P1 – Boa tarde. Primeiramente eu gostaria de agradecer muito a sua participação. Pra começar eu gostaria que o senhor dissesse pra gente o seu nome completo, a data e o local de seu nascimento.
R – Meu nome é Manuel Henrique Farias Ramos, nasci em 8 de maio de 1939, portanto faço 73 anos amanhã.
P1 – O senhor nasceu onde?
R – Eu nasci nos Açores. Os Açores são um arquipélago de 9 ilhas que fica entre o continente americano e o europeu. Homero, reza a tradição que ali teria sido a Atlântida. Nós acreditamos nisso, né? Nesse mito. É um arquipélago que tem em torno de trezentos mil habitantes e a ilha onde eu nasci, como foi a terceira a ser descoberta, chama-se Ilha Terceira. Por incrível que pareça Dom Pedro I, quando voltou a Portugal pra combater o irmão Dom Miguel, foi lá que ele foi pegar apoio, organizar as tropas, para cunhar moeda. Houve doação de joias, tudo, pra ele cunhar moeda e pra fazer um movimento bem sucedido chamado o Movimento Liberal.
P1 – O senhor poderia falar pra mim o nome dos seus pais?
R – Manuel Gonçalves Ramos e Emilia Gonçalves Farias.
P1 – E o que eles faziam, qual era a atividade deles?
R – Bom, minha mãe, como era tradicional naquele tempo, era dona de casa, né, e meu pai, a maior parte do tempo ele era bom profissional em carpintaria e marcenaria. Ele acabou fazendo, nos seus últimos 20 anos, fez empreitada com os americanos porque tem um base americana das lajes lá na ilha, que foi montada pra Segunda Guerra mundial pelos ingleses. Depois foi cedida para os americanos e se mantém hoje. É considerada uma das três bases mais importantes pelo ponto estratégico e pela infraestrutura, para aviões cargueiros e todo o tipo. Então nos últimos vinte anos ele foi empreiteiro para trabalhar para os americanos.
P1 – O senhor tem irmãos?
R – Não. Tive um irmão, mas morreu pequenininho com onze meses, alguma coisa assim.
P1 – Certo. Conta pra gente um pouquinho como é que foi a sua infância lá nos Açores.
R – Bom, a infância foi no meio rural, uma infância um pouco diferente daquilo que a gente vê hoje no meio urbano. Quer dizer, a gente brincava na rua tranquilamente, jogava-se bola, futebol na rua, né, enquanto criança, aqueles jogos normais, esse tipo de coisa. A escola, aí é uma peculiaridade que vocês não conhecem, a alfabetização se dava numa pedra, é uma pedra que tinha um caixilho e o lápis, que não era de pedra, era um pouco mais mole. Você podia escrever... os primeiros dois anos você escrevia na ardósia, pedra de ardósia, você aprendia a escrever naquela pedra de ardósia. Então, por incrível que pareça eu sou da idade da pedra (risos). Depois do segundo ano é que você pegava uma caneta tinteiro e um mata-borrão, porque se você está acostumado a fazer pressão muito forte com a mão então o bico da pena abria e fazia borrões, você tinha que estar com... depois é que você passava, no último ano é que você tinha então uma caneta Parker, que você pegava e já escrevia um pouco mais. Então eu me alfabetizei apenas escrevendo na pedra.
P1 – O senhor acabou de comentar pra gente que era um ambiente rural, mas existia algum centro, algum comércio onde os seus pais iam fazer as compras? Como é que era?
R – Aí é outra questão interessante também porque eu vivi dois momentos. Até os sete anos, eu vivi nessa aldeia bem mais distante, depois meus pais vieram a três quilômetros da cidade onde estava a quinta dos meus avós, então já mudamos um pouco a coisa. Mas nesses sete anos as trocas eram feitas em espécie, então, por exemplo, meu pai semeava trigo, colhia o trigo, dava uma parte do trigo para o moleiro que moía, ficava com um parte e trazia a farinha. A mesma coisa se dava com o milho. Você fazia troca de batata com o pescador que levava o peixe, ia entregar o peixe. Então a grande troca era em espécie, que aqui vocês chamam de escambo, né, esse termos nós não usávamos lá, mas é exatamente a mesma coisa. Então eu vivi esse momento de aprender a escrever na pedra e de viver a experiência do escambo até mais ou menos os sete anos. Depois aí eu vim para a quinta com os meus avós. Aí já produziam hortaliças e outras coisas para o mercado, tinha uma banca no mercado, então a relação já era outra.
P1 – E o senhor chegava a ir para a banca com os seus avós?
R – Ah sim, no campo a gente faz tudo, você participa da colheita. Ia pra escola, voltava da escola e ia pro trabalho rural. Sábado e domingo tirava-se um pedaço de tempo pra brincar, certo, mas tinha outro tempo que era pra cuidar dos animais, fazer... Isso é comum a todos, embora houvesse também o tempo necessário para a brincadeira, para o lazer, digamos.
P1 – E o senhor ficou nas ilhas dos Açores até que idade?
R – Até os 18 anos.
P1 – A sua escola foi toda lá então?
R – Eu fiz exatamente o primário todo lá, naquela altura era chamado primário, agora tem outras designações. E depois, como eu tava com treze anos, pra ir fazer o Liceu tinha que ser com 12, não entrava mais com 13, então eu fiquei aluno externo. O aluno externo era o seguinte: você estuda todas as disciplinas com um professor a parte e vai prestar exame. São três ciclos: o primeiro ciclo você faz exame do primeiro e segundo ano, no segundo ciclo faz do terceiro, quarto e quinto ano e o terceiro ciclo você faz do sexto e do sétimo ano. Eu fiz até o quinto ano, vim pra cá, mas não tinha conhecimento aqui e por outras razoes interrompi os estudos aqui no Brasil. A minha escolha de vir para o Brasil também tem um detalhe interessante. Eu li um livro de Stefan Zweig, “Brasil, País do futuro”, e eu me apaixonei pelo Brasil. Eu não tinha família aqui, não tinha ninguém. Eu tinha parte da minha família que tinha migrado para os Estados Unidos, então eu tinha parentes nos Estados Unidos, mas não tinha ninguém aqui. Eu me apaixonei antes... eu sou brasileiro antes de vir para o Brasil, me apaixonei pelo Brasil lendo o livro do Stefan Zweig, “Brasil, País do futuro”.
P1 – E como é que foi o senhor chegar pros seus pais e falar: “Eu quero ir para o Brasil.”? Como foi a reação, eles te apoiaram?
R – É, há sempre... O filho único, há uma questão de dúvidas, mas havia uma situação que estava colocada. Eu tinha o espírito um pouco rebelde, questionava a ditadura de Salazar e então já pesava sobre mim uma certa ameaça de, a qualquer altura, ter alguma penalidade mais grave. E ao mesmo tempo começava-se a guerra nas colônias. Pra quem tinha uma visão crítica em relação ao sistema, a última coisa que eu poderia aceitar era ir para a guerra das colônias, era contrário a tudo aquilo que eu sentia e pensava. Então só tinha uma maneira: ou eu pegava e ia arriscar a minha vida nas colônias por aquilo que eu não acreditava, ou eu migrava. Então não houve escolha, meus pais concordaram porque também não havia escolha, o risco era conhecido.
P1 – E como é que foi a viagem para o Brasil? Quantos dias demorou, o senhor se lembra da viagem?
