Entrevista de Jeovania de Souza Corrêa
Entrevistada por Luiza Gallo
Comunidade Bela Vista do Jaraqui, Rio Negro - RDS Puranga Conquista, 17/11/2024
Projeto: Mateiros do Brasil
Entrevista número: MAT_HV003
Realizado por Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Luiza Gallo
P/1 - Primeiro de tudo quero te agradecer demais por ter nos recebido aqui na sua casa, na sua vida, com a sua família, e queria que você começasse se apresentando, dizendo seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R – Eu que agradeço a presença de vocês aqui, é um prazer recebê-los na minha casa. Bom, eu me chamo Jeovania de Souza Corrêa, nasci dia quinze de maio de 1984, em Manaus mesmo, no município de Manaus. A minha família é uma parte do Acre e outra parte de Tefé e aí a minha mãe era meio nômade, ela viajava muito quando a gente era criança e até hoje ela viaja, que ela, agora, (risos) é solteira, sozinha, viaja bastante também.
Da infância vou contar uma parte que eu me lembro, que a gente ficou um período em Manaus, porque meu pai trabalhava como carpinteiro, trabalhava em carpintaria, tinha uma loja junto com o irmão dele, eram sócios numa loja de vidraçaria, então ele pegava serviços tanto pra instalação de vidros em hotéis, pousadas, na estrada, em casas particulares mesmo e aí viajavam e eu lembro da minha infância, acho que dos quatro, cinco anos pra cá e aí minha mãe viajou um período e ficou longe de casa, eu fiquei junto com minha irmã mais velha, que eu tenho uma irmã mais velha, de 46 anos. (risos) Não, já tem 49, já, (risos) a minha irmã mais velha. (risos) E aí a gente ficou um período longe dos nossos pais acho que por uns seis meses, eu ficava em casa com ela.
P/1 – Você tinha quantos anos?
R – Eu acho que eu tinha uns quatro pra cinco anos, nesse período, e aí meu pai... porque ele viajava muito, saía de um canto pra outro, não tinha como levar a família toda nesse traslado de um...
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Entrevistada por Luiza Gallo
Comunidade Bela Vista do Jaraqui, Rio Negro - RDS Puranga Conquista, 17/11/2024
Projeto: Mateiros do Brasil
Entrevista número: MAT_HV003
Realizado por Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Luiza Gallo
P/1 - Primeiro de tudo quero te agradecer demais por ter nos recebido aqui na sua casa, na sua vida, com a sua família, e queria que você começasse se apresentando, dizendo seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R – Eu que agradeço a presença de vocês aqui, é um prazer recebê-los na minha casa. Bom, eu me chamo Jeovania de Souza Corrêa, nasci dia quinze de maio de 1984, em Manaus mesmo, no município de Manaus. A minha família é uma parte do Acre e outra parte de Tefé e aí a minha mãe era meio nômade, ela viajava muito quando a gente era criança e até hoje ela viaja, que ela, agora, (risos) é solteira, sozinha, viaja bastante também.
Da infância vou contar uma parte que eu me lembro, que a gente ficou um período em Manaus, porque meu pai trabalhava como carpinteiro, trabalhava em carpintaria, tinha uma loja junto com o irmão dele, eram sócios numa loja de vidraçaria, então ele pegava serviços tanto pra instalação de vidros em hotéis, pousadas, na estrada, em casas particulares mesmo e aí viajavam e eu lembro da minha infância, acho que dos quatro, cinco anos pra cá e aí minha mãe viajou um período e ficou longe de casa, eu fiquei junto com minha irmã mais velha, que eu tenho uma irmã mais velha, de 46 anos. (risos) Não, já tem 49, já, (risos) a minha irmã mais velha. (risos) E aí a gente ficou um período longe dos nossos pais acho que por uns seis meses, eu ficava em casa com ela.
P/1 – Você tinha quantos anos?
R – Eu acho que eu tinha uns quatro pra cinco anos, nesse período, e aí meu pai... porque ele viajava muito, saía de um canto pra outro, não tinha como levar a família toda nesse traslado de um lado pro outro, todo mundo sofrendo. A gente tinha uma casa em Manaus, então a gente ficava lá na nossa casa, que era melhor pra todo mundo e aí eles viajavam muito, mas teve um período que ele ficou trabalhando seis meses num lugar só e a gente conseguiu mudar, que foi em Itacoatiara, na estrada que leva pro Rio Preto da Eva, que é o município, por isso que eu sou registrada no Rio Preto da Eva, que antigamente as crianças entravam no período escolar a partir dos sete anos, então meu pai me registrou eu já tinha seis anos pra sete, que era pra eu começar a estudar. E lá foi minha primeira escola, no Rio Preto da Eva. É por isso que eu sou registrada lá. (risos) Aí, nesse período, eu lembro que ele ficou trabalhando construindo casa, a casa do dono do sítio, meu tio tomava conta desse terreno, então a gente passou um período de seis meses, oito meses lá, enquanto ele construía lá. Ele fez uma casinha pra gente, que meu pai era assim, bem estratégico. Tinha palha, árvore, então ele ia na mata e construía. A nossa casinha lá era coberta de palha, com uns esteiozinhos de madeira, o assoalhozinho, toda cercadinha, de palha. A gente ficava lá um período e a gente foi matriculado no Rio Preto da Eva, eu e meu irmão mais velho, que é da idade do Marcio, tem 46 anos. Eu fiquei lá, mais ele, um ano, porque minha mãe viajou depois desses seis meses pra outro local e a gente ficou lá com meu tio, estudando esse um ano, pra completar o período escolar. O primeiro ano estudei lá, mas eu não consegui me alfabetizar porque, como a gente vivia longe, a minha mãe não tinha, nessa época, escolaridade, ela não sabia ler, não sabia escrever. Meu pai sabia um pouco, só que não tinha tempo de estar me auxiliando com tarefas, essas coisinhas que a gente precisa, aí eu me ‘virava’ mais sozinha, eu fui alfabetizada já tinha nove anos, quando eu consegui ler, mas por meu próprio... como é que eu posso dizer? Por minha própria vontade, porque eu gostava muito de ler.
P/1 – Você lembra?
R – Eu pegava o livro e queria decifrar. (risos) Quando eu aprendi a ler eu lia muito pro meu avô. Durante a noite, como a gente não tinha luz elétrica, era lamparina, eu colocava lamparina, ou então pegava uma lanterninha a pilha e ficava focando e lendo. Deitava debaixo da rede do meu avô e ficava lendo as histórias pra ele, aqueles contos de cordel que tem, não tem? Que é tudo rimado. Ele gostava muito de ler aquelas historinhas e aí eu lia pra ele, porque ele também não sabia ler, aí eu fui a primeira a ler. Eu tinha um tio que completou o quarto ano, que ele tinha uma bolsa dessa altura, assim, bem grandona, cheia de revistinha em quadrinhos, livros de cordel, aqueles livrinhos em versinhos, aí eu lia muito, eu lia tudo, eu li todos os livros daquela bolsa, todos os livros eu lia e de lá pra cá era lendo direto. Meus pais brigavam comigo que eu ficava à noite, até meia-noite lendo, lendo, lendo. Quando eles viam que eu estava com a lamparina acesa, com a lanterna: “Vai dormir, menina, tu vai ficar cega cedo, fica lendo no escuro, não sei o quê”, essas coisinhas, aí eu desligava, ficava quieta, esperava dormir de novo e pegava de novo, (risos) ia ler de novo. Foi assim. A gente morou esse período lá, próximo do Rio Preto da Eva, em Itacoatiara e depois, num período, nós moramos em outra estrada, chamada Boa Vista também, que meu pai trabalhava em construção, a gente mudou um tempinho pra lá, mas lá eu não estudei. A gente só passou um tempo, acho que uns dois, três meses lá. Aí, depois, minha mãe conheceu alguém que morava em Nova Olinda do Norte, que é outro município, próximo de Manaus, próximo não tão próximo, (risos) aí nós fomos pra lá, passamos um ano lá, morando nesse lugar, um interiorzinho também, meu pai construiu casas e tudo e a gente passou um ano morando lá, só que a minha mãe não se adaptou, porque o primeiro esposo dela deixou uma pensão pra ela, que eu tenho três irmãos que são por parte de mãe, só.
P/1 – Treze?
R – Três irmãos. E tenho quatro irmãos que são por parte de pai. Então, minha família é um pouco grande. Aí nós somos quatro irmãos de pai e mãe. São duas meninas e dois meninos, os que são de pai e mãe. Nesse período só tinha eu e a minha irmã que é mais nova do que eu, a Antonina, que mora agora em Porto Velho. Aí a gente foi pra Nova Olinda, lá a gente estudava, eu e esse meu irmão mais velho e lá era muito perigoso, porque lá tinha muito jacaré e muita piranha e a minha mãe tinha medo da gente se alagar, que a gente ia remando e Deus o livre morrer, o bicho comer, alguma coisa assim. Aí ela não se adaptou lá e aí conhecia uma pessoa em Manaus que tinha um terreno aqui pro Rio Negro e aí, conversa vai e conversa vem, ela falou pro meu pai: “Vai viajar”, que ela estava grávida do meu irmão mais novo nessa época, a quarta gestação dela e mandou meu pai vir conhecer o terreno e se fosse bom, se ele gostasse, fechasse negócio com o dono do terreno.
P/1 – Mas que não era aqui?
R – Era em outra comunidade, próxima daqui, mas fica dentro dessa RDS, da Puranga. E aí meu pai veio, meu pai gostava de beber, (risos) de uma bebidinha, conheceu, gostou, fez negócio com o terreno e logo em seguida minha mãe grávida mesmo veio também conhecer, gostaram, era tranquilo, era dentro de um igarapé, um terreno legal, tinha uma praia na frente e tal, a gente gostou e estava cheio, na nossa casa a água chegava embaixo do assoalho, assim. Aí minha mãe fretou um barco direto de Nova Olinda do Norte, do interior onde a gente estava, o rio estava bem cheio nesse período e a gente veio direto, com toda a mudança, em 1994 isso.
P/1 – Você tinha quantos anos?
R – Eu tinha dez anos. 1994, dez aninhos. Aí nós viemos já... ia completar os dez. Na verdade, a gente veio no período de fevereiro, eu completo ano em maio, ia completar dez anos ainda e a gente veio morar aqui no Chita, que lá na comunidade que a gente foi morar é Chita, Igarapé do Chita. Eu passei quatro anos lá, só, porque aos treze anos... com doze anos eu conheci o Marcio, aos treze anos a gente se juntou. Então, de lá pra cá a minha infância foi bem curtinha, (risos) meu período de infância (risos). Aí eu estudei esses quatro anos lá, de 1994 até 1997, porque eu concluí até 1997 o quarto ano.
P/1 – E foi lá que você aprendeu a ler?
R – Eu aprendi... já sabia ler, um pouquinho.
P/1 – Alfabetizada.
R - Mas lá eu consegui ser alfabetizada, conforme as leis. Eu fiz o primeiro, segundo, terceiro e quarto ano lá no Chita. Aí, do quarto ano pra frente, nessa época, nos interiores não tinha mais do que isso. Ou você ficava no interior até o quarto ano, estudando, do ensino fundamental, ou você ia pra cidade, terminar o fundamental, que seria de quinto ao nono, que na época eram só oito anos, agora que tem o nono ano, mas antes era até oitavo ano, aí depois já ia pro ensino médio. Aí, nesse período a gente não tinha e aí, quando eu me juntei com o Marcio, na comunidade teve o telecentro, na época, Telecurso 2000, dentro da comunidade, que era uma aula gravada. Tinha uma professora na sala de aula, mas a aula era gravada em fita cassete, na época, aquelas fitas cassete, aí ela colocava e a gente assistia aquela aula, fazia as anotações, depois fazia as provas, a professora levava pra Manaus e a gente concluiu o quinto ano, que era quarta série, antigamente, aqui nessa comunidade, já, nessa escola, que tinha uma escolinha de madeira no Chita, na época que eu estudei lá, era uma escolinha de madeira, uma construção simples, bem simples, mas os professores eram muito legais. A gente tinha merenda na escola. Nesse período da minha escolaridade já tinha oportunidade de merendar na escola, ter uma refeição dentro da escola.
P/1 – Teve algum professor muito marcante, nessa época?
R – O professor Rafael, que foi meu primeiro professor lá dentro da escola, mais por causa da rigidez, porque eu sempre fui muito... nunca gostei de que os outros falassem... o que eu não concordo eu debato, eu sou assim. Aí, na época, eu tive uma discussão com ele, primeiro pelo meu nome, porque ele achava que meu nome era com G e meu nome era com J e eu teimei com ele, que ele disse que era com G, eu disse que não era, ia levar a certidão, porque nessa época, pra matricular seu filho às vezes não precisava levar certidão, só era dar o nome pro professor, o professor ia e tal, matriculava. Peguei a certidão com a mamãe e levei pra ele e mostrei meu nome, que era daquele jeito que eu escrevia, aí tá, encerrou, mas eu sempre fui muito dona de mim, na verdade. (risos) Aí ele foi que marcou bastante, ele também era bem... naquela época a gente tinha palmatória na escola e dia de sexta-feira tinha sabatina, que era a disputa de quem sabia mais matemática, a gente estudava tabuada, o professor dizia: “Olha, sexta-feira, não sei o que, vai ter sabatina, estuda tabuada”, então eu focava na tabuada. Não sou boa em matemática, não gosto muito de matemática, (risos) mas quando era pra estudar, pra eu não levar ‘bolo’ na minha mão, eu estudava matemática, ficava eu e meu irmão. Eu perguntava as casas do dois ao nove, de multiplicar, pra ele e ele perguntava pra mim, tanto a soma quanto a multiplicação, divisão, adição e subtração também. A gente estudava junto. Sempre era eu e ele. Ele era o mais velho, mas a gente sempre, como a gente estudou tardio, começou a estudar mais tarde, tinha o mesmo grau de escolaridade, então a gente estudava sempre junto. E aí ele perguntava pra mim. Dia de sexta-feira dificilmente eu pegava ‘bolo’, porque eu estudava muito, focava, pra eu não pegar ‘bolo’. Mas era ‘bolo’ com vontade, porque o professor tinha palmatória, era desse tamanhozinho assim, com um cabinho desse tamanho, aí você apoiava a mão ali, pá (risos) no colega. Por exemplo: ia eu e um colega, perguntava, o professor: “Pergunta a casa tal e tal pro colega”, eu perguntava, se ele errasse, palmatória; se eu errasse, a mesma coisa. Então, naquela época era mais rígido. O pessoal até dizia que era melhor, porque o aluno aprendia mesmo, ou apanhava. (risos) Ditado popular. Mas aí, depois desse quarto ano, como eu te falei, já, a gente estudou aqui, aí nós começamos a estudar, a gente estudava, eu e o Marcio, a gente vinha pra escola, trazia a Joice, porque eu fiquei com o Marcio porque eu fiquei grávida aos treze anos, engravidei nesse período, aí meus pais mandaram chamá-lo e tudo e a gente aceitou ficar junto.
P/1 – Mas fala como vocês se conheceram aqui, na comunidade.
R – A gente se conheceu através do meu irmão e da irmã dele, porque meu irmão gosta muito de futebol, até hoje, aí quando a gente chegou no Chita, todo mundo muito tímido, querendo (risos) entrar nas turminhas e tal, mesmo que era comunidade pequena, acho que tinha, talvez, uns oito moradores só, dentro da comunidade. Aí foi convidado pra vir pra um jogo no Jaraqui e aí ele veio com um colega, que ele conheceu. Acho que ele já tinha estado por uns dois anos no Chita, já. Eles tinham, acho, seus dezesseis anos, dezessete, por aí, veio pro colégio jogar bola e conheceu a irmã do Marcio, a Antônia, que eu não sei se vocês a conheceram ontem, é a dona do hotelzinho, lá e aí começaram a namorar e todo final de semana ele vinha pra esse Jaraqui, era um chamego esse Jaraqui pra ele. Mamãe: “Menino, não sei o que, cuidado por aí, olha o banzeiro”. Banzeiro são as ondas no rio, que podem virar a canoa e tal. E aí ele vinha todo final de semana pra esse Jaraqui e aí, depois de um tempo, acho que em 1996, foi na época que o Marcio estava estudando em Manaus, que foi nesse período que ele começou a namorar com a Antônia também e aí, em 1997... foi acho que em outubro de 1996 tinha um evento que a vó do Marcio fazia, que era da Igreja Católica, ela era devota de São Francisco das Chagas... não, São Francisco de Assis. Ela tinha até uma igrejinha que, se desse tempo, eu ia levar vocês lá. Tem a ruína ainda, da igreja. E aí ela oferecia o almoço pras pessoas comerem, era de graça, em devoção ao santo. Aí o pessoal dizia: “Comida de São Francisco, vamos almoçar lá, comida de São Francisco”. Aí meu irmão dizia: “Embora lá, Jeovania, que o irmão da Antônia quer te conhecer, não sei o quê”. Doze anos eu tinha, na época. (risos) Aí eu digo: “Embora”. Mamãe disse: “Cuidado por aí, não sei o que, não vão pra festa, não sei o quê”. (risos) Aí vim, porque eu sempre... não sou alta, mas eu já tinha um corpinho (risos) de adolescente mesmo e aí eu vim com ele, a gente veio, brincamos de tomar banho no rio e não sei o que e o Marcio estava ajudando a mãe dele construir um banheiro na casa dele, lá fora, de madeira, aí a Antônia ‘bagunçava’ comigo: “Fulano está ‘de olho’ em ti, não sei o que, pepepe”. Eu não ‘dei moral’ pra ele, não. (risos) Nesse dia, não. Aí depois a gente veio pra esse evento e voltou. Aí, no outro final de semana a gente veio de novo, foi quando eu comecei a namorar com ele, que a gente foi numa festa numa comunidade próxima, no Ararinha, que a gente chama. Lá a gente começou a namorar, que foi dançar junto e disse que eu pisei no pé dele. (risos) Mas aí foi em outubro de 1996, a gente começou a ter esse namorico. E aí todo final de semana depois que ele acostumou ele ia lá pra casa, meu pai disse que ele podia ir, não sei o que, pediu pra namorar comigo, papai deixou e tudo, que naquela época as pessoas namoravam e casavam muito cedo mesmo e era normal e tranquilo. Tanto assim, pra segurança dos pais mesmo. Por exemplo: vai engravidar, vai ficar dentro de casa. Não. Engravidou, ou a pessoa vai assumir, ou vai ficar muito presa dentro de casa, pra não ter mais liberdade de sair pra canto nenhum, que era muito restrito. Fora a vizinhança que falava e os pais se incomodavam com isso, porque eu, graças a Deus, não me incomodo, não. (risos) Foi mais ou menos isso: em 1997 eu engravidei da Joice. Na verdade, eu fiquei grávida de dezembro pra janeiro da Joice, de 1997 pra 1998 e a Joice nasceu em outubro de 1998, que ela é do dia quinze de outubro de 1998. E aí a gente foi morar junto, moramos na casa do ‘seu’ Manoel um ano, ainda. Um ano nós passamos. A Joice nasceu, nós ainda morávamos com o ‘seu’ Manoel. Um período de... quando você chega na casa de uma pessoa nova eles te tratam bem, superbem e tal, aí depois vem os atritos, que cada um tem sua personalidade, seus costumes e meus pais, lá em casa, papai sempre acordava muito cedo, três horas da madrugada. A gente não tinha fogão a gás em casa, era a lenha, então a gente costumava tirar lenha e tinha uma área assim, debaixo do fogão e a gente loteava as lenhas ali, as toras de pau, de madeira. E de manhã cedo a gente ia, fazia o fogo, o café, as refeições do dia todas no fogão de lenha. Era um fogão de barro, a lenha. A gente tinha esse costume: ele acordava três horas, mas ele não acordava a gente, não, ficava lá. Contava os sonhos que tinha de noite, a gente ficava ouvindo. A gente acordava com aquele barulhinho conversando, contando o sonho, não sei o quê. Aí, lá pras seis horas ele acordava a gente, mas a gente não precisava fazer o café da manhã. E na casa do Marcio os pais dele costumavam ficar deitados até mais tarde e os mandavam fazer o café. Aí eles tinham um cronograma. Por exemplo: a semana é da Antônia fazer o café, outra semana é do Marcio, outra semana é da Marcilene e tal. Aí eles tinham esse cronograma e eles queriam me incluir nesse cronograma e eu não aceitei. (risos) Eu digo: “Não, não sou filha deles, eu não vou fazer, (risos), não vou, dá seu jeito, se ‘vira’, faz uma casa pra mim, porque eu vou me embora”. Aí ele trabalhava muito, nessa época era muito fluxo de turismo dentro da casa do ‘seu’ Manoel. Tinha a casa dele, que ele morava e o fluxo de turismo era grande, nessa época, dentro da casa. Sempre tinha turista, sempre. Era dois, três, às vezes até sete pessoas na sala dele, uma rede amarrada, o armador era assim e aí as redes ficavam uma pra um lado e outra pro outro, armadas, dentro da sala. A gente não tinha muita... como é que eu posso dizer? Intimidade ali, no meio de tanta gente. Aí uma vez ele foi pro mato - reduzindo a história, porque é longa – trabalhar com o pai dele, não sei fazer o que, tirar madeira, alguma coisa, eu arrumei a Joice, que ela já era nascida, bebezinha, o Recreio passa aqui, da linha e passa lá na comunidade que eu morava com meus pais e aí, quando ele chegou, eu já estava lá na beira, com a minha bolsa, com a minha filha no colo, já ia me embora, que eu tinha brigado com minha cunhada, tinha me desentendido. Aí ele foi lá na beira, (risos) me puxar de volta, falou assim: “Não, eu vou fazer nossa casa, a gente vai fazer, nem que seja de palha, vamos fazer, vamos sair de lá”. Aí foi quando a gente decidiu, deixamos a Joice acho que uma semana, mais ou menos, com a mãe dele, pra gente ir na floresta tirar palha, madeira, pra construir a nossa casinha. ‘Seu’ Manoel e Dona Maria, que são os pais dele, ficavam falando: “Por que vocês vão sair? Não sei o quê. Alguém está expulsando vocês? Vocês não estão bem?” “Não, a gente precisa do nosso canto, pra viver a nossa vida, ter os nossos hábitos, a nossa privacidade”. Era de palha, mas era nossa. (risos) Era no barro, mas era nossa. E assim foi nossa vida: a gente, eu acho que depois de um ano e pouco vivendo nessa casinha de madeira, meus pais resolveram ajudar a gente a construir uma casa de madeira. Aí meu irmão doou gasolina, que já era funcionário público nessa época, ele também é agente de endemias, que nem o Marcio, ele foi o primeiro da região, ele já trabalhava, tinha uma condição financeira melhor, que a gente não tinha emprego, o Marcio vivia de turismo, o que ele pegava era pouco pra gente, porque quem pegava sempre o dinheiro era o ‘seu’ Manoel e a gente ficava sempre só com as gorjetas, a gente não tinha liberdade de ter nosso próprio dinheiro. O Marcio fazia o serviço e eu discordava, nessa época, porque a gente tinha a nossa família e não tinha o direito de pegar o dinheiro do nosso trabalho. O ‘seu’ Manoel ficava com a verba que era nossa. (risos) Aí essas coisinhas vão criando atritos e a gente vai querendo mudar. A partir daí a gente construiu a nossa casinha e os meus pais resolveram ajudar a gente com a casa. Minha mãe era pensionista do primeiro esposo, recebe uma pensão, aí ela doou as telhas da nossa casa, comprou parte do alumínio; meu irmão doou a gasolina; o Marcio sabia a serragem, motoserra; meu pai tinha motoserra e falou pra ele: “Meu filho, eu não vou tirar madeira, mas se você quiser a motosserra pra tirar a madeira, a motosserra está aí”. Aí foi isso: a gente foi pra lá, pro Chita, inclusive, pra outra comunidade, tiramos a madeira da nossa casa, passei um pouco também nessa comunidade, no Jaraqui e a gente conseguiu construir a casinha, que é lá próxima do ‘seu’ Manoel, bem do lado. Inclusive a gente vendeu pra Márcia, pra minha cunhada, a casinha, já. É dela. Que a gente tem essa. É uma lá do lado, eu não sei se vocês viram. É uma azulzinha que tem lá. Era nossa aquela casa. A gente a construiu. A gente fez uma reforma pra vender, depois, mas era nossa aquela casa. Então, aquela casa foi a primeira casa nossa, de madeira, construída com nosso esforço e ajuda dos meus pais. Aí eu digo assim: “Olha, se fosse assim a gente estava melhor, se todo mundo contribuísse”, mas foi bom, eles ajudaram a gente, a gente conseguiu construir nossa casa. Depois eu engravidei da Jennifer. Antes de engravidar da Jennifer eu ainda tive dois abortos. Eu engravidei e a gente estava trabalhando, tirando mandioca pra fazer farinha. Nessa época a gente tinha roçado e a gente trabalhava muito com mandioca. A gente tinha tirado mandioca e colocado de molho, que a gente coloca um período de molho, pra fazer a farinha e aí eu fui ajudar o Marcio tirar d’água e ajudar a carregar. Quando eu suspendi o saco eu senti a pontada no pé da minha barriga e aí foi dor, até perder o bebê. A Dona Maria fez chá, fez chá, fez chá, mas não teve jeito. (risos) Dona Maria é a mãe do Marcio.
