Projeto: Memórias das Comunidades de Paracatu
Entrevista de Ildeu de Araújo Caldas
Entrevistado por Nataniel Torres
Paracatu, 10 de setembro de 2022
Entrevista número PCSH_HV1303
Revisado por Nataniel Torres
P/1 - Pronto, seu Ildeu. Agora a gente começa oficial. Então vou pedir para a gente começar, para o senhor dizer por gentileza seu nome completo, sua data de nascimento e o local onde o senhor nasceu. Então primeiro seu nome completo.
R - Ildeu de Araújo Calda.
P/1 - Aí sua data de nascimento.
R - Nasci em 2 de abril de 1950.
P/1 - E qual o seu local de nascimento?
R - Uai, eu nasci na época aqui mesmo, na comunidade, né?
P/1 - Aí o senhor tinha me contado que o senhor nasceu aqui mesmo?
R - Aqui mesmo.
P/1 - Aqui na Fazenda Santa Rita?
R - Isso.
P/1 - E o senhor tinha me falado que a casa que o senhor nasceu... não a casa, mas o lugar onde o senhor nasceu ainda tá lá até hoje?
R - Ainda tá ainda.
P/1 - Que lá é a casa?
R - Da minha mãe.
P/1 - E aí o senhor nasceu aqui na comunidade, ficou sempre aqui na comunidade, seu Ildeu?
R - A vida toda, né, aqui.
P/1 - O Senhor nunca chegou a sair, a morar fora por um tempo?
R - Nem... nem um dia assim, pra morar não, né? De vez em quando sai assim para dar um passeio aqui, mas eu volto para cá de novo. Trabalho toda a vida foi aqui, né, nunca trabalhei fora. Toda a vida trabalhei aqui na chácara mesmo, para mim mesmo, nunca trabalhei para outras pessoas, né?
P/1 - E aí, como é que era a chácara antigamente, na sua época da infância? Como é que era a fazenda aqui, Santa Rita? O que o senhor lembra. se o senhor puxar pela memória, como é que o senhor lembra da fazenda na infância?
R - De primeira, era com muita dificuldade né em tudo, para você... dificuldade de tecnologia, de financeira, né? Era uma vida assim, como fiz, fala, sofrido, mas às vezes até nem era, era medo da época né, que a gente vivia aquela época, que segundo o que meus pais contavam, de...
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Entrevista de Ildeu de Araújo Caldas
Entrevistado por Nataniel Torres
Paracatu, 10 de setembro de 2022
Entrevista número PCSH_HV1303
Revisado por Nataniel Torres
P/1 - Pronto, seu Ildeu. Agora a gente começa oficial. Então vou pedir para a gente começar, para o senhor dizer por gentileza seu nome completo, sua data de nascimento e o local onde o senhor nasceu. Então primeiro seu nome completo.
R - Ildeu de Araújo Calda.
P/1 - Aí sua data de nascimento.
R - Nasci em 2 de abril de 1950.
P/1 - E qual o seu local de nascimento?
R - Uai, eu nasci na época aqui mesmo, na comunidade, né?
P/1 - Aí o senhor tinha me contado que o senhor nasceu aqui mesmo?
R - Aqui mesmo.
P/1 - Aqui na Fazenda Santa Rita?
R - Isso.
P/1 - E o senhor tinha me falado que a casa que o senhor nasceu... não a casa, mas o lugar onde o senhor nasceu ainda tá lá até hoje?
R - Ainda tá ainda.
P/1 - Que lá é a casa?
R - Da minha mãe.
P/1 - E aí o senhor nasceu aqui na comunidade, ficou sempre aqui na comunidade, seu Ildeu?
R - A vida toda, né, aqui.
P/1 - O Senhor nunca chegou a sair, a morar fora por um tempo?
R - Nem... nem um dia assim, pra morar não, né? De vez em quando sai assim para dar um passeio aqui, mas eu volto para cá de novo. Trabalho toda a vida foi aqui, né, nunca trabalhei fora. Toda a vida trabalhei aqui na chácara mesmo, para mim mesmo, nunca trabalhei para outras pessoas, né?
P/1 - E aí, como é que era a chácara antigamente, na sua época da infância? Como é que era a fazenda aqui, Santa Rita? O que o senhor lembra. se o senhor puxar pela memória, como é que o senhor lembra da fazenda na infância?
R - De primeira, era com muita dificuldade né em tudo, para você... dificuldade de tecnologia, de financeira, né? Era uma vida assim, como fiz, fala, sofrido, mas às vezes até nem era, era medo da época né, que a gente vivia aquela época, que segundo o que meus pais contavam, de primeiro, era bem pior ainda né, passava... você podia dificuldade até de alimento. Não passava fome, mas passava dificuldade ali até de alimentação né? Tinha que às vezes comer uma coisa só ou, não era igual hoje né, que hoje você... igual os meninos hoje, ele escolhe o que quer comer né? De primeiro você comia o que tava pronto né? Se não quisesse comer, ficava né?
P/1 - E deixa eu perguntar então sobre os seus pais seu Ildeu. Qual o nome da sua mãe?
R - É Abadia Vieira Calda.
P/1 - O senhor chegou a conhecer seus avós por parte de mãe?
R - De mãe, conheci.
P/1 - Sim? Qual, o senhor lembra?
R - A avó, né?
P/1 - É, os avós. O avô e a avó.
R - O avô eu não conheci não. Agora, por parte de mãe era Tomás Gomes de Melo.
P/1 - O senhor chegou a conhecer ele?
R - Conheci.
P/1 - Como é que ele era? Ele era daqui da região também?
R - Eles falam que a avó minha que não era bem daqui né, mas veio para cá e ficou, casou, tudo aqui né? Os avós né?
P/1 - Mas aí a sua avó falava que ela era de onde?
R - Oh isso aí eu não tenho memória assim quando ela, da onde que ela era, né?
P/1 - Mas de qualquer forma, ela veio para cá, casou com seu avô e ficou aqui na região?
R - Ficou.
P/1 - E seu avô fazia o que aqui na região?
R - Uai, toda vida... acho que eu não lembro também dele, porque na época, quando eu nasci, ele já tinha falecido muito tempo, né? Aí... mas ele vivia assim de plantar, rocinha, criar um gadinho né? Ia levando a vida de agricultor mesmo, né?
P/1 - Mas sempre aqui na região da Santa Rita?
R - Na região.
P/1 - E a família do seu pai? Qual o nome do seu pai?
R - O meu pai era... a família?
P/1 - É. O nome do seu pai primeiro.
R - Franklin de Araújo Calda. Ele não era daqui não, ele disse que era lá do... de uma comunidade aqui perto né? Aí ele veio para cá, minha avó criou... veio, a mãe dele morreu, diz que morreu, ele ficou órfão, né? Aí minha avó criou ele e aí ele foi ficando, sobrevivendo, aí casou com minha mãe.
P/1 - E essa família que o senhor falou que era de outro lugar, o senhor sabe o que que eles faziam lá nesse outro lugar? Também era fazenda?
R - Acho que era fazenda, né? Era fazenda. Porque primeiro emprego, essas coisas assim, para pessoa sair trabalhando né, era difícil demais da pessoa arrumar a colocação, tudo, ficava muito tempo a pessoa assim. Então a pessoa morava mais é na roça mesmo e aí ia plantar roça, ia mexer para sobreviver, né?
P/1 - E seu pai e sua mãe, eles chegaram a contar como eles se conheceram, seu Ildeu, como é que aconteceu deles se encontrarem?
R - Isso aí eu não sei, eu não tenho muita...
P/1 - Não, não tem problema. Mas enfim, aí eles casaram, e aí eles já montaram essa fazenda aqui, essa Santa Rita?
R - Isso.
P/1 - Tá. Aí quando eles montaram, eles começaram a trabalhar com roça do quê?
R - Ah, plantava milho, feijão... arroz, feijão né? E nós tinha muito pouca assim, que de primeiro não tinha cenoura, beterraba. Essa coisa de hortaliça era muito, não tinha nem, esse expandimento de semente pra pessoa plantar. Eu vim conhecer cenoura, essas coisas mesmo, eu já tava grande né?
P/1 - E os seus pais, eles plantavam para vender ou eles plantavam para vocês mesmo?
R - Ah, plantava... quando sobrava, vendia né? Fazia farinha, essas coisas, vendia né? Rapadura, que era o forte dele, também né? Fazia farinha, rapadura. E aí nós ficamos com a profissão, até hoje faz rapadura, faz... farinha não. Faz rapadura, tudo.
P/1 - E quando o senhor era pequeno, tinha que ajudar nas coisas também? Conta essa história, como é que era.
R - Aí eu fiquei órfão de pai, né, eu tinha quinze anos, e nós éramos cinco irmãos. Aí eu tinha que me virar para, minha mãe trabalhando, né, pôs nós pra trabalhar, as irmãs, e aí a gente tinha que se virar, capinar, roçar. Fazia de tudo na roça, fazia farinha, moer cana. E aí eu fiquei assim, como, peguei a responsabilidade como fosse casado já né, para ajudar minha mãe criar os irmãos, os filhos.
P/1 - Mas antes de chegar no falecimento do pai, quando vocês eram mais criancinha, o senhor ajudava também?
R - Ajudava.
P/1 - Vocês faziam o que quando tinha que ajudar?
R - Uai, era de, por exemplo, fazer farinha, tinha que fazer aquelas coisas que era lavar as mandioca, era moer cana, você tinha que _______ cavalo, que eles falavam né, tinha que correr atrás dos cavalos para poder fazer a garapa né, para fazer a rapadura. Era isso...
P/1 - O senhor era pequenininho nessa...
R - Pequeno. Era.
P/1 - E para estudar, como é que fazia, seu Ildeu?
R - Uai, tem os horários né, do... o horário de escola. Você ia para escola, chegava, você tinha as obrigações para fazer né, tinha que cuidar de porco, das galinhas.
P/1 - E o senhor tinha contado que... tinha escola aqui na comunidade? Como é que era essa escola?
R - Tinha uma escola aqui a mais ou menos... deve dar uns quatro quilômetros mais ou menos.
P/1 - Que era a escola daqui da comunidade de Santa Rita?
R - Tinha uma escola na casa do professor. Nem Grupo não tinha né? Ela montou a sala lá e aí eu estudei lá até o terceiro ano.
P/1 - O senhor lembra do nome dessa professora, seu Ildeu?
R - É Angélica Fonseca Pinto.
P/1 - Aí o senhor ia lá na casa dela para ter aula com ela nesse Grupo que ela montou lá.
R - É. Era pra comunidade né? Ela lecionava para todo mundo que tivesse na fase de escola, ela...
P/1 - E ela dava aula de quê, seu Ildeu?
R - Você fala...
P/1 - Que matéria?
R - Ah, toda matéria. Não era igual hoje que cada professor é uma matéria, não. Toda matéria, era matemática, era português, era tudo, né, que...
P/1 - Ela era uma professora que dava aula de tudo pra todo mundo?
R - É. Pois é...
P/1 - Tinha muita criança na época, seu Ildeu?
R - Devia ter umas 30, 40, por aí.
P/1 - E era tudo...
R - Da comunidade.
P/1 - E como é que as crianças chegavam lá na escola?
R - A pé, ué. A pé. (risos)
P/1 - E o senhor?
R - Também, a pé. Não tinha condição, nem nada não, você tinha que... vinha gente até de, pelo menos, desde quase 6 Km, morava lá em cimão, lá, vinha pra estudar, né?
P/1 - Tudo vindo a pé pra escola da dona Angélica.
R - Da dona Angélica.
P/1 - E como é que eram as aulas, como é que ela dava essas aulas? Porque o Grupo Escolar, ela montou na casa dela, não é isso?
R - Tinha uma sala né, fez uma sala de aula.
P/1 - E aí, como é que ela dava aula, como é que ela fazia as coisas na escola? Que o senhor lembra.
R - Você fala pra... uai, passava os exercícios no quadro né e aí você copiava o que era, aí ela explicava as matérias, tudo, né, e depois ia corrigindo caderno por caderno, né?
P/1 - Ela ia na mesa de cada um pra corrigir?
R - É. Não! Você levava lá pra ela pra ela corrigir, né?
P/1 - E o senhor ia bem na escola, como é que era?
R - Uai, graças a Deus ia. (risos)
P/1 - O senhor gostava de estudar na época?
R - Ah, eu gostava porque... meio lá, meio cá. (risos) Menino não gosta de estudar, né?
P/1 - Mas o que que o senhor não gostava na época?
R - Você fala das matérias?
P/1 - É, ou da escola, ou de estudar.
R - Uai, eu até, praticamente eu gostava assim de tudo, porque naquela época as matérias tudo era, você tinha que saber tabuada, tinha que saber os exercícios, né, históricos. Aí punha para fazer, por exemplo, hoje já dava o dever, né? Hoje você passava as contas para você fazer, resolver em casa, sozinho né? E aí você tinha que resolver né? E não mais decorado, tabuada você tinha que ir lá na frente, por isso, chamava um por um né? Por exemplo, perguntava: “4 vezes 4 é quanto?”, aí você tem que responder né? Aí de menos: “oito tira seis, quanto fica?”. Aí que a tabuada, não sei se você conhece, conhece né? Que até hoje eu acho que ainda tem né? Aí veio as perguntas que só que você tem que ficar sabendo oral, né, porque perguntava assim. E saber tudo, porque não sabia qual que você ia cair né?
P/1 - E quando não sabia, como é que era?