R – Sim, sim. A viagem era de navio, levava em torno de dez dias. Saí da Ilha Terceira, passa por outra ilha chamada São Miguel, você viaja um dia. Depois você viajava mais dois dias pra chegar na Ilha da Madeira. E depois da Ilha da Madeira, pra chegar em Lisboa eram mais dois dias. Então aí você viajava cinco dias. E depois, de Lisboa até o Brasil, era em torno de nove, dez dias, dependendo do tempo, etc. Se não me engano levei nove dias.
P1 – E o senhor desembarcou onde?
R – Era pra eu ficar no Rio de Janeiro. Eu tinha uma carta de referência que era na Confeitaria Colombo, tinha um português açoriano lá e ele... Fui procurar lá até a porta e dizer: “Olha, estou aqui e gostaria de trabalhar.”, ele disse: “Não tem problema, você acerta toda sua documentação que a gente oferece trabalho.” E exatamente o que eu precisava era trabalhar sem documentos, porque eu ia dar entrada, turista tinha que tinha dar entrada aqui. Naquela altura havia o Ministério do Exterior que cuidava exatamente da questão das imigrações e eu tinha que dar entrada e levava pra sair os documentos mais ou menos um ano, tinha uma certa demora. Aí eu fiquei triste, desanimei, fiquei sem palavras. Na hora em que ele me disse isso eu saí de lá, isto era três, quatro horas da tarde, fiquei matutando. Aí eu lembrei que tinha um endereço de uma viúva de mais de oitenta anos que o marido dela tinha sido amigo do meu avô, ela morava na Rua Vilela, no Brás. Eu disse: “Bom, vou pra São Paulo.”. Então onze horas da noite eu peguei um ônibus e vim pra São Paulo, cheguei aqui umas cinco, seis da manhã, uma neblina, um negócio terrível, viu? Aquela garoa de São Paulo, né? E aconteceu uma coisa interessante também que eu não esqueço. Eu fiquei olhando porque eu sabia que tinha que ter o ônibus Penha, o bonde Penha. Então chegou o bonde Penha e eu fui entrar pela porta da frente, todo mundo saindo e o cara bateu com a porta. Eu disse: “Mas não é possível.”, aí fiquei esperando outro que viesse. Veio um ônibus escrito Penha, aí eu disse: “Bom, agora não vou entrar pela porta da frente, vou entrar pela porta de trás.”. Só que o ônibus era ao contrário, o cara bateu a porta, viu? (risos). Você já imaginou o meu estado de espírito de chegar e bater à porta do primeiro serviço e o cara disse: “Vai arrumar a documentação e depois vem me procurar.”, aí eu disse: “Acho que o mundo está contra mim, viu?”. Aquele friozinho triste, viu? Aí eu fiquei estudando o movimento dos ônibus e dos bondes até acertar e perceber que um era por um lado e um era pelo outro que se entrava. Mas foi interessante porque quando eu cheguei lá, bati à porta da viúva lá do Brás, aliás, Tatuapé, Rua Vilela, ela me recebeu muito bem. A alegria... Acho que a solidão de uma viúva de oitenta e poucos anos em encontrar alguém do lugar onde ela tinha nascido e tudo, ela me recebeu tão bem que foi um carinho que também ficou guardado com muito amor, vamos dizer assim.
P1 – E aí como é que se deu essa história? O senhor foi procurar um emprego por aqui, como é que foi?
R – Aí o filho dela me arrumou emprego de imediato numa fábrica, mas eu observei que numa fábrica você parava no tempo, ia ser um operário a vida inteira. E eu trazia uma expectativa de ter independência econômica. Eu nunca quis ser rico porque eu acho que rico incomoda muito, mas também ser dependente economicamente é muito ruim. Eu disse: “Preciso voltar.” Aí procuraram... Naquela altura muitos imigrantes eram quase semianalfabetos, eu tinha a vantagem de ter estudado um pouco. Aí um dos maiores açougues de São Paulo, pra você ter uma idéia, ele tinha setenta bicicletas só pra entregar, ele trabalhava três turnos, dia e noite. Então ele queria alguém que ficasse lá anotando entrada e saída, etc. Fui pra lá, mas não me dei bem com o gerente de lá, mas eles tinham uma estima por mim e aí me puseram na filial que era no Brás. Aí eu comecei a aprender a fazer tudo, eu fiquei no caixa, do caixa ia no balcão, etc. Em 1960 eu já pude dar entrada no meu próprio açougue.
P1 – E como que era São Paulo nessa época em que o senhor chegou aqui? Como era o entorno da região do Brás, onde o senhor começou a trabalhar?
R – O Brás, no meu entender e naquela altura, era o bairro mais importante porque tinha indústria, tinha tudo. Então depois essa indústria foi se afastando e tudo. O que você tem de importante para o comércio, naquela altura, é o perfil do consumidor que determinava também o perfil, as práticas do açougue. Isto é, a dona de casa conhecia a carne que ela ia comprar, pra que que ela servia, se servia pra bife, pra picadinho, pra fazer sopa, pra fazer assado. “Eu quero aquela pra fazer isso.” A gente aprendia com a dona de casa. Naquela altura o que se vendia mesmo era o toucinho, o porco, suíno. Era por tanto quanto mais grosso fosse o toucinho e a banha porque não havia... O óleo não tinha ainda... não havia ainda refinação de óleo, havia um pouquinho de óleo de algodão, muito mal refinado, com gosto. Mesmo quando entrou o óleo de soja ele ainda, enquanto não foi bem refinado, ele trazia um gosto ruim. Realmente a conservação da comida era feita com a gordura do suíno, então você chegava cedo no açougue para fazer o toucinho chanfrado, isto é, cortava-o deitado para ser mais largo ainda, pra atrair um pouco mais. Então você tinha as famosas gancheiras, quatro horas da manhã você já estava no açougue pra preparar as gancheiras. E mesmo as carnes que tinham osso, pra você tentar esconder um pouco o osso e deixar a carne mais visível pra quem queria ver. Então você tinha realmente, nesse instante... o açougue só vendia carne, padaria só vendia pão, a farmácia só vendia remédios, a quitanda só vendia frutas e hortaliças. Havia ainda uma indefinição muito grande... nessa época ainda não havia o auto serviço, supermercado não tinha entrado, então você tinha realmente essas categorias definidas dessa maneira.
P1 – Antes de entrar mais especificamente nessa área: o senhor, com 18 anos, chegando em São Paulo, como é que o senhor fazia pra se divertir? Se é que dava tempo de sair. Com quem o senhor saía, pra onde o senhor ia?
R – Na verdade, é o seguinte: eu só voltei a me divertir aos 28 anos, porque os primeiros dez anos eu tive realmente que me dedicar ao trabalho, fiz essa poupança que precisava fazer, dediquei-me a ela tanto como empregado quanto como empregador. Eu precisei desses dez anos pra fazer a minha independência econômica, então não houve tempo realmente pra me divertir. Depois eu tirei um pouco o atraso, depois eu aproveitei, fui nas boates, fui nos bons restaurantes, namorei bastante. Fiz tudo aquilo que eu acho que deveria ter feito entre os 18 e os 28. Aos 28 eu resgatei, aos 28.
P1 – Ta certo.
R – Portanto eu não estou frustrado com isso também, nenhuma frustração eu guardo.
P1 – O senhor podia falar pra gente como era o funcionamento de um açougue na época em que o senhor começou? Como eram conservadas as carnes, de onde vinha essa carne, como é que era?