P/1 – Já tinha bastante meses?
R – Estava com dois meses para os três. Estava bem novinha, ainda, a gravidez. Estava bem pequenininho ainda. Desse tamanhozinho assim o bebezinho. (risos) Bem curioso. Ele abriu, pra ver porque, como eu tive o aborto em casa, ele abriu pra ver o bebezinho dentro. Aí fez o enterro e tudo. (risos)
P/1 – Como vocês descobriam que você estava grávida?
R – Por causa do período da menstruação, que sempre foi certinha a minha. Aí, quando ela falhava, já sabia. (risos) Aí, depois, logo em seguida vinham os enjoos. Enjoos de tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, até da água. Até de beber água eu tinha problema. Até pra beber água. A July, última gravidez minha, eu só bebi água de coco, até os sete meses, só água de coco, porque eu não conseguia beber essa água natural, não conseguia. Não era frescura, não era nada. Quando eu... não sei, a água não tem cheiro, mas eu sentia cheiro na água e eu não conseguia beber, me dava ânsia de vômito.
P/1 – E que medicamento ___________?
R – Tomava medicamento receitado pelo médico, porque assim: quando a gente está no período de gravidez, eu, pelo menos, não gosto de tomar qualquer tipo de remédio, aí então eu preferia que fosse receitado pelo médico, porque qualquer coisa o médico ia ter responsabilidade sobre isso e aí, depois desse primeiro aborto que eu tive espontâneo, em casa, engravidei novamente e essa gravidez foi mais complicada porque, como eu tive um aborto e eu era muito jovem, eu acho que eu tinha meus quinze anos, eu tive um aborto em casa, então não fiz nenhum tipo de tratamento, tomei chá caseiro e tal, medicina tradicional, mas não fui ao médico, nada, nada, aí eu engravidei novamente. E fiz exame na lancha da sexta-feira, que a gente recebe atendimento médico uma vez por mês, na comunidade. Aí eu fiz exame, deu positivo, nessa época, dos gêmeos, já, que eram gêmeos, minha gravidez era de gêmeos e aí deu positiva a minha gravidez, comecei a fazer meu pré-natal na lancha e aí eu já estava, nesse período, com sete meses grávida e não tinha barriga, não crescia minha barriga, aí nós ficamos preocupados e teve um atendimento médico na comunidade, a gente falou dessas preocupações pro médico e tal, aí ele passou pra eu bater um ultrassom, em Manaus. Nessa época a gente não tinha muito conhecimento da cidade de Manaus. Hoje em dia eu ando muito em Manaus, mas antes não, eu não sabia nem pegar o ônibus, não saía de casa. E aí a gente foi até Manaus, fizemos o ultrassom. Sabe quantos meses eu estava grávida? De sete meses que eu estava fazendo pré-natal, eu estava com três meses de gravidez e o feto estava sem batimento cardíaco. E aí eu fiz essa pelo SUS, dos dois bebês e descobri que estava grávida de gêmeos, porque até então eu não sabia, porque eu não tinha barriga, não tinha sintomas, mas tinha dado positivo e a menstruação também não vinha, nesse período, então eu achei que estava grávida e o exame ainda deu positivo, pra confirmar o que eu pensava. Depois disso eu fiz ultrassom pelo SUS e, como eu fiquei na dúvida, eu quis fazer outra, particular. A gente pagou, acho que na época era cinquenta reais, aí eu fiz uma particular e o médico confirmou que estava morto o feto, estava sem batimento cardíaco, os dois. Aí ele me indicou direto pra maternidade, pra fazer algum procedimento pro feto nascer. Só que como eu não tinha sangramento, nem sintoma nenhum, a médica teve que receitar, mas foi um longo processo, porque assim: como a gente não tinha muito conhecimento, eu era jovem, o Marcio tinha seus dezoito anos, era ‘de maior’, tinha seus dezoito, dezenove anos e eu tinha meus quinze anos, então foi bem complicado porque, além dele querer fazer escândalo no hospital, o pessoal dizia que ele ia ser preso, porque eu era ‘de menor’, ele era ‘de maior’ e tal, a gente sofreu bastante, acho que a gente passou umas duas semanas em Manaus, correndo atrás de ajuda e tudo, aí uma tia dele conhecia uma pessoa que trabalhava na maternidade e ela disse: “Não, eu vou lá, converso com a médica, falo pra ela que é a minha sobrinha que veio do interior que está passando por isso e tal”, explico pra ela, aí ela vai te atender e a gente vai conseguir resolver. Aí foi assim que a gente conseguiu uma consulta médica, pra médica me atender, passou Cytotec, que eu não sei se vocês conhecem, é um medicamento abortivo, que causa aborto mesmo, pra eu poder ter sangramento, pra fazer o procedimento na maternidade, pros bebês poderem nascer, pra eu poder tirar os bebês. Aí foi todo esse processo doloroso, estressante também, que a gente teve que passar, pra poder abortar o bebê, que eram dois. A gente não conseguiu ver. Eu vi quando nasceu, mas o Marcio não conseguiu ver, porque a gente não podia ter acesso, diz que eles não podiam liberar os fetos pra gente e, se fosse pra liberar, iam liberar a gente pagando, na época, quinhentos reais que eles queriam, na maternidade, aí iam entregar o bebê numa caixinha, a gente não ia poder abrir, não ia poder nada. Tinha que pagar e enterrar uma coisa que tu não sabia nem o que estava lá dentro, entendeu? A gente não tinha condições, então a gente deixou pra lá, mas aí desse aborto eu já fiz o tratamento.
P/1 – Como você ficou? Como foi, pra você, isso?
R – Foi bem dolorido, (risos) foi difícil. (choro) Foi muito. (risos) Continuando a história, eu fiz todo procedimento na maternidade, fiz curetagem, procedimento cirúrgico, que faz limpeza do útero e tal e o médico passou um tratamento pra mim, um medicamento e aí nós viemos pra casa. A gente tinha tão pouca experiência, que até... porque não sei se pra lá é assim: as mulheres, quando são operadas, quando têm bebê, não podem subir ou descer escada e a gente desceu escada, eu desci escada tranquilo com o Marcio e aí fomos pra casa da tia dele, passamos um tempinho lá, acho que uns dois só e viemos embora pra casa, pra cá, pra nossa casa no interior. E aí graças a Deus eu fiz o tratamento, me cuidei mais.
P/1 – Aqui usava medicina tradicional?
R - Sim, a gente sempre usou. Quando a gente tem bebê, o que a gente costuma beber de medicamento tradicional? O crajiru, que é uma planta anti-inflamatória, antifungicida e tem o uxi amarelo também, que agrega os dois juntos e ajuda muito em infecções, inflamações uterinas. Tanto em mulher, quanto em homem, mas as mulheres se cuidam mais. Sempre é assim, a gente sempre se cuida mais e a mulher faz banho de assento com essas duas plantas. Tem o saratudo também, é outra plantinha, que também tem uma coloração bem avermelhada, quando você faz o chá dela fica uma cor bem rosa, bem vermelha, quase um vinho. E aí eles são anti-inflamatórios, antifungicidas e a gente costuma fazer, tanto de assento, como pra beber. Só que tem uma diferença nos dois chás, porque quando tu faz banho de assento é uma coloração mais forte, tem que ser mais forte, pra ajudar a sarar mais rápido e quando é o chá pra beber, pra ser ingerido, tem que ser mais fraquinho. Fora o crajiru, o uxi amarelo e o saratudo, a gente tem carapanaúba; o jatobá, que é muito bom pra ajudar na imunidade, aumenta a imunidade, ele contém ferro, tanto na fruta, quanto na casca da árvore e essas medicinas nos auxiliam muito aqui, dentro da comunidade. Fora outras plantinhas que a gente tem. Tem plantinha medicinal que a gente planta, manjericão; a erva doce, que faz chazinho também, que é calmante; o capim santo, que muitas pessoas conhecem como capim cidreira e tem muita coisa que eu não estou conseguindo lembrar agora. A gente tem alfavaca, que a gente usa em tempero de comida também. Manjericão também serve pra temperar comida. Alfavaca é quase a mesma coisa, só que a gente usa mais no peixe. Manjericão a gente usa na carne, no frango, no peixe também eu acho gostoso e pra dar banho no bebê, (risos) porque é nosso costume dentro das comunidades utilizar as plantas também em benefício das crianças. Aí, o que a gente faz no banho do bebê, de manhã cedo. A gente usa o cipó-alho, que é uma planta que tem cheiro de alho; o manjericão e a mucuracaá, que é uma planta que depois eu vou te mostrar o cheirinho dela, que é um cheiro bem mais forte, mais concentrado e aí essas plantas nos ajudam muito pra dar banho no bebê e pra combater a gripe, resfriado, ajuda a descongestionar o narizinho e tal, é muito boa e a gente usa tradicionalmente dessa forma e tem outros tipos de planta que a gente usa, da natureza, como andiroba, que a gente planta porque aqui, no Rio Negro, andiroba a gente só tem muito planta, porque existe nativa no Solimões. O Solimões tem árvores de andiroba nativas, mas no Rio Negro a gente tem de planta e a gente planta, pra depois colher. A gente colhe as sementes, tira o óleo e faz os medicamentos, cosméticos, bastante coisa com o óleo da andiroba, agregado com o óleo da copaíba, que é outra árvore que a gente tem na floresta, que a extração do óleo funciona de outra forma. A andiroba - vou falar um pouco da diferença entre as duas espécies – e copaíba. A andiroba a gente coleta o óleo da semente, tem um processo. A gente coleta a semente, a semente dela é pequena, então a gente coleta bastante sementes, mais ou menos uma lata, um baldinho que dê uns cinco quilos, mais ou menos. Vou falar em peso, que é pra ficar melhor. (risos) Aí você... tradicionalmente, falando aqui, na minha tradição, o que eu faço dentro da minha casa. A gente colhe essas andirobas, cozinha por duas, três horas no fogo, ela seca, você acrescenta água novamente e deixa ferver. Aí seca, acrescenta água novamente, até completar aquele período de fervura que ela esteja bem cremosa dentro, porque a andiroba é dura, tem uma vagem dentro, é durinha. Quando você cozinha bem, que ela está bem cozida, ela fica um creme, vira um creme, você pode passar na pele assim, um cremezinho. Aí, depois de cozida, você derrama a água, se tiver água dentro, deixa num cantinho por quinze dias. Ela fica num cantinho guardada lá, por quinze dias. Depois desses quinze dias você vai quebrar uma por uma e tirar, com a colherzinha, com um pedacinho de pau, com alguma coisinha você tira aquele cremezinho dentro dela, que é a polpa e vai colocando num lugar. Aí, depois de tirar tudinho, você amassa bem com as mãos, ela já bem oleosa, nesse tempo ela já está bem saindo óleo, aí a gente costuma usar uma bandeja de alumínio, ou a gente faz uma fôrma com outro material que seja alumínio, porque aí ajuda a esquentar e a escorrer o óleo. Dessa forma a gente consegue extrair o óleo da andiroba. E aí ela passa duas, três semanas escorrendo o óleo. Aí, por exemplo: de cinco quilos eu consigo extrair um litro de óleo. Cinco quilos de semente, um litro de óleo. Basicamente é isso. A gente consegue tirar bem um litro de óleo. Aí eu vou falar da copaíba, agora. A copaíba é diferente. Você vai na floresta, identifica a espécie da copaibeira, a árvore de copaibeira e aí com um trado, que é um tecido de ferro, tipo uma broca, você fura a árvore. Fura, fura, fura, fura até chegar no centro, porque às vezes é dessa grossura, que normalmente a gente a fura, é um diâmetro bom, aí fura até chegar na metade, mais ou menos, daquela árvore, pra extrair o óleo. Aí sai a resina, você consegue tirar a resina e colocar num garrafão. É muito instantâneo. Andiroba tem um processo maior e a copaibeira não. Se você chegar na árvore e ela tiver a resina, você coleta três, quatro. Nós já chegamos, mais o Marcio, a coletar sete litros, né, Marcio? Sete litros de óleo de copaíba de uma copaibeira, de uma árvore. Ela era dessa grossura, assim. Uma árvore, sete litros de óleo. Foi o que mais a gente tirou, mas os antepassados, atrás, os parentes que a gente tem dizem que tiravam de vinte litros por onde moravam, de uma árvore, era muito óleo. E a gente, aqui na região do Rio Negro, só conseguiu tirar sete litros de uma árvore. Mais do que isso não conseguimos. Inclusive a gente ainda deixou derramar, porque a gente foi preparado pra tirar cinco litros e enchemos o balde de cinco litros, ela continuou dando óleo, corre atrás de garrafa, acha garrafa, derrama água que levou pra beber e coloca o óleo da copaíba dentro porque, como eu trabalho com produto, com os cosméticos e as pomadas, eu preciso desse óleo pro meu trabalho. E aí essa é a diferença entre as duas: uma é coletada direto da árvore e outra é um processo com a semente, que hoje em dia já tem máquinas pra tirar esse óleo, pra tirar a acidez do óleo da andiroba, todo um processo na máquina, mas eu ainda tiro tradicionalmente, (risos) como aprendi com a minha mãe. Ela tirava muito, o meu pai tirava também e eu aprendi com eles tirar o óleo de andiroba dessa forma.
P/1 – Você os acompanhava?
R – Hum-hum. Acompanhava. Tanto na coleta da semente, como na extração. Eu gostava de ‘botar’ a mão ali, na massa, é gostoso. (risos)
P/1 – Como que é? Esses conhecimentos são passados de boca a boca, pelas famílias?
R – É a geração. A gente costuma dizer, por exemplo: meu avô era benzedor, que a gente chama. Ele rezava nas crianças, fazia oração pra mulher grávida que estava com dificuldade pra ter o nenê, no interior. Então, ele conhecia uma oração que, graças a Deus, eu não sei se era fé, mas ajudava as mulheres. Acho que a fé ‘move montanhas’. Então, ajudava muito. Inclusive, no Chita ainda, acho que em 1997, ele ajudou um parto que a pessoa estava sofrendo bastante. Ele não gostava, porque é muito íntimo. O parto é uma hora muito íntima da mulher. Então, ele ficava meio receoso, mas aí o esposo dela foi lá, conversou com ele, quase que implorou, (risos) porque ele não queria ir, mas aí ele foi, mas ele não entrava na casa, fazia oração ao redor da casa, andando e orando e ela conseguiu ter a bebê dela, a menina. A minha mãe era parteira. Ela saía a hora que fosse, a hora que chegasse, de madrugada, uma hora, duas horas, três horas, meia-noite, o pessoal chegava: “Dona Rosa, a fulana está com dor, a senhora tem como ir lá?” “Tenho, vou já lá”. Aí se levantava e ia mesmo, ela ia.
P/1 – Você já acompanhou algum parto com ela?
