Entrevista de Júlio Lancellotti
Entrevistado por Rosana Miziara e Luiza Gallo
São Paulo, 30/10/2023
Projeto Acolher Histórias
Entrevista ACOH_HV004
Transcrita por Selma Paiva
(00:19) P/1 – Padre Júlio, gratidão imensa, com a sua vida tão atribulada o tempo inteiro, parar para nos dar um...Continuar leitura
Entrevista de Júlio Lancellotti
Entrevistado por Rosana Miziara e Luiza Gallo
São Paulo, 30/10/2023
Projeto Acolher Histórias
Entrevista ACOH_HV004
Transcrita por Selma Paiva
(00:19) P/1 – Padre Júlio, gratidão imensa, com a sua vida tão atribulada o tempo inteiro, parar para nos dar um pouco de seu tempo aqui. Padre Júlio, a gente vai começar da maneira mais tradicional possível: qual é o seu nome completo, local e data de nascimento?
R - Julio Renato Lancellotti, nasci em 27 de dezembro de 1948, em São Paulo.
(00:45) P/1 - Padre Júlio, seus pais são de São Paulo?
R - Meu pai era do interior do estado, de um distrito de Bragança Paulista chamado Guaripocaba e minha mãe aqui da cidade de São Paulo.
(00:58) P/1 - Como que é o nome do seu pai?
R - Meu pai Milton Fagundes Lancelotti e minha mãe Wilma Ferrari Lancelotti.
(01:04) P/1 - E seu pai morou nessa cidade até quanto tempo?
R - Meu pai veio jovem para São Paulo, pra trabalhar, depois ele se casou, conheceu minha mãe, voltaram para o interior, depois voltaram para São Paulo e aí viveu... meu pai morreu muito cedo, com 51 anos.
(01:25) P/1 – Padre, o seu pai... você conheceu seus avós, os pais dele?
R - Eu conheci o pai e a mãe do meu pai, os meus avós paternos, que eram o Rafael e a Francisca. Esses eu conheci e eles eram meus padrinhos, inclusive.
(01:44) P/1 - E como que eles eram, assim? Qual que era a característica? O que seu avô fazia?
R - Meu avô eu já conheci bastante idoso, né? E a minha avó também. Então, as imagens que eu tenho do meu avô é colecionando pimentas. As pimentas mais fortes, mais ardidas que ele colecionava. E a imagem que eu tenho da minha avó, porque eles moravam no interior, é dela fazendo Toddy pra mim, na caneca de ágata. Então, eu gostava muito. Mas por incrível que pareça eu não conheci os meus avós maternos, que é o Júlio e a Olinda, mas sem conhecê-los, eles marcaram mais a minha vida.
(02:41) P/1 – Por que eles marcaram mais a sua vida?
R - Pelas histórias, pela memória deles. A minha avó Olinda morreu muito cedo e meu avô Júlio também morreu muito cedo. Os dois morreram com 42 anos. E o meu avô Júlio era mecânico, aviador, piloto de corrida. Então, essas coisas todas me chamam muita atenção e eu vi objetos deles. Eu não os vi, mas vi os resquícios deles: objetos, fotos, mala, coisas que eram deles. E a memória dele era muito impactante, de ter sido piloto, de ter sido aviador, de correr em carros de corrida, porque o meu avô materno, o Júlio, era Ferrari, por isso que minha mãe é Wilma Ferrari. Então, ele é da família Ferrari, de Milão e o pai dele veio da Itália, da família Ferrari e ele era galvanoplasta. E quando ele veio, na onda migratória de 1988, ele foi mandado pelo governo brasileiro para Juiz de Fora, para trabalhar na galvanoplastia. Então, é toda uma história interessante de elaboração de coisas, de aventuras. E a família Ferrari mandava para o meu avô as máquinas, para ele correr e ele corria no Chapadão de Campinas, porque não tinha o autódromo de Interlagos. Então, ele corria em Campinas, no Chapadão, que chamava. E o meu bisavô, o pai do Júlio, era o Francesco e a mãe era a Luiza Pirelli. Então, era a família Ferrari e família Pirelli, a parte pobre, que migrou para o Brasil, outra parte migrou para a Argentina, outra parte foi para os Estados Unidos. E para mim marcou de ir visitar o túmulo da minha bisavó Luiza Pirelli, aqui mesmo, ela morreu aqui no Brasil. Então, eles que vieram. Quem veio para o Brasil foram os meus bisavós, tanto paternos, quanto maternos. Como a vida do meu pai foi muito curta, ele morreu com 51 anos, mesmo a oralidade da história era menor. A gente conheceu o avô Rafael, a avó Chiquita, que era Francisca, mas foi um tempo menor de convivência. A minha mãe faleceu com 88 anos. Então, não tinham os avós maternos, mas a memória e a oralidade da história materna foi maior.
(05:58) P/1 - Quem te contava essas histórias?
R - Minha mãe.
(06:02) P/1 – E como ela te contava? Ela chamava? Tinha um momento especial?
R – Ela contava histórias muito tocantes, porque as histórias que ela contava eram muito emotivas e o fato marca muito, porque meu pai era muito calado e eu procurava penetrar o pensamento do meu pai, de procurar entendê-lo e meu pai morreu diante de mim e o meu irmão, que tem o mesmo nome dele, Milton, meu pai Milton, meu irmão Milton, também faleceu muito jovem, com 56 anos, o meu irmão era mais travado na relação com meu pai e eu era menos travado na relação com meu pai. Então, quando eu vi meu pai ‘apagando’, eu chamei o meu irmão no hospital e falei...
(07:01) P/1 – Você tinha quantos anos?
R - O meu pai, 51.
(07:03) P/1 – E você?
R - Aí eu devia ter uns 18, 19 anos. Aí eu falei pro Milton: “O papai está ‘apagando’”. Foi nessa hora que ele conseguiu beijar meu pai. Ele não conseguia beijar o pai. E eu conseguia. E foi interessante também, porque nessa época, que aí a história vai saltando, eu tinha saído do seminário, meu pai sofreu muito quando eu fui para o seminário e ele me acompanhou muito na busca do seminário, ele via as dificuldades e como também eu era, de certa forma, seletivo, exigente, eu falava algumas coisas na seleção dos seminários, que eles não me aceitavam. E aí meu pai falou: “Olha, você já foi, não te quiseram, você já foi, você não aceitou, você já foi e não deu certo, então agora você vai trabalhar”. E eu comecei a trabalhar e fiz o concurso do Sesc. Eu estava falando do Danilo e o Danilo era bem jovem, naquela época. Eu fiz o concurso do Sesc. E aquilo marcou muito na minha vida, porque tinha acho que três mil candidatos e a gente foi passando na prova, na prova, na prova e meu nome continuava sempre na lista e eu ficava surpreendido. De três mil passou não sei para quanto, depois passou... no fim sobraram vinte, no fim sobraram 15 e aí eu fiquei nos 15 e eu entrei no Sesc, mas foi na época que meu pai ficou doente e como no seminário eu tinha feito curso de atendente de enfermagem, eu aplicava injeção no meu pai e o Sesc me mandou para Jacareí e meu pai só tomava injeção se eu que aplicasse. Aí eu tive que sair do Sesc, pra cuidar dele. Aí ele faleceu e fui trabalhar em outra área, mas eu tive que sair do Sesc, porque eu tinha que fazer uma opção: ou eu fico no Sesc, ou eu cuido do meu pai. Aí eu fiquei cuidando dele.
(09:35) P/1 – Padre Júlio, voltando um pouco, você sabe como seu pai e sua mãe se conheceram?