R – É, naquela altura ainda havia um preconceito muito grande com relação a produtos congelados. A carne chegava realmente fresca. O frango não se trabalhava realmente a semana inteira, o frango era só no final de semana e também não era congelado. É interessante que frango era uma coisa ainda de luxo. Pra se ter uma ideia ainda em 1970, a Getúlio Vargas fez uma pesquisa e o consumo per capta de frango era 2,2, de carne bovina 18,6. Hoje o consumo de frango já ultrapassou o da carne bovina. Então havia realmente... Não chegava congelados, não chegava. A primeira carne congelada que chegou mais tarde um pouco foi mal congelada e ficava pendurada fora pra descongelar e ela escurecia. Aí provocava também uma reação em relação aos produtos congelados. A dona de casa ia comprar um frango e ela ia comprar o frango vivo, na granja, nas avícolas, e ela conhecia, ela punha a mão no peito pra ver se o peito tava cheio. O sujeito ia lá, torcia o gargalo, depenava e ela trazia pra casa. Então era um outro momento, um outro instante como as coisas eram feitas, né. As mulheres conheciam exatamente tudo sobre o que estavam fazendo, a função delas era só cuidar de casa, tinham aprendido com a avó, tinham aprendido com a mãe e sabiam. Tudo isso vai mudar depois quando muda o perfil, a industrialização vai crescendo, no estado de São Paulo em particular, a mulher vai trabalhar fora e é aí que você começa a ter uma mudança muito grande. Aí é que tem... Primeiro o auto serviço que entrou, pegue e pague, e depois... A dona de casa não queria escolher e ver, ela estava acostumada a ter a relação face a face. Nós acompanhávamos a vida das pessoas, sabíamos se a dona de casa tinha brigado com o marido, se o filho tinha feito alguma coisa errado, ela desabafava com a gente. Havia uma interação, uma relação muito estreita. Essa impessoalidade que leva você ao auto serviço, quando entrou, não foi bem sucedido, mas na medida em que a mulher passou a trabalhar fora, passou a ter menos tempo pra ficar na frente do fogão, então ela começou a ter outras exigências, coisas preparadas, semipreparadas, mais fatiadas, mais prontas. Quer dizer, a mulher entrou ocupando mão de obra dos homens no mercado, mas também gerando mão de obra no mercado pra fazer aquilo que ela fazia em casa, pra encontrar esse produto no mercado. E aí começou a mudar o perfil do açougue, o açougue de hoje é um açougue então que já tem outro modelo de atendimento porque mudou o consumidor, mudou a forma de comercializar também.
P1 – Entendi. Com relação ao fornecimento dessa carne, essa carne era abatida aqui em São Paulo? Vinha do interior, como é que conservava isso no açougue?
R – Havia, veja bem, em Guarulhos aqui do lado, você tinha um matadouro; em Cotia tinha matadouro. Na medida em que São Paulo também foi crescendo a pecuária foi se estendendo para o interior do Brasil. Primeiro Goiás foi o estado mais importante como fornecimento, depois Mato Grosso, Mato Grosso do Sul. E hoje você já tem Tocantins, Rondônia, etc. com uma pecuária muito grande. Hoje o maior rebanho pecuário é do Mato Grosso. Se você juntar o Mato Grosso do Sul e o Mato Grosso você tem em torno de vinte por cento do rebanho brasileiro, mais de vinte por cento do rebanho brasileiro só nesses dois estados. Você vê como houve um deslocamento, realmente. Os frigoríficos que eu trabalhava naquela altura eram frigoríficos que entraram aqui talvez pela... Havia uma necessidade na Segunda Guerra Mundial de fornecimento de carne, então abriu-se um espaço pra aproveitar e empresas de grande porte, por exemplo a Swift, que na altura era o maior frigorifico americano, o maior frigorifico do Brasil era uma multinacional. Wilson, Anglo, eram frigoríficos estrangeiros que foram tomaram conta do mercado pra fazer o abate e inclusive pra atender essa demanda necessária da Segunda Guerra Mundial, mas obviamente voltando depois para o mercado interno. Eles dominaram o mercado interno durante algumas décadas. Os primeiros concorrentes que entraram foi o Bordon, que ainda tem algo... Já faleceu, as famílias de italianos que entraram, que naquela altura começaram a... E depois entraram os portugueses também. Os dois começaram a entrar e aí foi perdendo espaço e hoje não existe nenhuma das três, desses frigoríficos estrangeiros nenhum mais. Aliás, hoje, o maior frigorífico do planeta é o Friboi, que é brasileiro. Comprou frigorífico nos Estados Unidos, na Argentina, no Uruguai, tem frigorífico em quase todo o lado. É o maior frigorífico hoje do planeta, é brasileiro, o Friboi. Você veja que houve um deslocamento: antes era domínio dos frigoríficos americanos e ingleses aqui e hoje o maior frigorífico do planeta é brasileiro.
P1 – O senhor comentou que ficou cerca de dez anos trabalhando duro, conseguindo juntar dinheiro pra sua independência financeira, enfim. Como é que se deu a sua passagem de empregado pra empregador? Quando é que o senhor adquiriu o seu açougue, como é que foi?
R – Bom, eu adquiri em 1960. Houve bastante dificuldade naquela altura porque não havia prática, eu tinha conhecimento da gestão do açougue, mas quase prática nenhuma de cortar no balcão, trabalhar, fazer corte no balcão. Foi difícil, aprendi as minhas custas ali, mas consegui. Eu tinha um bom relacionamento com o cliente, com as pessoas e isso me ajudou, mas não foi fácil, não. Tive um monte de dificuldade pra fazer essa transição, essa adaptação, eu não... Eu me cortei bastante, se você pegar aqui, olha, tem cortes aqui, tem cortes aqui, tem cortes aqui. Quando eu mostro isso pra um açougueiro de verdade ele diz assim: “Você era um açougueiro muito ruim! Se cortou tanto!” (risos). Fui aprendendo às minhas custas sim, viu? Mas cheguei lá.
P1 – O senhor citou 1928 como um período em que o senhor passou realmente a sair, se divertir. Por que essa...
R – Não, não 1928. Aos vinte e oito anos.
P1 – Isso, aos vinte e oito anos, desculpa.
R – Sim. Que que tem?
P1 – Por que exatamente nesse período, nesse ano?
R – Porque foi, veja bem, foi praticamente quando eu tinha uma rede de açougues, vendi alguns açougues, fiquei só com um açougue pra fazer manutenção e aí pude deixar uma pessoa tomando conta. Voltei a estudar, resgatei, passei a estudar. Acho que foi fácil, em dois, três meses consegui terminar todas as disciplinas, naquela altura podia fazer isso, você eliminava. Então eu pegava, tinha exame aqui em São Paulo, ia fazer duas, três disciplinas, tinha no Rio Grande do Sul, ia fazer no Rio Grande do Sul, saía no Mato Grosso, ia lá fazer no Mato Grosso. Eu seu que em dois, três meses eu eliminei todas, só a última que ficou foi matemática, viu? Matemática, eu nunca gostei muito de Matemática. Eu tive que malhar dia e noite, viu, estudando matemática, mas também passei e ainda com 7,5. Então não fui tão mal assim, mas foi realmente suado. Aí, voltando a estudar, você tem outras companhias, já tinha meu carro, já podia ter meu carro próprio pra ir e voltar, certo? Podia sair à noite, tomar um chopinho aqui, um chopinho acolá, essas coisas boas que vocês fizeram e que eu também fiz, só que um pouco fora de tempo, né? (risos)
P1 – O senhor fez uma faculdade depois? Como é que foi?