R – Não. Não acompanhei, não. (risos) Era muito pequena nessa época, tinha seus nove, dez anos, então não acompanhava, não. Ela saía só ela e a pessoa que vinha buscá-la em casa, aí ia embora fazer o parto, aí chegava de manhã, às vezes chegava lá pras dez horas da manhã. Às vezes passava o dia e a noite pra lá, porque às vezes a pessoa estava com dor, mas não era o momento certo ainda de ter, demorava um dia, dois dias pra ter o bebê. E aí é uma tradição que eu não tenho. Eu não segui essa tradição, mas até a geração da minha mãe eles eram assim, meu avô, minha mãe, tanto rezar pra ‘vento caído’, pra ‘mau olhado’, essas coisas eles faziam. Hoje em dia minha mãe é evangélica, nessa época ela era católica. Hoje em dia ela é evangélica, ela não faz mais. E também ela tem problema de visão, ela não faz mais parto, mas ela ainda consegue ajudar, se a pessoa estiver muito precisando. A mãe do Marcio também é parteira, que depois que ela teve a filha dela sozinha, que a mãe do Marcio, não sei se vocês escutaram essa história, teve a Marcilene sozinha. Enquanto foram pedir ajuda da parteira, quando chegaram ela já tinha tido a menina e cortado o umbigo. A menina disse que era bem petititinha assim, a Marcilene. Por isso que a chamam de Dinha, porque era muito miudinha, então ficaram chamando-a de Dinha a vida toda. Daí pra frente ela começou a ser parteira também, dentro da comunidade. As mulheres começaram a confiar nela e chamavam e ela sempre foi ajudar. Ela sempre gostou. A mãe do Marcio gosta muito de ajudar nessa parte de fazer chazinho. Por exemplo: fulano está com dor de cabeça, está com alguma coisa, tem uma plantinha, vai lá fazer um chazinho e leva. Assim que ela gosta de tratar as pessoas.
P/1 – E a sua avó, você conheceu?
R – Minha avó não conheci nem por parte de mãe, nem por parte de pai, nenhuma das duas. A do papai eu vi foto, a da minha mãe ela não tinha nem foto, porque naquela época as pessoas não costumavam tirar fotos. Não tinham essa... como eu posso dizer? Facilidade, não existia. As câmeras, antigamente, eram aquelas camerazinhas. (risos) O Marcio, inclusive, tinha uma, (risos) eu não lembro nem o nome da câmera que a gente tinha. Ele tinha a que revelava a foto na hora. (risos)
P/1 – Ah, Polaroid?
R – Eu acho que é, mas era outro nome. Revelava na hora. Tinha aquela, também, de filme, que a gente levava em Manaus, pra revelar as fotos e tal. A gente ainda teve essas câmeras.
P/1 – Mas você sabe alguma história das suas avós?
R – Eu só sei a história da minha avó por parte de pai, que ela morreu de câncer. Tinha uma espinha que criou no rosto dela, eles achavam que era espinha e, na verdade, era um tumor. Aí ela chegou a falecer por causa dessa espinha no rosto. Não sei que parte, também, do rosto, mas ela faleceu. Do meu avô por parte de pai não sei nada, nunca soube, meu pai nunca falou do pai dele pra nós. Nunca falou. Agora, da parte da minha mãe eu sei mais. A minha avó materna abandonou os filhos, a minha mãe. O meu avô - eram sete irmãos - ela o abandonou por outro homem. Isso lá no Acre, ainda. Quando a gente morava no Acre. Aí meu avô criou os filhos dele, todos, sozinho, nunca arranjou outra mulher e se arranjou foi só pra ‘pegação’. (risos) A gente fala, hoje em dia, ‘pegação’, mas ele nunca viveu junto com outra mulher. E aí minha mãe sempre o ajudou, que ela era uma das mais velhas, filha única, mas como era uma das mais velhas, ela sempre o ajudou a criar os outros. Tanto que os meus tios mais novos a chamam de mãe e tomam bênção da minha mãe. Os meus dois... três tios mais novos: o tio Zé, tio Capote, que eu chamo tudo pelo apelido. Tio Zé é José o nome dele, tio Capote é Raimundo, eu chamo de Capote e o tio Nazário, os três tomam bênção da minha mãe.
P/1 – Então, sua mãe foi aprendendo esse conhecimento tradicional com o pai, que foi passando pra vocês?
R – Com o pai dela, que foi passando pra gente, é. Em partes, porque a gente sabe da parte medicinal de plantas, mas de orações, outras coisas eu, pelo menos, não sei. Também nunca busquei querer aprender. (risos) Mas das plantas que usa pra fazer o chazinho pra certos tipos de situações a gente consegue fazer, já. (risos) E assim teve uma evolução porque, como a gente tem mais facilidade de buscar conhecimento com a internet, com a tecnologia, com a facilidade que hoje tem dentro das comunidades, de ter internet dentro de casa, a gente consegue fazer uma pesquisa e identificar se coincide com o nosso conhecimento tradicional, ou não. Se realmente aquele medicamento que eu faço, pra tal coisa, a medicina também diz que serve, de alguma forma, pra isso. Eu consigo fazer essa conexão entre um e outro.
P/1 – E você, pequenininha, brincava?
R – Eu lembro que eu brincava muito. Sabe o que eu fazia? Panelinhas de barro. Porque lá em Nova Olinda, quando a gente morou lá, tinha aquele barro argila, que a gente chama argila, essa argila que não tem areia. Outro dia eu até vi uma foto, estava vendo o Marcio na internet do celular, aí eu vi umas panelinhas e digo: “Olha, eu brincava de fazer isso na infância, fazia”. Aí meu pai trabalhava com madeira e como lá tinha palha, a gente tirava as palhas, fazia uma casinha assim, de palha e aí eu fazia as panelinhas, o fogãozinho de barro e brincava. Era mais eu sozinha, porque a minha irmã já era mais velha e nessa época que a gente morou lá ela já tinha, inclusive, uma filha. Minha mãe, inclusive, vendeu a casa nossa, de Manaus, quando a gente mudou pra Nova Olinda. Nessa época ela vendeu a nossa casa de Manaus, porque minha irmã se envolveu com um ‘cara’, engravidou, o ‘cara’ não quis assumir, não quis ter um relacionamento com ela, sério e aí ela teve que se mudar pro interior, com a gente, contra a vontade dela, mas foi (risos) pra lá, morar com a gente, com a bebezinha, já. Aí a bebezinha dela ficou com a gente até os dois anos de idade. Ela teve um problema que a gente não sabe o que aconteceu, mas ela faleceu e ficou enterrada lá, em Nova Olinda, a bebê dela. Era linda. Eu lembro dela, as características. Era cacheadinha, que o pai dela era... como é o nome da cidade? Piauí. Do Piauí ele era. Era bem ‘negão’ o pai da minha sobrinha. Eu lembro um pouco da fisionomia. O Marcio até se admira, que eu lembro de coisas da minha infância que ele diz que não consegue lembrar da dele com essa idade, mas eu lembro.
P/1 – Você lembra da sua primeira lembrança da vida?
R – Da vida não sei se eu lembro da primeira lembrança, mas eu lembro de muita coisa assim, aleatoriamente. Eu vou falar da de Manaus, que eu lembro da infância de Manaus, que eu gostava de brincar na rua, era muito ‘rueira’. Eu acho que se eu vivesse em Manaus, vixe, não ia prestar o negócio. (risos) Eu era bem... gostava muito de estar na rua, que eu lembro que tinha uma época que eu acho que eu tinha, nessa época, uns seis anos, sete anos, já. Uns sete anos, já, por isso que eu lembro melhor. Mamãe tinha viajado e eu estava em Manaus e a minha irmã tinha tido bebê. O que mamãe fez? Me deixou pra ajudar minha irmã, porque naquela época a gente tinha poço. Como não tinha muita poluição na cidade, a gente tinha poço. Tanto que na frente da nossa casa não tinha asfalto, era uma praia, um areal, a gente jogava bola na frente de casa. O terreno mais próximo era como daqui àquela igreja ali, bem longe e tinha espaço pra brincar. E a minha mãe deixou, disse pra ajudar minha irmã puxar água do poço, que ela não podia fazer esforço, então eu que ia puxar água pra ela, na lata. Pegava era a rua, ia embora pra rua. Quando eu chegava, ela estava brava comigo: (risos) “Eu tive que puxar água, não sei o que, vou contar pra mamãe”. (risos) Me entregava.
P/1 – Você estava com os amigos na rua?
R – É. Jogava peteca na rua. Não tem aquela bolinha, que chama, não sei como chama pra lá, mas é petequinha mesmo. Jogava. Eu gostava de jogar, com os meninos. Era uma molequinha, eu. (risos) Jogava peteca na rua, brincava de futebol. Sempre fui assim.
P/1 – E depois que você teve filho, você mudou?
R – Eu ainda gostava de jogar futebol, porque eu sempre gostei de jogar futebol. Não jogo mais hoje, porque eu tive uma contusão nos meus dois joelhos, aí eu parei, mas de vez em quando ainda faço raiva aos outros pelo campo, (risos) mas não costumo mais jogar, eu parei, porque eu penso pra mim mesma, é meu mesmo: “Eu prefiro continuar com meu joelho aqui, no lugar, do que de repente correr o risco de fazer uma cirurgia e não andar mais, de repente isso”. Aí eu prefiro não jogar bola. Fico quieta. Moro na frente do campo, meu pé ‘coça’, mas não posso me dar a esse luxo. (risos) Aí é assim: acho que as lembranças, mais, da minha infância, são essas, do tempo que eu morei em Manaus, um período. Meu irmão também, mais velho, que hoje tem 46 anos, o Marcos, que morava junto com a gente, lá em Manaus, que também era danado que só ele. Meu pai tinha tipo uma coleção de armas em casa: espingarda, rifle, essas coisas, tudo registradinho. Aí, o que ele fazia? Deixava na parede. Ficava, assim, na parede. Sem cartucho, que tinha criança em casa. Aí deixava na parede, na cabeceira da cama, no quarto. Eu lembro uma vez que a mamãe não estava em casa, ele teve uma briga com um colega, na rua. Chegou em casa, voou em cima daquela cama, pegou a arma e apontou pro colega, na rua. Eu lembro quando a mamãe chegou, foi peia nele, porque ele fez isso. Eu digo: “Já pensou se a arma estivesse com cartucho? Que tragédia teria acontecido na nossa casa, Deus me livre!” E, assim, lembro também de coisas ruins da nossa infância, tipo: papai bebia, mamãe bebia e aí quebravam tudo dentro de casa, tudo, tudo. É por isso que a minha família resolveu vir morar no interior, também, porque meu pai tinha problema com álcool, de ficar bravo mesmo, porque meu pai era super calado - está aí o Marcio, que conheceu - gente boa mesmo, quando estava bom, mas se ele bebesse, acabava. Era demais. Ele brigava, quebrava tudo, tudo, tudo, tudo, tudo. Era muito horrível. Essa parte ruim que eu lembro da minha infância, também. Aí, de lá pra cá a gente mudou pro interior e isso melhorou, graças a Deus, mas assim: quando tinha uma festinha, porque nos interiores sempre tem festa, né? Nessa época tinha as festinhas. Eu acho que a gente ainda foi... inclusive minha mãe tem problema na vista por causa de confusão, de briga, de bebida. Ele bateu com revólver nos cílios dela e aí, como ela estava sentindo muita dor, ela colocou gelo em cima do olho e esse gelo congelou a retina do olho dela e a cegou. Foram esses problemas familiares, que ela tem a vista, hoje... não tem um lado do olho, um lado é totalmente cego e o outro ela tem 20% de visão, só, bem baixinho, mas anda pra todo lado, a mamãe é danada. (risos) Anda pra todo lado.
P/1 – E você aprendeu a caçar?
R – Não, não caço, mas meus irmãos todos caçam. Eu não. Eu fui muito, assim, de carregar, por exemplo, peso. Eu não tenho problema com peso. Eu sempre, desde muito pequena, gostava... o papai serrava madeira pra casa, eu ia carregar. Não conseguia carregar duas tábuas, carregava uma. Ou arrastada, ou no ombro, carregava. Costumava carregar na cabeça. Papai dizia: “Vai doer a cabeça, vai doer a cabeça”. Aí, depois de adulta que eu consigo carregar no ombro, mas eu sempre carregava madeira na minha cabeça. Sempre, sempre, sempre. Sempre era na cabeça.
P/1 – Era mais fácil na cabeça que no ombro?
R – Era mais fácil pra mim. Eu conseguia apoiar a tábua aqui na minha cabeça, tranquilo. Aí, quando a gente morava no Chita, que eu já tinha seus dez, onze anos, o papai foi serrar madeira, porque a nossa casa era grande, mas tinha o quarto do papai e da mamãe e tinha o nosso quarto, meu e da minha irmã mais nova e aí eu queria meu quarto, papai disse: “Não, vou tirar madeira, você carrega tábua e eu faço o quarto pra você” e a gente foi e aí eu carregava de seis tábuas, papai serrando. Meu primo que me ajudou a carregar, que eu trocava dia – com onze anos – com meu primo: “Vamos embora, tu me ajuda a carregar madeira, que eu vou te ajudar lá no roçado, capinar, arrancar mandioca, qualquer coisa”, a gente trocava dias. Aí ele foi me ajudar e se admirava que eu carregava o mesmo tanto de tábua que ele carregava. Eu carregava na cabeça e ele no ombro, numa distância de mais ou menos uns vinte minutos de casa pra onde papai estava tirando a madeira.
P/1 – E ele construiu seu quarto?
R – Aí construiu meu quarto.
P/1 – Queria te perguntar, então, como foi ter a Jennifer, depois dos bebês gêmeos?
R – Foi uma experiência boa, graças a Deus! Ela nasceu saudável. A Márcia me ajudou muito com a Jennifer, foi meu apoio, na época porque, como a gente morava no interior e, como eu já falei, a gente não tinha muito acesso à cidade, então a gente era muito preso só aqui. Eu não conhecia nada, só andava se alguém me levasse, se fosse comigo. E aí, quando foi pra eu ter a Jennifer, eu fui morar, passei um mês lá na casa da Márcia. Ela tinha construído aquela casa dela lá, que vocês conheceram, a parte era embaixo, a gente morava embaixo, que era só a parte de baixo ainda, mas era um casarão, era linda. Eu digo pra ela que ela mudou tanto a casa dela, que eu nem conheço mais. A primeira versão era mais bonita, eu achava. E aí eu fiquei lá um mês, eu tinha um quartinho lá, a gente ficou num quartinho. Só eu, que o Marcio trabalhava, ele já era funcionário público, que ele conseguiu o trabalho dele depois que a gente tinha a Jennifer. A Jennifer eu acho que tinha... não, ele não trabalhava nessa época. Não, a Jennifer tinha seis meses quando ele foi chamado pra trabalhar. Nessa época ele ainda não trabalhava, mas como a gente precisava ganhar dinheiro, a gente tinha que ficar aqui trabalhando com turismo, até aparecer, pra me ajudar, lá em Manaus. E aí, quando estava completando os nove meses eu fui pra Manaus, fiquei lá na casa da Márcia e aí ela tinha um namorado, o Valdeir, que já faleceu, teve um ataque cardíaco e faleceu, já tem seis anos, já. Aí ele ajudava muito nessa área. Aquele rapaz que ela disse que foi na maternidade levar fruta pra mim, só pra ver minha gargalhada, só pra me ver. Ele era muito legal, muito gente boa. Uma vez eles vieram, que a gente morava lá naquela casa, do lado do ‘seu’ Manoel, que nós vendemos pra Márcia, ele veio eu ainda estava grávida, eu estava lá acho que duas semanas, na Márcia e tinha um sítio aqui, dentro do igarapé, ele convidou a Márcia pra vir passar o final de semana com ele, aí. Sábado, pra voltar no domingo. Ela disse: “Eu vou”. Aí eles iam de bote, num barquinho pequeno e aí bate muito, no rio. Aí ele disse: “Eu não vou levar essa ‘buchuda’, não, que ela ainda perde esse menino por aí, ainda sente dor”. Eu digo: “Você vai me levar, você não manda em mim, eu vou. Você vai lá pra minha casa, eu não vou ficar aqui sozinha, não vou, eu vou com vocês”. Aí eu vim com eles e fiquei em casa e eles foram lá no sítio deles. (risos) Aí eu a tive lá, foi tranquilo, bom. O Marcio chegou num dia, quando foi de noite eu comecei a sentir dor. Que ele estava aqui, no interior, aí ele foi pra lá, pra me ver e aí eu senti dor de noite, ele estava lá, em casa, aí me levou pra maternidade e tudo. Acordei de madrugada, com dor, ele já queria chamar a Márcia, a Márcia estava dormindo, eu digo: “Não, espera o dia amanhecer, espera o dia amanhecer”. (risos) Eu sempre fui assim: não gosto de ir pra maternidade, sentiu alguma coisinha, já vai pra maternidade. Não, eu só vou quando estiver tendo. (risos) E aí sete horas da manhã a gente foi pra maternidade, Jennifer nasceu oito horas da manhã, foi bem rápido. A Joice também nasceu bem rápido. A Joice, nós fomos pra maternidade, quando ela nasceu, eu comecei a sentir dor de manhã, ela nasceu lá... eu fiquei hospedada na casa dos meus irmãos por parte de pai, na Compensa, que eles têm uma casa lá na Compensa, um bairro ali na beira, na margem. Quando nós fomos passando eu fui falando: “Porto tal, porto tal” pra vocês, é ali. Antigamente as embarcações só encostavam lá, no Porto da Compensa, não iam pro Centro e a gente sempre ficava lá. Nesse dia, foi numa quinta-feira que a Joice nasceu - voltamos pra mais velha agora (risos) – e a minha mãe estava chegando mais o meu pai, de Manaus, que ela ia receber a pensão dela, nós fomos andando acho que uns trinta ou vinte minutos a pé, até o porto, até a beira do rio, pra esperar minha mãe e meu pai, que estavam chegando. E aí, nesse trajeto, caminhando, indo pra beira, eu senti dor, já. Quando eu cheguei na casa, que eu tinha um parente lá, bem na subida da escada, eu fui no banheiro, eu já vi o primeiro sinal de sangue na calcinha e tal. E aí eu fiquei quieta, não falei nada, fiquei quietinha. (risos) Minha mãe chegou, nós voltamos na mesma pernada, os ajudamos com as bolsas e tudo, eu sentindo aquela contraçãozinha pouca. Cheguei em casa, fomos fazer o almoço, que já era umas onze e meia, aí fez almoço, eu não consegui comer, porque eu estava inquieta, não conseguia comer nada, mamãe disse: “Está sentindo alguma coisa?” “Eu estou sentindo uma dorzinha simples”, porque o povo sempre faz muito alarde, né? “Ai que dói demais ter filho, que é a dor não sei de que, não sei o quê” e eu não estava sentindo aquela dor, então eu não podia dizer que era a dor pra ter o bebê, porque eu não estava sentindo aquela dor. Aí, quando deu acho que umas quatro, quatro e meia, eu fiquei mais inquieta, fui ficando mais inquieta, mais inquieta. Aí, minha irmã, que já tinha filho, a minha irmã mais velha: “Não, tem que levá-la pra maternidade”. Nós saímos da casa dela umas quatro e meia, cinco e cinquenta e cinco a Joice nasceu. Só deu tempo de chegar na maternidade, eu não consegui subir de escada, já subi de elevador direto pra sala de parto. Direto. Foi chegando e bem dizer nascendo. Foi assim, muito rápido. Muito rápido, rápido, rápido, rápido. Eu passei o dia todinho sentindo e não falava nada, porque eu achei que ia ser uma dor desesperadora (risos) e não sentia aquela dor desesperada. Aí depois veio a Jennifer, depois de todos os abortos e tudo. Eu acho que eu passei um ano, dois anos pra ter a Jennifer. A Joice tem 26, a Jennifer tem 21, então são cinco anos de diferença de uma pra outra. E aí a Jennifer nasceu a gente já tinha a nossa casa de madeira, porque a Joice não teve essa infância de engatinhar no piso, ela não conseguia, ficava em cima da cama direto, porque a nossa casa era de barro, então a gente não tinha isso. Às vezes eu a levava lá pra Dona Maria, que era avó dela, a mãe do Marcio, pra ela poder engatinhar um pouquinho no chão, no assoalho da casa, mas a maioria do tempo a gente ficava em casa e ela ficava só em cima do colchão. Tanto que ela teve demora, retardo pra andar, ela já foi andar bem com dois anos. Com dois anos ela conseguiu andar melhor, porque até um ano e pouco o povo falava: “Ela tem problemas, ela tem problemas, ela tem problemas”, mas eu entendia que era porque ela não tinha espaço pra estar movimentando as articulações. (risos) A Jennifer não, já teve um ambiente de madeira pra ela engatinhar, já estava melhor a nossa situação. Aí, quando a Jennifer estava com seis meses, Marcio recebeu a proposta do emprego, que é esse emprego que ele está até hoje, de agente de endemias. A gente tinha um roçado no Chita, na casa dos meus pais e aí a gente estava na farinhada, fazendo farinha. Tinha arrancado umas dez, quinze sacas de mandioca, estava torrando farinha naquele processo de farinhada, não sei se vocês já participaram desse processo, mas é assim: a gente tira mandioca, pra colocar na água uma certa quantidade, coloca de molho. Nessa época a gente colocava nas canoas porque, como meus pais moravam próximo ao rio, a gente colocava nessas canoonas, ‘botava’ na água, jogava mandioca lá dentro. Cortava a cabeça, que a gente chama e a ponta do rabo e coloca de molho uma quantidade, a canoa cheia de mandioca e aí três, quatro dias depois aquela mandioca lá já está mole, já começa a sair a casca, aí vai no roçado, arranca outro monte de mandioca, aí vai raspar, tirar a casca dela dura mesmo, pra poder sevar no moedor, que antigamente as pessoas ralavam, hoje em dia a gente já tem motor, tem bola, aí seva tudinho, aí mistura com aquela que sai da água. Tira aquela da água todinha, que é o processo da farinha, de mistura. Tem pessoas que fazem só d’água e outros fazem só farinha seca. Mas a gente, tradicionalmente, a minha família e a do Marcio, costuma misturar os dois tipos de massa, tanto a puba, que a gente chama puba d’água, como a da terra, que é a seca, que é sevada, sai do roçado, é rapada, lavada e sevada. Aí faz a mistura, pra torrar no outro dia, porque se a gente torrar no mesmo dia que faz todo esse processo, ela fica doce, a farinha, ou amarga. Aí a gente deixa pra torrar no outro dia, que ela fica um gosto que a gente já é acostumado. Aí a gente estava nesse processo de farinhada, lá no nosso roçado. A gente tinha uma quadra de roça e a gente estava fazendo farinha e o rapaz, porque o Marcio, como meu irmão era funcionário, ele chegava lá pra fazer, por exemplo, fumaça, que é um tipo de ação que antigamente faziam muito. Hoje em dia, por causa da covid, foi proibido. Que chamam de fog, é um tipo de fumaça que é pra espantar os mosquitos da malária. Aí ele sai esfumaçando com a máquina toda a região, a casa por fora, tudo, faz fumaça e tudo. Aí nessa época eles precisavam de alguém pra pilotar o bote, pra andarem nos igarapés e o Marcio ia, tranquilo, de graça, como diz, sem ganhar nada, ia. Já estava conversando, se divertindo, ia embora e fazia o trabalho, com os meninos. E aí eles viram que ‘pintou’ a vaga, a gente conhecia o rapaz, que era tipo um gerente da turma, da equipe, responsável pela equipe, aí ele foi lá com a gente. A gente morava aqui, mas como a gente estava lá, ele foi até lá, no Chita: “Marcio, tenho uma coisa boa pra você, meu amigo, não sei o quê”. Aí o Marcio disse: “Pode falar”. Estava na parede do forno, torrando lá a farinha, mexendo a farinha, torrando. “Rapaz, quer trabalhar?” Marcio disse: “Rapaz, na hora” “Então, vamos fazer o seguinte: eu tenho uma proposta de emprego. ‘Pintou’ três ou duas vagas e uma é sua, eu quero que você preencha. Já peguei o fulano e o sicrano lá do Jaraqui, a fulana queria ‘botar’ outra pessoa, mas eu disse pra ela que não, que a vaga é sua, então eu vim aqui, saber se você quer”. Marcio disse na hora: “Quero”. Aí passou por um período de experiência, acho que foi uns três meses, pra se adaptar ao trabalho...
