E: Não nos trate por doutoras, por favor!
e: É que aqui todo mundo é doutor.
E: Nós não, nós não. [risos] Eu vou voltar aqui um bocadinho atrás, aos seus trabalhos. Então, tem aqui uma relação muito grande com a hotelaria, e com a pastelaria também, até pelo próprio negócio dos próprios tios, que estavam ligados às padarias. Era esse o trabalho que gostava... sentia-se concretizado a fazer?
e: Sim. Mas eu, quer dizer, não gosto de trabalhar quando faço uma coisa, quando faço um trabalho, e eu faço e tenho que gostar daquilo. Mesmo que não goste muito, mas tenho que apreciá-lo. Gosto de fazer o trabalho com carinho, acarinhar o trabalho. A minha falecida avó dizia que o trabalho fazê-lo mal ou bem, que o trabalho é o mesmo. Então, tens que optar por fazê-lo bem, então gosto de fazer as coisas bem. Já para mim, gosto de trabalhar, porque é uma terapia para mim, estar a trabalhar é uma terapia para mim, porque estou ocupado, concentrado naquilo. Mas o trabalho que eu mais gostaria de fazer hoje, na verdade, e eu quando era pequeno dizia que gostava de ser um médico, salvar vidas, ou professor, gostava de ser advogado porque li muitos livros de policial, e havia um advogado que ia sempre por aquelas pessoas que não tinham possibilidades para pagar o combinado e tal. E ele quando via que o cliente que era inocente, então ele empenhava-se a fundo. Lembro-me que numa história, em que ele vende um terreno em Londres ou Inglaterra, para pagar as despesas do tribunal do cliente, que acreditava que o cliente era inocente, mas que era muito dinheiro, então ele empenhava-se. Então eu queria ser um tipo advogado. Eu gosto muito de estar com crianças, com pessoas maiores, gosto de as ouvir, acho-lhes graça, que têm graça mesmo, e gosto de ensinar e gosto de ouvir as pessoas maiores. Histórias como vocês, também gosto de ouvir as suas histórias de vida, embora nos últimos 20 anos, tenha uma história muito triste, muito triste isto é... sou muito playboy, vagabundo, no bom sentido da palavra. Eu creio que quando quero uma coisa, tenho de a conseguir. Dá-me na cabeça que tenho de ir até ao Brasil, eu vou para o Brasil, não tenho problema. Não vou lá, porque se for não volto. Eu tenho lá muita gente amiga, mas... Não sei bem o que gostaria de fazer, quando se costuma dizer "O que é que queres ser quando fores grande?", eu acho que nunca soube responder a essa pergunta, eu queria ser tanta coisa. Repito, gostaria de ser professor, gostaria de ser advogado... sou um artimanhas. Trabalhar, trabalhei em quase tudo. Já trabalhei muito. Na construção civil, na agricultura, pastelaria, restaurantes, serralheiro, acho que já fiz de tudo e acabei por não fazer nada.
E: Então, começou assim a primeira viagem maior, a mudança foi para Lisboa, disse-me que quando chegou lá, depois foi aquela dificuldade para chegar à casa da madrinha. Como é que se chega a uma cidade nova, como Lisboa, muito diferente do que estava habituado? Como é que foi essa primeira impressão que teve ao chegar a esta cidade?
e: Eu senti-me perdido, no meio de tanta gente, no meio de tanto carro para trás e para a frente, todo mundo correto, para trás e para a frente. Eu senti-me muito confuso, senti-me muito perdido. Eu tive aquela sensação de medo, como é que eu posso vir para cá? Como é que me vou desenrascar aqui nestas coisas todas? Tanto carro, para cima para baixo...