R – Eu fiz, fiz a PUC, Pontifícia Universidade Católica. Fiz Ciências Sociais e pós-graduação em Ciências da Política. Fiz uns anos, pouco, filosofia na USP porque naquela altura era um desafio a gente... Tinha três opções em Ciências Sociais, tinha três grandes clássicos que você escolhe, que é o modelo teórico, que é Marx, Max Weber e Durkheim. O Max Weber é o admirado do Fernando Henrique Cardoso, ele sempre citava Max Weber; não era a minha opção. Durkheim é uma teoria funcionalista americana que faz um corte sincrônico da realidade; eu sou mais como os historiadores, da diacronia. Então eu optei pelo marxismo, teoria pelo materialismo histórico e a dialética. Aí eu sabia, mas num texto que eu li do Lenin eu disse assim: “Ninguém vai entender o capital se não estudar Hegel, então eu fui fazer filosofia pura, estudar um pouco de Hegel, um pouco mais de teoria do estado, etc. Na USP eram os barracões ainda, tinha uns barracos lá em baixo, ainda estava aquilo começando, mas fiz mais as cadeiras que me interessavam para as Ciências Sociais.
P1 – E como é que o senhor fazia pra conciliar o trabalho e a faculdade?
R – Porque nessa altura eu já podia delegar, a minha consolidação econômica, não de ser rico, mas a minha independência econômica já me permitia, nessa altura, delegar e deixar uma pessoa tomando conta do trabalho. Então eu ia lá e fazia, tal, mas tinha a liberdade de ocupar meu tempo com liberdade.
P1 – E, quando o senhor assumiu o seu açougue, onde é que ele era? Onde ficava?
R – Foi no Tatuapé, na rua Padre Adelino, 1981, tá ainda lá gravado. É quase uma esquina... é um quarteirão antes da praça Silvio Romero.
P1 – E como é que era o bairro na época em que o senhor abriu?
R – Era um bairro... Aquela parte do Tatuapé até que evoluiu bem, a Padre Adelino realmente caiu um pouco, mas a volta, inclusive... A Anália Franco fica um pouco mais pra trás. Naquela altura era um bairro, vamos dizer assim, que vinha num plano secundário do Brás. Você tinha o Brás, que era um bairro um pouco mais importante, eu acho que a seguir o Tatuapé vinha também como bairro de grande importância naquela altura ainda.
P1 – E o seguimento já tinha desenvolvido bastante, desde quando o senhor começou até quando o senhor começou o seu açougue?
R – Você diz o segmento de varejo de carne, o açougue?
P1 – Isso, exato.
R – Naquela altura ali era mais forte do que agora porque, naquela altura, nós tínhamos mais de cinco mil açougues em São Paulo, no município de São Paulo. Hoje nós temos em torno de 2200, 2300, temos menos da metade, porque entraram as redes supermercadistas que ocuparam uma parte que era dos açougues. Foi ocupada pelos açougues que entraram dentro dos supermercados. Então naquela altura o açougue era um setor muito forte.
P1 – O senhor até comentou dos cortes na sua mão e tudo o mais. Existia alguma função dentro do seu comércio que o senhor gostava mais? De repente ficar mais no caixa ou colocar mesmo a mão na faca e ir lá cortar carne?
R – Olha, na verdade eu nunca tive muita habilidade pra lidar com a carne, viu? Eu era melhor pra fazer as relações, então eu saía, fechava o açougue e ia visitar restaurante, ia visitar hospitais que tinham por exemplo cozinhas pra preparar, fábricas. Eu vi... Eu fiz… Onde havia cozinhas de fornecimento e abastecimento, eu visitava e acabei fazendo... Eu desenvolvi mais vendendo menos no balcão e mais pra fora depois. O balcão foi o primeiro... A primeira importância econômica pra poder fazer outra escala de fornecimento. Aí, saindo no fornecimento, eu me relacionava bem e me dava melhor. Dentro do espaço o que eu me dava melhor era conversar com as pessoas, dialogar com elas. No balcão eu gostava muito de conversar, eu sempre admirava o pessoal... Até hoje, eu nunca soube desossar a carne direito, viu? Então não posso ter todas as habilidades, né? Não era minha parte melhor não.
P1 – O seu cliente tinha algum tipo específico? O senhor fornecia só pras pessoas ou também tinham restaurantes, pra outras coisas? Como era?
R – Os restaurantes, essa parte que eu consegui bem, e balcão eu via também... O balcão, são dois momentos também: você tem um primeiro momento em que é o momento de confiança, por exemplo, chegava o final do mês, dia 2, 3, 4, dia 5, as donas de casa levavam as panelas de alumínio pra você moer, dependendo da família, quatro, cinco, seis, dez quilos de toucinho e banha moída, que elas faziam… Elas deixavam em confiança, não precisava nem olhar. Então esse relacionamento eu tive a facilidade de ganhar confiança do cliente, eu tive essa facilidade.
P1 – E existia também aquela sistema da caderneta? O cliente ia lá anotava e pagava depois?
R – Tem. Quando havia algum desemprego dentro de casa, conversava com a gente, a gente esticava. Havia aquele que pagava só final do mês. Quando havia um casamento, que se apertava um pouco, a gente segurava um pouco. Havia uma relação muito diferente, uma interação muito diferente daquela que nós temos hoje, hoje há uma impessoalidade muito grande. Produto das circunstâncias, é claro, né? O auto-serviço não abre espaço pra esse tipo de relacionamento.
P1 – O consumo de carne naquela época é a mesma coisa do que é hoje? Houve um crescimento, como é que é?
R – O consumo per capta de carne ele vem crescendo aos poucos, ele vinha crescendo. Até vamos dizer que o consumo per capta caminhou certo até 1980, daí pra cá... O frango já começou a crescer na década de 70, de oitenta pra cá ele foi crescendo, crescendo, crescendo. O grande aumento se deu no consumo de carnes de aves, mais do que no consumo de carnes vermelhas. E de algum jeito há uma percepção do consumidor de que a carne de frango é um pouco mais saudável, e que a carne vermelha não é tão recomendável. Há uma outra coisa que é a... O modelo da produção de frango é muito mais competitivo do que o modelo de produção da pecuária de corte, a pecuária de corte demanda uma fazenda, grande rebanho e um investimento alto. O frango eles criaram uma coisa chamada integração, você tem o pequeno produtor, o frigorifico e a distribuição. O que é que faz? Um grupo de cem pequenos produtores está integrado ao frigorífico, em que o frigorífico compra a ração em escala, compra mais barato, dá assistência em tecnologia e o sitiante, o pequeno produtor, não tem hora extra, não tem nada. A qualquer hora da noite, sentiu o galo cantar ele levanta pra ver o que está acontecendo, entendeu? Esse processo aí resultou numa produção extremamente competitiva e ganhou espaço carregando a imagem que o frango, a carne de ave é mais saudável do que a carne bovina. Então há essa mudança também no hábito alimentar. Hoje você tem um consumo per capta de carne bovina em torno de 87 quilos, porque as estatísticas nossas são um pouco falhas e já existe uma estimativa de que o consumo per capta de frango está em torno de 44 quilos. É verdade que o consumo per capta significa que um come dois frangos e outro não come nada, né? Mas tudo bem, é a média, a famosa média.
P1 – E a partir de que época, de que ano mais ou menos, os supermercados começaram a surgir, a oferecer esse serviço do açougue? De que modo isso impactou nesse açougue de rua, de bairro?