P/1 – O que ele faz?
R – O trabalho do Marcio é furar o dedo, coletar o sangue, colocar numa laminazinha de vidro, pro rapaz examinar. Tem um rapaz só de laboratório, hoje em dia. Nessa época não tinha. Nessa época funcionava assim: eles vinham com a equipe, de Manaus, num barco, ficavam hospedados na comunidade, dentro do barco e aí faziam o serviço. Saíam de casa em casa, que é busca ativa que chama, faziam busca ativa, furavam o dedo de toda família, de todos que queriam. Não podia obrigar ninguém, mas todas as pessoas, porque naquela época dava muita malária. Mas porque dava muita malária? Porque essa facilidade de coleta e de exame na hora era difícil. Então, você sentia o sintoma da malária, não tinha como fazer o tratamento logo, nessa época e aí o carapanã te ferroava, contaminava fulano, sicrano e ia contaminando a comunidade inteira. Aí todas as pessoas da comunidade pegavam malária por causa disso, porque o tratamento era tardio, demorava. Aí eu sei que o Marcio entrou no processo, furava até tucumã. Não tem o tucumãzinho verdinho? Verdinho assim, ele treinava com estilete, pra ele aprender a furar o dedo treinava no caroço de tucumã. Aí graças a Deus ele conseguiu esse emprego. Ele ficou um período trabalhando de experiência de três meses, depois ele foi contratado pela FVS, pela empresa, que na época era Suzano, ficou trabalhando por contrato um período, depois veio o concurso público do estado, ele passou, está há quinze anos efetivo pelo concurso público, ele é concursado no emprego dele. Aí, desde então melhorou nossa vida porque, aqui no interior, se você não tem uma fonte de renda, as coisas ficam mais difíceis, mas você tendo uma fonte de renda melhora muito a situação da gente, tanto financeiramente, como pra melhorar a moradia, mesmo, a nossa situação e aí, de lá pra cá a gente conseguiu comprar nossas coisas, TV, o primeiro salário dele comprou nossa TV. A gente já tinha TV preto e branco, que era a bateria, pequenininha. Naquela época a TV era preto e branco. Funcionava na bateriazinha, nessas baterias de carro, era ligada na bateria de carro, pra gente assistir uma novelinha, um negocinho, bem pouquinho mesmo, só para um horário, por exemplo: vai dormir umas sete horas, ficava até às oito horas assistindo uma televisãozinha. (risos) Era assim. Mas aí, depois, conseguimos comprar nossas coisinhas, melhorar nossa casa, que a gente só tinha um quarto, quando a gente conseguiu fazer a casa e uma varanda aberta. O resto da casa a gente não conseguiu terminar. Aí, depois que ele começou a trabalhar, a gente conseguiu terminar nossa casa, graças a Deus.
P/1 – Não era aqui?
R – Não, era perto do ‘seu’ Manoel, numa outra casa. Essa casa aqui é mais recente, porque depois de morar lá, no ‘seu’ Manoel, a gente mudou pra um outro terreno, que fica mais na margem do rio que nós vamos mais tarde lá, eu vou mostrar pra vocês, na margem do rio. Está bem seco agora, mas ele fica bem próximo do rio.
P/1 – Você estava contando da outra casa, lá na margem do rio.
R – É, da praia. A gente morou lá uns dez anos, mas aí, como o Marcio é agente de endemias, ele trabalha nessa comunidade e nas mais próximas. Quando tem ação de borrifação, que é aquela que eles melam a parede por dentro, intradomiciliar que eles chamam. É um tipo de borrifação com veneno, que eles borrifam as paredes da casa todinha, mas alvenaria não pode, eles fazem na madeira, só, que o veneno concentra mais, que quando o mosquito pousa a patinha dele o veneno fixa nas patinhas, então ele morre. É uma estratégia da fundação. E aí ele trabalhava nessas ações. E depois da gente estar morando acho que uns oito anos já, lá na praia, ele estava em uma ação, foi trabalhar em outra comunidade próxima, que é Araras e aí tinha uma balsa dessas que carregam seixos, areia, parada na margem do rio. Estava um pouco seco, não tão seco que nem agora, mas estava secando. E a balsa estava parada, na margem do rio. Ele passou, foi embora. Nós morávamos lá. Era eu, o Marcio, a Joice, a Jennifer e a Jasmim, só tinha as três. E aí ele passou pro trabalho dele tranquilo, viu a balsa, deu com a mão e foi embora. Quando ele vinha voltando o pessoal da balsa, que estava com macacão alaranjado, de tripulante, o chamou. Ele estava num botezinho, no motorzinho de popa da fundação, no bote da fundação, com a bolsa dele, de trabalho, que é amarela, não sei se vocês viram uma bolsa amarela, encardidinha. (risos) Aí ele estava trabalhando e aí o chamaram, ele encostou do lado da balsa. Aí o ‘cara’ pulou dentro do bote dele. Não, primeiro o ‘cara’ perguntou: “Você quer comprar diesel, não sei o quê?” Ele disse: “Sim, eu quero”, porque como a gente sempre teve motorzinho de luz, a gente morava lá e não tinha luz elétrica, nessa época, nas comunidades, então a gente usava muito motor de luz e aí conseguiu...
P/1 – Vocês que fizeram?
R – Motor de luz não, a gente comprou. Aí, como a gente sempre dependeu muito do motor de luz e do combustível, consequentemente, pra comprar mais barato, porque dentro da comunidade é muito mais caro, ele disse: “Eu quero, sim, comprar o diesel”. O que eles pensaram? Já eram os ladrões. As pessoas da balsa estavam todas amarradas, dentro do camarote e essas pessoas tinham vestido os macacões dos tripulantes da balsa e se passavam pelos tripulantes. Na hora que ele falou que queria comprar o diesel o ‘cara’ pulou no bote dele e apontou a arma pra ele, o mandou parar o motor, desligar o motor e disse que era um assalto, porque eles pensavam, ele falou que queria comprar o diesel, que ele tinha dinheiro em mãos e aí o mandaram subir na balsa, ele subiu na balsa, o ‘cara’ deu um tapa no pescoço dele sem ele ter reagido, sem nada, porque ele desligou o motor, levantou e quando ele foi subir na balsa o ‘cara’ deu um tapa no pé do ouvido dele. Aí ele subiu e os ‘caras’ todo tempo querendo dinheiro, perguntando onde estava o dinheiro, ele disse que ele não tinha dinheiro, não tinha dinheiro, porque ele não tinha mesmo dinheiro e aí o levaram pro camarote, quando ele chegou lá que ele viu que estava todo mundo amarrado lá dentro do camarote, toda a tripulação. Só tinha uma mulher que estava solta, que era a cozinheira, eles não a tinham amarrado, estava lá no cantinho, mas estava quieta lá, no canto dela. Aí colocaram faca, deram lapada nele com terçado e tudo e ele disse que a adrenalina estava tão forte no corpo dele, que ele não sentiu. Não sentia, não sentia. Só sentia o ‘cara’ encostando a ponta da faca, assim, na barriga dele e dizendo pra ele que, se encontrasse uma moeda de um real nas coisas dele iam furar o bucho dele, colocar pedra e jogar no rio. E ficavam o tempo todo ameaçando-o, mexeram tudo nas coisas dele e não encontraram nada. Aí o trancaram dentro do camarote, com as outras pessoas, levaram o bote e o motor que ele estava trabalhando, levaram tudo. Inclusive a camisa dele, de trabalho, que estava dentro do bote, levaram. Aí, quando ele os escutou saindo, viu que eles já tinham saído, que eles foram tentar arrombar a porta do camarote, ele conseguiu arrombar, sair, correu até lá no pai dele, que ficava mais perto, que era pra lá, o assalto foi pra lá, aí conseguiu chegar no pai dele, falou o que tinha acontecido, veio aqui pra vila, porque nessa época a gente morava longe, vocês vão conhecer lá, a gente morava pra lá e eu sem saber de nada, não sabia de nada. Tinha telefone, já funcionava o celular, era da Tim, nessa época funcionava bem, aqui na região. Depois foi a Claro. Aí ele veio aqui pela vila e conseguiu entrar em contato comigo e falar que tinha sofrido um assalto, não sei o que e eu fiquei preocupada, lá em casa. Aí ele veio aqui pedir ajuda pra ir atrás dos ladrões e tudo e quase ninguém queria ir, até que encontrou uma pessoa que foi. Ainda foram, pegaram as armas, espingardas e tudo, que a população das comunidades todas tem espingarda. Aí foram, juntaram bem uns seis homens, foram pra lá, mas não conseguiram pegar os ladrões, resumindo. Teve todo um processo, a polícia veio já tarde da noite, eles pensaram que a polícia era até os ladrões, porque a polícia chegou ameaçando todo mundo dentro do bote, aí eles ficaram meio com medo e aí perguntaram quem era que tinha sido assaltado, aí ele se apresentou e aí o colocaram no bote da polícia, só que não era um bote de polícia, era um bote normal, então ele ficou com medo, achava que era bandido, em vez de ser a polícia, mas aí teve uma coincidência que ele se sentiu mais seguro, porque esse bote que eles estavam era também da mesma pessoa que tinha ajudado meu marido a conseguir o emprego, que se chamava Manoel. Manelão, que a gente chamava. Ele era colega do meu marido, de trabalho. E a lancha dele chamava-se Zig Zag. Como estava escuro meu esposo não tinha visto, o Marcio não tinha visto o nome da lancha, aí eles falaram: “Não, essa lancha aqui é do Zig Zag”. Quando ele falou Zig Zag chega ele respirou, disse: “Poxa, então eu estou seguro. A lancha é do meu colega, então é polícia mesmo”. Eu sei que foram atrás, mas não conseguiram recuperar nada, mas esse foi um dos motivos que nos trouxe pra vila, pela segurança, porque como nossa família maior é mulher, só tinha ele de homem, ele achou mais seguro que a gente viesse morar onde tivesse mais casas, mais pessoas, pra se sentir mais seguro. E aí eu nunca quis sair de lá, mas eu vim por nossa segurança, mesmo, por estratégia de segurança. Eu consegui também um emprego na escola, trabalhava como voluntária na escola, ajudando na educação das crianças, no projeto... esqueci o nome do projeto agora, que tinha na escola, que contratava monitores, eu era monitora escolar. Eu já tinha meu curso superior, de faculdade, estava terminando minha graduação em Língua Portuguesa e aí eu comecei a trabalhar como estagiária, na escola, como monitora. Fiquei trabalhando um período na escola, como monitora. Depois eu consegui uma vaga na Seduc. Teve um seletivo, eu passei e aí comecei a trabalhar pelo tecnológico, que é um tipo de ensino que a gente tem na comunidade. Os professores lecionam lá em Manaus, a aula é online, mas é assim... como eu posso dizer?... naquele momento, ela fica acontecendo no momento da aula, não é gravado, é ao vivo. A aula é ao vivo, então eu trabalhei três anos e sete meses nesse tipo de modalidade.
P/1 – Mas você trabalhava lá?
R – Trabalhava aqui, na comunidade. E aí tudo isso facilitou nossa vida, pra vir pra cá. Essa casa aqui a gente morou uns seis meses, de favor. A gente morava... a senhora tinha abandonado a casa, na época, ela cuidava de uma criança especial, então ela não teve condições de morar aqui nessa casa, com ele. Ela se mudou pra Manaus, foi morar em Manaus e aí a gente estava vendo a possibilidade de construir uma casa por aqui, por perto. Aí, conversando com um vizinho, com outro, deram o contato dela pra gente e a gente conversou com ela, ela disse: “Não, vocês vão morar lá, ficam morando, vocês cuidam pra mim e tal, vai ser bom, pelo menos a minha casa não vai estar abandonada, o cupim não vai comer, não vão depredar”. A gente veio morar aqui e aí, depois de seis meses ela lançou a proposta de venda pra gente, só que a gente estava pagando uma outra coisa e aí a gente ficou meio assim, de querer comprar a casa. A gente estava construindo também a nossa casa lá onde era a Joice. Nós íamos construir nossa casa lá, que lá era um pedaço do terreno do ‘seu’ Manoel e tinha dado, cedido pra gente, a gente ia construir nossa casinha lá. Já tinha os esteios, tudo, a gente tentando construir e ela lançou a proposta de vender essa casa pra gente. Dez mil ela queria nessa casa. Não era essa estrutura aqui, não, está tudo mudado, era só madeira. Só tinha o piso, mas era só daqui pra lá o piso, essa parede era de madeira. Aí a gente conversou, mais o Marcio e lançamos uma proposta pra ela: “Como é a forma de pagamento? Dez mil a gente não têm condições de pagar. Se a senhora der uma abaixada e parcelar, a gente consegue adequar à nossa despesa”. Aí ela disse que deixaria por oito mil e a gente pagaria quinhentos mensais, até terminar de pagar e a gente assinava os recibinhos lá com ela, tudo legalzinho. E assim a gente fez. A gente conseguiu comprar a casa de oito mil reais, parcelado mensalmente de quinhentos reais todo mês, a gente pagava direitinho e conseguiu pagar nossa casa. Aí que nós conseguimos mudar algumas coisas na casa, construir os quartos pra cima, que aqui era só um salão. Tinha um quarto aqui e era um salãozão, só mesmo, era bem estranho. (risos) Aí a gente conseguiu comprar e mudamos de vez pra cá, mas a minha vontade sempre foi voltar pro meu cantinho, lá. Sempre foi. Porque assim: a gente sabe que, morando perto... vocês que moram em cidade grande, quase não tem contato com os vizinhos, mas aqui a gente conhece todo mundo e a gente passa por questões, por exemplo: o vizinho tocar fogo lá nas folhinhas da casa dele e a fumaça vem pra minha casa. Aí o vizinho joga bola no campo, o telhado da minha casa é quebrado, entendeu? Tudo isso desanima a gente morar muito perto. E tem outros probleminhas que acontecem, de fofoquinhas também. E, assim: eu, por mim, voltaria pra lá. Eu não gosto de morar aqui, não. Moro aqui porque eu tenho a casa aqui, não estou na casa dos outros, estou na minha casa, mas preferia morar lá, no meu cantinho. Às vezes eu falo pro Marcio que vou pegar minha barraca, armo lá e moro pra lá e me mudo pra lá, com July. (risos) Pois é, mas é bem isso, mais ou menos, a nossa vida. Aí eu trabalhei esses três anos e sete meses na escola e não fiz a minha pós, eu fiquei acomodada, porque eu tive possibilidade de fazer. Eu trabalhava, mas eu poderia ter feito à distância a minha pós-graduação. Aí, quando teve o próximo seletivo, depois de três anos... seletivo se prorroga por dois anos, é dois anos e se prorroga por mais dois anos, aí quando completei três anos e sete meses de trabalho teve um novo seletivo. Eu passei nesse seletivo, só que eu não fui chamada, porque eu fiquei muito atrás. E aí eu não tinha pós-graduação e um dos critérios era ter pós-graduação na área, ser pós-graduado. E aí eu não tinha, porque eu não tinha feito, eu tinha parado. Quando eu terminei minha graduação eu comecei a minha pós, só que eu engravidei da Jaque e aí parei a graduação. Estava com um barrigão, fui lá e tranquei. Pior coisa você trancar uma área de estudo que você gosta. Aí tranquei e nunca mais voltei, passei três anos aí, parada. Demorou, demorou, eu digo: “Meu Deus do céu!” Eu saí da escola por causa que eu não tinha pós. Aí fiquei. Quando eu consegui a vaga também eu não fiquei em primeiro lugar, quando eu comecei trabalhar. Foi coisa de Deus, mesmo. Eu fiquei em oitavo lugar, eu esperei todo mundo ser chamado na minha frente. Tinha sete pessoas na minha frente. O último era um professor que trabalhava aqui, eu achei que ele ia assumir a vaga. E aí o pessoal falava: “Não, ele vai ficar, Jeovania, tu não tem chance, não, ele vai ficar na sua vaga. Não vai ter chance pra ti, não”. Aí o que o professor fez comigo? Ele queria fazer um acordo comigo, o professor, porque assim: a gente tem um projeto dentro da área ribeirinha, itinerante que chama, que o professor passa três meses, por exemplo, nessa comunidade e três meses na outra, lecionando a disciplina dele. Por exemplo: se for Língua Portuguesa, é Língua Portuguesa; se for matemática, é matemática. Ele passa três meses... isso é no período de quinto ao nono ano, essa faixa etária de ensino fundamental, aos professores do itinerante, que aí são professores de áreas, disciplinas específicas. E aí esse professor estava trabalhando aqui, só que ele já tinha que ir pra outra comunidade, aí ele me chamou lá na escola, eu trabalhava por lá, voluntária, na educação das crianças, era tipo uma aula de reforço que eu dava e falou pra mim: “Jeovania, vamos fazer um acordo? Eu assumo a vaga, você fica trabalhando no meu lugar, eu te dou tanto por cento do salário”. Aí a diretora da escola estava lá, a Silmara e eu digo: “Vou pensar, professor, vou falar com o Marcio, depois te dou a resposta” “Está bom, tudo bem”. Aí a Silmara disse: “Jeovania, vem cá” - que é a diretora da escola, a gestora – “Não faz isso, não. Ele vai te dar uma mixaria”, porque o salário, na época, era três mil e pouco. Isso foi, eu comecei a trabalhar em 2016, na escola. Ela disse: “Não aceita, não”. Ele queria me dar, parece, não sei se era novecentos reais, pra eu ficar trabalhando no lugar dele, sendo que o salário era três mil e pouco. Aí ela disse: “Não faz isso, não. Se a vaga tiver que ser sua, vai ser, tu vai ver só. Espera mais um pouco, não aceita esse acordo dele, não”. Aí eu, na mesma hora, disse: “Professor, eu acho melhor não, vou esperar, vai que Deus ajude aí, eu fique numa vaga, eu vou esperar”. Aí vim embora pra casa e falei a situação pro Marcio, ele disse: “Não, é melhor mesmo esperar, vamos esperar”. Aí, de oito, só faltava mais um na minha frente, que era ele, então eu digo: “Vou esperar”, aí ele desistiu da vaga, aí me chamaram. Aí o pessoal aí da escola, tudo: “Jeovania, teu nome saiu”. Eu estava não sei onde e Marcio. “Teu nome saiu, embora agora” – estava lá na escola, trabalhando – “pra Manaus”. E fomos, pra correr atrás da documentação, ir lá na Seduc assinar o documento e tudo e foi muito bom. Aí eu fiquei até 2019 trabalhando. Depois disso teve outro seletivo, que foi quando eu não passei. Passei e não passei, passei e não fui chamada. (risos) E aí, depois que eu não fui chamada, eu fiz a minha pós. (risos) E agora teve um novo seletivo e eu estou em terceiro lugar. Aqui tem duas vagas, na comunidade. Tem uma pessoa que eu não conheço, não sei de onde é, que está em primeiro lugar e tem uma professora que é daqui, já, que está em segundo lugar e eu estou em terceiro. Então, qual é a minha esperança pra emprego? Que a pessoa em primeiro lugar desista, que eu não a conheço. Eu quero trabalhar, se Deus quiser porque, assim, conversando com o Marcio, pela nossa história de vida eu digo pra ele: “Se eu conseguir o trabalho da Seduc é bom, porque de verdade eu não quero ficar sendo empregada, funcionária, não”, que nem o Marcio é, porque fica preso. O que eu penso? Trabalhar três anos na escola e construir o nosso projeto, de ter nossa empresa, porque assim eu vou ter recurso pra ajudá-lo a construir melhor o que a gente sonha. É o que eu pretendo: trabalhar por minha conta e risco. (risos) Não ser funcionária pública, ou funcionária de qualquer empresa que seja. Não é meu sonho isso. Eu já sonho... porque antigamente eu tinha o sonho de conseguir um emprego como professora e tal. Eu nunca escolhi emprego, o que ‘pintar’ pra mim eu faço. E tem pessoas que, quando tem o ensino superior não querem, por exemplo, faxinar, ser faxineira de uma escola. Eu, por mim, se ‘pintar’ uma vaga na escola de faxineira, eu estou lá, (risos) tranquilo, mas conversando com o Marcio, eu disse: “Se eu for chamada esse outro ano...”, que eu estou esperando pra agora, começo de janeiro, sair, porque a última notinha que saiu sobre o processo seletivo foi em junho, dia dezoito de junho. De lá pra cá paralisaram e eu estou esperando se vão chamar a partir de janeiro, fevereiro, não sei, estou esperando ainda essa expectativa. Aí, se me chamarem, eu vou ficar pelo período, pra eu poder me estruturar pra trabalhar no que eu gosto, nos cosméticos, nos artesanatos.