R - Sei. Meu pai trabalhava no Serviço Social de Menores, na Avenida Celso Garcia. Ele e um amigo dele, que depois se tornou meu tio, o Homero, que casou com a irmã da minha mãe. E meu pai e o Homero eram solteiros. E eles, como não tinham residência, moravam dentro, num alojamento que tinha dentro do Serviço Social de Menores. E minha mãe, com toda a história da vida, da descendência e tal, morava numa casa em frente do portão do Serviço Social de Menores, na Celso Garcia. E ali enchia de água, quando chovia. E um dia ela estava na janela e viu um jovem saltando as poças d'água e ela riu dele, pulando as poças d'água e foi aí que eles foram flertando e se conheceram e ele se casou com a minha mãe. Aí é toda uma outra história, que é marcada por muitas, muitas questões que estão fundo na minha memória, do casamento, da morte da minha avó.
(10:58) P/1 - Quais foram essas questões?
R - Porque o meu avô Júlio tinha morrido e minha mãe tinha 16 anos. E ele, quando estava morrendo, foi dirigindo o carro dele para o Hospital Santa Catarina, fez lá a operação e já ficou terminal. E ele pegou a mão da minha mãe e pôs na mão da mãe da mulher dele, da mãe dela e falou para minha mãe: “Agora você vai cuidar da sua mãe, é você que vai cuidar dela”. Ele não falou para a mulher dele cuidar da filha. Ele falou para a filha cuidar da mãe. E ela com 16 anos foi trabalhar, para manter a mãe e os irmãos. Ela tinha a Luiza, a Maria José e o Geraldo, que eram os irmãos dela. E ela foi trabalhar e minha mãe se tornou uma profissional muito qualificada. Imagina, em 1945, ela era datilógrafa, estenógrafa, taquígrafa e secretária bilíngue e ela foi secretária de grandes advogados...
(12:18) P/1 – Ela falava inglês?
R - Espanhol. E foi secretária da Hamilton Rand, foi secretária da Escola de Comércio, foi secretária de grandes advogados. E quando ela foi namorando com o meu pai, ele falou para ela: “Agora que nós casarmos, a minha família será você e os filhos que nós tivermos”. Aí minha mãe falou: “Então não vou casar mais, porque eu tenho que cuidar da minha mãe”. Ele falou: “Não, agora que a gente casar, somos nós”. Aí ela falou pra minha avó - isso tudo ela conta – “Eu não vou casar mais”. E a minha avó falou: “De jeito nenhum, os convites já foram distribuídos, a igreja está marcada, você vai casar sim”. E minha mãe era Filha de Maria, da Congregação das Filhas de Maria, que usavam aquela roupa branca, aquela fita azul. E no casamento, os casamentos sempre eram no sábado e as Filhas de Maria iam todas para o casamento e aquela que era Filha de Maria deixava de ser Filha de Maria. Tiravam a fita azul e davam a fita vermelha, do apostolado. E minha avó Olinda era do apostolado. E minha mãe resolveu então casar numa quinta-feira, para ninguém ir no casamento dela. E quando ela chegou na Igreja São José do Belém, as Filhas de Maria estavam da porta até o altar, dos dois lados, todas de branco e azul, cantando (choro): “Eu prometi, fiel serei por toda a vida, serei Filha de Maria”. E aí ela foi para o interior, com o marido e vinte dias depois ela foi morar com meu avô Rafael, com minha avó Chiquita, que tinha um gênio muito forte.
(14:19) P/1 - Como que era?
R - Um gênio muito forte, principalmente meu avô e sogro, dando ordem para nora, porque o homem manda sempre. E aí minha avó, aqui em São Paulo, morreu, teve um problema de coração e por isso que minha mãe cuidava muito dela, porque minha avó Olinda tinha um problema, uma lesão cardíaca muito forte e ela levava a mãe no hospital, no cardiologista, mas ela combinava com o cardiologista, que eles não iam dizer pra ela o que realmente ela estava, porque era muito grave, pra ela não se assustar, mas ela acabou morrendo vinte dias depois do casamento e o meu pai não teve coragem de dizer pra mulher dele, pra minha mãe, que a Olinda tinha morrido. Ele disse: “Nós vamos pra São Paulo, porque a tua mãe não está passando bem”. E minha mãe veio na estrada o tempo rezando o terço pela mãe e quando ela chegou na Celso Garcia ela viu uma amiga dela que estava descendo numa rua paralela, ali numa rua que descia, chorando e ela disse: “Por que será que a Clélia está chorando?” e meu pai não falou nada e quando parou na frente da casa a funerária já estava descendo o caixão. Então, isso foi um impacto que ela teve, muito forte, que a mãe morreu, que tinha acontecido tudo aquilo e isso foi um impacto muito grande. Meu pai veio pra morar em São Paulo, fez um concurso pra entrar já como efetivo naquele serviço que ele estava antes, que ele tinha saído do Serviço Social de Menores. E aí minha mãe, que tinha muito conhecimento, ensinou para ele tudo. Deu, vamos dizer assim: fez um curso intensivo com ele e ele passou no concurso, como almoxarife. E aí então ele se tornou almoxarife, chefe de material, aí ele ascendeu bem, naquele ramo.
(16:38) P/1 - Vocês nasceram quanto tempo depois que eles casaram?
R - O meu irmão mais velho nasceu no próximo ano. Eles se casaram 11 meses depois, já nasceu o Milton. E eu, segundo, nasci 11 meses depois do Milton. (risos) Aí deu uma espera grande para nascer o meu outro irmão, José Luiz, que aí nasceu em 1956.
(17:06) P/1 - Aí já tinha uma diferença, né?
R - Tinha sete anos. Eu nasci em 1948. Meu irmão nasceu em outubro de 1947, eu nasci em dezembro de 1948 e meu irmão foi nascer em março de 1957.
(17:25) P/1 - E vocês moraram, qual foi a casa que vocês foram morar?
R - Nós morávamos juntos lá nessa mesma casa, na Celso Garcia.
(17:31) P/1 – Como é que era essa casa?
R - Era uma casa muito grande, tinha um quintal muito grande, tinha uma pereira no quintal, então era um lugar que a gente brincava muito. Então, meu irmão e eu aprontávamos horrores nessa casa, andávamos no telhado e tinha um vizinho que a gente subia na pereira e jogava pera do outro lado. Minha tia, irmã da minha mãe, essa Maria José, que casou com o amigo do meu pai porque eu, com cinco anos, fiquei com bronquite asmática capilar e minha mãe me levava dia sim, dia não na Xavier de Toledo, tomar uma injeção, que chamava injeção de ouro, na pele do joelho. E para eu não chorar eles me levavam na Leiteria Campo Belo. Eu lembro dessa Leiteria Campo Belo, até os sonhos, que era na Rua São Bento e minha mãe me levava lá na leiteria e eu tomava lá um frapê de coco e comia um pão com queijo, para não chorar da dor que eu sentia. E eu tomava essa injeção um dia sim, um dia não. E quando ele me deu alta, eu peguei a bacia, liguei a mangueira e fiquei embaixo, (risos) como um chafariz, porque eu não podia tomar sorvete, não podia tomar gelado, não podia isso, não podia aquilo, por causa da bronquite. E eu tinha que pôr balão de oxigênio, quando eu entrava em crise. E minha mãe ia na casa do vizinho para telefonar, porque nós não tínhamos telefone. E aí o pessoal do oxigênio perguntava se tinha dinheiro para pagar e ela falava que sim, mas não tinha. E aí eles traziam o oxigênio e ela dizia: “Vocês vão negar o oxigênio, olha o jeito que ele está”. E numa dessas vezes que eu estava muito mal, eu não deixava pôr no nariz, aí punha num funil na minha boca o oxigênio, mandaram chamar meu pai, que era no serviço em frente e ele veio e o amigo dele, que era de Minas Gerais, que morava lá também, falou: “Eu vou com você”. E aí veio, aí conheceu a minha tia, a Maria José. E eu falava para eles: “Eu morrendo e vocês namorando”. (risos) Esse meu futuro tio. E era interessante que o meu irmão, o Milton, tinha tido coqueluche e ele ficava no quarto com a minha mãe e com o meu pai e eu dormia no outro quarto, com a minha tia, Maria José, que era solteira.