R – Eu acho que realmente, quando começa essa mudança aí na década de 70 em diante, começa o crescimento. O Pão de Açúcar cresce com o Abílio Soares dentro do Conselho Monetário, regime militar. Então foi no regime militar que ele teve acesso a financiamento, a dinheiro barato, pra comprar outras redes, comprar o Pegue Pague, etc. Saiu também, ele saiu com a vantagem de já ter estudado... O Abílio tinha estudado nos Estados Unidos, trouxe uma visão mais clara do auto serviço. O pai tinha uma excelente padaria na Brigadeiro Luís Antônio, um lugar excepcional, portanto tinha um poder econômico também grande. Então ele conseguiu realmente... Foi a partir daí, com uma... Ele modernizou de algum jeito o auto serviço e ele começa a crescer. E começa a crescer com disponibilidade de acesso ao dinheiro do Estado também, o Estado teve uma importância muito grande nesse crescimento.
P1 – O senhor acredita que existe uma confiança do público em continuar comprando no açougue de bairro? Esse açougue perdeu espaço para o açougue dentro do supermercado?
R – Essa tem sido a luta do sindicato, que eu presido até hoje, de fazermos vários eventos de modernização de açougue, cursos com higiene sanitária... O açougue de antes não podia, por exemplo, temperar carne. Nós fomos conversar, na altura o governador era o Mário Covas, e porque o código sanitário é federal, mas o estado tem algumas brechas, ele disse: “Olha, dá um estudo, vê se tem alguma brecha. Se tiver alguma brecha nós vamos ver o que que tem.” Nós fizemos um estudo com o jurídico da Federação do Comércio e encontramos uma brecha de que o estado poderia legislar concomitantemente. E aí foi autorizado fatiar, temperar e preparar dentro do açougue, que era a demanda moderna. A mulher está fora, como é que ela vai preparar? Precisa fazer esse serviço dentro do açougue. Só que eu coloquei até uma coisa, eu disse: “Não, para temperar carne tem que fazer um curso higiênico sanitário.”. O Covas até brincou: “Não, você vem com facilidade e agora está com dificuldades?” Eu disse: “É o seguinte, se não for bem trabalhada a higiene sanitária, não houver confiança da carne temperada, você vai desmoralizar ainda mais e ninguém vai comprar a carne temperada, preparada no açougue. Então tem que fazer um curso.” Não pode funcionar hoje, tem a fiscalização. Pode fazê-lo no SENAC, ou no SENAI ou na prefeitura, em todos os órgãos. Mas tinha que ir lá e fazer o curso. Por quê? Pra ter essa responsabilidade, ao menos a obrigação de fazer uma coisa bem feita. Por quê? Pra manter essa confiabilidade que ainda existe em relação ao açougue. Ainda hoje a gente escuta o consumidor dizer: “A carne eu prefiro do açougueiro, ele conhece, sabe o que eu quero, como quero e como eu gosto.” Então a gente não podia romper, e não podemos romper, com essa relação de confiança. Essa faz parte... Só que esta é uma luta constante.
TROCA DE FITA
P1 – Bom, senhor Manuel, voltando agora. O senhor comentou das transformações no consumo da carne bovina e depois do consumo do frango. Quais foram as mudanças que ocorreram com relação ao consumo de carne suína?
R – Exatamente. Veja bem, falamos há pouco que a gordura era o principal naquela altura, porque era a conservação, pra conservar produtos, inclusive pra qualquer forma de tempero era feito com a gordura suína. Quando entrou o óleo de soja refinado, começou a desenvolver-se, e também trouxe uma mensagem de ter menos colesterol, triglicérides, essa coisa toda. O óleo de soja passou a ter uma dimensão. O óleo de soja, o óleo de milho, por aí afora. Os óleos passaram a ser bem refinados e então ganhou espaço. Qual é o tipo de suíno que nós temos hoje? Não querem nem que chame mais de porco, querem que chame de suíno. É o suíno tipo carne, então ele quase não tem... ele tem só uma camadinha muito fina de toucinho e você tem a carne. Agora, a carne suína sempre foi muito consumida, principalmente nos embutidos, então você tem a linguiça, você tem mortadela, você tem o presunto. Então ela sempre foi muito consumida nos embutidos. E obviamente você tem uma demanda da bistequinha de porco, um lombinho de porco, o pernilzinho de porco. Hoje tem pernil famoso por aí, né, que a turma faz o sanduíche. Então é uma carne saborosa e que sempre foi vendida. Hoje o consumo per capta de suíno também cresceu um pouco, está em torno dos 10 quilos, consumo per capta ano, mas das três proteínas de animais é a que tem o menor consumo. Você tem hoje mais o frango, em segundo a bovina e em terceiro lugar vem a carne suína.
P1 – O senhor acredita que sempre teve essa cultura do brasileiro com o churrasco, essa coisa de fazer um churrasco de final de semana, ou isso também é uma decorrência do crescimento no consumo?
R – O churrasco é um ritual, o churrasco vem do tempo em que não tinha geladeira. Então, o que acontece... Nos pampas do sul o sujeito saía atrás do gado, cuidando do gado e tinha... Uma rês que morria atropelada no meio do caminho e não se perdia, fazia-se uma cova e sal grosso e fazia-se o churrasco. Na volta daquele churrasco conversava-se, contava-se aventuras, né. Muita mentira, né? Isso faz parte de um bom churrasco. E esse ritual veio pro meio urbano, porque a questão que se tem hoje, o churrasco é um ritual. A caipirinha, o tira-gosto, o ambiente que se cria em volta. Então eu acho que ele cresceu mais no meio urbano, embora ele já existisse. E você tem também, no caso do Norte e Nordeste, você tem o charque; e na falta do charque você tem a carne de sol. Não tem geladeira, então são grandes produtores de charque, se desenvolveu muito mais lá. Então nos pampas nós temos o churrasco e você tem a carne de sol e o charque no Nordeste. E em São Paulo tem tudo porque São Paulo recebe todo mundo e nós temos tudo aqui.
P1 – O senhor comentou da sua atuação no sindicato. Fala pra gente que sindicato é esse. Quando o senhor começou a se envolver no sindicalismo?