P/1 – Isso. Conta dessa parte, pra gente?
R – Dos cosméticos?
P/1 – Sim. Começou com o grupo, é isso?
R – Cosméticos, em 2018. Como começou? Como a gente mora na reserva e a gente tem o nosso conhecimento tradicional, só que como a gente tem muito acesso à cidade, ao município, essas coisas findam que se perdem, o nosso conhecimento tradicional fica perdido, só com nossos avós, nossos pais e a nova geração vai perdendo esse hábito de fazer um chazinho pra dor de cabeça, pra febre, de fazer um medicamentozinho pra uma infecção, uma coisinha. Vai se perdendo. E a gente recebeu a proposta, junto com a Semas, a FAS, que é a Fundação de Desenvolvimento Sustentável e a Semas, que é ó órgão gestor da RDS, a gente recebeu uma ONG chamada Brasilindia, vieram com a proposta de resgate de cultura de uso de plantas medicinais, que poderiam ajudar na nossa própria saúde dentro da reserva e aí, em 2018 a gente recebeu esse curso com o professor Moacir Biondo, que é muito conhecido na Amazônia, tem entrevista dele aí na TV, telejornais. Dia desses estava até aparecendo um comercial na TV, toda hora no comercial aparecia ele, dando depoimento sobre a vivência dele, o conhecimento dele sobre as plantas. E aí ele veio trazer esse resgate pra gente, porque a gente tem um pouco de conhecimento, mas como todo ser humano, ninguém sabe tudo e é sempre bom aprender um pouquinho mais. E aí eu estava lá, no meio desse pessoal. Na época eram doze pessoas, inclusive ‘seu’ Manoel fez parte no nosso grupo, a mãe do Marcio também e aí se ‘desbundaram’ por conta de que o grupo, no caso, se consolidou, procurou um foco de fazer produto pra vender, mesmo, porque o entendimento da ONG era trazer pra nossa própria saúde, da população ribeirinha e aí a gente, como morador que não tem renda, viu a possibilidade de fazer por que não pra gerar uma renda pras famílias? E aí, de 2018 pra cá a gente começou a fazer. A gente começou com o xarope de jatobá, que a gente usa outros ingredientes: mangarataia, alho, limão, pra fazer o xarope de jatobá.
P/1 – Vocês fizeram na pandemia?
R – A gente usou na pandemia, fez doação de quinhentos vidros de xarope de cinquenta... cem mls pras famílias da RDS, distribuído pra todas as comunidades do RDS. E aí, de 2018 pra cá a gente vem trabalhando, procurando aprender mais. Eu, pelo menos, que gosto, procuro sempre aprender um pouquinho mais. Eu descobri uma loja dentro de Manaus que oferece curso de cosméticos, que é a Essência da Amazônia, vou fazer comercial. (risos) Eles oferecem cursos aos sábados, de cosméticos, desses cosméticos artesanais, sem conservantes. E aí eu já fiz acho que uns seis cursinhos lá, dia de sábado. Quando eu tenho oportunidade, que eu estou lá de final de semana, eu vou pro curso. E aí eu faço, que são só quatro horas de curso, aí eu aprendo quatro tipos de cosméticos, por exemplo, num cursinho, que é uma coisa simples, é fácil e lá mesmo você compra os ingredientes do que você quer fazer. Aí eu já participei de uns quatro, seis cursinhos desses. De vela aromatizante, do creme de mulateiro, sabonete glicerinado. Eu tenho até glicerina aí, que dá pra fazer, (risos) eu acho que de noite a gente vai ver alguma coisa. E aí eu venho melhorando, que a gente faz pesquisas e vai tendo outros conhecimentos, mas essa vontade de fazer os cosméticos veio através desse curso, dessa ONG Brasilindia. E aí, junto com o presidente da comunidade, organizaram o grupo de mulheres, a gente coletou as plantas que a gente tem aqui, pra oficina. Aí a gente fala o nome que a gente conhece, ele traz o nome que ele conhece, é uma troca e de 2018 pra cá todos os anos eles estão vindo, vêm. Todo ano o Doutor Moacir Biondo vem à comunidade. Não só nessa, mas a gente já... porque agora, o que ele faz? Ele veio, deu o primeiro curso pra gente, deu o segundo curso e aí os outros cursos que vão ser nas outras comunidades nós é que damos, as moradoras da comunidade. A gente que faz o xarope pras outras comunidades, a pomada, pra ensinar como é que faz. Eu já fui, esse ano, convidada, mas eu não fui, a última vez eu não fui. Fui a primeira vez, mas a segunda eu não fui, que eu estava com a Joice em Manaus e tudo, aí não pude ir com ela, mas é a Cláudia. Quando ela vem, ela já me liga: “Jeovania, você vai estar disponível pra ir com a gente na comunidade tal, fazer o xarope, pomada, não sei o quê?” Aí vou. Vai eu a e a outra pessoa do outro grupo, que é o grupo Yara(?). Ela sempre vai, a gente sempre vai as duas juntas. O povo acha que a gente é concorrente, a gente pode até ser concorrente, mas a gente não tem inimizade uma com a outra, a gente se dá bem. Ela até me dá umas dicas, eu converso bastante com ela, porque a gente era um grupo só, a gente trabalhava juntas e aí ela desligou do grupo, porque ela começou a trabalhar com cosméticos e a gente trabalhava com pomada e xarope. Ela começou a trabalhar com cosméticos e ela não quis trazer isso pro nosso grupo, ela preferiu se ‘desbundar’’, como a gente fala, sair. (risos) E aí eu continuei no Grupo Jatobá e busquei aprender fazer cosméticos nos cursos, em Manaus. E aí eu consigo fazer, já aprendi fazer sabão do óleo que a gente descarta na natureza, aí eu faço também esse reaproveitamento do óleo de cozinha usado. Pode ser o óleo mais sujo que tiver, eu consigo fazer o sabão e ele fica clarinho, pra pessoa usar pra lavar roupa, até tomar banho. Marcio toma banho com o sabão, tranquilo. (risos) E aí eu procuro sempre aprender coisa, porque eu penso assim: eu moro dentro de uma reserva da RDS, então o que eu posso fazer pra contribuir com o meio ambiente onde eu vivo, onde as minhas filhas vivem, onde meus netos vivem? E o que eu puder fazer pra melhorar isso aqui eu vou fazer, enquanto tiver vida, (risos) enquanto tem vida, tem esperança. Então, como a gente trabalha também com turismo, a gente procura mostrar muito a natureza, o que a gente vive aqui dentro. Além de trabalhar com cosméticos e as plantas medicinais, a gente faz os artesanatos, que também é uma fonte de renda pra gente. A gente faz reaproveitamento de pequenas peças de madeira. Grandes peças de madeira também, como os bancos que vocês veem aqui, tudo a gente tenta aproveitar o máximo da natureza. A gente derruba árvore? Até derruba, porque às vezes precisa, pra fazer uma canoa, uma casa, mas pra isso existe lei. E também vou falar um pouquinho, que a gente tem uma lei maior dentro da reserva, que é o nosso plano de gestão. Foi construído junto com as comunidades da RDS, a gente colocou algumas questões em pauta, dentro das reuniões, que foram acatadas e estão dentro do plano de gestão. O plano de gestão tem mais de quinhentas páginas, esse plano de gestão da RDS.
P/1 – Vocês construíram juntos?
R – Construímos juntos. Posso até conseguir, pra te mandar, pra ti dar uma folheadinha nele, ele é muito bom. Por exemplo, uma das regras: você não pode vir visitar a comunidade sem autorização da Semas. Tem que entrar em contato com a Semas, pedir autorização, explicar o que você veio fazer aqui e qual o tipo de visitação, qual comunidade você vai ficar, em qual hospedagem, esses detalhes. Aí eles conseguem, eles fazem essa liberação. Não tem burocracia, é uma coisa simples, mas precisa, pra gente não ter problema durante o percurso que vai estar aqui dentro. Outra coisa é o tamanho das embarcações que a gente pode ter dentro da reserva, até porque a população, na hora da reunião, pensou assim: “Não, até dez metros só, não sei o quê”. O Marcio estava com o sonho de construir um barco maior, aí como a gente estava participando, ele disse: “Não, ao menos dezoito metros, porque eu estou com o sonho de construir um barco grande e tal, pepepe”. Aí, vamos ver, está no documento até dezoito metros uma embarcação pode ter dentro da RDS. E aí a gente tem um plano, estamos construindo também um plano de manejo madeireiro. Começamos a pender pra esse lado, porque dentro da RDS tem muito extrativismo madeireiro, muito, muito, muito, muito. Ilegalmente mesmo. Tem muitas famílias que vivem da madeira. Então, que os presidentes comunitários, a gente vem muitos anos brigando por isso, por um plano de manejo florestal. E esse ano a gente já teve duas reuniões pra tentar adequar e já foi escolhido os locais onde vai ser feito esse manejo, a gente está esperando só o resultado dessa última reunião que teve, onde foram escolhidos os locais, porque tem que ser locais onde tenham as árvores. Então, elas precisam ser preservadas, vai ter toda uma medição pra saber quando ela vai estar boa pra corte, quantas vão ser cortadas, quantas precisam ficar, daquela espécie, pra não acabar a espécie, tudo isso e a gente está nesse processo, ainda, do plano de manejo florestal, que é pra ajudar as famílias que trabalham com madeira de uma forma legal, legalizar os seus trabalhos, que todo mundo precisa sobreviver dentro da RDS e a gente quer que todo mundo esteja legal, porque uma parte trabalha com turismo e outra trabalha com madeira. Aí a madeira com turismo não é uma coisa que se encaixa, não é uma coisa legal. A gente já teve problemas dentro da comunidade por causa desse extrativismo madeireiro ilegal, inclusive dentro do terreno de pessoas. A gente que trabalha com turismo, fazendo trilha e aí tu entra numa trilha pra fazer uma caminhada e o motosserra está zoando bem do lado da sua trilha, a árvore está caindo no seu caminho, é bem complicado. Então, a gente já teve problemas até na Justiça por causa disso, aí a gente está tentando entrar num consenso de adequar as coisas, pra não termos problemas, mesmo, até entre família porque, como a gente mora na RDS, a gente não tem documento de terra, ninguém é dono de nada de terra aqui, a terra é do estado. A gente é dono enquanto morar dentro e enquanto cultivar onde a gente cultiva. O único que tem título definitivo dentro dessa RDS inteira é o ‘seu’ Manoel, meu sogro, pai do Marcio, tem título definitivo, usucapião do terreno dele. Então, ele é dono da terra dele. Só que, mesmo ele sendo dono, ele tendo título, ele teve que se adequar às regras da RDS. Por exemplo: ele não pode ‘botar’ uma placa lá, proibindo a passagem das pessoas. Não pode. A única placa que ele pode ‘botar’ lá é dizendo: Propriedade Particular Manoel Parara, o nome da propriedade dele, mas nenhum tipo de proibição e é bem complicado quando tu sabe - que tu tem documento da sua terra, é dono do seu terreno - e seu vizinho está serrando dentro do seu terreno e ele não consegue entender. ‘Seu’ Manoel já bateu muito de frente com pessoas dizendo que ele não era dono, que ele não era dono, que ele não era dono daquele terreno e todo mundo sabe que é e hoje em dia o pessoal sempre puxa esse assunto nas reuniões e aí as pessoas mesmo das ONGs, que já conhecem, já dizem: “Não, o único que tem título definitivo, que é dono da terra, se um dia tiver que sair, porque o resto ninguém”. Porque, como a gente mora na RDS, o único que tem título definitivo da terra é o ‘seu’ Manoel. Então, se um dia a gente tiver que ser retirado daqui, que não vamos, se Deus quiser não, ele tem que ser indenizado, porque ele tem o título definitivo da terra. Antes de ser parque, antes de ser RDS ele já morava e já tinha o título, que hoje em dia a gente não tem. O que a gente está correndo atrás, também, é do CDRU, que é um documento da terra, só que é comunitário. Que aí, o que vai acontecer, com o CDRU? Ele é um documento comunitário, vai ficar no nome da associação-mãe, que é a maior associação da comunidade, uma associação legalizada, abrange as dezessete comunidades que estão dentro da RDS, aí o Raimundo Leite, que é o presidente, mora aqui, dentro da nossa comunidade Jaraqui, ele é filho daqui. Ele é o presidente atual. Aí a gente já está em processo com o Incra, pra tirar o nosso CDRU, que é o documento da terra, só que é um documento comunitário, onde vai dar direito às pessoas, por exemplo, fazer um empréstimo, conseguir um financiamento pra um tipo de plantio, pra um cultivo específico que ela queira. É um documento bom e a gente está nesse processo também, de documentação de terra, só que não é um documento do meu terreno, é um documento comunitário, de todo povo que mora aqui. E aí a gente tem várias questões de terra, o vizinho entrar no fundo do seu terreno pra tirar madeira: “Eu vou tirar uma casca de uma árvore”, porque serve pra medicina e aí vai lá e quer matar a árvore, descascar toda a nossa árvore e aí a gente sempre ‘pega no pé’ dessas questões assim. O uxizeiro é a árvore que é mais descascada dentro da floresta, porque o povo vai lá e tira a casca pra fazer chá. (risos) O uxi é anti-inflamatório. Só que tem um jeito de tirar a casca, não precisa tirar a casca da árvore toda, precisa um pedacinho, tira um pedacinho, faz um negócio legal, pra não afetar tanto a árvore, porque se eu a descasco toda ela morre, aí ela não vai me servir mais pra nada. Estraga toda uma árvore enorme.
(01:37:58) P/1 – Essas leis são pensando na preservação...
R – Pensando na preservação do nosso habitat, da nossa floresta, que aqui a gente diz que é a nossa floresta em pé, né? Ela é muito mais atrativa em pé do que derrubada. A gente tem questões de roçado. A população tem essa tradição de fazer roçado, de queimadas, mas são pequenas, não chega a ser uma desmatação e ainda tem denúncia sobre isso. Por exemplo: lá no nosso terreno, na praia, a gente fez um roçadinho, pequeno, pequeno, pequeno, pequeno, ainda teve denúncia, o Ibama veio aí, a gente não estava, encostou lá na minha vizinha, aí a Dona Maria, mãe do Marcio, estava por lá, trabalhando, ela os levou lá no roçado, pra mostrar. Era um roçadinho pequeno, acho que como daqui pra cerca, ali, só, pequenininho, que a gente tinha feito. Denunciaram como se fosse desmatamento. Aí o policial foi lá, viu, nada demais. Eu digo que, se eu estivesse lá (risos) tinha querido saber quem denunciou, mas eles não falam, normalmente não falam, mas a gente descobre quem denuncia, a gente sempre descobre. E aí a gente passa por essas questões, mas graças a Deus a gente está... eu acho que é muito mais parte de conscientização da população, ter essa consciência que a gente mora numa RDS e além disso é a nossa vida, se a gente acabar com isso aqui o que vai ser das gerações futuras? Por isso que eu e o Marcio, como já foi agente ambiental e a gente é voluntário em várias coisas, a gente já fez mutirão de coleta de lixo dentro da comunidade; a gente é monitor de quelônios, que são as tartarugas. A gente faz esse trabalho voluntário, participou do curso, pra ter todas as técnicas pra coleta de ovos adequada e aí a gente faz esse trabalho, há três anos. Não que a gente não coma o tracajá, a gente come, mas o que é o nosso pensamento? Contribuir com a natureza, por que não? Tem um ditado popular que diz: “De onde se tira, que não se ‘bota’, um dia acaba”. Então, o que a gente está fazendo é ajudando a colocar lá no rio a maior quantidade possível de tracajá, que eles possam sobreviver porque, como a gente faz o monitoramento, como o rio está secando muito, a gente começa em setembro, porque se fosse normalmente seria de outubro a novembro a coleta de ovos nas praias, que é período que já tem praia, que o rio está secando e aí os tracajás começam a sair, pra desova. Mas ano passado e esse ano secou muito e aí em setembro, agosto nós achamos cova, agosto do ano passado nós achamos nossa primeira cova de tracajá, a primeira cova o Marcio achou. A gente foi pra praia Dia dos Pais, inclusive, ano passado, em agosto e aí, ele andando lá pelo terreno da Marcilene, encontrou uma cova, aí chamou todo mundo: “Encontrei um negócio ali, encontrei um negócio ali”, aí fomos de bote.
P/1 – São os ovos?
R – Os ovos, é. Aí fomos tirar a cova. Eu que fui, tirei a cova, que quando ele acha ele me chama, eu vou lá e tiro, (risos) porque eu gosto da sensação de estar tirando, coletando.
P/1 – Como que é?