(20:17) P/1 - Ela morava com você?
R - É, ela morava, porque ela era menor quando minha avó faleceu, avó Olinda e meu pai e minha mãe tiveram que ser tutores dela, eles eram tutores da Maria José, que era filha da Olinda e eu dormia no quarto e eu fiquei muito próximo dessa minha tia, porque ela me trocava, me dava banho, punha umas roupas bonitas em mim e ia me levar a passear de barco, no Rio Tietê. Porque na Celso Garcia, onde a gente morava, tinha um riacho, onde tinha um barco que tinha um furo no meio e quem era sócio daquele barco tinha uma rolha que punha no furo e essa minha tia era da turma do barco e ela punha a rolha, ela me trocava, me punha uma roupa bem bonita e aí nós íamos para o Rio Tietê, ela ia remando e no Rio Tietê eu pegava lambari. Minha mãe pegava uma lata de cera, limpava bem com água fervente e eu pegava o lambari com a lata. E eu me liguei muito com essa minha tia. Por isso que quando ela ficou noiva e casou com esse amigo do meu pai, o Homero, eu lembro muito do dia do casamento que, como eu era muito ligado com ela, eu não sei o que eu estava fazendo, estavam arrumando a festa, eu estava achando tudo aquilo tão estranho, porque ela ia embora e aí me puseram para dormir. Quando eu acordei e entrei na sala, a minha tia já estava vestida de noiva. Eu achei, ela estava linda, mas ela estava chorando de dor de dente (risos) e aí como que a minha memória bloqueou, eu não lembro se eu fui na igreja, se eu vi o casamento. Eu lembro de volta, em casa, eu andando pela festa sozinho, achando tudo muito estranho e que ela foi embora e que eu ia ficar sozinho lá no quarto, porque ela me contava história pra eu dormir, rezava comigo e depois ela... nunca esqueci, ela dizia: “Agora vira para a parede e dorme”. E quando meu pai e minha mãe saíam, que iam no cinema, alguma coisa, a tia Maria José ia namorar com o Homero e o meu irmão e eu íamos juntos, com o nosso patinete. E a gente gostava muito de ir com o meu tio, porque ele estava namorando com a tia e ele falava: “Pode ir longe, viu? Vocês podem dar uma volta lá em cima, não tem problema, não”. Nunca ninguém falava isso pra nós, então a gente achava o máximo. E eu com o tio, vai casar com a tia, ele é tão bonzinho, ele deixa a gente ir longe com o patinete. Ele mesmo falava: “Pode ir lá longe ali, vocês viram lá, naquela esquina”. E a gente achava ótimo, porque olha que coisa boa, ninguém deixava fazer isso, só ele.
(23:49) P2 – Padre, vou voltar só um pouquinho: te contaram como foi o dia do seu nascimento e a história do seu nome?
R - A história do meu nome eu lembro bem, porque o meu primeiro irmão, o primeiro filho do meu pai e da minha mãe, ficou com o nome do meu pai, Milton. E aí, quando eu nasci, minha mãe falou: “Então agora esse eu vou pôr o nome de Júlio”, que é o nome do pai dela, do meu avô. E aí meu pai falou: “Bom, se você quiser pôr o nome de Júlio nele, vai ter que pôr o nome do meu irmão que faleceu, que é o Renato”. E aí por isso que eu fiquei Júlio Renato, porque normalmente os Júlios são Júlio César. E aí o Renato e eu sempre dizia: “Eu sou uma homenagem póstuma ao meu avô e ao tio que eu não conheci”, que era um irmão do meu pai, que se chamava Renato. E o que eu lembro bem é das consequências de eu ter nascido no dia que eu nasci, que é o 27 de dezembro. Então, nunca tinha festa do meu aniversário, porque sempre diziam: “Não, já teve o Natal, o presente é o do Natal, já é o do Natal e do aniversário”. Então eu ficava no prejuízo, eu ganhava um presente só. E eu lembro muito que eu queria fazer um bolo de aniversário, eu devia ter uns cinco anos e minha mãe falou: “Mas não vai vir ninguém”, porque todo mundo não está, viajou, estava em outros lugares, dois dias depois do Natal. E ela fez o bolo e não veio ninguém mesmo. E aí eu não me importei com isso, eu acendi a vela, subi na cadeira e cantei parabéns. E ela passou mal, coitada, de ver que eu mesmo fiz a festa comigo mesmo e estava bom. E ela passou mal, precisou ir até para o médico.
(25:52) P/1 - Como que era na sua casa? Quem que exercia autoridade? Seu pai, ou sua mãe, ou era...
R - Meu pai exercia autoridade de uma maneira muito forte, por ser uma época que até constitucionalmente o homem era a ‘cabeça’ da família, o chefe da família. Isso mudou só em 1988. Então você imagine: quando eu nasci, em 1948, até 1988 tem ‘chão’, né? Então... mas, por outro lado, meu pai era mais sensível. Eu conseguia perceber no que ele sofria, no que a sensibilidade dele marcava mais.
(26:42) P/1 – O que era?
R - Sentimentos, emoções. E eu acho que ele sentia, diante - ele nunca disse isso, é a minha interpretação - do intelectual da minha mãe, das condições intelectuais, ele se sentia um pouco ameaçado por isso. Então ele se incomodava que ela lia muito, porque para ele isso não era um valor. E para ela era. Ela lia desde a infância. Ela tinha muitos livros, lia, conhecia autores, tinha um nível de conhecimento que ele não tinha. Então, eu acho que isso, para ele, talvez, dentro da visão de que o homem é a ‘cabeça’ da família, eu nunca ouvi isso explicitado, mas eu percebia.
(27:44) P/1 – Como que era a relação entre eles?
R - Olha, como todo casal, dentro de uma situação de um modelo muito patriarcal, ela acabava se submetendo.
(28:04) P/1 – Você teve algum tipo de formação religiosa?
R - Eu tinha, independente deles. Minha mãe era muito religiosa e meu pai também. Eu vi muitas vezes meu pai ajoelhado, rezando. Eu achei na carteira dele os santinhos, depois que ele morreu, a devoção que ele recebeu, porque era uma geração ainda muito dentro do que a gente chama de cristandade. Eu acho assim: tem percepções, por exemplo, o meu irmão dormia no quarto com o meu pai e minha mãe. Quando o meu pai demorava, eu ia dormir lá também, no quarto onde estava o meu irmão e a minha mãe, porque minha tia já não estava mais, tinha casado, eu não queria ficar sozinho. Até que depois o meu irmão foi para esse quarto também, quando ele teve alta. E quando o meu pai chegava, eu estava dormindo e ele me carregava no colo, para me pôr na cama. E eu acordava no corredor, que era um corredor longo, mas eu não dava sinal que eu acordava, porque eu queria ficar no colo. E aí ficava no colo até ele me pôr na cama de volta. Mas eu acordava.
(29:18) P2 - Você tem essa recordação?
R - Tenho essa recordação. A primeira recordação que eu tenho, não sei que idade, mas eu estou dentro de um cesto de vime, segurando, vendo minha mãe cozinhar. É a memória mais antiga que eu tenho.
(29:37) P/1 - Sua mãe que cozinhava?
R - Minha mãe cozinhava porque o que aconteceu? Meu pai exigiu que ela saísse do trabalho de secretária. Por isso ela não se aposentou, ela não teve aposentadoria, nem nada, porque meu pai a tirou do emprego, como um bom homem que está trabalhando e que tem que manter a família. Mas não deu. E minha mãe então dava pensão, fazia comida para quarenta pessoas.
(30:03) P/1 – Ela fazia na sua casa?
R - Na minha casa. Tinha uma cozinha grande, então ela fazia comida.
(30:09) P/1 – Você lembra dessas comidas?