Ainda às vezes tenho esse problema, do medo, ainda há dias tive de ir à minha aldeia, e não havia comboios, porque estavam quase que todos suprimidos, tinha que apanhar um autocarro para ir para o metro no São João, depois do São João outro autocarro e eu não fui, na primeira vez não fui, porque não me atrevia a entrar no metro. Vivi em Bruxelas, em cidades como Bruxelas, a primeira vez eu também fico sempre de pé atrás, complico-me muito. Eu complico-me a mim mesmo. Ao final, atrevo-me, eu sou atrevido. Mas sou um tanto ou tanto tímido. Às vezes, lembro-me quando era jovem, havia uma rapariga bonita e tal, que sorria e tal, e eu não me atrevia, tinha medo de levar um não. E isto em comparação, e às vezes no autocarro é a mesma coisa, é perder-me. Porque detesto falhar. Falhaste, falhaste, não passa nada, não aconteceu nada, mas no fundo, eu sinto-me um bocado derrotado. E conforme a idade vai passando, ainda me atrevo menos. Para mim é uma deceção, olhar para mim ao espelho e ver-me com 60 anos, ver o que fui, o que tive, e sentir-me numa posição destas. Vejo-me aqui no Albergue... eu podia me sentir bem aqui, se tivesse como funcionário, adoraria, se fosse na parte de manutenção, se fosse na parte de dar assistência ou assim, mas ver-me como um utente, para mim, é um bocado difícil, porque, sabendo as qualidades que tenho, e aquilo que fui, e aquilo que tive.... Acho que nunca me devia ter divorciado. Mas prontos... já está feito, já não se pode voltar atrás. E, acho que perdi, perdi a noção do tempo, perdi a vontade, por assim dizer, de viver. Tanto que, tentei o suicídio duas vezes, mas por alguma razão voltei a acordar. E é isso. Numa palavra só, estou dececionado. Não só dececionado com o mundo em si, em geral, porque vejo cada vez mais tontearias e essas coisas afetam muito as pessoas, às vezes não ligam, mas a mim afetam-me muito. As pessoas que estão fechadas, todos, aqui, estas pessoas que estão aqui, e crianças, outros fazendo guerras sem sentido, por bens materiais, neste caso pelo gás. No século XXI, acontecem estas coisas, eu que sou do século XX fico dececionado, depois fico dececionado comigo mesmo, realmente, por ter desistido. Simplesmente por isso, porque desisti. Sou, com palavras ditas, um cobarde. Embora as pessoas digam "não, o Quim é um corajoso, porque saltou da ponte e foi salvar o homem", o Quim não é nada disso, o Quim é uma fachada. Eu, perante a sociedade, sou um cobarde. Não atirei a toalha, como antes disse, não sou daqueles que atira a toalha, porque nunca tive a toalha para atirar. Mas, comecei muita coisa e nunca acabei nenhuma. Às vezes perguntam-me as minhas irmãs, mesmo a minha ex mulher, perguntam-me porque "tu não arranjaste nenhuma amiga?", não, porque eu sempre que vejo que alguém se está... a chegar muito a mim, ou que eu vejo é que está a crescer uma amizade mais forte, eu fujo, simplesmente desapareço. Não deixo, tenho medo, por assim dizer, tenho medo de não conhecer outra mulher. Perguntam-me porque não conheço outras mulheres, simplesmente por isso, porque tenho medo, não quero. Não quero só por não fazer sofrer. É que eu sofrer, já estou sofrendo, mas não tenho que estar a enganar uma pessoa que não levou uma vida... para isso prefiro não começar. E como isso muitas outras coisas. Sou um tipo que não segue.... Não tenho política, não sou partidário, mas claro que sou político. Todos somos políticos, não é? A vida em si é uma política. Eu não ligo a futebol, a 22 homens a correr atrás de uma bola, dou mais valor às Olimpíadas, aquelas meninas que fazem aqueles trapézios, e aos meninos; ou o ciclista que corre 40 quilómetros num dia, faz uma etapa de 40 quilómetros por dia, porque é que eu vou ver o futebol? Não tem assunto. Porque há coisas que são muito mais importantes que essas coisas. E é assim.
E: Mas tem objetivos ainda que quer concretizar?