R – Pra coletar os ovos... porque eles deixam as pegadinhas, ficam as pegadinhas. Não tem um projeto, não sei se vocês já ouviram falar do Projeto Pé-de-Pincha? Não?
P/1 – Conheço o Projeto Tamar.
R – Que é parecido, mas a gente fez a formação pelo Projeto Pé-de-Pincha, lá no Tumbira, que é uma comunidade que fica na margem direita do Rio Negro, que essa nossa margem aqui é a esquerda e a de lá é a direita e a gente fez o curso lá, no Tumbira. Passamos três dias lá, na Comunidade Tumbira, numa pousada, fazendo curso de monitoramento de quelônios. A gente fez o curso, práticas, que precisa e chama Projeto Pé-de-Pincha, porque a pegadinha do tracajá fica igual uma pincha dessas tampas de garrafa de vidro. Fica assim mesmo a pegadinha dele, na praia. Às vezes faz uma estrada assim, vai embora. Na praia é muito fácil de achar. No barro é mais difícil, porque você só vê o sinal das unhinhas que entram no barro quando ele está mole, quando ele está muito seco não tem como ver, mas na praia, aqui, com a gente, é muito legal. Uma sensação muito boa achar uma cova de ovo, muito legal. Uma sensação maravilhosa. É indescritível achar uma cova de ovo e saber que tu vai colocá-la pra nascer e daqui quarenta e cinco dias ela eclode dentro da cova, aí sessenta dias eles começam a sair fora da terra. Mas aí, nesse período, a gente tem que estar monitorando, porque tem formiga, tem um tipo de bichinho que a gente chama de paquinha, que chamam de tatuí, não sei se vocês conhecem como tatuí, que cava um buraquinho na areia, esse e aí eles gostam de cavar e eles furam os ovos, então a gente faz esse trabalho de monitoramento nesse período que eles estão com a gente.
(01:43:14) P/1 – Vocês trazem pra cá?
R – A gente traz. Aqui, a nossa, a gente tem uma chocadeira artificial. Chamo artificial, porque a gente montou. A gente fez um cercado, uma estrutura de madeira e enchemos de areia. Eu acho que tem uns sessenta centímetros, mais ou menos, de profundidade, porque eu preciso, no mínimo, de uns quarenta centímetros pra enterrar os ovos. A gente cava uma profundidade igual a que a mãe faz, lá na cova e tudo isso a gente tem que verificar, tem que ser atenta. Por exemplo: se os ovos estiverem muito na superfície eu tenho que trazê-los, do jeito que eu tiro lá do ninho, da covinha, eu coloco na caixa, que a gente trabalha com a caixa de isopor, que é a melhor forma que a gente encontrou de conduzir os ovos. Aí o que acontece na caixa de isopor? A gente forma, coloca uma camada de areia, aí vou depositando os ovos. Do jeito que eu tiro, não posso virá-los assim. Se eu virar, o embrião morre. Se eu sacudi-los o embrião morre. Então, do jeito que eu tiro de lá, com cuidado, eu coloco aqui. Do mesmo jeito. Do jeito que eu vou tirando, eu vou pondo na caixa e quando chegar é o mesmo processo: tirando e ‘botando’ de volta. Se eu comecei desse aqui, eu vou começar do último que eu tirei, que aí ele vai ficar novamente no fundo, que nem eu tirei lá, do mesmo jeito. Que a gente faz a covinha tipo uma botinha. Ela é cavada, eu cavo, mas eu deixo uma coisinha, tipo uma botinha, um sapatinho no fundo, que quando eles nascem, eles conseguem respirar, porque o ovo, quando a gente tira, é pequenininho, mas aí ele incha, cresce, porque o tracajazinho gera lá dentro, ele vai crescendo, ele cresce assim, fica grande, a casquinha do tracajá fica... aí ele começa a rasgar a casquinha. Tem até ali, que eu vou mostrar pra vocês depois, está nascendo. (risos) A última cova está nascendo. Aí ele começa a eclodir lá dentro, num período de quarenta e cinco dias ele fica ali, pra eclodir. Ainda fica debaixo da terra, depois que ele nasce, um periodinho, porque ele nasce com o vitelo, que a gente chama, que é a gema do ovo, que é o cordão umbilical dele. Aí ele fica com aquele vitelo uns três dias ainda, depois de nascido, por isso ele fica debaixo da terra ainda, aí depois ele começa a ‘sair pra fora’, que é o tempo que a gente pega, coleta e guarda num outro ambiente. No caso a gente deixa ainda uns cinco, seis dias numa areia, pra ele estar bem fortezinho, pra depois jogar numa água, na piscininha, pra depois soltar. Depois de dois, três meses, no máximo, pra soltura, porque se a gente demora muito tempo pra soltá-lo na natureza, ele não se adapta novamente à natureza. Então, a gente tem que ter essa conscientização, que ele só precisa ficar até três meses com a gente, desse cuidado, porque durante esse período o casquinho dele vai ficar mais dura, mais resistente pra predadores naturais e aí a gente solta, depois desses três meses. A gente até viu uma ação aqui, a primeira ação de soltura foi feita aqui dentro da nossa comunidade, com os alunos, com reportagem, com tudo. Foi muito legal. A Semas trouxe a reportagem, apoio, a gente fez a soltura aqui. Eu tenho até foto, eu estava grávida da Jennifer, com barrigão. (risos) Depois eu vou te mostrar. A gente fez a soltura com a escola, colocando as crianças pra ter essa consciência. É uma questão de conscientização, mesmo, de estar envolvendo todo mundo da comunidade, porque hoje em dia já tem pessoas que acham uma cova e já te trazem, pra te ajudar, entendeu? Ou achou uma cova, tem trinta ovos, eu vou dar ao menos dez lá, pra chocadeira do fulano. Entregar pra ele, pra ele chocar. Já tem pessoas que têm essa consciência na comunidade, mas ainda são poucas, a gente quer mais e mais e mais, porque quanto mais pessoas cuidarem, mais a gente vai ter. Tanto pro consumo, quanto pra mostrar o nosso trabalho e aí a gente está fazendo esse processo. A gente faz por conta própria, muitas das vezes, porque a gente recebe apoio da Semas, esse ano a gente recebeu trinta litros de combustível pra fazer esse monitoramento e não dá, porque a gente gasta dois litros cada viagem e é toda noite, de setembro a novembro, fazendo esse processo. Esse ano, como secou muito, a gente ficou de setembro a outubro, porque agora em novembro já está seco demais, não tem mais tracajá desovando em canto nenhum aqui, aí são dois meses de monitoramento. E aí é todo dia, a boca da noite que a gente chama, do início da noite, até às nove, dez horas e de madrugada, das duas horas até às sete da manhã. Então, além de ser um processo cansativo pra gente, mas é prazeroso, porque ao mesmo tempo, quando você vê o fruto do seu trabalho, que quando é época de soltura, o nascimento dos tracajás, da cova, é muito prazeroso, você sabe que vale a pena o trabalho que a gente faz, é muito bom. Se um dia a gente conseguir montar um esquema pra quando tiver turismo, for na época da soltura, porque a gente não pode ficar com esses bichos presos, por exemplo, pra fazer trabalho turístico. Não podemos. É até contra a lei. E aí a gente, por exemplo, em março, se a gente for soltar e tiver um grupo de turismo e conseguir gerar renda com isso pra gente é bom, porque esse recurso a gente investe em gasolina, em combustível, pra fazer o monitoramento no próximo ano. O Marcio faz peças, também, de artesanato em madeira, que eu até vendi a última peça de tracajá, ontem, pra um casal que apareceu aí, (risos) eles compraram. Eu mostrei os tracajás, a cova, falei sobre o nosso trabalho e eles compraram as peças através da história, por que o que a gente pensa? A gente não vende só o produto, a gente vende uma história por trás desse produto. E aí a gente conta a nossa história e oferece nosso produto, porque a gente também precisa sobreviver aqui dentro. E aí isso tudo é um trabalho muito legal. Já participei de cursos de reciclagem de garrafa pet, cursos de doces e salgados dentro da comunidade, passei duas semanas em outra comunidade, vizinha, fazendo. Eu fazia um bolo muito ruim, gente do céu! Vocês não têm noção! Não que fosse ruim de gosto, mas aquele bolo que fica solado, duro. Era assim o meu bolo. (risos)
P/1 – E agora é ‘nas nuvens’.
R – Depois que eu fiz o curso, eu acho que foi em 2012, em outra comunidade, fica um pouco distante, demorava uma hora, mais ou menos, pra chegar lá, eu ia no motor, só eu e Deus, de canoa, porque eu sou assim, vou mesmo. Eu só não me atrevo a ir pra Manaus sozinha, porque ainda não deu coragem de ir, não. (risos) Eu tenho um pouco de medo das ondas no rio, mas eu ia sozinha, ficava lá, passava uma semana, final de semana vinha pra casa e passei duas semanas no curso de culinária, que era doces e salgados. E aí o outro curso que eu fiz lá, mais de uma semana, foi na minha área de estudo, que é de Língua Portuguesa, que era educação e aí foi muito legal. Daí pra frente só bolo fofo, (risos) só faço bolo fofinho. (risos) Mas eu sempre estou participando de curso. Me chama pro curso... recente, esse ano eu fui pro INPA, fui convidada para participar de uma reunião, palestra sobre sustentabilidade e a gente está participando do Projeto Reflora, dentro da comunidade e recentemente nós recebemos um convite pra fazer um curso de coleta de sementes nativas.
P/1 – Você vai fazer?
R – Vou fazer, do dia primeiro ao dia cinco. Vou fazer esse curso, porque é bom pra mim. Eu sei coletar sementes, lógico, identifico algumas sementes, mas eu quero técnicas que me ajudem a melhorar isso, sempre buscar melhorar e como a gente já faz plantio de mudas por nossa conta mesmo, a gente trabalha também com intercambistas, que vêm de fora, a gente recebe cinco a sete grupos por ano também, internacionais, que vem meninos de tudo que é país, da Coreia aos Estados Unidos, todo mundo, vem tudo junto e misturado. E aí a gente, além de oferecer os nossos artesanatos, o Marcio faz a trilha, a gente faz a plantação de mudas nativas do nosso meio ambiente. Lá onde a gente vai, mais tarde, eu vou mostrar pra vocês as plantinhas que sobreviveram ao verão, (risos) porque muitas morreram durante o verão, porque fica longe de água, a gente mora pra cá, não tem como estar aguando e tal. Até aqui morreram, imagine lá, que é longe. Aí é um trabalho bem árduo e eu sempre falo pro Marcio, como ele é mais preso, que ele é funcionário público, eu vou e eu busco conhecimento pra agregar ao nosso trabalho e sempre estou indo fazer essas coisas.
P/1 – E acaba participando do trabalho.
R – Participo. A gente fez um curso - a gente também trabalha voluntariamente no monitoramento de peixe, de pescado – pelo ICMBio, em Novo Airão, a primeira vez que eu fui em Novo Airão, eu estava grávida da July, também. Estava com seis meses, eu acho. Aí nós fomos participar desse curso, fomos convidados e aceitamos, foi eu e o Marcio, ele tirou uma semana e foi com a gente participar do curso. Três dias, era final de semana, ele pôde ir. A gente ficou três dias em Novo Airão, fazendo o curso. Por exemplo: ele vai pescar, não precisa sair da rotina, que nem eles falaram: “Não precisa, gente, sair daqui só porque tem que fazer monitoramento”. Não. Vai pescar a comida, o peixinho pra gente, aí ele chega, tenho que medir o peixe, anoto tudinho o tamanho, peso o peixe. Por exemplo: peguei dez pescadas, eu meço cada uma, de uma por uma. Aí ‘boto’ lá tantos centímetros, no papelzinho. E aí peso dez pescadas tudo junto, aí ‘boto’ lá tantos quilos. Aí, se eu for dar pescada pra algum vizinho, pra alguém, tenho que anotar: doei tantos quilos de pescada ou vendi tantos quilos de peixe, só pra ter um controle do tamanho das espécies. Pacu, piranha, todo tipo de peixe que pegar eu meço e peso. Eles passam de três em três meses e vêm aqui, o pessoal do ICMBio, pegar o papelzinho com as anotações, pra levar pro controle deles lá. E a gente faz esse trabalho também, voluntário, dentro da comunidade.
P/1 – Você é pescadora?
R – Estou como pescadora artesanal no momento. (risos)
P/1 – Como é que funciona?
R – O nosso... na verdade, a gente aqui, a maioria dos moradores da comunidade, são pescadores artesanais. Não é aquele pescador que pesca pra vender. É o pescador que pesca pra sua subsistência, dentro da comunidade. Aí eu sou desde, acho que 2015, 2016. Não, não lembro exatamente, mas acho que 2011, 2012. Foi a primeira vez que eles vieram, o pessoal do sindicato da pesca, numa comunidade próxima, chamada Santa Maria, fazer cadastro das pessoas que queriam se cadastrar na pesca, ser pescadores. Aí eu morava lá, na praia, a minha vizinha mais próxima o marido dela trabalhava diretamente com pesca, ele tinha até um barquinho, nessa época e ela me chamou: “Jeovania, não quer ir lá comigo? Embora se cadastrar na pesca, o pessoal está vindo, pepepe. É legal, porque no final do ano, quando entra no defeso, a gente recebe dinheiro, tal, tal, tal”. Dinheiro atrai a gente, né? (risos) Aí eu digo: “Vou”. Aí peguei meu [barco com motor de popa] 15HP, eu dirigia o quinze pra todo lado. Eu era uma tragédia pra dirigir motor, mas aprendi. (risos) Aí fui com ela lá na Santa Maria e me cadastrei desde então. No período em que eu trabalhei na escola eu saí. Eu fiquei até 2015, de 2012 até 2015, aí eu saí em 2016 da pesca, porque eu fui trabalhar como professora e aí eu voltei em 2023, agora, mas a minha carteira de pescadora estava ativa, não tinham dado baixa nela, então consegui receber meu seguro defeso ainda nesse período, aí desde então eu estou como pescadora. Enquanto não tiver outro emprego, outro ramo de vida, sou pescadora. (risos)
P/1 – E como você pesca? Qual é a técnica que vocês utilizam?
R – A gente pesca de malhadeira, que é a rede de pesca que tem várias malhazinhas; de caniço, mas pesca também de zagaia, que é um negócio que tem três ganchinhos, assim. Eu vou mostrar depois pra vocês. Por aí deve ter um. (risos) Ou caniço, com linha de pescar, aquela vara que ‘bota’ uma linha na ponta e um anzol, é o caniço que a gente chama. E aí tem arpão, tem vários utensílios de pesca, mas o que mais a gente usa é a malhadeira, a rede de pesca.
P/1 – Que é maior quantidade?
R – É, que pega maior quantidade. E nessa época a gente faz arrastão, cerca por exemplo: a margem do rio é ali, aí eu vou com a rede, armo de lá, faço tipo um lance, que a gente chama, fecho, aí vou puxando a ponta da rede e vai pegando peixe. Assim que a gente faz. Quando está seco, assim. Pega bastante peixe dessa forma. Dentro dos laguinhos também a gente pesca dessa forma.
P/1 – E você comentou que não sabia dirigir barco de motor.
R – A primeira vez que meu pai me ‘botou’ pra dirigir uma rabeta lá dentro do Chita, onde a gente morava: “Está bom de vocês aprenderem a dirigir”. Onze anos, já. Que precisava mandar pra um canto, precisava de rabeta, ou então ia remando. Aí ele me ‘botou’, me ensinou como mexia lá na máquina e tal, me empurrou pro meio. A gente tinha uma balsa que ele fez, de madeira, era macetona, acho que era mais ou menos desse tamanho aqui, que era pra mamãe lavar roupa em cima, a gente lavava roupa, tratava peixe, essas coisas, em cima, dentro d’água e aí, menina, ele me empurrou pro meio, eu funcionei a rabeta, menina, eu subi com a canoa, com tudo, naquela balsa, (risos) quase que eu bato em todo mundo e não sabia parar o motor, aí tadinho, meu pai entrou na canoa pra parar o motor, mas aí depois eu fui devagar e consegui aprender. Hoje em dia eu dirijo tranquila.
(01:57:55) P/1 – E como foi poder aprender, ficar independente?
R – É a sensação de liberdade. A gente aprender alguma coisa assim dá uma liberdade, ainda mais que é o nosso meio de transporte dentro das comunidades, a rabeta. Agora já dirijo o 15[HP] tranquilo, porque o 15 é mais fácil de tu manusear. A rabeta tem que puxar a correia aqui. O 15 também puxa, mas é mais leve. O 15 dá ré, a rabeta não dá. Se for de frente tu vai bater lá, não tem como voltar. O 15 aperta, dá ré, ele vai pra trás. Agora rabeta não. Se não souber dirigir vai bater em tudo que é canto. Aquele meu cunhado, lá em Manaus, fez um acidente com a família dele, que quase mata a filha dele. Nós estávamos morando lá na praia, aí ele estava lá com a gente, tinha vindo de barco, ficou lá na nossa casa, queria vir visitar o ‘seu’ Manoel e a Dona Maria. Marcio disse: “Vai no 15, ‘mano’”. Nunca tinha dirigido. Morava aqui, mas aí, como mudou muito cedo pra Manaus, não sabia dirigir o 15. Dirigia rabeta, mas 15 não sabia. Aí ele disse: “Está bom, vou”. Marcio ensinou, papapa, tudinho, dar ré, frente, parado, só ligado. Ensinou. Menina, ele veio. Depois, quando ele voltou, a filha com o olho roxo, aqui. Ele subiu na praia, ainda bem que era na praia, porque se fosse numa pedra tinha voado todo mundo. A mulher dele voou com a criança, bateu lá na proa, na frente do bote, que chama proa. Bateu, machucou o olho dela, que chega ficou tudo roxo. A bebezinha dele tinha dois aninhos. (risos) Menina! Nós vamos no 15, pra lá. Dá pra ir por terra, mas a gente vai de motor, porque lá próximo tem a vizinha que tem nove cachorros e aí, se os cachorros descerem e atacarem a gente, vai ser ruim, então é melhor a gente ir de bote, encosta lá, é mais tranquilo. (risos) Daqui a pouco, mais tarde, se Deus quiser!
P/1 – Me fala uma coisa, da sua graduação.
R – O processo de estudo. (risos)
P/1 – Como foi isso pra você?
R – Eu comecei a contar quando eu estudava, quando eu era pequena, não terminei, né? Mas aí eu vou falar um pouquinho. A gente... eu fiz o telecurso, eu falei, aí concluí o quinto ano. Aí, logo depois veio o projeto itinerante, que é esse projeto que os professores passam três meses, vão pra outra comunidade. Aí nós estudamos de novo, nós refizemos o quinto ano com eles.
P/1 – Você tinha quantos anos?