R - Aí agora, tinha vezes que dava castigo. Punha o menino pra dar bolo no outro, né, que fala bolo aquilo com uma roda assim de tábua, né, tipo de um... aí pegava a palma da mão e PÁ!
P/1 - Mas uma criança que dava no...
R - É! E se desse devagarinho, por exemplo, se eu ficasse com dó de você, ela falava “agora você que vai tomar o bolo”.
P/1 - A pessoa que tava dando, a criança que estava dando?
R - É, porque às vezes você chegava no menino, que você ficava com dó de bater mais ou menos, né, ou menos. Se você encostasse, só encostasse assim: “não, agora você que vai tomar o bolo, porque você tá com dó de dar o bolo porque não soube…”
P/1 - O senhor já bateu ou já levou de alguém nessa época da escola que o senhor...
R - Já. Já, uai. (risos)
P/1 - E como é que era, seu Ildeu?
R - Uai, você tem que, por exemplo, põe a mão assim e vem com um bolo, né, que era uma roda assim, tipo de uma colher de pau.
P/1 - Uma palmatória, né?
R - É, uma palmatória. PÁ! Dava pra arder, mas não é tanto não. (risos) Agora, se a pessoa for mal, né, aí...
P/1 - Mas o senhor chegou já a tomar palmatória alguma vez?
R - Eu acho que já. Eu não lembro bem não, mas já acho que eu tomei.
P/1 - E aí o senhor fala então que ia a pé para a escola. Na hora de voltar, quando terminava a aula, também voltava a pé para casa?
R - Voltava a pé.
P/1 - E aí, quando chegava em casa, o senhor fazia o quê?
R - E a escola era mais ou menos você ia agora... não era igual hoje que é 4 horas só não, você ia, começava mais ou menos 12 horas, 11:30, 12 horas e ia até 5 horas da tarde.
P/1 - Ficava o dia inteiro lá na escola?
R - Isso. Não tinha merenda também não. Se você não levasse, você ficava com fome né?
P/1 - E quando tinha criança que às vezes não tinha, aí como é que vocês faziam isso?
R - Uai, isso aí quando, geralmente cada um levava o seu né, aquela que não tinha, às vezes as pessoas davam um pedacinho e tal.
P/1 - E o que que vocês levavam de merenda nessa época, quando tinha?
R - Ah, era rapadura, queijo né? Era mais ou menos isso. Biscoito era raridade né, falava biscoito né, pão de queijo, essas coisas, pão não existia, só na cidade né? Você não tinha esse negócio de padaria, de você comprar para poder deixar em casa.
P/1 - Então quando terminava a aula, vocês tinham que voltar para casa. E quando vocês voltavam para casa, aí fazia o que quando chegava em casa? Porque vocês voltavam a pé, né?
R - É, a pé. Chegava, aí tinha que fazer alguma coisa que a mãe mandava fazer né? E aí deitava cedo também né? Tinha que fazer o dever também né, não tinha luz elétrica.
P/1 - A fazenda não tinha luz elétrica nessa época?
R - Não.
P/1 - E aí vocês faziam como?
R - Lamparina, né? Nem lampião não existia. Eu deitada era 8 horas, 8:30, quando muito né?
P/1 - Deitava cedo porque no outro dia...
R - É. E também de primeiro não tinha nem rádio, que nem eu falei com você, não tinha televisão né? Aí dava a noite, aí sempre a pessoa contava aqueles causos né, aqueles causos que pai e mãe contava. Às vezes ia na casa do vizinho também, chegava lá contava aqueles causos de, né, aqueles causos antigos né, de assombração. (risos)
P/1 - E é justamente isso que eu ia perguntar: as pessoas se reuniam para contar história às vezes né?
R - É, se reunia.
P/1 - E aí quando se reunia para contar história, que história que surgia? O senhor falou assombração, causo. Que histórias eram essas? Como era isso?
R - Ah, isso aí contava várias histórias. A pessoa contava história que aparecia assombração, que viu tal coisa né? Contava história assim de piada também né, piadinha né?
P/1 - E aí quando a pessoa tava contando, a pessoa também dava atenção, ficava ali todo mundo reunido né? Não era igual hoje que hoje, por exemplo, eu comparo assim, você vai numa festa, você não conversa quase mais né, por causa do barulho do som e tudo. E de primeiro, quando você ia na festa, numa festa assim, festa tinha quase todo sábado né festinha de aniversário, de pessoa, reunia né? Ali ia contar causo, ia dessa maneira.
P/1 - E dessas histórias, tem alguma que o senhor lembra, alguma que te marcou seu Ildeu? Quando você lembrar assim do passado, fala “Nossa, essa história eu lembro”. Tem alguma que o senhor lembra? Ou de assombração.
R - Ah, de assombração...
P/1 - O senhor era criança, né?
R - Era.
P/1 - E aí, o senhor ficava com medo? Como é que era?
R - Uai, tinha lugar que as pessoas contavam que aparecia coisa, né? A pessoa via.
P/1 - Aparecia coisa? Que coisa?
R - É coisa assim, uma luz, outra hora tipo de um cachorrinho vinha até perto das pessoas, o cachorro desaparecia, quando chegava perto, sumia. Tinha várias histórias. Aqui mesmo, bem ali em cima, o cara da CEMIG... isso aí já foi recente, o cara da CEMIG amigo que veio cá até para poder arrumar um fuzil que tinha desarmado, aí chegou lá... não, tava de noite. Ele veio à noite, disse que veio aquele farolão assim, que falou “vem um carro ali”. Disse que quando foi, ele tirou as vistas um pouquinho assim, o farol foi apagando, apagando, chegou, perdeu, morreu...
P/1 - Mas isso aqui?
R - É. Aqui, bem na comunidade.
P/1 - Mas tinha um farol e depois o farol apagou?
R - É. Aí tem outro caso também na sexta-feira da Paixão, um rapaz morava lá na casinha perto de lá, aí os cachorros danou, latia, disse que parecia que tava batendo nos tambor lá, bem pertinho, sabe? E daquele barulhão, ele saiu lá fora assim, não foi, não era assim medrosa que tava contando, saiu lá fora, escutei, tava batendo lá. No outro dia, não tinha nada lá. É os casos de assombração. (risos)
P/1 - Eita! Mas o senhor já chegou a ver alguma coisa?
R - Não! Não, eu não.
P/1 - Mas é os casos que o povo conta?
R - É.
P/1 - Muito bem. O senhor tinha começado a comentar do rádio, vamos falar sobre o rádio. Porque o senhor tinha me falado que demorou para chegar o rádio aqui. Como é que foi essa história? Porque não tinha nem luz elétrica, como é, o que que aconteceu?
R - O rádio, primeiro, o tio meu né, que era irmão da mãe minha, tinha um rapaz que trabalhava em Brasília, aí trouxe um rádio... veio passear aqui, né? Ele não era daqui da comunidade. Trouxe um rádio semelhante aquele que mostrei a você, Aí trouxe o rádio e falou: “não, vou vender esse rádio para você”, aí ele vendeu o rádio para ele, pra esse tio meu né, aí o tio meu comprou. Aí nós ia, quase todo dia ia para lá para ouvir a Rádio Record, a... Zé Béttio, né? Tinha o outro na Brasil Central de Goiânia, que fazia um programa na Anhanguera, na Rádio Anhanguera, aí nós ia de noite para lá, andava a distância, que é daqui a uns... é bem lá em cima. Nós ia de noite para lá para poder ouvir caipira, né? (risos) E aí eu ficava encantado, falava “eu vou comprar um rádio para mim”, né? Aí eu falei “Ah, eu vou”, mas não tinha condição, aí eu peguei môi uma cana aí, que nem falei com você, né, aí o rapaz comprava rapadura pra fazer pinga, ele vinha com o caminhão pegando o pessoal, aí passou aqui “você não vai lá para poder pegar o cheque?”. Aí eu peguei, eu fui lá, peguei o cheque, eu fui direto pra loja, aí comprei o rádio. Agora, pra trazer o rádio na mão, era longe, né, pra vim a pé. Aí tinha um tio meu que ia de carroça, aí deu, trouxe eu, aí pra mim foi uma festa. O rádio. Cheguei aqui, instalei o rádio e a pilha, né? Não tinha energia, ele era a pilha. Aí instalei o rádio, pus ele aí, pus a antena, que vinha as antenas, de antena com um fio né, que você colocava para dar sinal. Aí todo dia, raiar agora ficou tranquilo. (risos)
P/1 - E chegava a pegar? Colocando essa antena, dava pra chegar rádio aqui?
R - Dava, dava. Anhanguera, Brasil Central, a Record né? A do Rio né? E agora, as rádios do Rio tinham um preconceito danado, porque eu falo de primeiro, no Rio era um preconceito com caipira né, que não rodava música sertaneja né, só música popular, né? Lá no rio era acho que, eu não sei as outras capitais, mas eu acho que era o único estado e capital que tinha esse preconceito com caipira né? E a gente também tinha, o povo da cidade tinha um preconceito com a pessoa da roça, né, que “Ah, aquilo é da roça”, né? Achava que a gente, tinha discriminação, né? Tudo que a pessoa fazia de errado, falava “não, é da roça”, né? Tinha essa discriminação. Então as pessoas moravam na roça e iam na cidade, se eu andasse um atrás do outro, tinha que andar os dois aparelhado, sabe, era da cidade. Se andasse uma atrás do outro assim: “Ah, aquele lá é da roça, parecendo peixe no rio”, era essa maneira que a pessoa tinha esse preconceito. E aí depois que o povo foi conscientizando né, que a pessoa da cidade também não vive sem agricultura, sem a pecuária né? E hoje... e a roça também hoje virou quase cidade né? De primeiro você morava na cidade, você ficava todo empolgado que você tinha luz elétrica, tinha... aliás, nem televisão bem não tinha, que aqui mesmo, aqui na cidade não tinha televisão. Eu lembro quando chegou a televisão aqui em Paracatu.
P/1 - Aí já foi bem depois a TV?
R - Bem depois né? Mas a pessoa só de ter luz elétrica só, já era, já ficava grandioso né?
P/1 - Então, vamos... Só para a gente voltar a parte do rádio, porque essa parte também é bastante interessante. O senhor tinha falado de música: antes do rádio, vocês escutavam música aqui ou como é que era?
R - Escutava.
P/1 - Aí como é que vocês faziam?
R - Aí antes...
P/1 - Antes do rádio?
R - É, antes do rádio. Aí toda vida teve assim, aí eu ficava coisa assim, que é por Deus levar tudo que existe, mesmo que a pessoa que está mais distante, a pessoa um dia eu vi, né? E a pessoa grava. Que de primeiro também tinha sanfona, violão né, aí a pessoa pegava, tinha aqueles que era inteligente para gravar, gravava as músicas para cantar né? Aí cantar, tinhas as músicas que a pessoa gravava. Aí antes do rádio era isso, sanfona, violão; pandeiro também já veio um pouco depois. Aí a pessoa distraia dessa maneira. Aí depois que veio o rádio, aí pegou, vinha uns toca disco né? Aí a pessoa às vezes não tinha condição de levar um sanfoneiro lá “ah não, eu tenho um toca-disco aqui”, mas o problema estava nas pilhas. Tem que comer uma pilha que era 6, 8 pilhas, não dá para rodar a noite né? Aí a pessoa quando ia fazer o aniversário ou a festa, qualquer coisa, ela tinha que ir lá comprar umas 8, 10 pilhas para poder botar no toca-disco para ele rodar, que aí acabando, acabou a festa né?
P/1 - Porque não tinha luz elétrica, então tinha que ser à pilha.
R - Tinha que ser à pilha. E antes desse assim, ia na lagoa também, na lagoa tinha a tal da vitrola, que o povo falava, ela era à corda. Eu não sei nem se já ouviu falar né? Aí você ia lá, torcia, aí nela ia voltando, tipo dum relógio à corda. Você lembra do relógio à corda?
P/1 - Sim.
R - Aí você torcia, torcia, nela ia voltando, nela rodava o disco e saía o som né? Agora, não sei como que produzia era o som né, mas tinha essa vitrola, que a gente ia para lá, lá juntava muita gente no, tipo dum boteco, sabe, que vendia. Ainda tem lá até hoje né, que a pracinha, que a casa de escada.
P/1 - Lá na Lagoa Santo Antônio?
R - É. Aí nós ia para lá e aí tinha pra ouvir música. Nos final de semana tinha muita festa religiosa também né, pessoal juntava muito para ir na festa.
P/1 - E de música... depois que veio o rádio, que o senhor tá contando, o senhor tava contando que tinha música caipira, música sertaneja. E aí, que cantores que eram esses nessa época que o senhor está falando?
R - Ah, na época era Moreno e Moreninho, Tonico e Tinoco né, Zilo e Zalo. Tinha esses mais velho mesmo, né?
P/1 - E aí vocês iam ouvir essas músicas aí.
R - Eu ia.
P/1 - O senhor lembra das músicas dessa época?
R - Ah, lembro. Até hoje eu lembro né, das músicas que passavam né?
P/1 - Então, aí o senhor me contou que, quando tava falando sobre o rádio, que tinha um preconceito com as pessoas que eram caipiras. O senhor sofreu algum tipo de preconceito? O senhor lembra de alguém falar, fazer alguma brincadeira que o senhor não tenha gostado ou apontar o senhor, falar alguma coisa do senhor ser sertanejo? O senhor lembra de alguma coisa?
R - Uai, eu não lembro assim do detalhe comigo mesmo não, mas já vi passar com pessoa assim né? O cara falava indiretamente, né, “ah, fulano é da roça, é roceiro, né?”, isso a pessoa falava muito né?