e: Não. Eu estive agora desde dezembro, passei cá o Natal e o Ano Novo, e depois fui para um centro, porque eu estava lá em casa, mas eu não... Eu estive lá dentro de casa, isolava-me e simplesmente não saía, não comia. Então, arranjaram-me a vir para cá, depois a diretora perguntou se eu queria ir para um centro, e eu até pensei que era um centro desses de reintegração social, como estive quando era casado, mas não, aquilo era um centro de [impercetível], estava muito bem para miúdos de 20 anos, para eles estava bem. Eu estive lá quatro meses, com grande pena deles, vim-me embora, pensei que ia para descansar e ... voltei para aqui. Mas os meus objetivos, na verdade, não. Era dormir e não acordar, mas claro, eu fico assim com aquela... não vou fazer, quanto não fizer, isto ou o outro; era reunir outra vez a família, sei lá, como eu fiz há cinco anos atrás, reuni filhos, ex-mulheres, que eu com esta moça fui casado duas vezes, casei a primeira vez pelo civil, antes de ir para a tropa, mas a menina era uma menina lá da terra, como uma irmã, foi criada lá com a gente, só que um dia, fomos para uma festa, do São Gonçalo de Amarante, tanto que ela tinha namorado e tudo, mas, prontos, aconteceu. Ela ficou de bebé, eu já estava nos Açores, e ela escreveu-me a dizer que estava de bebé, que eu tive um filho dela também, já tem 42 anos. Então, nós casámos, tanto que eu nem vim a Portugal, estava lá nos Açores, lá os Comandantes nos Açores, casei só pelo civil, porque era desonra uma mulher solteira ter um bebé. Na altura era assim a mentalidade, ainda é em alguns sítios. Então, a gente casou, estivemos dois anos, quase o tempo que eu estive na tropa. Hoje já é casada, é uma das minhas melhores amigas, assim como a minha ex-mulher. Então eu reuni a gente toda, fomos jantar, que era mais do que no dia de casamento... E é isso o meu objetivo é fazer assim, outra vez, uma festa de despedida, mas nunca chego a despedir-me, na verdade, sempre que o faço acordo, não sei porquê, se esse superior não me quer lá em cima, acho que ainda tenho muitos pecados para pagar aqui. Eu costumo dizer que carrego a cruz das minhas frustrações, ou dos meus pecados... Escrevi um dia, carrego a cruz dos meus pecados e bebo o [impercetível] das minhas frustrações. Mas pronto, tive uma juventude muito feliz, fui um menino privilegiado, por assim dizer, em tudo, sempre tive tudo, sempre que queria alguma coisa tinha, também trabalhava para ela, "queres isso? pois tens de ir trabalhar para ela" e eu ia. O trabalho que era para mim independente, não é o trabalho que me mete medo. E quando, já repito, quando vou fazer um trabalho, faço-o com carinho, fazê-lo bem ou o melhor que posso, ou o melhor que sei. Agora estou ali a fazer uma pintura. Hoje de manhã passei o dia aí na horta, passei a manhã não, umas horas aí na horta, fazer aí o muruzinho, que a senhora que vai com o carrinho da roupa limpa tinha que fazer lá uma manobra e tal [risos].
E: Então, agora, no seu dia a dia, é ajudar aqui, também vai fazendo essas coisas. O que é importante agora no seu dia a dia? O que é que gostas de fazer?
e: Aborreço-me muito. Estar o dia a sentado à frente à televisão também não me vê, também gosto do meu tempo de lazer, às vezes vou passear, ou levo um rapaz, aí que está muito acomodado, levo-o a dar um passeio comigo ao parque, principalmente um, às vezes ponho-me a falar com as pessoas e vou-me entretendo, às vezes vou para a horta, estou lá um bocadinho. Eu fui operado à vista direita e desta estou ótimo, ponho-me a ler um bocadinho, agora estou à espera de ser chamado para ser operado à esquerda que era para ser no dia 14 deste mês, mas não fui. Que estupidez, não fui porque não tinha dinheiro para as viagens. Depois disseram "Então porque não falaste?", e eu é o tal orgulho que vos falei... às vezes fico parado, bloqueio. Simplesmente bloqueio.