R – Eu tinha uns dezesseis anos já, porque eu já tinha a Joice e a Jennifer. Aí eu fiz de novo, mais o Marcio, a gente estudou de noite, só que o Marcio, nesse período, era muito escorado em mim. Eu digo pra ele que ele concluiu o ensino médio por causa de mim, porque eu fazia as provas dele, as coisas dele. Falo logo, (risos) entregar o Marcio. (risos) Ele se escorava muito em mim. Aí a gente fez, porque o Telecurso 2000, na verdade, era a conclusão do quinto, sexto, sétimo e oitavo ano, era concluir esses três anos, mas como eu não fiquei satisfeita com o aprendizado que eu tive, que era um processo acelerado, em um ano tu concluía quatro anos no Telecurso 2000 e aí veio o projeto itinerante e eu digo: “Não, vou estudar de novo. O estudo não me ensinou nada, esse negócio desse projeto, não aprendi nada, não estudei nada, nada, nada. Fazer uma prova aí não sei nada”. Aí veio e nós estudamos do quinto ano, fizemos aqui, no projeto itinerante, de novo e aí passamos e aí foi quando surgiu, em 2007, o projeto tecnológico, que é o ensino por mediação tecnológica, que é esse que eu trabalhei aí, eu estudei por essa modalidade também. E aí era na comunidade vizinha e a gente já morava lá perto do ‘seu’ Manoel. Aí eu dizia pro Marcio: “‘Maninho’, e agora, como é que a gente vai fazer? Eu vou estudar e tu também vai, por que como é que vou andar sozinha por aí?” Levar as meninas. Aí tinha a irmã dele, mais nova, que era a Marta, a Martinha, aí a gente combinou com ela ficar cuidando das meninas pra gente, a gente pagaria um valor pra ela, pra ela ficar cuidando das seis às nove, dez horas da noite, que era o horário que a gente chegava da escola, cuidaria das meninas e a gente iria estudar. Era a Joice e a Jennifer, só. Aí ficou certo, a gente se matriculou no horário no projeto itinerante, inclusive várias pessoas da comunidade estudavam lá, dessa comunidade aqui, pra concluir o ensino médio, que isso já foi no período do ensino médio. Eu fiz só o quinto ano no itinerante. Como eu já tinha feito no telecurso a conclusão do meu ensino fundamental todo eu podia me matricular no ensino médio, já e aí eu preferi ‘deixar de mão’ o resto do fundamental em aulas normais e estudar o médio, porque eu queria fazer uma faculdade e aí eu fui estudar lá, mais o Marcio. A gente morou um ano ali, depois desse um ano a gente se mudou pra praia. E aí, quando a gente morava aqui, perto do ‘seu’ Manoel, tem uma trilha por dentro da mata, que dá nessa outra comunidade. Nessa época era mata fechada. Eu ia, às vezes o Marcio faltava, que ele faltava muito, esse Marcio faltava, faltava muito. Eu ia por dentro da mata, só eu e Deus e um celularzinho focando o chão. As meninas ‘bagunçavam’ comigo, diziam que eu levava... “Levou bem uma espingarda, não foi? Deixou escondida lá, no meio do mato. Essa menina tem muita coragem. Como é que tu anda de noite por esse caminho, sozinha?” Eu digo: “Eu ando eu e Deus, não ando sozinha (risos) e eu não trago (02:03:40), não, eu só trago meu caderno, meu lápis e a minha caneta”. (risos) Aí, às vezes eles até me traziam de bote, pra eu não vir dez horas da noite sozinha, pela mata, me traziam no motor deles. Aí eu consegui concluir, mais o Marcio, o ensino médio. O Marcio eu consegui pegar o certificado dele quando eu comecei a trabalhar pela Seduc, que até então estava lá, retido, no colégio, em Manaus. (risos) Aí eu consegui concluir meu estudo nessa modalidade, do tecnológico. Os professores ministram aula lá, a gente assiste aula ao vivo aqui, na comunidade, aí tu tira as dúvidas pelo chat e tal, conversa com o professor e aí é um professor pra cada disciplina, é bem legal. Esse processo que a gente estudou no Araras a nossa professora presencial, porque tem que ter professor dentro da sala de aula, presencial, pra ligar o equipamento, tirar dúvida do aluno, se ela conseguir tirar e ajudar lá no chat também, porque quem faz as perguntas, na verdade, o aluno faz pra professora presencial, a professora presencial pergunta pro professor que está ministrando a aula. E aí a gente, às vezes, chegava lá, a aula começava às sete da noite, eu saía seis e meia de casa, sete horas eu estava lá. Chegava lá, às vezes, a professora não estava. Cadê a professora? A professora era de Parintins. Aí teve uma vez que ela viajou e passou a semana todinha pra Parintins e nós ficamos sem aula a semana todinha. Aí, quando ela chegou, nós fizemos um abaixo-assinado, levamos pra Seduc, o pessoal da Seduc veio aí e a tiraram da escola. Deixaram a gestora que era da escola, na época, que ficou lecionando até o final do ano pra gente.
P/1 – E quando faltava luz?
R – Na verdade, não faltava, porque tinha o grupo gerador da escola, aí não faltava energia, nunca faltava, porque é uma parceria de Semed e Seduc. A aula da Seduc funciona dentro do prédio da Semed. Tinha a parceria de mandar o combustível pra contribuir com a luz noturna pra que os alunos pudessem estudar à noite. Essa parceria que tem até hoje nas escolas, é o mesmo processo. Não falta, porque tem o grupo gerador, que supre essa necessidade. E sempre foi assim. Aí nós fomos a primeira turma de 2007 a concluir o ensino médio por essa modalidade que deu certo, que até hoje funciona dentro das comunidades. Aí eu consegui trabalhar nessa área. Inclusive os gestores da escola em Manaus me elogiavam bastante, porque eu concluí meu estudo por essa modalidade e consegui o trabalho na modalidade. E o que eu penso de estudo? Minha concepção de estudo é que a pessoa só não aprende se ela não quiser. Ela só não consegue fazer o que ela não quer fazer, porque o ser humano tem inúmeras capacidades de aprender o que ele quiser na vida de bom, de benefício pra si mesmo, ele consegue. Eu sei, que eu sou prova viva disso. (risos) Muito, muito. Eu faço muita coisa. Como vocês viram eu faço bolo, salgado, eu consigo fazer artesanato, eu faço meus cosméticos, eu trabalho com óleo, reutilizando - fazendo sabão – óleo de cozinha pra fazer o sabão. As minhas filhas fazem algumas coisas, já, se elas virem eu fazendo. Eu faço meu pão caseiro, eu me ‘viro’, de salgado pouquíssimas coisas que eu não consigo fazer, mas eu vejo, eu aprendo, eu busco na internet e faço. (risos) Eu sempre estou... o pessoal fala: “Ah, que tu é Bombril, faz muita coisa, não sei o quê”. Sempre faço alguma coisa, pra estar melhorando. Quando a gente está com muito problema de dinheiro, por exemplo, eu já vendi salgado nos atendimentos médicos. Quando tem evento na comunidade eu faço salgado, vendo, eu sempre estou buscando fazer alguma coisa pra gerar uma renda na nossa comunidade, na minha casa, principalmente pra ajudar minha família. É sempre assim.
P/1 – E aí que você decide fazer faculdade?
R – Decidi fazer faculdade. Escolhi o curso de Letras pelo amor à leitura, mas é uma história longa, porque assim: quando você tem família... eu sempre gostei de ler, como eu te falei, desde a minha infância eu gostava de ler, eu me admirava das letras em todo canto que eu passava na rua, lia tudo que é plaquinha. Depois que eu me juntei com o Marcio, que a gente tinha a Joice e a Jennifer, ele se incomodava muito comigo lendo, era horrível, horrível. “Já está lendo, já está lendo”, porque eu lia e eu entrava na história. Eu gostava de ler romance, até livro didático, eu lia tudo que era livro didático. (risos) Tudo que era livro eu lia, não escolhia tipo, não tinha critério de ler só romance, ou só ficção, ou só não sei o quê. Não, eu lia de tudo, mas ele ‘pegava muito no meu pé’. Desde a infância os meus pais já ‘pegavam no meu pé’ e quando eu fiquei com o Marcio ele ‘pegava’, porque nunca gostou muito de ler e quando eu estava lendo eu me desligava do mundo, ele falava comigo e eu não escutava, não respondia, porque eu estava lá, na história, focada na minha história, aí ele se incomodava e aí, depois que eu comecei a fazer faculdade eu me desliguei da leitura, eu não tenho mais paciência pra ler. Me desliguei mesmo.
P/1 – Com a faculdade?
R – Com a faculdade. Depois que eu concluí o curso de Língua Portuguesa eu lia, que eu era muito autodidata e, pra fazer uma faculdade à distância, que nem eu fiz, eu precisava ser autodidata mesmo, estudar muito em casa, pra eu passar nas provas quando eu fosse fazer todo sábado que eu ia, porque estudava em casa a semana inteira, pra fazer a prova dia de sábado, na faculdade. E eles me davam livro didático, já fazia parte do pacote que a gente pagava, pra eu concluir a faculdade. Conclui na Uniasselvi, a faculdade, a minha graduação e a pós-graduação também. Aí eu passei pelo processo de três anos e pouco, na minha especialização de Letras, aí fiz mais um ano de pós-graduação, pra fazer especialização na área de Língua Portuguesa e fiz uma outra de Gestão Escolar, porque eu ganhei um pacote, na verdade. Quando eu fui me inscrever pra fazer a pós na minha área, que é Língua Portuguesa e Literatura, eu ganhei uma outra pós e aí eu escolhi Gestão, aí eu fiz as duas pós juntas, por isso que eu tenho as duas, mas a leitura, de ler mesmo, não sei é a internet, a facilidade de ter o celular, que me tirou um pouco isso também, porque você não vê eu pegando livro pra ler, mas eu gostava muito. Eram livros dessa grossura que eu acabava em um dia, lendo direto e eu pegava junto pra ler na hora do almoço: “Vamos descansar”, “Vamos”, mas eu descansava com livro, o meu descanso era ler o livro, era estar lendo uma história mesmo. Era o maior prazer da minha vida. Mas hoje em dia não mais. (risos)
P/1 – Tem alguma história dessas aventuras da vida, que te marcou muito, que você carrega junto?
R – Não, não tem nenhuma específica, não. Eu lia de tudo, (risos) de romance à ficção, à tragédia, tudo eu lia. (risos) Não teve nenhuma que me marcou muito, assim, não. Eu lia de tudo, mesmo. Gostava muito de ler. Muito da minha vontade mesmo de querer aprender a ler. E a minha mãe já aprendeu a ler depois de ter todos os filhos dela, que ela conseguiu estudar aí no Chita, teve um projeto do EJA, que é educação de jovens e adultos e ela conseguiu ser alfabetizada e hoje ela lê. Não lê mais porque ela tem baixa visão, mas ela já lia bem e Bíblia, então, que as letrinhas eram miúdas, ela lia bem. É essa a minha história de estudo. De lá pra cá eu vou buscando conhecimento cada vez mais, em cursinhos, ou faz um curso de alguma coisa voltado pra natureza, pra sustentabilidade, pra floresta, se eu souber eu me inscrevo, eu vou e é assim a minha rotina, por isso que eu tirei o mama da July com um ano e oito meses, porque eu precisava estar participando de cursos e não podia levá-la, porque eu fiquei um período muito presa em casa, durante a gravidez, até ela completar um ano e pouco, porque a gente passou por esse processo da internação dela, todo. Eu penso assim, o pessoal diz assim: “Toda gravidez é igual”. Não é. Eu tive cinco filhas e cada uma foi diferente, fora os enjoos, que são todos iguais, mas o parto tudo diferente, porque eu tive três partos normais e duas cesárias. A Jaqueline e a July nasceram de parto cesárea e a Joice, a Jennifer e a Jasmim foi parto normal. Dessas eu me recuperei mais rápido. Eu achei que o pior parto tinha sido da Jaqueline, que nasceu de parto cesárea, mas o pior foi o da July, porque a July eu fiquei operada 23 dias com ela na maternidade, sofrendo e foi a pior fase da minha vida, muito difícil essa parte também, na minha vida, (risos) mas passou, (risos) graças a Deus passou, porque a gente faz planos, quando está grávida, de ser de uma forma e aí as coisas acontecem, tudo que a gente não sonhou. Por exemplo: eu a tive em uma maternidade e passei cinco dias com ela, nessa maternidade. Olha só, eu cheguei oito horas da manhã na maternidade...
P/1 – Ela estava pronta pra nascer, ou não?
R – Estava. Eu cheguei na maternidade às oito horas da manhã, que eu estava perdendo líquido, com muita dor e eu estava com o meu processo de laqueadura. Durante a gravidez eu corri atrás e consegui o meu processo de laqueadura, porque eu não queria mais ter filhos. É uma coisa que eu queria pra mim: não queria mais. O Marcio fez o processo dele de vasectomia, também, mas eu disse: “Não, é pra mim, eu que quero, é meu corpo, eu vou querer fazer e vou fazer”. E aí eu fiz o processo todinho, tudo organizado, ele foi lá assinar, porque ainda precisava assinar, porque agora não precisa mais. Ele foi assinar e eu assinei também o dele, pra ele fazer também o dele eu precisei assinar e aí, quando eu fui pra maternidade, eu estava no processo pra fazer laqueadura e aí eles me deixaram esperando até uma hora da tarde, pra fazer a minha cirurgia. Eu já estava perdendo líquido, por isso que ela nasceu sufocada, sem respirar, porque demorou muito pro meu atendimento, eles demoraram pra me atender, a minha filha nasceu sem respirar, quase morta. Aí eles tiveram que reanimá-la, colocar oxigênio e tudo, ela ficou sufocada. A água do parto, que é o mecônio que chama, que é o líquido amniótico junto com um pouco de fezes do bebê ela ingeriu e foi pro pulmãozinho dela, entrou pro pulmão. (risos) Aí ela, nesse processo ela engoliu esse líquido e se sufocou, ficou sem respirar. Quando ela nasceu eles reanimaram e tudo, ela voltou, mas ela teve que estar no oxigênio e em dieta zero, sem comer nada, só no soro, pra poder tirar o líquido que estava no pulmãozinho dela. Era o que o médico falava pra mim, né? Durante eu acho que uns dez dias eles falavam isso pra mim, que a minha filha estava internada porque tinha engolido mecônio e se sufocado na hora do parto. Depois de cinco dias que eu estava nessa maternidade, que eu a tive, eu fui transferida pra uma outra, maior, Dona Lindu. Eu a tive na Dona Nazira e fui transferida pra Dona Lindu.
P/1 – Você já estava com alta?
R – Com três dias me deram alta, estava de alta e aí ela foi transferida pra Dona Lindu, onde tinha mais... como é que eu posso dizer?... ajuda médica pra ela, pro estado que ela estava. No caso, ela não estava só lá internada porque tinha engolido mecônio, porque tinha se sufocado na hora do parto. Ela estava, porque ela tinha adquirido uma bactéria hospitalar e isso o médico não me falava. Depois de mais de cinco dias que a gente estava na outra maternidade, que ela estava na UTI, que a médica, uma pediatra, me chamou, mais o Marcio, do lado de fora da UTI e falou pra gente: “Vocês sabem por que a bebê de vocês está internada?” “Não. Só falam que é isso, isso e isso”. Ela disse: “Não. Se fosse mecônio, não tem bactéria nenhuma, é um líquido limpo. A criança se sufoca. Se fosse por isso, em três dias sua filha estava em casa. A filha de vocês está com uma bactéria grave, fulana de tal” – falou o nome – “ela adquiriu dentro da maternidade essa bactéria, por alguma falta de atenção médica e a bebê de vocês só está viva porque ela é bebê gigante, grande, de quatro quilos e pouco, senão ela estaria morta, que Deus o livre, porque se fosse um prematuro ela não resistiria, que a bactéria é muito agressiva, mas a gente já trocou...” – porque ela estava tomando antibiótico já na outra maternidade e eles tinham trocado o antibiótico por um mais forte, porque o que ela estava tomando lá não estava fazendo efeito - “... o antibiótico dela e vamos pedir a Deus que esse antibiótico realmente faça efeito”. E aí, nessa maternidade eu passei muito sufoco, porque o Marcio ia todo dia lá, comigo, mas não é a mesma coisa de tu estar em casa, descansando. (choro) Desculpa, gente. E aí a gente ficou, teve vezes que eu cheguei lá na UTI ela estava com o bracinho roxo, Marcio foi visitar, que ele podia entrar lá a hora que ele queria, porque pai e mãe têm livre acesso dentro da maternidade, mas eu ficava lá 24 horas, bem dizer, com ela, só saía pra tomar um banho, beber uma água, almoçar, merendar alguma coisa. Aí eu estava de alta, não podia ter acompanhante, eu estava operada e tinha que estar andando pra cima e pra baixo, ainda tinha que comer lá no refeitório, que era lá embaixo, junto com todo mundo. Como eu não estava internada, eu tinha que me alimentar lá no refeitório, com as outras pessoas. De lá uma vez ele foi visitar a bebê, ela estava com... porque eles ‘botavam’ aqueles negócios de medir o batimento cardíaco, com aquela fita, tinham apertado muito a mãozinha dela. Como ele não tinha muito conhecimento lá dentro, que ele era mais visitante, eu que ficava com a responsabilidade de dizer: “Isso não está legal”. Aí ele: “Olha, a mãozinha da bebê está roxa, amor, vai lá dar uma olhada”. Ele entrou e logo em seguida ele saiu, eu digo: “O que aconteceu?” “Não, vai lá dar uma olhada, que a mão da bebê está roxa”. Aí eu entrei e já fui tirando, já entrei tirando, não pedi permissão de enfermeira, não, já fui tirando aquele negócio. Eu digo: “Olha, a mão da minha filha está roxa, vocês querem fazer a minha filha perder a mão? Tem que prestar atenção nesse negócio”. Aí a enfermeira disse: “Mãezinha, me perdoa. Não, eu vou ajeitar”. Aí uma outra vez, outra situação também que me deixou mal, lá dentro, foi eu ter chegado na incubadora – foram várias, não vou contar todas - minha filha estar quente, parecia que estava com quarenta graus de febre e aquele negócio queimando, ela estava toda vermelha. “O que está acontecendo?” Aí ela disse: “Ai, mãezinha” – a enfermeira – “pelo amor de Deus, esqueci de desligar a incubadora, que está com problema”. Já pensou? Que descaso! Eu digo: “Meu Deus, se eu não estivesse aqui minha filha ia morrer queimada”. Ia morrer queimada minha filha. Outra vez eu já estava com uns quinze dias lá dentro, ou mais, aí eu tinha descido pra almoçar, que eu tinha que descer - minha filha estava no terceiro andar – de elevador até o térreo, pra eu almoçar no refeitório. E aí eu tinha ido almoçar. Quando eu cheguei no térreo a enfermeira me ligou, porque eu deixei meu número lá, com ela, dizendo que minha bebê estava chorando, que era pra eu voltar. Digo: “Mas eu ainda nem consegui almoçar”. Aí ela disse: “Não, mas a sua bebê está chorando, não sei o que, não tem o que fazer”. Aí eu voltei, peguei o elevador de volta e voltei, porque eu não subia escada, estava operada, fui de elevador de novo, voltei. Cheguei lá a minha filha estava tranquilinha, não estava chorando a minha filha. Não estava chorando. Aí eu me irritei, me estressei, chorei, falei que eu não era animal, que eles pareciam que estava tratando com bicho, nem com bicho ninguém tratava daquele jeito, que eu precisava comer, que eu estava amamentando a minha filha e aquele dia eu me desesperei lá dentro. Aí tinham tirado a sonda, ela estava sem sonda nesse momento e eles colocaram a sonda e depois eu me senti culpada, porque eles colocaram a sonda nela, porque eu não consegui (choro) ficar com ela naquele momento. Aí eles colocaram a sonda nela porque, como ela estava mamando, já, ela não estava precisando mais receber alimento na sonda, que ela, depois de cinco dias, tomava leite na sonda. Eu tirava leite no banquinho do leite, pra levar pra ela, porque eu não queria que ela tomasse fórmula, então eu ia tirar leite do meu peito e eles davam pra ela lá, na sonda. Na seringuinha que ela tomava. E aí, nesse dia eles colocaram a sonda nela. Eu acho que a gente já estava quase com vinte dias lá, porque demorou acho que uns dois dias, o médico deu alta dela da UTI e aí eu me senti culpada, que eu não recebi alta logo pra ir pra casa, porque eu não tinha tido capacidade de ficar com a minha filha mais tempo, não tinha ficado com fome, pra amamentá-la e aí ela teve que colocar sonda e não poderia sair da maternidade com sonda, né? Então, a gente desceu pro Alcon, que é o local onde ficam as mãezinhas com os bebês que estão com saúde, pra receber alta. E aí, de lá, nesse dia o enfermeiro também se desesperou, que ele viu que eu estava fora de mim e eu já estava há muitos dias lá dentro e, como eu era uma mãe muito presente, estava lá todo tempo, eles eram bem atenciosos, graças a