P/1 - Vai falando de um jeito como se fosse ruim.
R - É, como se fosse ruim. Como se tivesse vindo para mim também né? Então a gente já ficava assim quando ia no hospital mesmo, você era tratado assim com mais grosseria né, com mais... como é que fala assim, tipo que a pessoa era um qualquer né?
P/1 - O senhor percebia isso, que as pessoas da roça eram tratadas diferente.
R - Diferente, é.
P/1 - E quando isso começou a mudar? Que o senhor falou que viu que melhorou um pouco.
R - Não, agora as pessoas, eu acho que a pessoa hoje, com a pessoa ter estudado e tudo né, e foi mudando, vendo que agricultura também faz parte né? É como você... até na cidade também tem os preconceito também né com as pessoas que varria a rua, a pessoa que tava ali trabalhando, a pessoa era discriminado como se não tivesse valor né? E hoje... igual hoje, a pessoa vê que todo mundo tem seu valor né? Eu acho que a pessoa conscientizou muito. Até hoje assim no hospital, em certo lugar que as pessoas que é mais velho, que é funcionário mais velho, ele não trata você igual deveria tratar né, acha que como você tá ali, tá precisando de uma consulta ou de marcar uma consulta, acha que porque você tá necessitado, que você é obrigado a escutar humilhação deles, que eles tão ali, que tão no poder né? O quanto que eles é um funcionário né?
P/1 - Mas o senhor chegou a acontecer alguma coisa assim com o senhor, seu Ildeu? O senhor, por exemplo, foi no hospital ou em algum lugar que o senhor percebeu que a pessoa...
R - Uai, eu tava no hospital mesmo, até na UTI, aí deu aquela crise de vômito em mim né, aí eu fui lá, aí a secretária veio de lá para fazer a limpeza e eu vi ela falou assim baixinho, eu tava consciente né, ela falou assim “mais uma tragédia aqui para mim né?”. Aí eu falei “Ô minha filha, você pede a Deus para não deixar você passar o que eu tô passando aqui ó, deu vomitar no chão para você limpar”. Aí ela pegou “não, seu Ildeu, eu tô aqui é para isso, não sei o que”, aí caiu a ficha né, mas já falou né? Porque você vai vomitar no lugar pra pessoa limpar né, você vai fazer uma necessidade no lugar porque a pessoa, ela tá ali para aquilo. É verdade que não é agradável né ela fazer aquilo, mas já tá ali para aquilo e você também não vai fazer aquilo, você está ali ocupando um lugar porque tem precisão, porque precisa dela fazer né?
P/1 - E ela achou que o senhor não estava escutando.
R - Ela achou que eu não escutei. (risos) Eu acho que quando eu escutei “mais uma tragédia aqui pra mim”, e eu escutei né, eu falei “ai minha filha, pede a Deus pra não deixar você passar o que eu estou passando aqui ó, sujar um lugar pra você limpar”. Aí ela caiu a ficha “não, seu Ildeu, eu tô aqui é para isso, não sei o quê e tal”.
P/1 - Então seu Ildeu, o senhor contou que o senhor tinha outros irmãos, né? Quantos irmãos o senhor teve então?
R - Eu tenho eu, mais um homem né, e mais três mulheres né? Cinco...
P/1 - Três mulheres. São cinco ao todo?
R - Cinco.
P/1 - Tá. Qual os nomes dos seus irmãos, seu Ildeu?
R - É João né, Bernadete, Valdete e Aparecida.
P/1 - E está tudo aqui na comunidade? Como é que eles estão?
R - Não, eu e João e Bernadete mora aqui, né?
P/1 - O João mora aqui do lado do senhor.
R - É.
P/1 - Não é?
R - Agora, Valdete e Aparecida moram lá em Paracatu.
P/1 - E aí vocês tem muita diferença de idade, seu Ildeu?
R - É dois anos um do outro né?
P/1 - Então tinha uma época que todos vocês eram crianças?
R - Todo... era.
P/1 - E aí como é que era essa época que todo mundo era criança aqui na fazenda?
R - Uai, era assim, que de primeira a criação era bem, se você brigasse, você apanhava né? Levava umas (tipoada?). Se você ficasse muito brigão com o irmão, querendo, oportunando demais, você também era castigado né? E aí, Graças a Deus, eu me dava bem até, nunca ficou de mal, nem nada de um do outro. Todo mundo...
P/1 - E vocês tinham tempo de brincar, seu Ildeu?
R - Tinha.
P/1 - Ou não dava tempo? Tinha. Aí vocês brincavam do quê?
R - Uai, eu sempre eu falo, na infância minha, quando era menino ainda, o que a gente brincava era de caminhãozinho, fazendo caminhão, que era raridade né? Caminhão é carro sem andar de carro né? Era uma raridade. Aí você ficava fazendo caminhãozinho de roda de marmelada, de louveira né?
P/1 - E o senhor brincava com os seus irmãos?
R - Irmão, primo, né? Aí juntava tudo para fazer estradinha de poeira, no meio da poeira aí, e brincava.
P/1 - E o senhor falou que trabalhava na roça, que estudava. E como é que tinha tempo de brincar? Como é que vocês faziam?
R - No domingo né, sábado, domingo à tarde né? Mais no domingo. Que... dia santo, que na roça toda vida tem os dias santos né que o pessoal não trabalhava mesmo né? Aí dava dia santo, parava tudo.
P/1 - E aí vinha outras crianças pra brincar com você?
R - Vinha. Aí...
P/1 - Ah, o senhor falou que era seus primos, e tinha outras crianças da região também?
R - Tinha, tinha.
P/1 - E aí vocês se reuniam e brincavam.
R - Ia brinca, tomar banho no rio né, ia para tomar banho dava depois do... lá para 2 horas, tomava banho até... brincando na água, brincando de pique, de...
P/1 - Mas vocês iam com os adultos ou vocês iam sozinhos tomar banho?
R - Só as crianças mesmo né?
P/1 - E dava certo? Não dava perigo?
R - Dava.
P/1 - Nunca deu de ninguém se machucar, alguma coisa?
R - Não.
P/1 - Aí vocês iam tudo nadar lá no rio.
R - É, ia. Ficava lá brincando lá até...
P/1 - E aí o senhor me contou, quando a gente tava falando, sobre os seus pais, que quando o senhor tinha 15 anos o seu pai faleceu, não é isso?
R - Isso.
P/1 - E aí que que aconteceu, seu Ildeu? O que que aconteceu com ele, o que que ele teve?
R - Ah, deu o... na época falaram em derrame né, mas é tipo de, quase de infarto né? Infartar, né? Deu a paralisia, que eles falam né, ele ficou, aí ele ficou mais uns, deve ter ficado mais uns 3 anos.
P/1 - Ele tava aqui na fazenda?
R - Ahn? Tava!
P/1 - Ele estava na fazenda?
R - Estava aqui.
P/1 - E como é que foi isso, cuidar dele, seu Ildeu?
R - Uai, na época, eu levei ele para cidade. Agora eu não tô bem lembrado de que que levou ele, sô. Ah, eu acho que tinha um rapaz que tinha uma picape, caminhonete picape, aí pôs ele, levou para cidade né? Aí ficou lá uns tempos, depois ele veio para cá, depois retornou, adoeceu de novo né, repetiu o derrame né, o AVC. De primeira falavam paralisia, né? Aí ele não aguentou não, foi, morreu. E aí eu tive que assumir, ficar assumindo a casa né?
P/1 - Porque nessa época tinha o hospital aqui na comunidade?
R - Não, não.
P/1 - Não tinha nada?
R - Não. Em Paracatu?
P/1 - Não, aqui na comunidade. Por aqui, aqui perto.
R - Tinha não, era só em Paracatu. E até hoje só tem o posto da Lagoa né aqui. Aqui não tem atendimento nenhum, médico, não.
P/1 - Então se sofrer alguma coisa, precisa correr lá no posto da lagoa.
R - É. Ou então ir lá na cidade né?
P/1 - E o senhor até tinha me contado que como não tinha hospital aqui, o senhor também nasceu em casa, não foi isso?
R - É. Não, tinha hospital, mas geralmente era uma raridade mulher ir pro hospital né? Não é esse hospital que tem hoje, na época acho que era Santa Casa que eles falavam né? Aí... mas a pessoa só ficava lá quando, assim... e era difícil demais para poder conseguir internar, a pessoa que morava assim na roça e ficava lá, melhorava com o remédio caseiro. Minha vó mesmo, eu sempre falo, minha avó que criou meu pai, ela morreu... ela inchou tanto porque a perna dela chegava de estourar, sabe? Mas naquela época não tinha médico não, acho que nem atendia direito também. (risos) Porque se tomasse um ______ para poder tirar água do corpo né, com certeza ela desinchava né? Mas ela, na época, ficava inchada tomando aqueles remedinhos caseiros e tal, foi indo até morrer. Às vezes podia ter até durado muito mais ainda né?
P/1 - Mas remédio caseiro que o senhor fala era remédio que vocês mesmos faziam?
R - É! Até hoje ainda tem né?
P/1 - Mas que tipo de remédio por exemplo?
R - Ah, depende da coisa que você está sentindo né? Você pegava as plantas né?
P/1 - Mas aí faz o que, faz chá por exemplo?
R - Chá, outra hora põe num vinho, outra hora... tem vários, dependendo o que você sente.
P/1 - Então o senhor...
R - Só que eu vou contar, tem um rapaz mesmo que é primo, é até contador lá em Paracatu, a mulher dele estava, disse que tinha que operar a coluna, aí eu fui lá no escritório dele, falando, falei “uai, eu tenho um cunhado meu que tem um irmão dele que mora em Unaí, ele tava entrevado, andando de quatro pé dentro de casa, né - fala quatro pé, caminhando com a mãe e o pé -, ele fez uma, tipo uma garrafada pra ele, está lá zerado. Ele até é pe... trabalha em obra, pedreiro né? Ele teve que parar na época, ficou parado, agora tá trabalhando normal”. Ele falou “Uai, minha mulher tá aqui, o médico disse que ela tem que operar, mas tá com medo de operar e entrevar né, não andar mais. Você não sabe o nome das coisas, não?”. Eu falei “Uai, eu tenho até lá em casa. Se você querer, chama batuta. Se você querer, eu arrumo para você. Se você, se ela animar a tomar né, ele vai explicar para você como é que faz”. Aí “o que que é?”, “ah não, é chapéu de couro, raiz de grama e raiz de osso” - é uma plantinha que chama osso. Aí “não, fala com ele pra, você dá aí pra trazer”. Quando agora me falou, a mulher dele está boa boa.
P/1 - Essas raízes, por exemplo, o senhor tem aqui na sua fazenda mesmo?
R - É, arranca aí no campo né? Agora, o chapéu de couro dá assim na beira de córrego, rio né? Mas aqui mesmo não tá tendo não, viu? Eu consegui aí, mas não tá tendo mais não, o povo já pegou tudo.
P/1 - E como é que ensinaram isso para o senhor? Como é que é isso, seu Ildeu? Porque isso é um conhecimento que foram passando, quem te passou esse conhecimento?
R - Uai, isso aí, a pessoa foi, até o cunhado meu foi que fez dessa maneira né? Eu não sei como é que ele ficou sabendo desse...
P/1 - Mas sempre uma outra pessoa que sabia e passava pra você?
R - Passa, é.
P/1 - O senhor falou que sua avó usava também.
R - É, não...
P/1 - ...o povo fica doente. Quem será que ensinou pra sua vó?
R - Uai, isso aí vai passando é de geração em geração né?
P/1 - E aí vocês vão caminhando pelo campo, e aí as pessoas vão explicando o que que é cada coisa?
R - Isso aí geralmente você conhece né, geralmente tem as planta e depois de servir uma vez, você grava né? E aí, por exemplo, tem quebra pedra, que eles falam que é bom para rim né, aí tem... você vê a planta logo que você... agora, não é toda pessoa também que toma e que sara com aquilo né, porque o organismo nunca é igual né? Acontece de você tomar uma medicação, você sentir bem, ou tomar, sentir mal né? Então, mas a pessoa sempre tentando né, não custa nada né?
P/1 - E quem ensinava pra vocês era os adultos, por exemplo, quando vocês eram novos. Quando vocês iam pro campo, eles iam falando “essa planta é tal, essa planta é tal”...
R - É, a avó da gente né, os pais né, falava “oh isso aí é bom para isso”. Tem uma plantinha mesmo que é boa pras vistas né, tem uma que chama vagalume, que você toma ela, que é bom pras vistas. Tem uma outra que chama Santa Rita, é uma outra plantinha. E também tem o livro da planta cura também que tem as plantas todas aí que serve pra aquilo, para aquilo outro né, a gente, a pessoa às vezes olha no livro “ó não, eu vi no tal livro, isso aqui é bom pra isso”, né? Mas isso aí é igual estou falando com você né, que todo mundo vai tomar e sarar às vezes né, mas como não custa nada, ele tá dependendo de sarar né, de tá doente, aí eu tento, toma e dá certo né?
P/1 - Mas o senhor usa esses remédios caseiros até hoje?
R - Ah, uso.
P/1 - Tem algum que o senhor toma até hoje?
R - Tem, eu tenho um ali pra fazer, né, esse da grama e chapéu de couro né, para coluna né?
P/1 - Muito bom, seu Ildeu! Então assim, o senhor contou que com 15 anos seu pai faleceu, o senhor tomou a frente da casa, e aí, como é que foi essa época? Que o senhor ainda era muito novo. E como é que o senhor tomou a frente da casa, que que o senhor teve que fazer?