R - Eu lembro das comidas da minha mãe, sempre. Eu nunca comi nada igual. Eu, às vezes, procuro ver se eu acho alguma coisa do jeito que ela fazia. A comida dela tinha um sabor próprio. Eu acho que é o amor, né, na comida. Eu lembro a última comida que ela me fez, quando ela faleceu, porque quando ela faleceu, meu pai tinha falecido, eu que tive que avisá-la. Quando meu irmão mais velho faleceu, eu que tive que avisá-la. Quando meu irmão mais novo faleceu, eu que tive que avisá-la. E aí ficamos nós dois. E eu penso que ela olhava pra mim e eu olhava pra ela pensando qual de nós dois agora vai ficar sem o outro. E ela tinha uma ferida na perna e eu fazia o curativo na ferida dela. E eu fazia com toda a técnica, porque eu tinha feito o curso de enfermagem. E um dia o médico veio e falou: “Eu quero ver como é que você faz esse curativo, para avaliar porque está desse jeito a ferida”. E aí ele olhou como eu fazia curativo, ele disse: “Você tem uma técnica perfeita. Você faz assepsia, você isola o campo, você coloca a medicação. Você gosta de fazer curativo, né?” Eu falei: “Não”. Ele falou: “Mas você faz o curativo tão bem!” Eu falei: “Porque eu amo a pessoa em quem eu faço curativo, por isso que eu faço o melhor que eu sei. Então, não é porque eu gosto de fazer curativo, é porque eu amo a pessoa em quem eu faço o curativo”. E isso pra mim ficou uma lição na vida, que a gente tem que amar aquilo que faz e não só fazer o que gosta, porque tem uma ideia burguesa que eu só faço o que eu gosto. Tem coisas que você não gosta e tem que fazer e tem que fazer com gosto. Não tem jeito. Aprendi muito isso com as crianças da Casa Vida, cuidando da minha mãe nos momentos finais dela.
(32:46) P/1 – Padre Júlio, com quantos anos o senhor entrou na escola?
R - Eu entrei na escola acho que com seis anos e eu já sabia as letras, porque eu via na lombada dos livros da minha mãe e eu perguntava e ela me falava. Então, quando eu entrei na escola eu já sabia as letras. O meu irmão estava sempre um ano na minha frente, porque ele era um ano com mais idade do que eu. Então, quando eu entrei na escola, eu já sabia as letras, mas ele ia muito bem na escola e eu não tão bem quanto ele. E as professoras, algumas, faziam cada coisa de comparação conosco! Às vezes a professora de matemática me chamava de burro e mandava chamar meu irmão na outra sala, para fazer na minha frente a conta. E um dia eu ainda falei para o meu irmão: “Não conta em casa que eu não sabia fazer”. Ele falou: “Se você me comprar um pirulito da Kibon, eu não conto”. Aí na porta da escola tinha o carrinho de sorvete Kibon, cheio de pirulito assim, espetado, né? E aí eu comprei o pirulito de chocolate para ele e ele chegou em casa e contou. (risos) Ele negociou comigo que não ia contar e contou. Ele ficava triste quando eu lembrava disso, porque tudo que eu aprendi: andar de bicicleta, foi ele que me ensinou. Eu aprendi a empinar pipa, foi ele que me ensinou. Então, o meu irmão era referência pra mim. Quando ele faleceu, eu escrevi um artigo para ele no Diário de São Paulo, falando disso, da referência que ele era para mim.
(34:48) P/1 - Se falava de política, na sua casa?
R – Falava. Era uma época que tinha o janismo e o ademarismo. Então, se falava, a minha família era ademarista. Então, eu via. Eu não entendia tudo o que era, mas eu via isso tudo. E vi muitas movimentações militares, por causa da Celso Garcia, que era o caminho para o Rio, não tinha ainda a Radial Leste, nem a saída para Fernão Dias, pela Radial, era tudo pela Penha. Então, a Celso Garcia era a antiga estrada Rio-São Paulo. Então, 1964 ali foi uma movimentação enorme.
(35:39) P/1 – 1964 você tinha seis?
R - Eu nasci em 1948. Então, em 1964 a gente já estava mudando para o Tatuapé, mas ainda pegamos algumas dessas movimentações. A Revolução, chamada Revolução, o Golpe de 1964 foi terrível, em termos do que fizeram conosco nas escolas, a pressão nas famílias. Mas o que eu lembro muito é em 1954, o IV Centenário de São Paulo.
(36:12) P/1 - O que você lembra?
R - Ah, da chuva de papel, das inaugurações na cidade, da euforia que tinha na cidade, pelo IV Centenário, das programações.
(36:25) P/1 - Você chegou a participar?
R - Eu fui em algumas coisas, mas jogava um papel picado, prateado, escrito IV Centenário de São Paulo, chovia aquilo na cidade, até falavam que tinha caído um saco fechado e tinha matado uma pessoa. Era uma confusão. E ali passavam os bondes, de vez em quando dava desastre com os bondes.
(36:54) P/1 – Ali na Celso Garcia?
R – Na Celso Garcia. Eu andei a última vez que o bonde fechado, que a gente chamava de Camarão, passou ali na Celso Garcia, com a bandinha tocando e nós fomos tudo pendurados no bonde.
(37:10) P/1 – Voltando para a escola, quer dizer, além dessa professora, que outras situações ou pessoas te marcaram nessa época?
R - Na escola, todos os professores me marcaram muito. A minha primeira professora, que é Irmã Teófila, me marcou demais. Eu lembro da mão dela, do jeito doce. Ela parecia feita de algodão, uma pessoa... e eu olhava um sinal que ela carregava no hábito de freira, um coração cheio de flores, mas com espinho, com sangue, com água, com fogo. E eu olhava muito aquele coração, imaginando o que era aquilo. Por que aquele coração tinha flor, mas tinha espinho? Por que tinha sinal de alegria e sangue? Então, aquilo me marcou muito, essa Irmã me marcou muito.
(38:05) P/1 – Como que era o nome dessa escola?
R - Teófila.
(38:07) P/1 - Era a Teófila da escola?
R - Era o Educandário São José do Belém, na Celso Garcia também.
(38:14) P/1 – Era um colégio pago?
R - Era um colégio, naquela época era interessante: os colégios estaduais eram da elite. Caetano de Campos. Quem que frequentava o Caetano de Campos? A elite paulista. Foi uma coisa interessante no processo de educação, em São Paulo. Os filhos dos pobres estudavam nas escolas particulares religiosas, que eram valores insignificantes e a elite estudava, que era o Caetano de Campos, aqui onde estudou o Serra, aqui no Firmino de Proença, aquele da Paes de Barros, o Pandiá Calógeras. Quem estudava lá? A elite. Os pobres estudavam nas escolas... depois que houve essa reversão. No Educandário São José do Belém, o meu avô Júlio, que era mecânico, fazia a manutenção das máquinas para as Irmãs e principalmente as máquinas da lavanderia. Então, todos os filhos do Júlio estudavam de graça lá, porque ele cuidava das máquinas. E foi para lá a primeira escola que eu fui também. E depois eu fui para o Educandário Espírito Santo, na Rua Tuiuti, que é outra história, outra aventura.
(39:50) P/1 – Mas por que você mudou de escola?
R - Porque nós mudamos de casa, nós saímos da Celso Garcia e fomos morar na Praça Pádua Dias, no Tatuapé.
(40:00) P/1 - Por que vocês mudaram?
R - Eu não entendi bem por que, mas eu acho que foi porque a casa da minha avó era uma herança e nós saímos, para vender. É a impressão que eu tenho. Não foi nunca uma coisa que ficou clara para mim.
(40:20) P/1 – Como que era essa região do Tatuapé, na época?