Deus todo mundo bem atencioso, aí ele pediu pra eu descansar, que eles iam cuidar do bebê e foi quando eles ‘botaram’ a sonda, pra ela ficar com a sonda mais uns dias. Depois de dois dias o médico deu alta dela da UTI e nós descemos pra Alcon, passamos mais quatro dias lá embaixo, junto com as outras mãezinhas, pra ela poder receber alta. E assim ela só recebeu alta, porque ela arrancou a sonda. (risos) Eu fui dar banho nela, porque eu a deixava todo tempo com a luvinha, pra ela não arrancar a sonda, porque a sonda era no narizinho dela, ela mamava, eles tiraram da boca e ‘botaram’ no nariz. Foram dois dias, mesmo, porque passou dois dias ela arrancou a sonda e aí a enfermeira queria colocar a sonda, aí que eu lembrei: “Poxa, naquele dia eles colocaram sonda na minha filha, porque eu não consegui ficar lá e dessa vez eu não vou permitir, eu vou ‘aguentar as pontas’”, que as enfermeiras ‘bagunçavam’ comigo: “Não, que a sua filha, tu vai ver só, tu não vai mais dormir, não, com essa menina, que essa menina chora, não sei o quê”. Eu digo: “Meu amorzinho, eu já criei quatro, essa é a quinta. Vem dizer pra mim que a minha filha vai ser chorona? Não vai, não. Não vai, mesmo. Quero é ver”. Aí, depois que eu a amamentava ela dormia que era uma beleza e quando a gente desceu eu fui dar banho nela, aí eu pedi o sabão pro Marcio, quando eu me distraí ela puxou toda a sonda, aquele negócio desse tamanho, assim, que fica dentro. Ui, que coisa horrível aquele negócio! Aí, depois do banho eu falei pra enfermeira, fui lá no balcão e falei: “Olha, a bebê arrancou a sonda” “Está bom, mãezinha, depois a gente vai lá contigo”. Aí depois foram lá comigo, aí perguntaram de mim se eu queria que eles colocassem a sonda, ou se eu ia esperar o médico pra eu consultar com ele, consultar a bebê e ele ia verificar se precisava ou não colocar a sonda. Eu digo: “Está bom”. Aí conversei com o Marcio, que eu já estava com medo de ficar mais dias, porque eu já estava vinte dias dentro da maternidade, já no meu limite de tudo, de estresse, de tudo. Aí eu conversei com ele e falei sobre essa outra vez que colocaram a sonda, porque eu não consegui ficar lá, me desesperei e aí ele disse: “Vê, amor, o que tu decide melhor”. Aí eu fui lá com a enfermeira e falei pra ela que eu ia esperar o médico: “Não, eu vou esperar o médico que, se ele disser que é pra colocar, a gente coloca; se ele disser que não, não. Vou esperar” “Está bom, mãezinha, você é que decide”. Aí, quando o médico chegou: “Como é que está sua menina, não sei o quê?”, ‘bagunçando’. Aí eu disse: “Ela está bem. Doutor, ela arrancou a sonda, não fui eu que arranquei, foi ela que arrancou (risos) a sonda, eu estava dando banho, me distraí, ela arrancou” “Ela arrancou, porque ela está de ‘saco cheio’ dessa sonda e ninguém vai ‘botar’ mais sonda nela, não. Está mamando bem?” “Está mamando bem” “Então, pronto, não vai mais colocar sonda”. Aí a fonoaudióloga acompanha dentro da maternidade. Tem fono, tem uma outra que eu esqueci o nome agora, da especialização. Ela foi lá comigo, conversar também, que eu precisava amamentá-la bastante, pra ela não perder peso. Só que mesmo assim ela perdeu vinte gramas, porque ela mamava e tomava leite pela sonda, então ela comia muito e aí, como foi tirada a sonda, ela só mamava e aí ela perdeu vinte gramas e quando o bebê perde peso não recebe alta, tem que ganhar peso dentro da maternidade. Aí a gente, no outro dia, quando foi pra pesá-la, eu dei bem o peito pra ela, porque pesa peladinho o bebê, sem nada. Dei bem o peito e foi pesar e ela tinha ganhado trinta gramas, estava com o bucho cheio, tinha trinta gramas a mais, (risos) tinha conseguido recuperar as vinte gramas e ganhou mais dez graminhas. Aí a fono disse: “Doutor, está na hora do senhor dar alta pra Jeovania, que a bebê dela já ganhou peso” e ele disse: “Mas ontem ela perdeu e hoje ela ganhou só dez gramas. Você acha mesmo que ela já está apta pra ter alta, não sei o quê?” “Doutor, pode confiar, ela está ganhando peso. Quer ver? O senhor vai ver amanhã”. No outro dia, que foi o dia que a gente recebeu alta, ela pesou mais um pouquinho, aí eles me deram alta da maternidade. Foi o melhor dia da minha vida! E me deram alta de manhã, eu fui sair de noite de lá da maternidade, foi. Aí avisaram a gente que a gente estava de alta, foram lá e avisaram e eu e o Marcio todo feliz, que eu passei cinco dias ainda lá, internada no Alcon, ele dormia debaixo da minha maca, ele ficou lá o tempo todo debaixo da maca, dormia lá, debaixo. A bebê teve uma vez que eu acordei e fiquei brava com ele, porque como ela ficou internada por causa da bactéria, quando eu acordei, ele falou que ele estava dormindo no leito e ele estava no chão com a bebê, com ela em cima do peito dele, mas dormindo no chão. Ai, meu Deus, que eu virei a louca dentro da maternidade, disse pra ele que eu ia proibi-lo de ver a menina. Coitado, ele chorou! (risos) O traumatizei. (risos) “Porque eu que estou aqui, não sei o quê”, falei um monte de coisa. “Não, está bom, está bom, está bom”. Aí passa álcool em tudo que é canto, porque eu já estava com medo da minha filha ter uma recaída, Deus o livre e ter que ficar de novo internada. Mas aí, graças a Deus nós saímos, os médicos avisaram, ele queria avisar logo todo mundo, Márcia e o irmão dele, que a gente estava de alta. “Não, ‘maninho’, não avisa”, porque todo dia os médicos falavam: “Amanhã sua filha tem alta, mãezinha”. Aí, quando era amanhã, não tinha alta. Sempre tinha alguma coisinha que atrapalhava a nossa alta. Aí, no dia que disseram que a gente estava de alta eu quase não acredito, só acreditei quando estava fora da maternidade. Só acreditei quando tinha saído, mesmo. Quando estava dentro do carro da Márcia, que foi pegar a gente e levar pra casa do irmão dela, só aí eu acreditei. Mas aí eu saí num dia e no outro dia eu vim embora pra casa, porque as minhas filhas estavam todas aqui e eu já estava dois meses sem vê-las, as outras e tudo isso te pressiona, né? Tudo isso é uma pressão no seu psicológico, na sua mente (choro). E aí, graças a Deus, a gente veio embora. Minha cunhada, que é ______ e sofreu um acidente um tempo desses, quase não ‘curtiu’ a July bebezinha, porque eu passei um tempo, 23 dias na maternidade e só uma noite na casa dela, bem dizer. Um dia e uma noite e vim embora, porque eu queria vir pra minha casa, mesmo estando com todo, muito peso na minha mente, eu tinha que vir pra minha casa, porque era o melhor lugar, porque na casa dos outros nunca é bom o suficiente.
P/1 – E como foi chegar aqui?
R - Ai, foi bom! (risos) Graças a Deus, voltar pra casa, depois de um período, bem legal, graças a Deus. Eu fiquei aí em cima também, um tempo, mas eu não aguentei, não, ficar aqui. Um mês e pouco eu descia e subia, porque eu não tinha paciência, eu sou impaciente. (risos) Eu digo que eu sou muito impaciente, porque eu não gosto de ficar esperando. Eu gosto de eu mesma resolver logo o que dá pra eu resolver, eu resolvo e aí eu tento manter a Joice lá em cima o máximo possível. (risos) Quero que ela ‘puxe’ pra mãe. (risos)
P/1 – Está com a netinha.
R – É, está com a netinha novinha, aí. É isso. (risos) Essa foi a luta da July. (risos)
P/1 – Você quer comentar algo da Jasmim e da Jaque?
R – Jasmim?
P/1 – É.
R – Tem a Jennifer, já falei um pouquinho. A Jasmim foi a única gravidez mais inesperada da minha vida, porque eu estava no período de jogar bola, de futebol e tal, aí eu tive problema com anticoncepcional que eu tomava e a médica mandou eu parar e, nesse processo de parar de tomar o remédio, eu engravidei. (risos) Eu não queria, no começo, uma gravidez, não, mas depois, graças a Deus, foi bom, minha filha nasceu com saúde, nasceu bem e foi tranquilo, porque eu era acostumada a ter um parto rápido, voltar pra casa rápido. Eu achei ruim da Jaqueline, quando eu a tive, porque eu passei cinco dias na maternidade. Eu estava operada, minha pressão ficou alta, eu tive uma pré-eclâmpsia da Jaqueline e eu tive que ser operada, mas da Jaqueline eu não senti dor, não sofri. Depois da cesárea que eu senti dor, lógico, na cirurgia, mas antes do parto eu não senti dor. Eu fiquei na casa da Márcia também, da Jaqueline e ela me levou pra maternidade pra uma consulta, porque eu já estava com 42 semanas de gravidez, ela me levou na maternidade e eu estava muito inchada, aí o médico mediu minha pressão, deu dezesseis por dez. Aí ele tinha mandado eu andar. Quando ele viu o meu prontuário com a pressão, disse: “Não, a senhora vai ficar internada e vai tomar remédio pra pressão e provavelmente vai fazer uma cirurgia”. E foi assim e foi rápido. Não tão rápido, porque eu tive que ser transferida de uma maternidade pra outra. Maternidade tem o mal de ‘jogar’ a pessoa de um lado pro outro. Me transferiram de uma maternidade pra outra, de uma maternidade grande, que é a Ana Braga, que foi onde a Joaquina nasceu, pra uma maternidade pequena, que é a Dona Azilda Marreiro, que foi lá que a Jaqueline nasceu, fiz minha cirurgia lá, porque minha pressão estava alta, eu estava com pré-eclâmpsia, então eles ficaram com medo, eu acho, de fazer a minha cirurgia naquela maternidade, que a fama já não é muito boa, da Ana Braga. Já não tem uma fama muito boa, aqui em Manaus. Aí me transferiram pra outra maternidade, pequena, uma hora da madrugada fizeram minha cirurgia e eu fiquei bem, só que minha pressão não baixava e não queriam me dar alta. Aí a médica foi me ver, já era o quarto dia, eu digo: “Ai, doutora, se a senhora não me der alta eu vou morrer aqui dentro, de pressão alta, que eu estou estressada nesse hospital. Isso não vai baixar, não. Tenha certeza que não vai”. Aí ela me deu alta. No quinto dia ela me deu alta, aí eu fui pra casa, graças a Deus!
P/1 – Baixou?
R - E a pressão baixou, normal. A minha pressão é normal, nunca dá mais que treze por oito, treze por seis, dez por seis. Ela baixa um pouco, mas não costuma dar muito alta, mas aí, nesse período de gravidez, ela deu essa oscilada, que nem da July também, deu uma aumentadinha, mas não ficou que nem da Jaqueline, da Jaqueline subiu muito, que dezesseis por dez pra uma mulher grávida já é grave, muito grave, mas foi tranquilo. Eu acho que o parto mais sofrido foi o da July mesmo, que foi esse período todo de processo de internação que ela ficou, lá dentro. E, assim, a gente vê muita coisa na maternidade, em qualquer hospital. Ninguém está lá porque quer, a gente está lá porque tem necessidade, (risos) mas passou, graças a Deus. Eu digo que graças a Deus tudo passa na vida, porque se fosse permanente não sei se eu aguentaria, não, porque tem mãezinhas lá, na maternidade, que eu conheci, que estava há seis meses sofrendo com filho na UTI. Seis meses com filho internado. Digo: “Meu Deus, me tira daqui, que eu não vou aguentar, eu não aguento isso tudo, não tem como”. Tinha uma menina que estava com a bebê dela, que nasceu com problema pra respirar, ela não podia sair do balão de oxigênio. Se ela fosse pra casa tinha que adaptar, adequar tipo uma coisa hospitalar dentro do quarto dela, pra mantê-la viva, porque ela não conseguia respirar. Aí outro bebezinho prematuro que estava do lado da July tinha apneia do sono, ele dormia e o coração parava de bater. Umas duas vezes a mãe dele se desesperou lá dentro. Aí você ter que ver tudo isso, as mãezinhas se desesperando porque o filho está precisando, é horrível, mas (risos) passou, graças a Deus! (risos) Minha filha está bem.
P/1 – E pensando nesses ensinamentos, conhecimentos tradicionais que vocês têm, você passa pra elas?
R – As duas mais velhas já fazem, elas me ajudam, quando a gente está produzindo as coisas a Joice faz, a Jennifer faz. Só a Jasmim que não é muito envolvida ainda, porque a Jasmim é mais assim: (risos) toda grandona, mas ela é a mais criança da casa. (risos) As duas mais velhas conseguem fazer, já. Inclusive a Joice estava me cobrando, que eu não fiz um chá pra ela todo esse tempo que ela está aqui, (risos) que lá em Manaus eu estava fazendo e aqui eu parei. (risos) Eu levei folha, casca daqui pra lá, pra fazer chá lá e ela tomava lá e quando ela chegou aqui eu ainda não consegui fazer.
P/1 – E quais são seus planos?
R – Planos futuros? (risos) Eu penso que a gente tem que se estruturar, pra montar nossa empresa, nossa MEI, se Deus quiser e continuar nosso trabalho, os trabalhos voluntários, continuar buscando aprender mais e mais e mais e passar isso pras nossas filhas, pra que elas continuem esse trabalho. Não sei se elas vão morar a vida toda aqui, ou se não, porque eu não pretendo prendê-las aqui, porque assim: a gente mora aqui, é bom morar aqui, só que a gente fica restrito a muitas coisas. Por exemplo: a Jasmim poderia estar fazendo um curso de informática, um curso de inglês, um curso de espanhol, um curso que ela gostasse, porque ela gosta de inglês e aqui a gente não tem isso. Então, a gente fica fechado ao mundo e aí, quando ‘abre o olho’, já passou o tempo. É bem complicada essa situação. Eu não gosto por causa disso, mas em questão de tranquilidade pra criar os filhos é muito tranquilo, muito bom. É mais pela parte da educação, mesmo, que é mais restrita pra gente, aqui, mas hoje em dia a gente tem internet também, que pode estar buscando, mas eu, particularmente, não tenho paciência pra estudar pela internet, eu prefiro fazer um curso presencial. Tanto que eu e o Marcio estamos pagando uma pós-graduação que eu me inscrevi, que é pra fazer online e eu não estou fazendo, nós estamos pagando e eu não estou fazendo, porque eu não tenho paciência pra estar lendo coisinha aqui no celular, não consigo. Eu leio mensagens, escuto áudio, alguma coisa, mas pra ler um livro inteiro no celular eu não consigo, não gosto. Aí a gente está pagando, porque diz que, se cancelar vai levar uma multa de não sei quantos mil, então a gente está pagando as mensalidades, aos pouquinhos. De vez em quando eles querem que eu pague tudo no cartão, não vou pagar. Vou pagar a prestação, do jeito que foi combinado. (risos) Fico pagando assim. (risos)
P/1 – E você gostaria de acrescentar algo mais e deixar registrado aqui, que eu não tenha te perguntado, uma passagem da vida, alguma pessoa, alguma situação, algum curso?
R – Eu acho que o único curso que eu não falei foi do doce, que foi o primeiro curso que a gente teve, aqui dentro da comunidade, que na época era Idam. Foi o primeiro curso que eu fiz, aqui dentro da comunidade, que foi pra confecção das balas de chocolate que a gente fez, que era doces, a gente aprendeu a fazer compota, as balas de chocolate e os doces das frutas: doce de cupuaçu, de manga, das frutas regionais, que o curso foi voltado pra essa área. Acho que foi em 2000, a gente fez o primeiro curso aqui, dentro da comunidade, o presidente conseguiu trazer e foi nessa época que a gente descobriu que aqui era um parque, que a gente teve essa consciência de que nós morávamos dentro de um parque, porque esse curso veio e, como são organizações não governamentais, não sei se você já ouviu falar, tem uma ONG chamada Consulado da Mulher, inclusive eu participei de um projeto agora, recente e fui selecionada, estou esperando me chamarem. (risos) A primeira vez que eles vieram aqui eles foram buscar informação, porque até então todo mundo era leigo aqui dentro, ninguém sabia. A gente morava aqui a vida toda e como a gente vai sonhar que mora dentro de um parque? Aí as ONGs descobriram que a gente vivia dentro de um parque e não poderia ter gente aqui dentro, ser humano não poderia estar morando aqui dentro. E a gente fez esse curso e nunca mais recebeu outro curso nessas áreas, porque eles não poderiam vir aqui, eram proibidos por lei. E aí foi a luta pra mudar de categoria. O parque foi criado em 1994, dentro das comunidades e nós viemos descobrir o parque já em 2006, 2007, por aí. A gente morava dentro de um parque estadual. E aí, como é que vai ser? Aí houve aquela revoado que iam tirar todo mundo e o povo não queria ir embora, porque famílias e famílias vivendo dentro dessa área, são dezessete comunidades e aí busca apoio de ONG, vai no Ministério Público e tudo e conseguiu mudar a categoria pra que é hoje, pra RDS, acho que em 2014 conseguiu essa mudança de categoria pra RDS, onde a gente pode morar aqui dentro, permanecer, mas sem agredir muito a natureza. Que, na prática, não acontece, mas a gente busca (risos) seguir isso. Por isso que a gente criou todo um plano de gestão, de documento, que rege a nossa vivência aqui dentro, que mantém o controle de certas coisas dentro da comunidade, da RDS, que é o plano de gestão, que foi criado com as pessoas da comunidade, a gente participou de várias reuniões, pra chegar num consenso do que a gente queria, ou não. Por exemplo também, que eu não falei: moradores dentro da reserva, pode ter novos? Pode, mas se você casar com alguém daqui, da comunidade. Você não pode, por exemplo, vir de São Paulo, comprar um terreno aqui dentro e vir morar aqui. Não pode. Você pode perder o seu dinheiro, o seu investimento todinho e ainda responder processo na Justiça por grilagem de terra, por estar fazendo uma coisa ilegal. Essas coisas a gente tentou minimizar dentro da comunidade, porque a gente tem casos. A gente tem um morador aqui na comunidade, que é suíço-alemão. Ele mora aqui desde 1998. 1997. Desde 1997 ele mora aqui, o Stefan. Ele é um suíço-alemão. Só que, assim como a gente, ele não é dono de nada, mas ele se diz dono e quer ser, é muito altruísta. (risos) Quer ser melhor do que os outros, mas é isso. E aí essas questões que foram colocadas dentro do plano de gestão. Não é proibido aumentar a população da comunidade, o que é proibido são moradores que não têm família aqui, não têm convívio dentro da reserva, virem morar aqui. Não pode esse tipo de ação. Mesmo porque, quando você vem de outro estado, você tem recurso financeiro, por exemplo, pra montar uma pousada. E aí você finda que oprime pessoas que estão querendo seguir aquele ramo de vida, mas que vão começar de baixo. Então, é mais esse pensamento em melhorar a qualidade de vida das pessoas que moram aqui, não trazer pessoas com dinheiro, pra fazer investimentos grandiosos aqui dentro, pra não mudar também a nossa realidade, porque como a gente vê nas grandes cidades são prédios e isso e aquilo e se vier pessoas com capacidade financeira, com recursos, com certeza vai querer construir prédios e isso e aquilo, aí não vai coincidir com a nossa realidade, com o que a gente é acostumado a viver aqui dentro. (risos)
P/1 – Você gostaria de deixar alguma mensagem pensando nas suas filhas?
R – A minha mensagem que eu quero deixar é que as pessoas têm que buscar sempre conhecimento. Ter objetivo de vida, de querer uma coisa e saber que vai conseguir, se tiver força de vontade, foco, fé consegue, a gente sempre consegue. Eu, graças a Deus, consigo. (risos) E é isso. A gente sempre está vivendo... como a gente vive muito, convive direto com a natureza, preservar sempre, sempre preservar o meio ambiente que a gente vive, tanto os animais quanto a natureza, em si: árvores, plantas, que é o nosso objetivo de vida, pra vida, que é uma coisa que fica pros filhos, pros netos e pra toda uma geração aí.
P/1 – Como foi, só pra gente encerrar, contar um pouco, lembrar de tudo isso, desde a infância, dividir com a gente?
R – (risos) Foi bom, é bom lembrar. A gente chora, às vezes, no meio das informações, mas é bom, porque revive muita coisa e às vezes a gente esquece. Eu tenho certeza que esqueci de muita coisa, de falar, mas uma boa parte foi contada e finda que é muito bom, porque é como se fosse um desabafo e ao mesmo tempo uma forma de compartilhar um pouco do que eu sei, do que a gente vive, com outras pessoas. Muito legal!
P/1 – Obrigada! Obrigada, obrigada.
R – (risos) Eu que agradeço. É um prazer estar aqui, conversando com vocês.
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