R - Uai, minha mãe, também, graças a Deus, era muito trabalhadeira assim né, enfrentava o dia a dia né, não era daquelas que fica assim, ficava quieta né? Ela pegava, fazia farinha, nós fazia farinha e eu levava pra cidade para vender. Fazia rapadura, às vezes levava para cidade para vender. Criava galinha, porco, tinha que levar. E eu, na época, também nós plantávamos milho, plantava feijão, plantava arroz, para poder guardar para comer na época que não tinha, porque igual você falou, que na época que não chovia né, aquela época era tudo, se acabasse o arroz em Paracatu nessa época que eu era criança ainda, se acabasse, era um ano para poder chegar a outra.
P/1 - Aí vocês faziam como?
R - Uai, tinha vez que você não achava na cidade época de feijão mesmo, acabava a safra de feijão, não tinha irrigação né? Não era como hoje que produz rotineiramente né? Aí se acabasse, você tinha que comer outras coisas né, substituir, porque não achava.
P/1 - Então, e aí o senhor falou que começou a produzir várias coisas né na fazenda, a mãe também ajudava, e o senhor ia vender lá na cidade. E aí, como é que fazia, essa época já tinha carroça, já tinha cavalo, já tinha...?
R - À cavalo. Essa época que eu comecei foi em cavalo mesmo, no cargueiro, que eles falam né, aqueles buraco de couro né? Aí levava, vendia, vinha, comprava os ‘usos e necessidades’, sal, o querosene, que não tinha, igual eu falei pra você, não tinha energia né, o sal, o café a gente tinha poucos pé que plantava para poder ter o café, mas não dava para o ano né? Comprava o café cru, não existia café torrado, nem moído né?
P/1 - Comprava aquela frutinha do café?
R - É, uai.
P/1 - Aí tinha que esperar ela secar pra fazer...
R - Não, ela já vinha descascada né, aí eu... você conhece bem o café...
P/1 - Conheço. É, eu sou de São Paulo, conheço bastante.
R - Pois é. E aí comprava, não era em coco que eles falam... era em coco, mas já descascado né?
P/1 - Aí tinha que fazer todo aquele processo de deixar... quando estava totalmente seca, tinha que torrar o café, tinha que fazer todo esse processo?
R - Tem. E torrar na panela né, não tinha torradeira também, nem manual não. Torrava com, ia, ponha na panela e ia mexendo.
P/1 - E era no fogão de lenha, na época?
R - No fogão (risos) Quem é que falava de casa?
P/1 - Não tinha, né, fogão à gás?
R - Não, não tinha não.
P/1 - Então o senhor estava explicando, aí colocava lá no tacho...
R - Na panela de ferro, né?
P/1 - Ah, na panela de ferro?
R - É. Aí ia mexendo, mexendo até dar o ponto, aí tirava ele e punha pra esfriar e socar no pilão. Não era igual tem moinho, não né? Aí depois...
P/1 - Como era esse café? (risos)
R - Uai, bom, viu? (risos)
P/1 - Fala, o senhor ia contar: e depois?
R - Aí depois a pessoa torrava, socava né, coava ele bem fininho até virar pó mesmo, aí depois, e guardava numa lata ou no, qualquer coisa, para ir usando aos poucos.
P/1 - Então esses produtos que não tinha aqui, o senhor tinha que comprar lá cidade com o dinheiro das coisas que vocês vendiam lá.
R - É. E o café também não era adoçado com açúcar também, não existia açúcar, assim, cristal não, era rapadura né?
P/1 - Ah, adoçava o café com a rapadura que vocês mesmos produziam.
R - É. (risos)
P/1 - Aí era outro gosto né?
R - É. O povo fala que é mais ruim né? Hoje, a pessoa não bebe né café de rapadura, fala “Não, não tomo isso não” né?
P/1 - Então aí o senhor produzia, como a gente estava contando agora, a mãe ajudava, e os irmãos ajudavam também?
R - Também! Ah, todo mundo.
P/1 - Mesmo as mulheres? Todo mundo?
R - Pra moer cana, tudo né? Fazia rapadura igual pessoa grande mesmo. Já mocinha né, antes de casar, já moça, mas fazia, tomava conta de fazer a rapadura lá e dava conta. Uns ficava pra moer, outros para falar, varandar né, para ficar lá mexendo até fazer a rapadura.
P/1 - E o senhor contou que essa época então estava trabalhando bastante, que o senhor tomou a frente da casa né, porque o pai faleceu. Mas aí tinha tempo para algum divertimento, seu Ildeu, ou não dava?
R - Tinha!
P/1 - E aí, o que que vocês faziam?
R - Só voltando um pouco aí, ó, a época que eu fui pra cidade mesmo, eu cheguei lá com as rapaduras e meu pai tinha costume de vender né, lá pra um senhor lá, que tinha uma mercearia, aí eu cheguei lá e ele... “A rapadura - eu perguntei -, o senhor compra rapadura?” Aí ele pegou e falou “Não, aqui hoje. A rapadura sua é da onde?”. Falei “Não, é do finado Franco lá”, “O seu pai morreu?”. Aí eu comecei a sair água no olho né, aí ainda estava meio recente ainda, ele falou “não, oh, eu vou comprar essas rapaduras só porque eu estou com dó de você, viu? Mas seu pai era muito amigo, eu vou ficar com elas”, pegou e ficou. Eu não esqueço disso “vou ficar com elas”. Aí pegou, comprou a rapadura de mim, eu comprei umas coisinhas dele que eu precisava.
P/1 - E como ele era como pessoa?
R - Uai, era bom, viu? Ele era muito. Porque convivia assim um pouco, apesar da... 15 anos né, não tinha assim, não lembro muito da convivência muito com ele, mas cuidava de nós direitinho né? Pobre, em ordem de pobre, mas cuidava pra não deixar faltar nada né, comprava as coisas. Era bom para nós, né?
P/1 - E aí a gente estava falando do divertimento, e aí, como é que se divertia nessa época que o senhor era jovem?
R - Uai, tinha... ah, tinha as festinhas né, reza. Missa não tinha quase não né, que padre não... você ia na missa, ficava até... pra entrar na igreja, você entrava todo acanhado, com medo né, porque tinha aqueles receio né, que não é igual hoje né, que a pessoa para falar assim na frente das pessoas, não tinha, você não tinha abertura assim de conversar quase né? E aí tinha as festas, tinha festa. Tinha uma festa também na lagoa, você ia a pé.
P/1 - Então assim, as festas que tinham eram sempre festas religiosas, seu Ildeu?
R - Religiosa, festa de mutirão - igual eu falei -, de treição né, de...
P/1 - Então vamos falar...
R - Aí...
P/1 ...de mutirão, vamos falar da...
R - Juntava... por exemplo, teu aniversário, se juntava umas 8 pessoas, umas 15 pessoas, aí fazia a festa e ia quase a noite toda cantando, dançando, tomando quentãozinho, as pessoas que gostavam né?
P/1 - E o senhor comentou do mutirão e da treição, explica pra gente o que que é isso, porque tem gente que não é da roça, não conhece. Como é que é o mutirão, como é que é a treição? Então vamos falar do mutirão primeiro, o que...
R - Ah, o mutirão a pessoa às vezes estava assim, por exemplo, na época plantava muita roça assim manual né? ‘Muito’ que eu falo, mas é a área pequena, mas para limpar na mão, você faz é quadrinho por dia né? Não é igual hoje que tem maquinário e tudo né? Tem veneno, tem tudo, você bate né? Primeiro você fazia tudo na mão: plantar na mão, limpar as plantas na mão. E aí a pessoa às vezes tava com a roça ali na hora de limpar... limpar que eu digo, tirar as ervas daninha né? Aí fala ó “eu vou fazer um mutirão lá sábado, e de noite é a festa”. Aí o pessoal ia meio-dia, ia, chegava uma hora dessa, chegava semelhante da Bíblia né, a passagem da Bíblia né? Chegava duas horas e dava uma mão boa lá, limpava tudo. Quando era de noite... e aí o comentário rodava, viu? Não tinha comunicação assim, mas não sei como é que a notícia ia andando, que a pessoa ficava sabendo mesmo e ia.
P/1 - Juntava todo o pessoal da comunidade para ir lá capinar a roça de alguém.
R - É. Aí de noite a festa.
P/1 - Mas aí a festa era por conta da pessoa, não é isso?
R - É. Agora...
P/1 - E como é que fazia? Como é que montava?
R - O quê?
P/1 - A Festa.
R - Aí tinha que, de noite tinha que fazer, às vezes fazia o biscoito né para dar um café à noite, arrumava a barraca, né? E aí o pessoal já ia, ia arrumar o lugar de dançar, atterando, aí e ficava uma turma para arrumar o terreiro, que diz né, o barracão lá. Aí tinha a festa. Você vê a dificuldade, não tinha nem plástico, nem pano grande né, o que que as pessoas faziam? Cortavam vara, fazia aqueles, tipo assim, e aí pra tapar o sereno...
P/1 - O senhor diz com o bambu assim.
R - É, tipo bambu ou vara mesmo no cerrado, no mato né? Aí a pessoa vinha e ia nessas folhas de banana, tinha muita bananeira, cortava aquela folha para poder parar mais o sereno.
P/1 - Aí fazia uma barraca com essa estrutura?
R - É, com essa estrutura. Aí não tinha energia...
P/1 - Ah, não tinha energia. Aí, e aí?
R - Aí cada canto punha uma lamparina, você (risos).
P/1 - E embaixo dessa barraca, fazia o que, dançava?
R - Dan... Uai, era um festão e ia até, tinha dia que ia até o sol sair, à noite toda.
P/1 - E nessa época que não tinha vitrola, não tinha rádio, eram o tocadores né?
R - É, aí já tinha que arrumar uns tocador, né? Tinha aquelas pé de bode né, violão.
P/1 - Não... o que que é pé de bode?
R - Pé de bode é sanfona né, daquelas de botão, que a outra é palheta né?
P/1 - Aí ia lá os tocadores e ficava tocando à noite.
R - À noite toda.
P/1 - E qual a diferença do mutirão pra treição?
R - Agora, a treição, por exemplo, você tava com a roça no mato aí né e você não pensava de fazer um mutirão, aí a pessoa reunia... você é o dono da roça ou daquela invernada, sabe, aí pegava, convidava os vizinhos tudo, menos o dono né? E falava “você não conta para ele, não”, todo mundo ficava em segredo. Quando dava meia-noite, aí reunia numa casa né, nós ia reunir lá e tal hora, nós vamos chegar lá. Aí chegava, aí reunia, quando dava tantas horas, comprava fogos, ele ia na cidade, comprava foguete e chegava, arrumava um sanfoneiro com o violão. Aí quando tava assim, uma distância da porta, chegava tocando, soltando fogos, gritando. Tem um caso meu, dum rapaz mesmo, ele levantou tão apressado, apavorado, que vestiu a calça com o lado de dentro pra trás. (risos) Quando eles tavam lá, o povo “você está com a calça virada!”. Ele assustou demais né, falou “Que que é isso gente?”. (risos)
P/1 - Porque vocês iam lá tocar, ela não sabia e ela podia assustar?
R - É, uai. Naquela época dava à noite né, silêncio né, não dava nada pra, não existia nem muito som assim que você pudesse, de carro assim, esses trem né? Chegou soltando fogos e tocando, a pessoa levantava. (risos) Aí no outro dia, fazia o serviço né, o que ele tivesse fazendo, se fosse roçado, ou limpar lá a roça. E aí de noite, a festa. Aí eu não podia trabalhar também não, era a pessoa que deu essa treição que ficava responsável do serviço lá né?
P/1 - De montar a festa?
R - É, de... não, de limpar a roça né? O dono do pasto, da pastagem ou da lavoura ficava só para montar a festa... (áudio pulou) foi fazer a festa, fazer entrega, do serviço né, e aí fazia a entrega, tava no limpo e tal, tocando, cantando né? Tinha aquelas pessoas que é boa para falar verso né, cantava os versos.
P/1 - E aí entregava o trabalho e aí depois ia para festa, é isso?
R - É, ia na festa na casa da pessoa, o dono.
P/1 - Mas e aí as comidas, tudo que era da festa, era tudo por conta do dono da casa?
R - É, por conta do dono da casa.
P/1 - Quando vocês entregavam o trabalho, já tava tudo pronto pra festa?
R - É.
P/1 - E aí, que que tinha nessas, de comida, por exemplo? O que eles faziam?
R - Uai, era comida normal né, janta, almoço. E à noite era o biscoito né, tinha que fazer biscoito, que era tradição né, que o pessoal, dava meia-noite assim, tinha que dar um café bom né, reforçado.
P/1 - Mas aí tinha dança, também tinha música. Era uma festa...
R - Tem!
P/1 - ...festona mesmo?
R - Era festa mesmo.
P/1 - Muito bom! E aí depois, o senhor tava contando né, que era jovem e tal, foi trabalhando. E depois, como é que o senhor começou... que aí o senhor foi ficando mais velho, e aí já casou logo em seguida, não casou, como é que aconteceu essa história, seu Ildeu?
R - Aí você fala depois que o...
P/1 - Porque o senhor era adolescente, tinha 15 anos, tava trabalhando. Aí foi trabalhando, trabalhando, trabalhando, aí depois já tava jovem, já tinha lá seus 18, 20 anos. Que que aconteceu nessa época?
R - Uai, eu fui ajudando minha mãe, né, a olhar os meninos, os outros, aí casou as meninas né, aí ficou... já tinha casado elas, ficou só o irmão meu né? Aí eu casei né, aí eu casei com 30 anos.