R - Era bem pobre, na época. Era uma praça de terra, onde a gente brincava de bolinha de gude, pulava corda, jogava pedra de torrão, tinha um cavalo que dançava, que vinha de noite, tinha pipoqueiro, algodão doce, muita poça d'água. Uma coisa que me marca muito nessa praça é que a gente morava do lado, vamos dizer assim, mais popular da praça e tinha um lado mais na frente, elitista. E eu perguntava pra minha mãe: “Por que aqueles meninos lá daquela família alemã e outros e tinha uma outra rua que moravam médicos, ganham no Natal autômato de pilha, que solta bolinha, que faz...” - eu acreditava no Papai Noel ainda – “Por que o Papai Noel dá isso pra eles e pra mim sempre dá esse carrinho de pau?” Ela falou: “Porque o Papai Noel começa de lá pra cá”. Eu falei: “Ah! Mas não pode falar pra ele um ano começar daqui pra lá?” Ela falou: “Não, ele sempre vai começar de lá pra cá”. Eu falei: “Mas esse Papai Noel também, hein, só começa de lá pra cá. Então eu sempre vou ganhar o carrinho de pau”. E ele não mudava. Aí o meu irmão, que era mais velho que eu, me contou: “Não tem Papai Noel nenhum, não. Vem ver o que você já vai ganhar no Natal, está guardado aqui, no porão”. (risos) Aí ele me levou no porão, pra eu ver o que eu ia ganhar.
(41:59) P/1 - Tinha festa de Natal na sua casa, que festas que se comemoravam?
R - Era festa que juntava família. Eu lembro das comidas que minha mãe fazia, tudo de tradição italiana, juntava todo mundo. Eles brigavam entre eles, a gente não sabia o que era. A gente ficava brincando, comendo as coisas gostosas que eles faziam, mas não entendia muito do que eles falavam. Eles falavam muito: “Isso é conversa de adulto, criança vai pra lá”. E a gente ia e então eu não sabia o que eles estavam falando. Muitos dos problemas entre eles, os adultos e mesmo o casal, eu não sabia o que era. Depois que a gente supõe.
(42:55) P/1 - Tinha problemas?
R - Ah, tinha, eles tinham os problemas entre eles. Na época eu não sabia o que era.
(43:03) P/1 - E depois?
R - Depois mais imaginação da minha parte, ou algumas coisas que minha mãe, que viveu mais tempo, podia contar. Mas o que eu via neles é assim: a visão de casamento é para sempre. Ou é bom, ou é ruim, é isso, é aquilo, é...
(43:31) P/1 - E que problemas eram esses? Sua mãe contou, depois?
R - Alguns ela contava coisas mais íntimas, outros não. Então, eles... minha mãe é de uma geração de uma cabeça muito aberta, mas reservada. Eu lembro uma coisa que me marcou muito: eles viam que eu era muito religioso, que eu ia na missa porque eu queria, ia nas coisas da escola porque eu queria, nas coisas religiosas. E um dia minha mãe e minha tia resolveram contar pro meu irmão qualquer coisa do Adão e Eva e me puseram pra fora, pra eu não saber o que era. Eu achei um desaforo, mas depois eu pensei: eles tinham uma ideia completamente fundamentalista, não entenderam o mito do Adão e Eva.
(44:37) P/1 - O que te levou? Você começou a ir para a igreja sozinho?
R - Sim.
(44:42) P/1 - Como é que foi esse percurso?
R - Eu ia sozinho. Eu lembro que eu fazia, eu sabia fazer um altarzinho de toco de madeira, com carretel de linha, que era aquele carretel de linha de madeira, que a gente cortava no meio, eu fazia os candelabros e tudo. E um dia eu lembro meu pai e minha mãe na porta do quarto, onde eu estava brincando de... eu falava: “Vou brincar de igrejinha”, que eu falava. Meu pai falou, eles dois estavam juntos abraçados e meu pai falou: “Eu vou comprar uma igreja pra você, rapaz”. Eles nunca influenciaram, eles sempre respeitaram as minhas escolhas, mas nunca influenciaram.
(45:26) P/1 - Mas de onde você acha que veio?
R - Eu acho que veio da minha vivência. Tem uma Irmã com quem eu convivi na escola, a Irmã Inezita, ela tinha como carisma cuidar dos alunos que eram considerados os mais rebeldes e aí ela cuidava de mim também. E nós tínhamos muito carinho por ela. Então, você imagina: eu ia para a escola como coroinha, para ajudar a missa do convento, eu saía de casa às cinco da manhã e meu pai não queria, porque tinha que atravessar toda a praça no escuro e minha mãe sabia e eu descia as escadas com o sapato na mão, para ele não ouvir o barulho. E eu ia lá, ajudava a missa, ficava lá, vinha pra casa almoçar e depois ia lá passar a tarde com a Irmã Inezita, pra fazer lição. E ela não enxergava, ela usava uns óculos com a lente verde, muito grosso e cada Irmã tinha que fazer a faxina de uma sala. Nós tínhamos pena dela, porque ela não enxergava e nós fazíamos a faxina pra ela. A gente falava pra ela: “Você fica sentada aí, que nós vamos fazer, pra você”. E eu aprendi a responder a missa em uma semana, em latim.
(46:52) P/1 - Quantos anos você tinha?
R - Ah, eu devia de ter uns... já oito, nove anos, por aí. Aí eu aprendi a responder a missa em latim.
(47:02) P/1 – Com oito, nove anos?
R - É. E ela que me incentivou a ir pro seminário, quando eu cheguei no exame de admissão.
(47:12) P/1 – Deixa eu voltar um pouquinho, a gente já chega aí: você era rebelde, na escola? Você falou que ela...
R - Não sei se eu era rebelde. Eu acho que eu não era dentro do padrão.
(47:28) P/1 - O que era isso? O que era que você fazia?
R - Que eu não fosse tão comportado, não aprendesse no nível que eles queriam que eu aprendesse. Não tivesse, acho, o aproveitamento, porque naquele tempo tinha... no boletim vinha nota de comportamento. E a minha nota de comportamento era baixa.
(47:50) P/1 - Por quê?
R - Eu não sei por quê. (risos) Não sei se você chegou a ver isso, está na história, marcado, os boletins antigos, dessa década. Tinha lá uma coluna comportamento e a gente tinha nota de comportamento. Então, a nota começava... a maior nota era cem e eu tinha acho que, sei lá, cinquenta, sessenta de comportamento, então era uma nota baixa de comportamento.
(48:19) P/1 - O que você fazia?
R - Não, eu não sei o que eu fazia. Para mim eu não fazia nada de especial. Eu não sei o que eu fazia. Eu era do apostolado, eu rezava, eu era coroinha.
(48:34) P/1 – Com oito anos você já era coroinha?
R - Sim.
(48:38) P/1 - Como você foi chamado para ser coroinha?
R - Eu que gostava.
(48:43) P/1 - Aí ela te levou?
R - É. Aí, como eu gostava dela, eu aprendi rapidinho. Mas eu não me importava que os outros não gostavam.
(48:55) P/1 - Por que você gostava naquela época, já?
R - Não sei. Eu gostava, achava bonito. Era uma coisa que me fazia bem. Os meninos me xingavam porque eu ia na missa, chutavam a bola na minha meia. A gente usava meia até o joelho, branca. Quando eu ia indo para a igreja eles chutavam a bola na minha meia, para a minha meia ficar manchada de barro. Eles iam jogar bola e eu ia na igreja. Eu gostava de lá.
(49:28) P/1 - Era um bem-estar seu ou tinha já uma crença de (49:33)?
R - Não, eu gostava, eu achava bonito, eu gostava daquilo. Era alguma coisa que respondia pra mim. Eu gostava de ver São Sebastião. Tinha um São Sebastião grande, lá na igreja. Um São Francisco. Na Igreja Cristo Rei, no Tatuapé. E de manhã a gente saía da escola com o estandarte, tocando a campainha, pelas ruas, chamando todo mundo pra ir à missa. E quantas vezes eu fui com aquele estandarte e os meninos me xingavam, jogavam bola na minha roupa. Mas eu ia porque eu gostava. (risos) Deve ser alguma patologia. (risos)
(50:27) P/1 - E aí você... isso você estava ainda na primeira...