R – Bom, eu entrei no sindicato um pouco antes de 80, eu entrei como sócio, essa coisa toda, participava. Quando chegou em 80, havia eleições, eu me propus a ser candidato exaltado de uma reflexão que eu fiz junto com um amigo meu. Nós já tínhamos deixado pra trás a crença da luta de classes com o fracasso da União Soviética, e não fomos só nós que deixamos de acreditar nisso. Intelectuais da Europa inteira já tinham abandonado. O último intelectual a abandonar, na França, foi o Sartre, viu? Demorou até quase o fim tentando defender o socialismo da União Soviética. Não havia mais, nós sabíamos que... A invasão da Hungria em 56, depois da Tchecoslováquia, a brutalidade imposta pela força. Obviamente os dez milhões que o Stálin matou pra impor uma vontade única é ruim. É claro que também a gente não apoia a intervenção preventiva do Bush nos países árabes. Veja bem, o fato de eu estar fazendo uma crítica lá não significa que estamos desejando o outro lado, de jeito nenhum. Naquela altura o Bush ainda não era presidente da república. Estávamos em 1980, nós acreditávamos que o aperfeiçoamento do sistema, enquanto não viesse uma outra alternativa melhor, seria valorizar a micro e pequena empresa. Por que a micro e pequena empresa? Porque ela é o espírito democrático: quem trabalha dez, 15 anos, tem o FGTS, pega aquela poupança do FGTS, pode entrar num pequeno negócio e participa. Então você se sente integrado ao sistema. O sistema pode funcionar, mas o que é que nós questionamos? Nós questionamos os grandes lucros, as fusões que estão acontecendo. Essas são opressoras e dominam o mercado, são formadoras de preço. Então é melhor pro consumidor, que tem maior número de escolhas, você tem onde comprar, e não alguém fazendo marca própria e você só puder comprar daquilo e não ter outra escolha. Então, do ponto de vista sociológico, é a mobilidade social, a possibilidade de você ascender e se integrar ao sistema. Do ponto de vista do consumo, de uma maneira geral, é ter uma oportunidade de escolha e a concorrência. Então são duas coisas fundamentais que você tem e por isso eu lutava. Trabalhei em defesa da lei geral das micro empresas, embora não sei se a gosto, e estamos desde 1980 acompanhando. Começamos com o ministro Hélio Beltrão ainda, militar, mas esse era um homem liberal, pelo menos. Viemos trabalhando até 88, quando conseguimos cravar na Constituição Federal o artigo 179, que dá tratamento diferenciado a micro e pequena empresa. É um artigo que recebeu uma regulamentação parcial com a lei geral das micro empresas, que precisa ser melhor trabalhado, mas já é realmente um grande avanço pra micro e pequena empresa. Lamentavelmente um banco BNDES financia os grandes grupos econômicos e não financia a micro e pequena empresa praticamente. Pode alegar disponibilidade, mas as regras que ele exige pra financiar são incompatíveis com os balanços. Uma micro empresa vai fazer um balanço formal, como existe o BNDES? Não faz, não consegue. A contabilidade própria é terceirizada. Então é difícil para se fazer uma adequação. Estamos brigando por isso, vamos continuar brigando por isso. Já faz uns 15 dias conversei com o deputado Vicente Cândido, está fazendo parte da frente parlamentar em Brasília. A gente desenvolveu uma estratégia, estamos vendo como vamos colocar. Agora está sendo feito, elaborado o código comercial, que já tem 150 anos. É um absurdo total. Eu quero ver se a gente consegue colocar dentro, já vamos fazer agora algumas reuniões pra discutir, pra colocar uma emenda que consiga colocar o direito coletivo dentro. Porque o direito avançou em outras áreas, o chamado direito difuso, mas um problema que toca... Por exemplo: o problema de contaminação de água do rio, que toca a toda a sociedade, a única entrada na lei federal está em defesa de todos, porque todos foram atingidos. É chamado direito difuso. Então é um direito mais coletivo, nós estamos muito agarrados ao direito individual. Obviamente ele tem que ser preservado, mas a gente precisa acrescentar o direito coletivo, fazê-lo crescer. Nós temos essa oportunidade agora com o código comercial, vamos ver o quanto nós podemos colocar lá dentro, como emenda. Esse é um desafio, sempre tem desafios pela frente, sempre tenho mais o que fazer. Tenho participado disso, vou continuar participando.
P1 – Qual o nome do sindicato?
R – É o Sindicato do Comércio Varejista de Carnes Frescas do Estado de São Paulo.
P1 – Certo. O senhor entrou lá como sócio, como foi? Foi crescendo lá dentro?
R – Ah, como sócio e então em 80 eu me candidatei a presidente, montei uma chapa. Mandei a mensagem da micro e pequena empresa para os açougueiros e a chapa foi vencedora. Daí pra cá já teve duas ou três chapas que montaram, mas propostas que não batiam com o açougueiro e me fizeram ficar até agora. Embora eu reconheça que está na hora de eu tomar o meu chazinho em casa, né? Mas tudo bem.
P1 – O senhor comentou, até antes de começar a entrevista aqui com a gente, a questão do açougue modelo. O que é esse açougue modelo? É um ideal de implementação, como é que é?
R – Há uma feira que se faz, de dois em dois anos, chamada Tecnocarnes. Já passaram mais de dez anos e a gente sempre faz um estande lá com o açougue modelo e damos cursos. Cursos de higiene sanitária, mostrando, por exemplo... O último agora, o último lá nós fizemos um curso de corte de suínos, já que nós estávamos falando. O sujeito fez 94 cortes do suíno, dentro do suíno 94 cortes diferentes. Por quê? Porque traz praticidade, o que é mais próprio pra isso, o que é mais próprio praquilo. Às vezes a gente não sabe. Uma das coisas importantes de um açougue é, por exemplo... Aqui temos uma futura dona de casa, né? (risos) Ela não sabe, se entrar dentro de um açougue não vai saber o que fazer. Qual a importância? Ela diz: “Olha, estou com vontade de comer, sei lá, um medalhão. Como é que eu faço? Qual a carne mais própria?” O açougueiro vai dizer: “Olha, você vai levar esta aqui, desta maneira. Se quiser mais temperada vai levar mais temperada. Você chega lá, põe no micro-ondas, tá bom?” Ou então qualquer coisa assim. Ele tem a obrigação de orientar porque você não tem mais tempo, a mulher que trabalha fora, ela não tem mais tempo pra fazer isso. Então, como é que a gente faz isso? Treinando, a gente faz cursos. A gente já fez esse curso em parceria com o SEBRAE, em parceria com o SENAC, tem feito esses cursos aí. E depois a gente tenta reproduzir, deixa os anuários aí e tenta reproduzir no anuário pra chegar a todos a informação do que está acontecendo. Porque a maneira, a responsabilidade... Segurança alimentar hoje é uma coisa fundamental. Segurança alimentar passa pela higiene; responsabilidade e higiene, então você tem que trabalhar isso daí. Obviamente com respeito ao consumidor, essa coisa toda. Isso tem que ser o tempo todo trabalhado e é isso que a gente faz. Então a gente faz o açougue modelo, quer dizer, alguns equipamentos modernos que estão trabalhando. Hoje, por exemplo, tem uma coisa que chama forno combinado, em que você põe o frango pra assar e ele não perde os sucos dele, você mantém todos os sucos e assa bonito por igual. Não adianta eu por mais aquela gaiolinha que fica lá tirando, perdendo os sucos, essas coisas, quando você tem hoje um recurso tecnológico que te dá... Então você dá a receita de equipamentos modernos pra colocar lá: “Olha, esses equipamentos estão sendo usados hoje, etc.” Vamos, às vezes, com empresas... Financiamento, orientador, como conseguir financiamentos pra quem quiser. Esse tipo de orientação. Então o açougue modelo tem esse objetivo de você introduzir, atualizar o setor, e depois reproduzir isso em anuário ou em revista, pra chegar aos outros.
P1 – E, falando de atualização do setor, o sindicato também participa de feiras fora do país? Como é?
R – Fora do país, na verdade, eu participei, presidi o Conselho Nacional de Pecuária de Corte. Como é uma entidade nacional eu representei o Brasil em vários países da América do Sul e até viajei pra França, Holanda e outros países também; pra algumas coisas eu me deslocava. Aí aproveito também pra me atualizar com questões ligadas ao varejo, porque até no Conselho Nacional da Pecuária de Corte congregaram os três setores: a pecuária, que é a produção, a indústria, os frigoríficos e o varejo, num todo. Então era realmente... Foi um conceito que nós introduzimos em 81 já, mas só fomos implantar em 83, se não me engano, o conceito de cadeia produtiva. Pra você ter o atendimento aqui na ponta do açougue adequado tem que ter a garantia do animal que não foi engordado com hormônios de crescimento, que não tenha agrotóxicos no pasto, que o transporte tenha sido adequado. O abate tem que ser o chamado abate humanitário, tem que ter sensibilizado o animal para o animal não sofrer, o animal descansar, fazer tudo. Então é uma série de regras. O frio tem que ser um frio adequado, o frio mal aplicado pode contrair os nervos e aí enrijece a carne; o frio bem aplicado, ao contrário, distende, você tem uma carne sem prejuízo nenhum, sem nada, tem uma carne macia. São essas coisas aí que você não pode pensar apenas naquele bife cortado no balcão, você tem que olhar o setor como um todo. Eu presidi isso durante alguns anos também, com esse compromisso. Aí sim a gente andou pelo mundo afora um pouco e percorreu esse Brasil afora também.