P/1 - Ah, os irmãos acabaram casando todos mais jovens.
R - Mais jovens.
P/1 - Por exemplo, as suas irmãs casaram primeiro?
R - É, os irmãos, né? Ficou um irmão meu né? Aí depois ele ficou na casa, eu fiz essa casa aqui né, mas continuei dando assistência né, o que precisava, eu estava junto aí né para olhar.
P/1 - E aí como é que o senhor conheceu sua esposa, seu Ildeu?
R - Ah, nas festinhas. (risos)
P/1 - Que nem essas festinhas que o senhor estava contando.
R - É.
P/1 - Mas o senhor já conhecia ela?
R - Já. Já, ela morava aqui na comunidade né?
P/1 - Ela é do Santa Rita também?
R - É.
P/1 - Mas o senhor conhecia ela desde que ela era novinha, desde que ela era criança?
R - É, desde nova.
P/1 - Então, e aí, como é que aconteceu isso, seu Ildeu? Porque aí estava na festa, e aí?
R - Uai... sempre você fala assim “sabe que eu vou falar com aquela menina se quer namorar comigo”. (risos)
P/1 - Mas o senhor já falava isso?
R - Não! Eu peguei e falei com cara “uai, é bom você falar com ela primeiro”, ele me incentivou a ir né e aí eu falei com ela. E a mãe dela era assim, que queria que ela casasse né? Não era pra dispor não, mas o sonho de toda mãe é de ver a filha casada né? Aí eu fiquei assim pensando “ixi, agora para mim ir lá na casa do pai dela né?”.
P/1 - Mas ele era bravo; não?
R - Não, mas eu ficava assim, eu não tinha costume de ir né? Aí eu peguei, tô aqui um dia de tarde, quando eu vi, a mãe dela que vem lá passear na minha casa e eu “opa! (risos) Deu certo”. E aí nós foi...
P/1 - Mas o senhor conversou com a mãe dela no mercado?
R - Não, não cheguei a falar não né?
P/1 - Ah, tá. Mas como é que o senhor fez?
R - Uai, não, aí eu falei só com ela né, com a menina.
P/1 - Com a sua esposa.
R - É. Aí ela contou à mãe dela né, aí a mãe dela veio, trouxe ela um dia aqui para passear e aí eu fiquei... deu chance de eu ir lá né...
P/1 - Porque antes, o senhor nem tinha falado sobre isso com ela, foi nesse dia do mercado que o senhor conversou com sua esposa?
R - Na festa, né? Na festa...
P/1 - Porque ela não sabia também?
R - Sabia não, né?
P/1 - Mas logo que o senhor conversou, aí ela já animou também?
R - (risos) Já animou.
P/1 - E aí nesse dia, que o senhor está contando que ela veio, que trouxe a esposa aqui, aí que os senhores conversaram e aí que a coisa começou...
R - É! Aí começou a andar né?
P/1 - Aí teve o namoro...
R - Teve.
P/1 - E qual é a diferença do namoro dessa época pra época antiga? Como é que era esse namoro?
R - Uai, eu até assim, graças a Deus, ela tinha muita confiança em mim, sabe? Ela deixava sair comigo só. Às vezes nós ia pra Paracatu em festa religiosa, ela deixava ir né?
P/1 - Aí ela deixava ir com o senhor?
R - É, não precisava ficar assim de olho né? Que de primeira as mães ficavam, não deixavam nem sair junto né? Assim, por exemplo, se ia sair com uma colega, ela “não, tem que saber com quem anda, que não sei o que” né? Não deixava a pessoa sair só. E ela botava confiança em mim que não sei, né, porquê né, ela tinha muita confiança. E aí foi dando certo, graças a Deus deu certo.
P/1 - E aí vocês ajeitaram o casamento depois né pra acontecer. Como é que foi esse casamento, seu Ildeu, como é que aconteceu?
R - Uai, aí foi passando um tempo, passando né, namoramos mais ou menos uns 4 ou 5 anos. Aí foi chegando até que chegou no ponto né que era melhor casar mesmo.
P/1 - E deixa eu perguntar, pra gente falar do casamento, já tinha a Igreja de Santa Rita aqui ou ela veio depois? Essa igreja aqui, da paróquia aqui em cima.
R - Uai, já tinha... não, ainda não tinha. Não, já tinha as tradição né
P/1 - Que eram quais tradições?
R - De rezar pra Santa Cruz, igual eu falei né? Aí...
P/1 - Mas é aqui no lugar onde é a igreja de Santa Rita agora? Vocês rezavam lá?
R - É, rezava lá. É. Aí depois eu... não, aí quando eu casei já tinha né a igrejinha lá, mas muito pequenininha. Aí depois foi aumentando. Não tinha energia né, aí foi que construiu a igreja mesmo, do tamanho que ela é hoje né? Mas era bem pequenininha.
P/1 - Quando o senhor casou, foi nessa igreja ou vocês foram pra Paracatu?
R - Não, foi pra Paracatu. Aqui é uma raridade ter casamento
P/1 - E lá quando vocês foram casar lá em Paracatu, teve festa, não teve? Como é que foi?
R - Teve! O pai dela fez uma festa, aí comemorou com um bailão mesmo. Aqui na roça né? Casou lá...
P/1 - O pai dela que montou a festa?
R - Foi. É.
P/1 - E o que que tinha nessa festa? Conta para mim.
R - Ah, comer, jantar, doce, tinham várias coisas, salgado...
P/1 - E foi aqui na roça que o senhor estava contando?
R - Aqui na roça.
P/1 - Muito bem. Então vamos falar da Festa de Santa Rita, que o senhor tinha comentado agora, que costume é esse da Festa de... Santa Cruz, perdão. Qual é essa festa? Explica para mim, por favor, como é que é essa festa.
R - Essa festa surgiu assim, igual eu falei aquele dia com vocês, eu acho que Deus faz um chamado para cada lugar de pessoa para poder cuidar das coisas de Deus, de tudo que ele construiu, é Deus né? Então minha mãe sempre contava que tinha um casal aí que o pessoal bem antigo, do tempo dela, menina ainda, que eles veio e falou “não, nós vamos levantar um cruzeiro aqui e vamos rezar para Santa Cruz”. E aí começou, aí eles levantaram, fez, levantou o cruzeiro e começou a rezar né, que a reza de Ladainha que eles falam né, ladainha antiga. E aí eles razavam, faziam confraternização, igual eu falei com você, quando não tinha plástico, nem pano grande para poder fazer um barraco, nem nada, rezava assim no pé do cruzeiro lá, como esse suporte aí. E depois fazia o altar para rezar, né? Aí depois eles resolveram... E aí depois que rezava, eles levavam, faziam coisas assim bem de ramo mesmo, cortava ramos, aquelas coisas, e fazia aquele comboiozinho para guardar o café, os biscoitos que levava. Depois da reza, eles distribuíam para o pessoal, né? Aí terminava, aí nisso eles pegavam e passavam o ramo para outra pessoa. O ramo é um buquê de flor, né? Pegava, passava esse ramo pra outro casal, para o outro ano ser a pessoa que era responsável aquele dia como, pra fazer a festividade né?
P/1 - Fazia essa essa, a reza de Santa Cruz e ficava responsável pela organização da festividade?
R - É. Aí quando era no dia 3 de Maio do outro ano seguinte, ele fazia a mesma coisa. E aí foi passando de pessoa para pessoa.
P/1 - E quem participava era o pessoal aqui da comunidade?
R - Da comunidade né? E aí a festa foi crescendo, aí foi expandindo né, começou a vir a gente de Paracatu né, falava “não, vai ter uma reza lá, tem muito biscoito”. O pessoal naquela época gostava (risos) aonde, como diz, “onde tava bem, todo mundo queria participar”, né? Aí o pessoal vinha, tinha aquele tanto de biscoito, de café. Não tinha nem suco, nem refrigerante não naquela época; era café e chá, e biscoito, né? Aí foi crescendo, aí até ainda faz a festa. Semana passada mesmo, desceu a bandeira né, fez uma festona lá em Aparecida né, lá em Vanderlei né?
P/1 - E ainda tem tido essa festa, todo ano vocês ainda fazem do mesmo jeito, seu Ildeu?
R - Mesma coisa.
P/1 - De passar o ramos. Tudo do mesmo jeito?
R - E agora depois de uns anos, bem de uns anos pra cá, reza nove dias antes da reza ladainha né?
P/1 - Mas aí faz como, vai lá no cruzeiro para rezar ou reza na casa?
R - Não, reza lá na igreja. E agora tem igreja né, reza lá dentro. E no dia, levanta no dia de Santa Cruz, levanta o mastro.
P/1 - Então começa 9 dias antes, nove dias da comunidade vai indo lá na igreja para rezar.
R - Tem leilão, tem barraquinha, tem tudo.
P/1 - A festa já é grande então. Vem gente de outras comunidades?
R - Vem lá de Paracatu, vem do assentamento aqui da lagoa rica. da Lagoa. Junta muita gente. E tem a cavalgada também, que faz, né, as pessoas. Lá no dia junta muita gente que vai de cavalo, faz o circo.
P/1 - Mas aí como é que é isso, é antes da festa?
R - É no dia da festa, aí...
P/1 - A cavalgada é no dia da festa?
R - Aí reza a ladainha. Agora mesmo foi a missa, aí o pessoal reune, aí depois da confraternização de, tá dando mais é biscoito ainda, pão de queijo, essas coisas.
P/1 - Mas e quem faz a cavalgada? É o pessoal da comunidade?
R - Da comunidade, é.
P/1 - Mas quem pode participar?
R - Qualquer uma pessoa pode participar.
P/1 - Mas como é que combina isso?
R - Uai, já é tradição, aí as pessoas vão passando um para o outro né? Dá o dia, já está gente lá de Paracatu, paga caminhão para trazer cavalo aí para participar só do circo lá de buscar a bandeira. Busca cavalo né na casa da festeira, aí junta com a pedra de quatro, dois cavalos na frente, dois atrás, leva a bandeira e lá levanta.
P/1 - Isso lá na igreja?
R - Lá na igreja.
P/1 - Na parte de fora no pátio, ali na igreja?
R - É. Aí faz o circo lá.
P/1 - Nossa, e o pessoal vem de cavalgada de onde? Os cavalos ficam aqui, eles são trazidos para cá?
R - ______ é igual. Fica muito longe, vem de caminhão né? Os mais perto vai ter cavalo mesmo né?
P/1 - E aí faz essa cavalgada que o senhor tá contando?
R - É.
P/1 - Muito bom. Então vamos voltar para essa época que o senhor casou. Aí o senhor construiu sua casa aqui né, que é no terreno da família, da sua família.
R - É, da minha mãe.
P/1 - Essa fazenda é da sua família né? Aí o senhor construiu essa casa, e como é que foi esse começo? O senhor construiu a casa, veio casar e aí como é que o senhor organizou tudo? Porque a sua mãe tava viva né nessa época. E aí, como é que era?
R - Uai, ficamos vivendo aqui mesmo, né?
P/1 - Porque o senhor teve filhos também né, o senhor tem filhos?
R - É, 4 filhos.
P/1 - Então, e como é que foi essa época? O senhor continuou trabalhando sempre na roça?
R - Sempre na roça.
P/1 - Pra manter a casa e tudo?
R - É, e os filhos né?
P/1 - E aí, como é que foi o nascimento dos filhos, como é que foi essa época, seu Ildeu?
R - Uai, primeiro veio o ____, depois veio Alessandro, depois veio Fernando né... Tsc, depois veio Mirela, depois veio Fernando né? Aí ficou aqui né, trabalhando e eles foi crescendo, aí foi estudar, ficou estudando aqui na lagoa né, aí...
P/1 - Porque nessa época ainda tinha...
R - ...depois...
P/1 - ...o colégio daqui da Santa Rita?
R - Tinha.
P/1 - Ou já não mais?
R - Não, nessa época já co... eu acho que (a Ciela?) estudou um ano, não sei se foi um ano ou dois aqui ainda. Aí depois surgiu esse coisa deles pegar os meninos né na zona rural.
P/1 - Pegar de...
R - De ônibus. Aí a (Ciela?) mesmo estudou... aí assim já, primeiro estudou na lagoa né, depois pegou, estudar... aí já veio o ônibus, aí já levava ela todo dia, aí ia e vinha todo dia.
P/1 - Lá na Lagoa?
R - Na cidade, né?
P/1 - Ah, tá. Aí já era em Paracatu.
R - É.
P/1 - Porque ela continuou estudando.
R - É, continuou.
P/1 - E os outros filhos, como é que foi, eles também estudaram?
R - Também.
P/1 - Também nessa vida de vai pra lagoa, depois quando ia dar prosseguimento, ia pra Paracatu.
R - Pra Paracatu.
P/1 - E os filhos estudaram, como é que foi?
R - (Ciela?) fez o primeiro grau né, mas num... todos fizeram o primeiro grau né? Aí eles trabalham tudo em Paracatu.
P/1 - E depois eles casaram? Depois tiveram filhos também?
R - É, tudo tá casado já. Aí...
P/1 - Aí seus quatro filhos são casados hoje?
R - É, tudo casado. Só que para eles ficarem, para ficar aqui comigo, o Alessandro até mesmo não queria nem ir pra cidade, mas com o lugar é pequenininho né, num dava pra sobreviver todo mundo né, aí foi o jeito de arrumar emprego lá e trabalha lá. Mas mesmo assim ainda ajuda aí, eles vêm o final de semana. Hoje mesmo, daqui a pouco eles chegam. Aí trabalha lá na feira.