R - Antes de ir para o seminário.
(50:34) P/1 - Aí você... em que momento que você toma essa decisão de ir para o seminário?
R - Eu já estou no horário chegando no limite. Mas antes de eu ir para o seminário tinha o caso... eu morava na parte de cima e tinham duas meninas da idade minha e do meu irmão, que moravam embaixo.
(51:01) P/1 – Era uma casa?
R - Era um sobrado. E embaixo morava a Sônia e a Sueli. E aí nós decidimos que a Sueli era a namorada do Milton e a Sônia era a minha namorada. E era aquelas curiosidades de criança: brincar de médico, brincar de casinha. Aí a gente ia brincar de casinha. O Milton e eu brincávamos de casinha, com a Sônia e com a Sueli.
(51:25) P/1 – Quantos anos?
R – Ah, eu devia ter uns nove, dez anos. Mas é aquelas coisas: essas descobertas da pré-adolescência. Nós tínhamos uma mangueira, a gente descia a mangueira do terraço da nossa parte de cima, para ficar ouvindo o que elas estavam falando lá embaixo ou ir para falar com elas. (risos) Então, é uma infância que teve de tudo isso. Aí os adultos ficavam de olho, porque as duas meninas, o meu irmão e eu, estávamos brincando de casinha lá num lugar, nós quatro. (risos)
(52:10) P/1 - Vocês foram pegos, já?
R - Ah, todo mundo ia olhar o que nós estávamos fazendo. E elas eram terríveis também e nós querendo saber como é que eram as coisas. (risos) Então, a gente brincava essas coisas que as crianças brincavam, naquela época. Não tinha internet, não tinha filme, não tinha nada. Então, eram as descobertas da vida. E aí a gente foi crescendo, adolescente, os bailes, as festinhas.
(52:49) P/1 - Mas isso aí... com quantos anos você vai pro seminário?
R - Eu fui a primeira vez, a vizinhança fez uma festa que eu fui pro seminário, porque eles disseram assim: “O diabo desse menino vai embora”. Me deram todo o enxoval do seminário, de presente. Eu gostava de bala de canela, me deram um sacão cheio de bala de canela. Eles estavam torcendo pra que eu não voltasse mais. Aí eu fui para Araraquara e no ínterim que eu estava em Araraquara, que eu fiquei seis meses, meu pai e minha mãe mudaram de casa outra vez, voltaram para Celso Garcia, numa outra casa e eu vim de férias, gostei muito do lugar que eles tinham ido, estava com muitas saudades e aí fiquei, não quis voltar mais.
(53:37) P/1 – Mas essa primeira vez que você vai pro seminário quantos anos você tinha?
R - Eu estava na admissão, eu devia estar entre 11 e 12 anos.
(53:45) P/1 – E aí você ficou quanto tempo lá?
R - Seis meses, seis a sete meses.
(53:50) P/1 – E como é que foram esses seis meses?
R - Ah, foram horríveis. Era muito longe.
(53:56) P/1 - Onde que era?
R - Em Araraquara. Naquela época levava seis horas de trem para chegar lá.
(54:01) P/1 – Como que era o seminário, o nome dele?
R - Nossa Senhora do Carmo. E o padre que cuidava era muito rígido, eu apanhei de vara.
(54:12) P/1 - Por que você apanhava?
R - Eu apanhei porque eu ri de um amigo meu, que chamava Euclides e que fez uma careta e o padre achou que eu estava rindo da cara dele. Aí eu falei: “Não, eu não estou rindo do senhor”. Ele me deu um tapão no rosto e aí eu fiquei ajoelhado no milho e ainda levei três varadas de bambu.
(54:37) P/1 – Aí você quis vir embora?
R - Aí ele falou para mim: “Vai chorar pro Padre Martinho”. Aí eu fui bater na porta do quarto do Padre Martinho e falei: “Eu vim aqui chorar”. (risos)
(54:48) P/1 - E o Padre Martinho?
R - Eu nunca esqueci o que ele me falou. Eu abracei na cintura dele, ele falou para mim: “Você vai sofrer muito, porque você é sensível como um passarinho”. Nunca esqueci que ele me falou isso. E eu abraçado na cintura dele, que era mais baixo, chorando, a batina dele ficava molhada das minhas lágrimas. Ele falou: “Você vai sofrer muito na vida. Você é muito sensível”. E aí depois eu vim de férias, na casa que meu pai estava morando, nova, que era dentro do Serviço Social de Menores, porque ele tinha um cargo muito importante, de confiança e ele cuidava de todos os suprimentos, então o governo deu uma casa lá dentro para ele morar, porque ele tinha que estar 24 horas à disposição. E aí eu gostei muito dessa casa, do lugar. E aí eu voltei para Araraquara e pedi para voltar para casa.
(56:07) P/1 – Quando você estava lá em Araraquara o que você sentia mais falta, lá?
R - Eu tinha uma professora que eu gostava muito, que era muito carinhosa. Eu sentia falta, acho, do convívio da família.
(56:23) P/1 – Nesses seis meses você tinha saudades das brincadeiras com (56:27)?
R - Depois a gente se separou, elas foram para um lado, eu fui para o outro. Aí eu conheci uma outra lá, onde meu pai trabalhava.
(56:37) P/1 - Como que era essa casa, dentro do trabalho?
R - Era uma casa grande, bonita, tinha uma sala muito grande, tinha lareira. Tinha um corredor de cerâmica que eu que tinha que limpar e passar cera Cardeal, naquele corredor. Não tinha enceradeira, a gente tinha que passar escovão. Eu tinha que ficar raspando. Aquele corredor era um terror na minha vida. (risos)
(57:03) P/1 - Mas o trabalho ficava como? Como que era, assim?
R - Não, meu pai que trabalhava.
(57:08) P/1 - Mas ficava onde?
R - A casa ficava numa parte separada, mas a gente sabia que os meninos que estavam internados, que eram mais ou menos da minha idade, estavam do outro lado.
(57:19) P/1 – E vocês tinham contato?
R – Tinha. Meu pai me levava a brincar com eles.
(57:27) P/1 - Você sentia a diferença que tinha entre a sua vida e a deles?
R - Sim, por isso eu brincava muito com eles. E aí criança com criança se entende, né? Eu vi, em 1964, os filhos dos presos políticos, os sequestros, ter que entregar as crianças para irem... aqueles sequestros maiores que os presos queriam os filhos de volta, eles estavam lá. A gente não entendia nada, mas via tudo isso.
(58:11) P/1 - Você via por onde?
R – Que enchia de carro de polícia, que eram umas polícias que a gente não conhecia, federal.
(58:20) P/1 - Ia lá na tua casa?
R - É, naquela região toda. Que aí tinha que pôr dentro do carro aquelas crianças e que eles iam embora e que a gente nunca mais ia vê-los.
(58:32) P/1 - E seu pai comentava isso com você?
R - Não. Não era conversa de crianças.
(58:39) P/1 - Nem sua mãe?
R - Não. Ninguém podia abrir a boca, pra nada.
Entrevista do Padre Júlio Lancellotti
Entrevistado por Rosana Miziara e Luiza Gallo
São Paulo, 3 de novembro de 2023
Projeto Acolher Histórias
Entrevista ACOH_HV004 Parte 2
Transcrita por Selma Paiva
R - Então, eu podia fazer uma introdução à questão da Casa Vida.
(59:07) P/1 – Como é que ela nasce?