P1 – Tá certo. Agora, indo um pouco pro lado mais pessoal, diz pra gente como é o seu dia-dia hoje. Quando o senhor acorda o senhor vai pra onde? Como é que é?
R – Bom, eu tenho alguns vícios, né? Primeiro: se eu não ler todo dia alguma coisa e não escrever todo dia alguma coisa eu não me sinto bem comigo mesmo. Essa hora em que eu vim aqui me fez falta pra um pedaço em que eu gosto de escrever. Eu tenho lá, manuscritas, mais de 3 mil páginas, viu? Eu gosto... Eu tenho... Um dos meus livros de cabeceira, um deles, vocês não vão gostar do que eu vou falar, chama-se Inteligência Superficial. Ele questiona o uso abusivo de computador, porque a informação chega toda fragmentada, você não processa. Então eu me sinto na responsabilidade... Tem que sobrar alguém do outro lado pra processar as coisas, então eu fico, realmente eu não gosto de ficar digitando, eu tenho sempre a minha secretária pra digitar o que tem. Não gosto de digitar, tudo escrito meu é manual, o meu pensamento caminha com o manual. Então é um exercício esse lado. Obviamente tomo café como todo mundo, almoço como todo mundo almoça. Gosto de tomar um uisquezinho, como todo mundo... Não, aí já não é todo mundo, mas eu gosto de tomar meu uisquezinho (risos). Aí vem, entre essas coisas, às vezes tem que ir na fazenda, porque hoje eu acabei com o varejo, tô com 73 anos e era hora de parar com a demanda de varejo que é muito cansativa. Tem a fazenda, vou na fazenda, tenho gado de corte lá; vou na fazenda quando preciso ir. Tenho as reuniões, participo de uma fundação que é a FUNDEPAG, de desenvolvimento e pesquisa, do Conselho do SESC. Sou vice-presidente da Federação do Comércio, presido o Conselho Arbitral da Federação do Comércio, que os conflitos de 152 sindicatos vão todos parar lá no meu conselho que eu presido, que é o Conselho Arbitral. Arbitrar isso aí não é fácil. Então eu tenho ocupação... Às vezes falam: “Bom, mas o sujeito com mais idade precisa ocupar-se.” Se for por falta de ocupação eu não vou envelhecer nunca (risos). Eu continuo ocupado. Eu só brigo quando essas coisas tomam o meu pedaço de leitura e do meu pedaço que eu preciso pra me dedicar a escrever alguma coisa.
P1 – Esses seus escritos são todos relacionados ao trabalho? O senhor gosta de escrever alguma outra coisa?
R – Não, na verdade eu tenho uma visão muito crítica das coisas. Por exemplo, agora, eu pego um tema, é um exercício mental: “Dilma falou que os bancos tem uma lógica perversa.”. Então eu fui pesquisar essa lógica perversa, até porque o Fernando Henrique... Sabe que eu também fui aluno do Fernando Henrique e do Celso Furtado, viu? Lamentavelmente do Fernando Henrique, muito bem do Celso Furtado, viu? “O Fernando Henrique falou que tem que tomar cuidado com isto daí.” A gente sabe a importância que tem o sistema financeiro. Agora, uma coisa é inegável: existem os balanços que mostram a lucratividade que está por aí, quer dizer, negar esse... Então eu vejo lá o Maílson da Nóbrega lá: “Coitados, os banquinhos, não sei o que.” Mas espera um pouquinho, coitados onde? Olha o balanço! Então. Ninguém fala dos balanços. É interessante que escondem os balanços: “Não, tem essa dificuldade, tem inadimplência, tem não sei o que. Por isso que tem que ser juros...” E falam dessa lógica perversa. Eu vou pesquisar, né, então eu comecei lá. Em 1912 já tinha... Aliás, fui pesquisar o que que se falava dos bancos. Eu tenho um livro que vocês deveriam ler, se não leram, “A História da Riqueza do Homem”, Do... Do... Escapou o nome agora. É a “História da Riqueza do Homem”. É uma visão muito crítica da coisa, você tem dados. Esse livro foi escrito em 1936, ou 37, alguma coisa assim, já tem mais de 50 reedições, mas você tem a pesquisa porque ele pega fatos, tudo documentado, etc. Então o problema do estado é o seguinte: tá na raiz, tá na essência, está na lógica do sistema, certo? Então eu vou lá, o que que eu faço? Começo a desenvolver pesquisa, pá pá pá pá pá, faço. Eu tenho correspondência com dois escritores portugueses, né, um já escreveu mais de trinta livros, o outro está no quarto, quinto livro aí. Então a gente quebra o pau. Isso é ótimo, viu, porque discorda, discorda, a gente dá uma quebrada de pau, é uma maravilha. Assim, isso eu acho que assim eu vou ocupando. E tenho uma ocupação muito grande com a questão social. Acho que essa vocação... Eu sempre... O meu ego é muito individualista, mas a minha razão é coletiva, então eu tenho aqui a minha luta interna, eu ponho a minha razão para funcionar e pegar e puxar as rédeas da minha éguinha. Porque o ego da gente é terrível, então eu tenho que por a razão: “Não, não é nada disso, isso tem que estar...” E eu faço tudo que é possível dentro do ponto de vista coletivo, por isso que eu me dou bem no sindicato, na Federação Nacional do Comércio, no SESC como conselheiro. São entidades que todas elas têm um compromisso com o social, com a coletividade.
P1 – Certo. Depois que o senhor veio para o Brasil o senhor chegou a voltar pra Portugal? Visitar a família nos Açores?
R – Sim, eu volto algumas vezes. Inclusive os meus 70 anos eu fui fazer lá, juntos cinquenta e poucas pessoas da família, 53 pessoas da família. E ficaram alguns de fora ainda, viu? Foi bom, eu gosto de voltar lá. É interessante, eu tenho uma paixão, eu me apaixonei pelo Brasil antes de chegar aqui. É interessante que eu brinco com os brasileiros, quando eu escuto um brasileiro lá fora falar: “Aqui não é o Brasil, aqui não tem jeitinho.” Esse jeitinho tem em todo lugar. Essas são as minhas discussões. Vocês já pensaram nisso? Eu ter essa paixão, de gostar, de sentir bem? Eu me sinto brasileiro, é uma escolha; eu não nasci, eu escolhi, então eu sou por escolha, me sinto muito bem nisso daí, nessa situação. Mas você guarda, o lugar em que você nasceu você tem um carinho guardado pra ele também. Não tem aquilo que a pessoa diz: “Não, eu gosto mais...” A menina que gosta de mais de um rapaz, ou o rapaz que gosta de mais de uma menina. É possível a gente não gostar de um só, é possível isso daí, não é mesmo? Bom, isso eu não sei, vocês não vão falar nada. O depoimento só é meu, não é de vocês, né? (risos)
P1 – O senhor é casado? Tem filhos?
R – Eu tenho do primeiro casamento dois filhos, do segundo casamento uma filha e do terceiro nós temos aí... minha esposa e eu não temos filhos, ela é desembargadora da área do Direito. Estamos bem porque a gente fez um pacto: ela mora no seu apartamento e eu moro no meu, nós nos encontramos pra namorar, então estamos sempre numa alegria só. Dificilmente brigamos. Já vai pra quase um quarto de século que está assim, foi a única maneira. Essa eu recomendo, viu? No começo você sente um pouco de solidão, tal, sozinho, mas depois que você acostuma você não quer mais ninguém roncando ao lado teu, no ouvido (risos).