P/1 - A gente vai falar sobre a feira também. Antes da gente chegar nesse pedaço, para falar do leite, para falar da feira, eu queria perguntar da sua mãe: o que que aconteceu com ela, seu Ildeu?
R - Uai, ela viveu a vida toda aqui. Ela ficou na cidade, até tem uma casinha na cidade, tudo, mas ela, para falar a verdade mesmo, que ela foi pra passear nessa casa, para dormir lá, pro passeio aqui ela nunca foi. Se eu levasse ela em Paracatu, tinha que vim no mesmo dia, só ficava aqui.
P/1 - Entendi, você tinha que levar ela lá e já trazer no mesmo dia, que ela não gostava de dormir lá.
R - Ela ficou lá 30... 60 e poucos dias, depois que ela não teve jeito mais né, aí ela ficou lá para final da vida mesmo.
P/1 - E que que ela teve, seu Ildeu?
R - Uai, ela tinha vários problemas, tinha artrose, osteoporose e... vários problemas assim. Depois tinha um pouco de coisa no coração né, aí ia tratando, tratando, levava pra PAS e tudo, lá, aqui na cidade, várias vezes. Aí depois ela arrumou um, tipo de um caroço assim, e aí esse caroço, ela foi no médico, o médico falou “não... esse caroço tá doendo?”, “não”, “se não dói é normal”. E aí ela, isso depois esse caroço danou de doer viu e aí eu levei ela lá em Patos. Quando ele fez o raio x e a tomografia dela lá, "O caso da sua mãe é sério”. Aí eles nem fez biópsia não, mas julgou de ser câncer mesmo né? Aí foi atacando, atacando, atacou o pulmão né, o fí... o pâncreas, né, aí não tem jeito não.
P/1 - O caroço que ela tinha era no pescoço?
R - É. E ela tinha que tirar né, mas ela tinha 94 anos, não dava para fazer cirurgia mais né? Aí não teve jeito.
P/1 - E aí nesses últimos tempos que ela já tava fazendo tratamento, ela ficava lá na casinha dela em Paracatu, mas ela nem gostava.
R - Ah, não, era pra vir embora. (risos)
P/1 - Mas ela tava consciente nesses últimos...
R - Estava, bastante. Ficou consciente. Depois que, quando gravou demais né que ela ficou uns poucos dias também que ela ficou assim parece que não estava muito consciente. Mas a vida dela toda foi aqui.
P/1 - Porque vocês moravam aqui nessa casa e ela ficava lá na casinha dela. Mas vocês estavam sempre de olho nela?
R - Ah, é! Não, tinha dia que eu dormia, outro dia quando ela foi ficando mais velha né, que... a princípio eram as netas que dormiam com ela, depois quando ela ficou, os meninos foram mudando né, casando e mudando pra, foi ficando... aí ela já precisou de nós, um de nós. Um dia um irmão meu, uma filha minha que ia fazendo o rodízio né?
P/1 - E quando ela teve que ficar lá na cidade, também vocês faziam rodízio de quem ficava com ela?
R - Ficava neto, filho, tudo. Eu dou uma olhada, né?
P/1 - E depois que ela faleceu, seu Ildeu, como é que foi? A casinha dela ficou lá né?
R - Muito triste né, mas é por Deus mesmo, não tem jeito.
P/1 - Mas a casinha dela ficou lá?
R - Ainda está aí. A cesa dela também ainda está lá na cidade ainda.
P/1 - E ninguém mudou mais pra casa? Não tem ninguém morando lá na casa dela?
R - Não, não.
P/1 - Porque seu irmão mora aqui do lado, o senhor João.
R - É.
P/1 - Muito bem. Então deixa a gente falar sobre a feira, sobre o leite. Vamos começar a falar sobre essa questão da produção do leite. Como é que começou isso na sua vida, seu Ildeu? Porque... hoje é a sua maior renda, seu Ildeu?
R - Uai, está sendo né?
P/1 - Então me explica como é que aconteceu isso na sua vida?
R - Uai, primeiro, igual eu falei pra você, eu sobrevivi mais de rapadura, dessas coisas de roça mesmo né? De rapadura, de um pouquinho de leite, mas leite na época eu tirava era 20 litros de leite né, 15 litros, 10 litros. E aí sobre... o que, eu comecei a sobreviver mesmo foi dessas coisas, que eu plantava roça e tudo né? E ia sobrevivendo. Depois surgiu o leite e aí eu, até hoje da, faço rapadura ainda né? Mas...
P/1 - Tem produção de rapadura aqui?
R - Tem rapadura. Mas...
P/1 - É pra vender também?
R - É pra vender. É. Mas agora, hoje está sendo o leite e no mais, a feira. A feira ajudou muito, porque é uma coisa que você vende assim mas é dinheiro né, não tem fiado, e todo final de semana você tem um troquinho para sobreviver.
P/1 - Mas hoje a sua produção de leite... o senhor falou que começou com 20 litros, mas hoje faz muito? Faz bem mais?
R - Não, hoje tira aí 200 litros mais ou menos.
P/1 - E aí o senhor leva lá pra cidade pra vender?
R - Não. Vendo pra cooperativa.
P/1 - Então, como é que foi essa história da cooperativa? Porque antes era bem menos, depois começou...
R - A cooperativa, ela pega, de 5 litros para cima ela pega qualquer quantidade né? Na época, eu associei acho que em 80 e... não, 90. Associei na cooperativa para poder vender o leite. E aí sempre lutando aí.
P/1 - Porque antes não tinha cooperativa, antes o senhor tinha que vender na raça mesmo, levar lá e vender? O senhor estava contando.
R - Ah, essa época eu fazia era queijo, outra hora a mulher fazia doce para levar para feira né?
P/1 - Sim, usava o leite pra outros derivados.
R - É isso.
P/1 - Sim, sim. E aí quando chegou a cooperativa, teve uma forma de vender uma quantidade um pouco maior.
R - É. É porque aí é maior né e a mulher minha tem uns problema de saúde também né, aí não pôde ficar mexendo com muita coisa né, doce, essas coisas que ela fazia. Aí eu peguei... eu já vendia um pouco para cooperativa quando eu mexia com doce, essas coisas né?
P/1 - Mas aí o senhor aumentou a produção nessa época para vender pra cooperativa.
R - É o mesmo, foi aumentando aos pouquinhos né? Com muita luta, aumentou.
P/1 - O senhor tinha algum gado e depois foi aumentando e foi comprando mais gado.
R - Foi ______ né?
P/1 - E o senhor trabalha sozinho aqui ou como que faz, seu Ildeu?
R - Uai, hoje está sendo só um rapaz que, igual eu falei, ajuda eu, um que tem as vacas, o cunhado meu né, tem umas três vacas também, aí tira o dele e ajuda eu a tirar, tira junto comigo. Aí ajuda eu um pouco. Mas o ‘pé de boi’ mesmo é eu para pegar no pesado mesmo né?
P/1 - Mas a produção ainda é na mão ou vocês têm máquina?
R - Não, tem, ordenha.
P/1 - E aí vocês tiram e colocam num tonel, é isso?
R - Isso.
P/1 - E aí vai pra, a cooperativa vem buscar?
R - Vem buscar. Aí eu tiro, aí de dois em dois dias o leiteiro pega.
P/1 - E como é que essa história da feira, seu Ildeu? Conta pra mim. O senhor estava contando né que tem a feira lá em Paracatu, como é que surgiu esse negócio da feira?
R - Uai, a feira, eu... na época, _____ para mim, acho que se chamava dona Bárbara. Pra mim entrar na feira, que aí ia fundar na feira aqui em Paracatu, que não tinha né? Aí eu falei “ah dona Bárbara, eu até tenho vontade né de participar da feira, mas para mim é difícil. Pra mim ir de carroça não... é longe e eu não tenho carro”. Aí eu fiquei naquelas, sonhando em comprar um carro para poder eu entrar na feira né? Comprar um carrinho velho para mim entrar. Mas sabe que na época até pra você achar um carro assim velho, para comprar, era difícil? Aí tinha um cara que vinha de Belo Horizonte para comprar milho aqui na região para levar pras granjas lá em Belo Horizonte né? Ele trazia verdura e voltava carregado de milho. Aí ele falou “eu vou olhar lá em Belo Horizonte, lá é capaz de um Fiatinho desse 147 ‘no jeito’. Lá tem!”. Eu fiquei naquelas, esperando. Quando depois surge um rapaz aí, tava vendendo um 147. Aí eu falei... eu fui lá, vi o carro. Tinha sido um dono só o carro, era o segundo dono era o que estava querendo negociar com ele. Aí eu comprei. Mexi, virei, num tinha dinheiro, vendo um ‘trem’, vendo outro, aí juntei acho que foi 20 e poucos mil cruzeiros. Na época era cruzeiro. Comprei o carro, o Fiat, aí fiquei rodando com ele. Aí falei “eu vou para feira”. Aí foi naquela época do Sarney, não sei se você lembra, que faltava carne. Pra você comprar carne, tinha que ficar na fila até... tava na fila era de madrugada para poder comprar um quilo de carne. Aí eu matei um porco aqui e fui para feira com ele, aí cheguei lá... não, só com a carne! Cheguei lá, falei com um colega meu que já tava na feira “vou deixar uma carne de porco ali, será que eu consigo vender ela aqui?”, “traz ela lá que nós vai vender ela agora, que a minha acabou tudo e não dá para nada!”. O povo ficava assim para comprar a carne, que não tinha né? Aí eu levei, aí pus os pernil lá e o povo “nossa”, nesse instantinho vendeu tudo. Aí eu comecei ir, ele vendendo para mim, depois ele falou “não, vou montar uma banca para você. Arrumar, dá um jeito de o presidente da Feira aí arrumar a banca para você”. Aí arrumou e eu comecei né a ir pra feira levando porco... o que tem né, o que tinha. E aí eu fiquei até agora na pandemia.
P/1 - Aí o senhor trabalhou esse tempo todo sempre na feira, mas aí a feira é só fim de semana né?
R - Só final de semana.
P/1 - É só de sábado que o senhor está falando?
R - Só de sábado.
P/1 - Aí, como é que o senhor se organizava? Porque até antes da pandemia, que o senhor tá contando, o senhor ia na feira. Como é que o senhor organizava para ir para feira?
R - Uai, eu tinha que arrumar uma pessoa para ficar aqui para tirar o leite para mim né e olhar as coisas, os porcos, que toda vida eu tive porco. Aí eu comprava porco aí dos vizinhos, que o meu era pouco, não dava né? Aí montou um açouguinho de porco. E...
P/1 - Lá em Paracatu?
R - ...aí eu vendia de tudo lá, vendia numa banca, vendia rapadura, melado, essas coisas que eu produzia aqui né, e do outro lado, tinha, eu ficava lá, a mulher minha ia, ela vendia doce, vendia rapadura, melado, frango, ovo, o que tinha aqui, levava né? E eu vendia carne de porco do outro lado. Aí os meninos meus eram pequenos, estudavam na cidade, eu pegava e levava o menino de madrugada, lá ele ia pra escola. Porque na época tinha feira quarta-feira também né, não era só no sábado não. Aí ele ia para escola, aí para voltar, o ônibus trazia né? Aí foi essa vida até...
P/1 - E nessa aí o senhor ia lá... então o senhor organizava tudo aqui, tinha que produzir tudo, por exemplo, o senhor falou que levava melado, levava a rapadura, então tinha uma produção aqui para se organizar para levar para lá. No dia da feira tinha que tá tudo pronto. E como é que fazia isso, como é que vocês organizavam isso?
R - Uai, era com trabalho mesmo né?
P/1 - Porque aí o senhor tinha que levar lá no dia da feira mesmo. Por exemplo, quarta-feira era o dia da feira, então o senhor ia bem cedo, já organizava as coisas na terça, por exemplo, né?
R - É. Igual a carne de porco mesmo, nessa época, quarta-feira eu só cortava de granja, né? E no sábado, eu matava o porco aqui na sexta de tarde para levar.
P/1 - Aí era um que o senhor matava pra poder... aí cortava os cortes dele e levava lá para feira para poder vender?
R - Pra vender, é.
P/1 - Aí fora isso, tinha os outros produtos também? Que o senhor estava contando.
R - Aí surgiu que não podia matar porco mais na roça né, para levar, tinha que levar vivo para matar no matador. Aí eu levava na sexta, igual levo até hoje, no sábado eles entregavam. E aí foi essa vida aí até hoje.
P/1 - Então, o senhor falou até a pandemia, e depois, que que aconteceu?
R - Aí, depois, na pandemia, parou os dias, a feira parou de funcionar né? Aí depois não podia ir gente acima de 60 anos, aí Alessandro meu né falou e Alessandro, meu né, falou... e Alessandro, meu filho, que tá lá hoje, já ajudava eu lá a, no sábado né? Aí ele falou “não pai, eu vou ali fazer o seu. Eu vou”, e aí conversou com a presidente lá, tudo. E aí está até hoje ele lá. Aí eu levo o porco, combinei com ele tudo direitinho né, o modo de nós negociar e...
P/1 - Aí o senhor leva na sexta-feira leva na sexta lá no matadouro.
R - Lá no matadouro. Aí quando é no sábado, ele tá lá, que eles leva lá, entrega.
P/1 - Então hoje quem está na feira, quem está, trabalha na feira é o Alessandro, mas quem produz, continua sendo o senhor?
R - É.
P/1 - E a produção de leite, como é que tá agora? O senhor tava contando que tira o leite. E tudo também é o senhor com essa outra pessoa que te ajuda?