R - O Estatuto da Criança e do Adolescente foi promulgado em 1989. Foi uma luta muito grande, porque o Estatuto da Criança e do Adolescente é a lei ordinária do artigo 227 da Constituição Federal. Na constituinte de 1988 foi uma grande luta para passar o artigo 227, que colocava que criança e adolescente são prioridade absoluta. Só que isso era um princípio constitucional. Precisava de uma lei, que é chamada lei ordinária, quer dizer, uma lei comum, que é o Estatuto da Criança e do Adolescente, que foi construído a muitas mãos. Então, muitos grupos, muitos movimentos, tendo um protagonismo muito forte do Bispo Dom Luciano Pedro Mendes de Almeida, que era o bispo referência para Pastoral do Menor e figuras muito importantes, como a Irmã Maria do Rosário Leite Cintra e da Ruth Pistori e de promotores, como o Doutor Munir Curi Mezerani e Paulo Afonso Garrido de Paula. Então, eu também fazia parte dessa equipe onde, junto com as comunidades, fomos esboçando quais são os direitos da criança e do adolescente. E saímos do antigo Código de Menores, que tinha um nome horrível, chamava Código de Menor e falava de situação irregular, para o Estatuto da Criança e do Adolescente, que passa a ver a criança e o adolescente como uma pessoa sujeita de direitos. Uma das coisas que o estatuto propôs foi não ter mais orfanatos e grandes orfanatos. Eu trabalhei em 1978 no antigo Educandário Sampaio Viana, que é a antiga Roda da Santa Casa, Roda dos Expostos, onde nós tínhamos setecentas crianças, de zero a seis anos. Então, era uma loucura: trezentas crianças que tinham que tomar mamadeira e que davam mamadeira para essas crianças colocando o pano e a mamadeira em cima do peito. As crianças viravam a cabeça, o bico da mamadeira ia para o ouvido e dava otite. E algumas crianças ficavam com otite média e otite mais grave, porque mamavam pela orelha, porque o bico da mamadeira ia para a orelha. Crianças que tomavam banho em série. Então, um tirava a roupa, outro mergulhava na água, outro tirava da água, outro enxugava, outro vestia. E às vezes na mesma água. Ou para dar almoço, colocavam dez crianças e o mesmo prato, a mesma colher, uma colherada na boca de cada um. Então, isso era um horror. E a gente lutou contra tudo isso, para que cada criança fosse amamentada no colo, por uma pessoa; que se conversasse com as crianças, para elas aprenderem a falar; que elas caminhassem, que ficassem fora do berço. Então, quando o estatuto surgiu, uma das ideias e propostas era essa: acabar com os grandes orfanatos e ter casas para grupos pequenos e mais próximas da realidade familiar, de grupos familiares. E casas com vinte crianças. Imagine sair de setecentas, pra vinte. E o mais possível semelhante à vida de um grupo familiar. O estatuto foi muito combatido e aqui no Brasil se falava que aquele estatuto era para a Suíça e não para o Brasil. Se criticava a questão das medidas socioeducativas. O estatuto previa que o médico que fizesse o pré-natal acompanhasse o parto, que houvesse alojamento conjunto, que a criança ficasse no quarto com a mãe e não no berçário, por que nos berçários faziam o quê? Davam mamadeira para as crianças. E as crianças depois não pegavam o peito, porque o bico da mamadeira é mole, é flácido e para mamar no seio tem que fazer esforço, que é importante, porque melhora a articulação, melhora a dicção. Bom, foi uma luta muito grande. E acabar com os presídios de jovens e tudo mais. O estatuto ainda está em luta para ser implantado. Em 2023, ainda em muitos lugares do Brasil não se obedece o Estatuto da Criança e do Adolescente. E eu pensei, naquele momento: “Nós temos que dar uma resposta concreta dentro do estatuto, para que os que criticam, dizendo que o estatuto é para a Suíça, mostrar que ele acontece aqui também e que ele é viável”. Eu fui procurar então qual dos grupos de crianças ou adolescentes que estavam numa situação mais gritante. Aí você vê o texto dentro do contexto: o estatuto sai em 1989, década de oitenta, o auge da pandemia de AIDS. Um momento em que a questão da AIDS está estourando no mundo e causando pânico e causando moralismo, causando perseguição, causando coisas muito dramáticas. Estava na minha cabeça também duas amigas com quem eu trabalhei, são amigas até hoje, a Cecília e a Regina, que me disseram, um dos nossos colegas de trabalho estava internado no Hospital Antônio Carlos, da Rua Antônio Carlos, em estado terminal de HIV, de AIDS. E elas pediram que eu fosse visitá-lo. Eu lembrava dele, que nós trabalhamos juntos numa unidade escolar. Eu não tinha muita proximidade com ele, ele se chamava Ailton, mas o apelido dele era Maravilhoso. E eu não tinha muita proximidade, mas o conhecia.
(01:05:49) P/1 - Qual que era o apelido dele?
R - Maravilhoso.
(01:05:51) P/1 - Ah, Maravilhoso. Era o apelido dele?
R - Era o apelido dele. Que ele mesmo acho que se autodenominou.
(01:05:56) P/1 - Eu achei, entendi que o apelido era maravilhoso.
R - Não, não. É Maravilhoso. Aí eu fui ao hospital, eu já era padre, eu fui visitá-lo e ele parecia uma folha seca. E para eu poder visitá-lo eu tive que colocar gorro, máscara, um avental, luvas pro pé, porque era a pandemia de AIDS e era um momento dramático, a década de oitenta e aí a gente já estava no final da década de oitenta. E quando eu fui visitá-lo e ele me viu, eu perguntei: “Você sabe quem é?” Ele disse, fez com a cabeça que sim e falou: “Padre Júlio”. Aí ele disse, ele começou a chorar e disse: “Eu quero me confessar”. Eu falei: “Não fala nada. Poupa, não fala, você está muito cansado”. Ele estava com a respiração muito fraca. Pus a mão na cabeça dele e disse: “Fique em paz. Não precisa dizer nada. Deus conhece o teu coração. Eu vou te dar absolvição e você pacifica o coração. Não tem que falar nada”, porque ele era um rapaz gay e acabou infectado. E logo depois ele faleceu. E aquilo ficou na minha cabeça, o sofrimento dele e a culpa que carregava, porque o moralismo, era praga gay, aquelas coisas todas que a gente ouviu na década de oitenta, que é a década de Freddie Mercury, do Cazuza e os grandes nomes que foram aparecendo, que pereceram vítimas da pandemia de AIDS. E quando eu fui lá no antigo Educandário Sampaio Viana, onde eu tinha trabalhado, eu vi as crianças que nasciam HIV, porque naquela época as mães sabiam que eram HIV por causa dos filhos. Então, a criança aparecia doente, fazia o exame de HIV e constatava que a criança era HIV positivo. E as mães não sabiam. Então, eu vi lá no prédio do Educandário Sampaio Viana, no Pacaembu, as crianças com HIV positivo, todas no segundo andar do prédio, fechadas num quarto, de onde elas não saíam e com os funcionários todos super paramentados, então elas não viam o rosto das pessoas que cuidavam delas, elas viam o mundo pela janela, elas não podiam sair para brincar, não podiam nada, ficavam reclusas, porque naquele momento até funcionários que quisessem cuidar dessas crianças eram raros. E eles não tinham uma dieta específica, condições de higiene adequadas, espaço para brincar, para viver. Eles continuavam sendo crianças. Então eu disse: “Então vamos dar uma resposta para essas crianças”. Então foi daí que surgiu a ideia de fazermos a Casa Vida, para ser uma casa que acolhesse as crianças com HIV e AIDS. Então nós começamos a fazer uma movimentação de levantar recursos e todo mundo achou uma loucura e todos me diziam: “Você é louco, você vai mexer com isso, criança com HIV, vão todas morrer, ninguém vai sobreviver, você vai se infectar”, coisas as mais malucas. Aí nós conseguimos, com o apoio de um grupo italiano, comprar uma casa e começamos a reformar essa casa com todos os rigores e a Vigilância Sanitária me monitorando a cada passo, para ter azulejo até tal altura, pia para salgado, pia para doce, fogão para o leite, fogão para a carne, fraldário com vaso sanitário do lado, para eliminar as fezes. Aí nós fizemos um estudo técnico sobre tudo o que deveria ter, para acolher crianças com HIV. Inclusive, de não ter extremidades, de não ter nada que acumulasse resíduos. Então, eu estudei muito isso, visitei muitos lugares, para saber que tipo de material na parede, que tipo de material no banheiro, que altura que tinha que ser o box. Foram muitos detalhes. Até a louça com porosidade, sem porosidade, que tipo de... tudo. E cardápio para crianças com HIV, que tipo de óleo era o melhor, que tipo de vegetal, de frutas. Então, fizemos um aparato enorme, para ter a Casa Vida. E abrimos a casa com o apoio de Dom Paulo Evaristo Arns, com apoio do embaixador britânico e com apoio da Lady Di, da Princesa Diana, que veio ao Brasil. Quando ela veio, ela foi visitar as crianças que viriam morar na Casa Vida, porque a casa não tinha ficado pronta e com a ajuda do consulado britânico, aí a princesa Diana foi ao Sampaio Viana e visitou as crianças com HIV e eu estava junto, para conhecer as crianças com HIV, que vinham para a Casa Vida. E com tudo que tinha, a Princesa Diana pegou as crianças no colo, beijaram, agradaram, fizeram de tudo e ela... como explicaram para ela que eram as crianças HIV positivas. E aí foi toda essa luta, até eles virem morar na Casa Vida e vieram no começo acho que 15, mas rapidamente nós passamos de cinquenta, sessenta crianças. Tivemos que abrir uma segunda casa, para acolher as crianças com HIV. E aí eu fui processado, entraram na Justiça, tentaram pôr fogo na casa duas vezes.