P1 – Algum dos seus filhos seguiu a área do comércio? O senhor indicaria pra eles ser um comerciante?
R – Não, eu nunca dei palpite sobre eles. Um é engenheiro, outro é professor e outra é advogada. Cada um no seu lugar distinto, cuidam das suas vidas próprias. Primeiro porque também eu não creio que... Eu acho que a pessoa tem que saber o que que ela gosta mais. Trabalhar com aquilo que você gosta, o trabalho é uma coisa boa; se você trabalhar com aquilo que não gosta, aí torna-se pesado o trabalho. Então eu nunca interferi, nunca dei palpite nisso daí. Dei meu apoio a todos, eles faziam a escolha e eu dei o apoio que poderia dar. Ponto. É o que eu posso fazer.
P1 – E o senhor tirou alguma lição do comércio?
R – Ah, lição eu tiro todos os dias, né? Assim, de memória, uma grande lição do comércio? Olha, se é que se pode ser uma lição, eu acho que você, o sistema, nós vivemos em um sistema capitalista, o objetivo é o lucro. Não há como ter comércio sem ter lucro, mas se você não tiver um limite na sua ambição você vai ficar a vida inteira atrás do lucro e não vai ser mais nada. Eu acho que se tem alguma lição que eu posso tirar disso daí... Eu acho que é bom você trabalhar no comércio pra conseguir a sua independência econômica, mas você tem que pegar e se integrar com a sociedade, trabalhar pra sociedade. Até pra devolver um pouco aquilo que a sociedade também te deu, porque sempre que a gente tem alguma coisa a mais, ninguém gosta de falar isso, mas sempre que você tem alguma coisa a mais é mais-valia, isto é, é apropriação do trabalho dos outros. Só que você pode fazer isso legalmente, no comércio você faz isso legalmente. Isso você pode apagar, porque se você puser isso aí ninguém vai gostar. Mas você faz isso legalmente. Por quê? Porque as regras te deram oportunidade de você maximizar o teu lucro. E se você está maximizando o seu lucro você está tirando alguma coisa do bolso de alguém. Então, eu chegar e dizer: “Tudo isso é fruto do meu trabalho.” É, é fruto do meu trabalho, mas tem muito do trabalho dos outros que veio através do meu trabalho. Só que essa lição, se você puser não tem problema nenhum, mas ninguém vai gostar dela, viu? Todo mundo se orgulha de dizer: “Isso é produto do meu trabalho, é o suor do meu rosto.” Como se sozinho ele conseguisse fazer tudo isso. Mas isso é uma opinião minha pessoal, eu estou aqui pra dar a minha opinião pessoal e não outra, não me importa que agrade ou não agrade aos outros. Eu preciso estar satisfeito comigo mesmo, com a minha consciência. E se ela me dita desse jeito eu vou seguir nessa trilha.
P1 – Certo. Senhor Manuel, o senhor gosta de fazer compras?
R – Eu... Fazer compras... Olha, ir a Shopping Center pra mim é obrigação, só quando tem... E quando eu vou dá a impressão de... Um dia eu fui aí no Shopping Center, às vezes: “Olha, essa cara gosta de fazer compras.”, porque eu compro calça, camisa, não sei o que mais, pra dez anos, viu? Eu não gosto muito de ir lá (risos). Então, depende da ideia que você faz, se você for olhar, às vezes você precisa olhar o todo, viu? Agora, compras das coisas necessárias, do dia-dia, tudo lá... Eu sou uma pessoa que compra o necessário, aquilo que eu preciso. Aquilo que não é preciso eu não faço questão de comprar. Eu não acho ruim nem bom, é necessário. Ponto, acabou. Não sou aquela pessoa que faz compensação... Não sou compulsivo nas compras, não, nada de compulsivo, mas também não sou esse sujeito que lamenta o que gastou. Comprou porque era necessário? Ponto, acabou.
P1 – E o senhor é um grande consumidor de carne ou não?
R – Eu gosto de carne sim, não sou um grande consumidor. Eu gosto de peixe, até porque eu nasci numa ilha. Tenho o hábito de peixe e a gente come peixe todo dia lá na ilha. E o peixe lá é muito saboroso. Quando eu volto lá, meu resgate é peixe. Então eu gosto de peixe, gosto da carne. Eu tenho preguiça às vezes é de comer salada, viu? Eu como salada porque é pra fazer o equilíbrio alimentar, não sei se acontece com os outros, mas...
P1 – E tem algum prato com carne que seja o seu preferido? Algum corte, alguma coisa assim?
R – Tem uma carne que é da minha ilha, viu, é feita lá, chama-se alcatra. Vou dizer como se faz, é uma boa receita, viu? Eu faço, viu? Você pega primeiro uma panela de barro; panela de barro não pode ser nova, se ela for nova você tem que trabalhá-la, cozinhá-la um pouco com algum pouco de gordura, alguma coisa, pra sair aquele gosto do barro. Então, panela de barro. Eu passo um pouco de manteiga no fundo, ponho uma camada de cebola, um ossobuco, que é o músculo com tutano e uma posta de carne a volta. Um pouquinho de bacon, um pouquinho de chouriço, a gente chama de chouriço a linguiça defumada, né? Depois outra camada de cebola, mais um pouquinho de alho, uma daquelas baguinhas de alho, você põe uma daquelas de alho. Você faz e uma última camada de cebola. A carne que você põe lá você passa manteiga nela, coloca ela untada de manteiga, toda untada de manteiga. Sal necessário a gosto. Depois você cobre 2 por 1, 2 de água pra 1 de vinho e põe pra assar no forno. É bom (risos). Olha só! Você ganhou uma receita açoriana.
P1 – Senhor Manuel, tem alguma coisa que a gente não perguntou mas que o senhor gostaria de falar? O que o senhor acha que a gente esqueceu de perguntar?
R – Bom, então, vou fazer uma exaltação aos Açores, já que estamos aqui. Sabe como Porto Alegre foi fundado? Ele era antes Porto dos Casais, nos idos de 1750. Eram casais açorianos que foram pra lá, fixaram-se e ao fixar-se... Na verdade, o Bartolomeu de Gusmão, aquele da caçarola, o irmão dele era ministro, ele voltou a Portugal e disse: “Olha, lá os espanhóis estão querendo tomar conta daquilo, pode mandar alguém pra lá.”, aí disse: “Bom, o pessoal fixado à terra, que trabalha a terra são os açorianos.” Mandou os açorianos pra lá. Isso está na trilogia O Tempo e o Vento, do Érico Veríssimo. Muito bem descrito, maravilhosamente. E eles foram também pra Santa Catarina, Florianópolis. Sabe como é que Florianópolis se chama? Eles tem lá, tem um livro até lá que se chama... porque os Açores é um arquipélago de nove ilhas, né, eles dizem que são a décima ilha. Então você vê que nós temos uma boa relação aqui com os açorianos. A mãe de Machado de Assis era açoriana. Getúlio Vargas tinha ascendência açoriana. Tancredo Neves tinha ascendência açoriana. Então os açorianos estão bem na fita aqui no Brasil (risos).
P1 – Tá certo, senhor Manuel. Em nome do SESC e do Museu da Pessoa eu agradeço muito a sua participação.
R – Eu gostei, a entrevista com vocês foi muito simpática, descontraída. Só lamento não ter trazido coisas mais criativas, mais importantes, tá ok?
P1 – Imagina, foi ótima.
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