R - É, tudo é.
P/1 - E vende lá para cooperativa.
R - É.
P/1 - Mas vocês ainda fazem queijo, ainda faz essas outras coisas?
R - Só para despesa.
P/1 - Não mais para vender agora?
R - Não, não é. O leite, eu forneço lá para cooperativa né?
P/1 - Sim.
R - Aí eles...
P/1 - E aí é pouquinho que fica, mas é mais para o senhor mesmo, para produção sua. Você não vende mais.
R - Você fala para...
P/1 - Pra fazer leite, para fazer doce de leite, que o senhor usava leite para fazer isso também né?
R - Agora não.
P/1 - Agora é mais, o que sobrar é mais para o senhor mesmo?
R - É. Eu vendo pra cooperativa e aí o dia que eu quero fazer um queijo pra dar aos meninos, pra mim comer né, aí falo “não, tiro tantos litros, faço o queijo”, pra despeza, né? Agora, para vender... porque a mulher minha tem problema, tem marca passo e tudo né, aí teve uma época mesmo que o médico falou “não, ela não pode pegar peso, não pode extrapolar no serviço”, né?
P/1 - E nessa época da feira, que o senhor estava contando né, vamos falar mais um pouquinho da feira, teve uma época que vendia bastante, como é que é? O senhor começou a me contar que quando você começou a pensar nisso era época do Sarney, você até me falou. Como é que foi essa época aqui na região da fazenda? Essa época aí dos anos 80, inflação. Como é que tava as coisas aqui?
R - Uai, essa época era... na feira mesmo, toda vez que você chegava tinha um preço mais alto, né, da inflação, que você fala né, da inflação. Cada dia você levava a carne hoje, por exemplo, de 20 reais, quando chegava lá já tinha a pessoa que pesquisava e vinha dando informação, a carne ia a 22 reais. Quando dava no outro sábado, mesmo coisa. E aí voltando a atrás, para mim comprar a televisão, aí eu querendo comprar a televisão, quando... eu não queria comprar a prazo, porque o, se você comprasse a prazo, quando você ia pagar, era o triplo né? Aí quando eu arrumava o dinheiro para mim comprar a televisão daquele preço, que eu já tava arrumando dinheiro, a televisão já tava custando quase o dobro...
P/1 - Porque a época... o senhor quis comprar a tv, era bem essa época da inflação.
R - É. E aí ficou isso. Na época de 82 né mais ou menos. Não, isso foi em 86, por aí. Aí eu já tinha uma televisãozinha daquelas (fio cozinha?) (1:28:41), de pescoço, assim, que a bateria... não tinha energia né, aí eu comprei a bateria. Aí o pessoal... passando o assunto, depois nós vamos...
P/1 - Não, pode falar.
R - Aí o pessoal “é, Ildeu agora tem televisão, vamos pra lá assistir jogo”. Aí juntava aquele tanto de gente aqui pra assistir jogo. E aí a bateria, não podia usar a bateria que uma vez tava assistindo o jogo, já quase no meio, quase terminando, a bateria pifava. Acabava a graça todinha (risos) e voltava pro rádio. Essa época já tinha rádio. Aí eu voltava pro rádio. Aí eu falei... aí colocou energia para nós aqui, aí eu fiquei com essa televisãozinha. Sonhando em comprar uma televisão a cores “porque é mais bonito, não sei o quê”. Aí eu ia lá na loja, foi na época da inflação né, a televisão custava 20 reais hoje, 20 mil hoje, quando era amanhã, já era 30 né? E aí ficou até, no fim eu consegui comprar a televisão. Mas a gente tava falando, a inflação naquela época, de carne, de tudo né, era... saí daqui uma época, tinha um homem aqui levando gente lá no Carrefour de Brasília para fazer compra, pra você ver, que era mais barato lá né nessa época da inflação. Se eles compravam pacote de arroz aquilo, lá era bem menos. Aí eu mesmo fui uma vez pra fazer compra lá, que lá tava mais barato...
P/1 - E era mais barato mesmo?
R - Ah, eu não achei tanto não, viu? Aí eu falei “vou lá ver esse preço”, aí pagava baratinho pra ir, eu fui. Cheguei lá, era quase a mesma coisa. Mas o pessoal ia pra estocar, porque você comprava um e quando é amanhã já estava o dobro. É nessa época - voltando agora no assunto que você perguntou - da inflação, como é que nós... Essa época era, pareceria que era bom pra você ganhar dinheiro, mas você ganhava, quando é amanhã, você já não comprava o que você queria né? E aí surgiu, depois surgiu o plano do real né, de Sarney né, aí estabilizou, aí ficou bom né? Acho que eu comprei já foi no plano do real, a televisão, né? Aí subiu o plano do real, aí estabilizou, parece que foi, ficou melhor para você, até para trabalhar, para ganhar dinheiro. Não era dinheirão não, mas pra, sobrevivia né?
P/1 - Parece que estabilizou um pouco, é isso? Porque antes era muito instável, mudava muito.
R - Mudava muito, né?
P/1 - E aí nessa época que o senhor começou a adquirir essas tecnologias. E essa TV, quando o senhor comprou, foi à vista?
R - À vista...
P/1 - Essa que o senhor está contando?
R - É.
P/1 - Então, e aí como foi quando a TV chegou aqui? Porque foi a primeira TV mais bonita que o senhor tinha.
R - Aí o povo ficou alegre demais, o povo ficava olhando né? Até vinha um casal que morava ali para, todo dia para assistir novela. Tinha dia que você queria dormir mais cedo, enquanto a novela não terminava... (risos) Foi na época de acho que de Roque Santeiro, aquela novela, né?
P/1 - Aí o pessoal vinha aqui assistir à novela?
R - Ah, vinha.
P/1 - E o que que vocês assistiam, além de novela? Porque eu sei que novela fazia muito sucesso. Mas além de novela, que que vocês gostaram de assistir, seu Ildeu?
R - Ah, era tudo né? Tudo... E hoje eu nem olho novela.
P/1 - O senhor nem assiste mais tv?
R - Não.
P/1 - Mas o senhor tem televisão hoje?
R - Tenho, todo dia eu assisto, mas assisto é missa, às vezes uma reportagem, um ‘trem’ assim, mas num, novela "descrençei" nem sei o que que tá passando.
P/1 - Então vamos falar um pouquinho da comunidade, seu Ildeu, da história da comunidade. Então, eu sei que aqui começou, era tudo... é, né, ainda, mas era tudo fazenda. Qual a diferença da comunidade antigamente para comunidade hoje, que que ela tem de diferente?
R - Vixe, hoje tem uma diferença grande.
P/1 - Então me conta.
R - Grande, muito grande. A comunidade tinha muita gente, era mais ou menos em torno de umas 80, 70 famílias, que tinham aqui na comunidade. Quando tinha festa era muita gente, era na missa, no movimento de igreja né? Só para falar, que você vê um padre que chegou por aqui, e aí ele veio para comunidade aqui, aí a igreja tava muito cheia e falou “ah, mas a comunidade aqui tem que meter o pé nessas paredes e derrubar essas paredes aí pra nós construir uma igreja. Isso tá parecendo massa na prensa, olha como é que está ó”. E eu falei “uai, que padre esquisito”. Aí ele insistindo, aí o pessoal tentou de aumentar a igreja, tudo, e hoje o contrário viu, tem pouquinha gente que vai, que participa né, porque não tem pessoa na comunidade.
P/1 - Mas que que aconteceu com essas pessoas, seu Ildeu?
R - Uai, até aquele dia eu tava até falando assim, não é falar mal não, mas a Kinross destruiu a comunidade.
P/1 - Mas o que é que aconteceu?
R - Uai, tirou as pessoas tudo né, foi comprando, compra de um, compra de outro, umas pessoas foram obrigadas a sair, que ele tava encostado na barragem. De lá da onde você saiu, tudo tinha morador, naquele correguinho que você passou, vindo para cá.
P/1 - Lá onde é a barragem agora?
R - Lá, bem perto dela, aquela lá né? E aqui ó, aqui não tem mais vizinho, aqui embaixo também já não tem mais. E tá comprando ainda. Eu acho que a comunidade vai acabar viu?
P/1 - Então antes da gente chegar nesse período, que ele é importante pra gente falar, seu Ildeu, eu queria falar um pouco do garimpo. O senhor teve... eu sei que o senhor trabalhava na roça, mas o senhor teve acesso ao garimpo, conheceu alguém que garimpava aqui na cidade? Como é que era isso?
R - Uai, isso aí... conhecer eu até conheci já, pessoa que garimpava, assim, manual, para sobreviver, mas é coisinha mínima, tirando caixotinho, de bater né, de que eles falam. Tirava, né, o ouro. Mas agora ninguém, eu acho que ninguém mexe mais com isso...
P/1 - O senhor nunca chegou a garimpar?
R - Não.
P/1 - Mas o senhor conhecia pessoas que garimpavam?
R - Sim, eu conhecia o ouro em pó também. Tem umas duas vezes que eu garimpei aqui no rio mas foi, assim, coisinha pouca só.
P/1 - O senhor achou alguma coisa, seu Ildeu?
R - Achava! Em torno de - não sei nem se você conhece o vintém - de 3 vinténs, 5 por dia né?
P/1 - Aí vendia como?
R - Vendia, né? Comprador de ouro tem toda hora, viu?
P/1 - Mas eles vinham aqui ou vocês tinham que levar lá?
R - Não, levava lá né? Aqui mesmo até hoje ainda tem gente que garimpa assim pouco, de época, quando tá chovendo muito, que dá aquelas enchentes né no rio, nos córregos. Aí tira aí... esse tempo pra trás mesmo, tinha um rapaz que tirou aqui uns 5 vinténs.
P/1 - Bem pouquinho, né?
R - Pouquinho, mixaria, né?
P/1 - Mas isso que o senhor está contando, antigamente?
R - Tem ainda né, mas muito pouco. Não compensa nem você ficar coisando o dia todo para tirar.
P/1 - E aí o senhor contou que depois veio a Kinross e começou a comprar as terras, porque ela fez a barragem, e aí a comunidade começou a diminuir, é isso?
R - Diminuiu. É.
P/1 - E aí o senhor tava contando, que foi a hora que a gente, que eu fui perguntar do garimpo, o senhor tava falando que acha que até a comunidade vai acabar.
R - Uai, aqui, para você ver, eu acho que vai chegar um ponto... que eles tão comprando assim né, que vem comprando assim igual não, compra aqui, pula ali, compra o outro. Comprou aqui, agora ali na frente é deles. Aqui ó, depois da estrada ali. De cá é deles, aqui do lado, debaixo aqui, é deles. Aí tá nós, só nós aqui no meio. Ali em cima, lá em ‘cimão’ já é deles.
P/1 - Chegaram a te fazer alguma oferta, seu...
R - Não.
P/1 - Ou não, não falaram nada? Tá.
R - Com nós aqui ainda não mexeu não.
P/1 - Entendi. Mas bastante pessoas já venderam suas terras?
R - Já vendeu. É. E aí a comunidade vai só diminuindo e quando vai diminuindo né, fica com, mais difícil né de festividade, essas coisas né?
P/1 - E antigamente, como é que era a relação entre as pessoas? O senhor falou da festividade, mas teve uma época aí que o senhor falou que teve 70 famílias, por exemplo. Como é que as famílias se relacionavam uma com as outras?
R - Bem!
P/1 - Dava certo? Dava bem?
R - Certo.
P/1 - Como é que era?
R - Era uma comunidade unida, sabe? Se a pessoa adoece, vai para visitar, se a pessoa tá com uma dificuldade, reúne pessoa para ajudar. Inclusive aqui mesmo tinha um rapaz que tava morando numa casinha, num barraco de lona, aí eu falei com o presidente da associação na época “não, nós tem que fazer uma casinha para - chama até Antônio -, tem que fazer uma casinha para ele né, que ele tá com os meninos, os meninos pequenos, morando debaixo de lona. Que esse é um calor... um sol desses, como é que aguenta ficar lá de baixo?”. Aí reunia, deu um tijolo, deu porta, outro deu janela, aí organizou a casinha para ele. Então a comunidade é unida, graças a Deus, é unida.
P/1 - Mas hoje já diminuiu?
R - Ah, hoje tá pouquinha gente aqui, né, nesse setor, que era o forte
P/1 - E a associação, surgiu como, seu Ildeu?
R - Você vê, essa associação surgiu com o garimpo também né?
P/1 - Ah, é? Mas como é que foi? Fala para mim, por favor.
R - Surgiu um garimpo clandestino na cabeceira do rio, aqui né?
P/1 - Mas isso é um pouco mais recente?
R - É antes da Kinross, mais ou menos na época que a Kinross veio para cá. Só que ela era bem pequenininha né? E aí tava sujando a água do rio e aí tem um senhor aí, falou “nós temos que fundar uma associação aqui, que eles estavam sujando a água e tão poluindo o rio todo”. Aí ele fundou a associação. Nessa época não existia muita associação de bairro, de comunidade assim não, eram poucas associações. Aí fundou a associação para poder embargar ele, fazer a parada de mandar a sujeira para dentro do colo né, que é a cabeceira do rio. Aí a associação foi crescendo, e é uma associação até boa, viu?
P/1 - Mas resolveu essa coisa do rio?
R - Resolveu. De lá, resolveu, não mandou sujeira, não né? Que a Kinross, esse cuidada ela tem. Hoje o meio ambiente é outra coisa também, né? Naquela época o meio ambiente era, não agia quase né? Agora, hoje o meio ambiente está de cima né?