E: Gostou de nos contar a sua história?
e: Sim, é que eu já contei a minha história muitas vezes, e mais aprofundado. Hoje foi só uma gotinha no oceano. Foi só o bonito, ou algumas coisas do bonito. Os últimos 20 anos foram muito feios. Foram bonitos também, em alguns casos. Mas teve casos que foram muito feios. Então, fiz trabalhos para a Legião Estrangeira Francesa, fiz de mula na Colômbia, em São Domingos, só que sempre tive sorte, fiz coisas boas, claro, fiz boas ações, orgulho-me delas, mas tenho essas coisas muito más, magoei muita gente... E não havia necessidade, claro... mas a curiosidade às vezes, leva as pessoas a fazer coisas que não... aquela adrenalina... e esquecemos as consequências que isso pode vir a trazer a familiares, não diretamente da pessoa, mas familiares que cuidam dele também, não porque eles não merecessem, eles fizeram tanto ou mais que eu mas não mereciam era os familiares. E isso magoa-me. E agora estamos por cá a ver, o tempo passar. Deixei de dar valor à vida, por assim dizer, às coisas bonitas. Há um lado meu que me é indiferente, se aquela flor está a crescer ou se morreu. Outra que, que não, que se interessa por ela, que a cuido, mas depois vejo as notícias e vejo as coisas que se passam no mundo e os castigos que a nossa mãe terra está a passar e isso dói, dói a todos. E então quando entro nesse estado fico... traumatizado, embora tenha medicação e tal, mas acho que nem a medicação me faz efeito. E é assim.
E: Obrigada Joaquim!
e: Obrigado, eu, por este bocadinho
E: Obrigada. Há esperança. Tem que se agarrar às coisas... a esse lado que ainda tem vontade de ver as coisas florescer.
e: Eu gostava porque por um lado a vida é bonita. É bonita. Embora seja muito pouco tempo, mas é bonita e temos que aproveitá-la todos os segundos que ela nos dá, mas... só que depois ficas com a sensação... não merece a pena... ser pobre mal agradecido dói-me, como muita gente aqui, ainda criticam, criticam, são pobres e mal agradecidos. Quando deviam agradecer o pão que têm na mesa e a cama lavada. Ainda se acham com direitos. Eu acho que nem isso mereço.
E: Mas merece!
e: Mas nunca me curei, nunca, a verdade é que não me curo. Tanto que eu há seis anos atrás, fui a Cuba, estive lá 26 dias, já com o hotel pago, dentista e tudo, que era para fazer uma remodelação aos dentes... acabei por gastar o dinheiro e não pus dente nenhum. Só fui duas vezes à consulta. Fui a primeira vez quando cheguei lá, para ir ver, fui a segunda para fazer radiografias, e depois era só alugar barquinhos... e acabei ainda por pedir a essa minha irmã que está em Espanha para me mandar dinheiro para a viagem para vir para cima. Porque aquele dinheiro, que tinha do bilhete, levantei. Deixei-me levar... sou aquele tipo de pessoa que quando faço uma coisa não quero que me agradeçam, eu acredito que quando você faz uma boa ação, ou faz um favor, como se diz não se deve retribuir, acho que esse favor será retribuído, desse poder mais forte que existe, e será a um familiar seu. Por exemplo, as graças que podia dar a mim, seguramente, estão a dar aos meus filhos. O bem que eu fiz, não está a ser atribuído, não foi a mim, que não é a mim que eu estou a pedir. Tenho muita vergonha de pedir, sou capaz ali esganadinho da ressaca, de não ter fumado, mas sou incapaz de pedir um cigarro, que lá está dá-me vergonha porque se me dizem que não... é o mesmo que me cortar o pescoço logo. E... imagina que chega aqui uma pessoa nova, que começa a me incomodar e a tratar mal, tento levar a coisa, levar a coisa da melhor maneira, pacificamente. E a violência é que nem se me ocorre tampouco ter violência, mas basta que ele incomode um de vocês, e eu já passo para o outro lado, já não consigo, então, eu aí já não me controlo, passo para o outro lado. E o homem está morto e eu não estou a espetar com a faca, porque já não... mas quando é diretamente a mim, é na paz. Sou desse tempo. Sou um bocado esquisito. Fora disso, não gosto de azul, nem do vermelho, gosto do amarelo, do verde. Gosto do nascer do sol e do pôr-me no sol. Agora quando faz muito calor também, não sou desse tipo de pessoa, de ir para a praia, e me deitar lá todo o dia, está fora de questão. A não ser que esteja vergado a trabalhar, não me vêem debaixo do sol, sou mais da sombrinha e da cachoeira.
Técnica: Das coisas boas...
E: Sim, obrigada, mais uma vez.
e: Bom, é só?
E: Obrigada! Obrigada
Técnica: Obrigada. Obrigada por compartilhar essa história.Recolher