P/1 - Então, aí resolveram essa questão dos rios. Os rios hoje eles não são poluídos, daqui? Os rios daqui são limpos?
R - É limpo. Mas a Kinross hoje diminuiu a cabeceira né, aqui não dá as enchentes, além que a chuva diminuiu, tudo. O rio ainda vai acabando também. Acabando assim, criando muito mato, muito pau, não dá enchente para limpar né, que as enchentes é que limpa né?
P/1 - Mas ainda tem rio por aqui?
R - Tem!
P/1 - Mas bem menos do que antes?
R - Bem menos do que antes. A água é limpa né? Eles falam que pode beber, até tomar água, aqui pode, mas eu não confio muito não. Mas animal bebe, não tem nada não. Agora, um humano, o rio tá muito muito sujo, com muita... sujo assim, os matos tudo vai chegando para perto né, acabou que as praias que dava, aquelas areias, vai acabando.
P/1 - E aí o senhor tava contando da associação, que ela foi crescendo e ela é muito boa, mas que que ela reivindica hoje?
R - Hoje tem um convênio com a prefeitura né? Assim, a prefeitura hoje tem, só atende as comunidades através de associações né? Aí só que hoje também mudou muito, assim, no sistema de ser produzir né, porque primeiro você plantava, todo mundo tinha que plantar uma rocinha para sobreviver, hoje você já busca no mercado né, já não é igual era de primeiro né? Hoje, se você for plantar rocinha pra você sobreviver, a chuva diminuiu, principalmente aqui na região, a chuva diminuiu, a mão de obra muito cara e não tem mão de obra braçal, hoje tudo é mato. Então hoje, é assim mais preferível você buscar coisinha no mercado.
P/1 - E como é que ficou o trabalhador agrícola nesse caso, seu Ildeu?
R - Uai, hoje é de tal maneira, assim, o povo clama desemprego demais no... que não está tendo emprego né, mas o povo que não quer trabalhar, porque serviço, se você não ficar escolhendo serviço, tem serviço todo dia. Todo mundo tem... dependendo da pessoa, qualificar o serviço né, a mão de obra e que se você quiser ganhar mais, tem que qualificar mais né, que hoje não falta serviço não.
P/1 - Mas o senhor tem conseguido competir com o mercado, seu Ildeu? Porque foi o que o senhor estava contando né, agora o pessoal vai comprar no mercado, é tudo muito grande, tudo com máquina. O senhor está conseguindo competir?
R - Não, compete... hoje, a única coisa que ainda está dando pra você sobreviver um pouco, assim, é o leite. ________...
P/1 - Que o senhor mesmo falou que vende pra cooperativa né?
R - Assim mesmo, se você tiver a mão de obra sua. Se você pagar funcionário, olha lá que não dá para competir não, porque os grandes hoje, por causa que hoje... por exemplo, dia primeiro, você tinha que, ó, para você ver, de primeira, pessoa disse que trabalhava um dia, na época bem atrás, comprava um quilo de toucinho, um quilo de carne né? Hoje você trabalha, um dia você... a carne até não vou falar, que a carne é o produto que tá mais caro, mas você trabalha um dia, quantos pacotes de arroz você compra? Um dia de serviço. Agora, se você for plantar na mão de obra, de mão, manual, for fazer tudo manual, “coiendo” manual, beneficiar manual, uai, quanto não sai esse pacote de arroz? A pessoa encontra dificuldade, que está, o custo de vida tá muito alto, mas se a pessoa fez qualquer coisa, dá pra... eu não digo viver a vida, assim, de mordomia, mas se a pessoa levar a vida razoável, qualquer coisa que faz, ele não passa fome não.
P/1 - Então vou aproveitar e perguntar qual é a diferença de antigamente para hoje, nessa questão do trabalho?
R - Uai, hoje eu acho muito mais fácil.
P/1 - Hoje você acha mais fácil ____?
R - Claro. Porque eu não contei para você que o rádio para mim comprar era uma dificuldade, para mim comprar a televisão foi o maior dificuldade, para mim comprar o carro é a maior dificuldade? Então hoje a pessoa fala “não, mas hoje tá muito mais difícil, mais difícil de viver do que antes”, não, a pessoa que... quer aparecer muito também. A pessoa primeiro era conformado com o que tinha. Não é que não precisa, não pode conformar, mas se você exaltar muito também, você passa a endividar, passa a viver uma vida que não tá valendo a pena trabalhar né?
P/1 - E os costumes da comunidade, seu Ildeu, ainda existe? Que o senhor falou que diminuiu, mas como é que era no passado e como é que tá hoje? Os costumes, assim, as tradições da comunidade.
R - Pois é, agora tá acabando tudo né? Além que a época vai mudando, e além também que quem faz a comunidade é a pessoa né, gente né, e vai diminuindo, diminuindo, aí as pessoas também, a época das pessoas, do... a época assim, por exemplo, minha passou, o pai dela tem muita diferença né, que hoje é tudo diferente né?
P/1 - E a gente tava falando da barragem, chegou a ter algum problema com a barragem? O senhor viu quando ela começou a ser construída?
R - Não, (esse?) até me mostrou tudo né quando tava construindo, até nós lutou pra até não construir, porque ia destruir o rio né, mas o poder público, né, autorizou e deu um problema aí que eles colocaram a sirene um dia, deu o maior pânico na comunidade né, não sei o pessoal falou para você né, ela disparou aí. Eles tinham feito um ‘simulado’ aí, se ela disparasse, pra gente correr para os pontos de apoio né, e aí a gente tá aqui numa tarde tranquilo, tranquilo, assim, cuidando das obrigações, inclusive eu tinha até prendido vaca pra tirar leite quando a sirene fala para correr que a barragem ia estourar, que a barragem estava... a pessoa ir para o ponto de apoio urgente e que a notícia era verdadeira, anunciando uma vez e outra. Aí saiu todo mundo né, vazado, como diz né, correndo para lá com medo de estourar, que eles falam que ela vai passar aqui uma altura de 15 metros, porque já tem a estatística né? Aí o povo correu lá pro ponto de apoio e eles não deu assim, era para ter avisado... eu falei com a encarregada mesmo lá da barragem, eu “uai, tanta gente que tem telefone aqui, vocês falaram... por que que você não ligou? Pelo menos um da comunidade avisava que era alarme falso, não era verdadeiro. Quando veio lá pras 6 horas, 7 horas da noite, avisando que não tinha problema. Uai! Depois todo mundo já tinha, que tinha ido um rapaz pra ver, que eles falaram que não tinha problema e que foi que veio avisando. Outra pessoa voltou para casa, mas todo mundo já tinha passado o pânico já né?
P/1 - Mas aí, seu Ildeu, o senhor está contando então que a sirene disparou, o senhor já sabia que era a sirene da barragem?
R - Não! Já tinha feito, simulado né? Tem ela aí toda ponta.
P/1 - O senhor já conhece?
R - Já conhece, às vezes testou ela antes né, mas avisando que era só teste né, que pessoa não preocupasse né, que era teste. E eu não sei porque que ele não colocou lá na hora que era, podia ter colocado até nela mesmo que era engano lá deles, que eles falaram que foi um engano lá do...
P/1 - Porque nessa hora que disparou a sirene, vocês achavam que era a barragem mesmo.
R - É, uai! Porque foi no simulado, se ela disparar... até hoje não tá assim, se ela disparar, a pessoa tem que sair fora né, que já coloca ela para isso né?
P/1 - O lugar que tem a Rota de Fuga pro ponto de encontro é aqui perto?
R - É, é lá na igreja.
P/1 - Ah, é aqui na Santa Rita.
R - Tem uns pontos né aí de...
P/1 - Isso! A Santa Rita é um dos pontos.
R - É, lá na igreja.
P/1 - Aí vocês, quando disparou, vocês foram?
R - Pra lá.
P/1 - E aí, qual foi a sensação?
R - Uai, o senhor cê falou, aí perdeu tudo o que tem, né? O neto meu tava aqui, falou “ô vô, e as vaca?”, “uai, fazer o quê”, “uai, mas as vaca vai morrer, os porco”. Eu falei “uai, tem que correr, porque sabe lá se tá estourando mesmo.
P/1 - E as pessoas da comunidade, todo mundo conseguiu ir lá pro ponto?
R - E ainda foi bom que as pessoas saíram sem fazer pânico. Agora, na lagoa, falaram que foi um pânico feio viu, gente passando mal.
P/1 - Porque na lagoa tem mais gente do que aqui na...
R - Tem muita! Lá é...
P/1 - E aí depois o pessoal da Kinross veio falar com vocês?
R - Pois é, veio, mas já foi lá para 6 horas, 7 horas, aqui no próprio paço, que era, que o alarme foi falso.
P/1 - Mas aí depois que passou, depois, dias depois, eles vieram conversar com vocês? Eles vieram aqui na associação?
R - Não, eles deram, eles iam fazer uma reunião lá, mas acho que ninguém quis ir. Inclusive na Lagoa, o pessoal tava todo revoltado né, porque apesar que não foi, que eu não sei se foi por gosto ou se não foi né, mas eles tinham que... porque aquela lá de Brumadinho, porque o pessoal já tem... antes, ficou aí... tem até quase 30 anos que a Kinross está aqui. Antes daquela de Brumadinho, todo mundo, ninguém pensava que, tava confiante na barragem que tá fazendo, mas depois daquela todo mundo criou né? Daí estourou duas lá de Brumadinho... de Mariana, né? Aí o pessoal “ah não, vai estourar mesmo”. (risos) E quase que as pessoas saíram de lá com medo também né, assim fica bem... que eles falam que não tem perigo, que é diferente a barragem e tal, mas você fica naquela “Será que tem perigo? Será que não tem?”. Quando tá chovendo mesmo, eu fico aqui “será que (risos) esse ‘trem’ está garantido mesmo?”.
P/1 - Porque o senhor conhece a barragem, o senhor já foi lá depois que ela estava pronta?
R - Já, já fui e tudo, mas feito pela mão do homem, o que q , né, que não, que Deus quer destruir, que não destrói.
P/1 - O que que o senhor gostaria de deixar como legado? Então o senhor tava falando dos tempos antigos, explica pra mim de novo por favor, seu Ildeu.
R - Uai, o que eu gostaria né é voltar aquele tempo antigo, mas com as tecnologias de hoje né? E com, assim, o jeito da gente viver hoje, que é totalmente diferente né, mas tem muita coisa que faz falta ainda, do tempo antigo né? Por exemplo, com as chuvas né, que é uns que ajuda a sobrevivência da gente né, se voltasse aquele tempo de chuva né, voltasse o tempo, assim, de saúde né também, principalmente né, que hoje a gente, todo mundo vive desde criança doente, já muitos aqui nascem doentes ou quando de primeiro nem remédio a pessoa tomava né, tinha muita gente aqui na comunidade que eu conheci que pode dizer que nunca tinha ido no médico, que pra ir no médico, tinha um senhor aqui mesmo, na época, diz que não aceitava o médico examinar a mulher dele, pra ele não pegar, pra você ver, que não, não que tinha precisado né, porque quando precisa... então, a saúde era outra né? E várias coisas antigas que, tem muita saudade assim do tempo, que a gente fazia né os trabalhos tudo. Era mais difícil, mas parece que a gente fazia com mais prazer do que hoje né?
P/1 - E a tecnologia?
R - A tecnologia também né hoje mudou tanto, né? De primeira a pessoa falava “não tem... plantei tanto de lavoura, produzi tanto”, mas hoje com a tecnologia nem compara com a de antes né? E tudo né, carro, agora é televisão, rádio, é tudo, é outra coisa né? Informática, telefone, né, tudo.
P/1 - E o senhor, eu vi, conforme a gente foi conversando, sonhos né, que o senhor teve alguns sonhos né de comprar o rádio, teve o sonho de comprar a TV e tudo, o carrinho, que foi tudo com dificuldade, mas depois o senhor conseguiu. Hoje o senhor ainda tem algum sonho, seu Ildeu?
R - Uai, eu sonho, não paro de sonhar né? A gente às vezes sonhar, o que eu sonho mais é ainda de às vezes adquirir um carro, até Igual eu falei, que a gente sempre quer uma coisa melhor né, às vezes a gente comprar o carro mais melhor né, mas eles eu vou vivendo com esse mesmo até né, se Deus me der vida para poder eu concluir o sonho, tudo bem, não der, tá na vontade dele né?
P/1 - E aí a última pergunta que a gente faz é como foi contar a sua história de vida para o Museu da Pessoa, para um museu? Como é que foi contar sua história de vida? O que o senhor achou disso?
R - Uai, é bom demais né, você vai levar, de ficar lá gravado lá no museu né? E aí a gente, da vida mesmo, contou pouca coisa, que ainda tem (risos) muita coisa né que a gente podia ter contado, mas o tempo já acabou né? E aí é muito bom isso, vai servir pros netos, pros filhos até que algum dia querer ver né? Aí eles, você vai passar para mim como é que vai acessar lá para ver e aí vamos conhecer como é que foi a vida. Às vezes até anima viver né, que hoje fala “não, tá difícil, tá difícil hoje”, mas é, como diz, o ser humano, sempre falo, o ser humano é igual o porco gordo, tá comendo e chorando né querendo mais. (risos)
P/1 - Obrigado seu Ildeu, por ter contado sua história. Então a gente do Museu da Pessoa, o pessoal da Click aqui de Paracatu agradece que o senhor tenha contado a sua história. Muito obrigado, seu Ildeu.
R - De nada.
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