(01:12:57) P/1 – Por quê?
R - Porque eram pessoas com HIV, crianças com HIV. E então houve uma campanha muito grande contra a casa e uma vizinha médica nos atacou muito, a imprensa do bairro nos atacou muito, fizeram abaixo-assinado, muitas coisas contra a casa, para que não abrisse uma casa que seria um foco de doença, de contaminação. Mas a gente teve um fato muito impressionante, logo que as crianças chegaram: alguma coisa fizeram, que o cachorro de uma das casas vizinhas estava morto e aí eles disseram que era por causa da casa, que o cachorro teria comido alguma coisa ou foi contaminado e morreu. E aí eu propus que nós faríamos autópsia do cachorro e pagaríamos, para saber o que tinha feito o cachorro morrer. Aí não quiseram. Envenenaram o cachorro, para pôr a culpa em nós. Num domingo, duas vezes tentaram pôr fogo na casa. E na segunda vez eu ia começar aqui a missa das seis da tarde, quando me avisaram. O fogo começou outra vez, tinham jogado outra vez fogo na casa. A igreja aqui estava cheia e eu disse pras pessoas: “A missa de hoje vai ser socorrer as crianças, que a casa está queimando”. Aí todos saímos (choro) juntos e fomos para limpar, lavar, tirar as crianças, diminuir o cheiro. E foi interessante que algumas famílias levaram as crianças para casa, até que lavasse tudo, limpasse tudo, para eles voltarem. Então, isso é uma introdução ao que foi, depois eu posso entrar na história de cada criança.
(01:15:05) P2 – Padre, como você lida com esses ataques, pessoalmente?
R - Eles são duros. Hoje mesmo passou um carro e uma pessoa me xingando, aqui perto, porque houve um saque lá numa loja, próximo da Cracolândia. Machuca, claro. A gente não é pedra, né? Então, são coisas pesadas, que fazem parte do dia a dia. A gente tem que aguentar. E Dom Paulo falou pra mim, quando eu abri a Casa Vida, ele disse: “Você vai sofrer muito”. E minha mãe também falou: “Você sabe o que você está fazendo?” Porque nos primeiros seis meses morreu uma criança por mês. Aí, no sexto mês, eu disse: “Aí não dá, a gente não aguenta. Uma por mês”. E eram todas pequenas, com menos de um ano, que já vieram muito doentes. E depois ficou um bom período sem nenhum óbito. E aí eu não quero entrar nos casos agora, mas a Fabiana foi a primeira que faleceu, com sete anos. E aí foi um baque muito duro, porque já era uma criança com sete anos. E era uma época que não tinha o coquetel, não tinha ainda as medicações, os remédios eram todos importados, então a gente tinha que conseguir recursos para fazer a importação de medicação, a capacitação das pessoas para lidar, porque existia o medo.
(01:16:59) P/1 – Como se dava essa questão de recursos?
R - Nós começamos com um convênio com o estado, com a secretaria, na época e quem ajudou muito foi a Doutora Alda Marco Antônio, que era a Secretária do Menor na ocasião e ela apoiou muito essa proposta, ela veio para a abertura da Casa Vida, bancou, cedeu pessoas, porque nós não queríamos que rompesse os laços com quem eles já conheciam. Então, ela deixou alguns funcionários, permitiu juridicamente que alguns funcionários do governo viessem fazer parte do quadro da Casa Vida. E o restante a gente foi conseguindo doações, apoio de vários grupos, para manter, porque era uma manutenção cara, porque tinha que ter auxiliares de enfermagem e vinham fiscalizar a gente de pegar os cremes de pele, pomadas, olhar a data, porque não é fácil você pegar a data de vencimento de um tubo, de um creme. Até isso vinham fiscalizar, a altura do azulejo, a altura do vaso sanitário. Nós tínhamos vasos sanitários para crianças, vasos sanitários para adultos em número, na proporção. Berços todos eles, para desinfetar, fazíamos desinfecção terminal, desinfecção concorrente, então um trabalho de assepsia muito grande. Era um trabalho muito técnico, com acompanhamento de infectologistas. Trabalhamos em conjunto com o Instituto de Infectologia Emílio Ribas, com a equipe da Doutora Marinella Della Negra e com o Instituto da Criança do Hospital das Clínicas. Era um trabalho muito complexo, muito difícil, de muita responsabilidade e que lidava com a vida daquelas crianças, que precisavam sobreviver e serem amadas e serem crianças. Brincarem, irem na escola, fazerem tudo que uma criança faz: ter brinquedos, ter alegria de viver, ter vontade de viver, se sentirem amadas e não objetos de cuidado.
(01:19:36) P/1 – Como era a relação da arquidiocese do Dom Paulo Evaristo Arns?
R - Todo apoio. Depois eu vou entrar em detalhes disso, mas todo apoio. Dom Paulo foi dos primeiros bispos a dizer: “Todo apoio às pessoas com HIV e AIDS”. E ele dizia: “Imoral é perguntar como é que a pessoa se infectou. Ninguém precisa saber disso. Essas pessoas precisam ser cuidadas”. E Dom Paulo teve várias ações de apoio aos doentes com HIV e AIDS.
(01:20:20) P/1 – E onde que era tudo isso?
R - O Alivi, que era uma casa para pessoas adultas. Surgiram muitos projetos de acompanhamento das famílias e Dom Paulo que abriu a Casa Vida. Eu lembro que no dia que abriu a Casa Vida e nós estávamos sendo muito atacados, quem me ajudou muito foi uma jornalista da Globo, que é a Ananda Apple, ela ajudou muito. Tanto que eu dizia para ela que ela era madrinha da Casa Vida. Ela ajudou demais, a Ananda, jornalisticamente e tudo. E no dia que abriu, Dom Paulo fez uma celebração na Paróquia Nossa Senhora de Lourdes, que tem uma torre altíssima, com sinos e ele fez uma grande celebração. E aí saímos todos pela rua, caminhando, um monte de gente com ele, com outros xingando, gente jogando o carro em cima, cantando pneu. E Dom Paulo veio pela rua, com todos e mandou que os sinos repicassem e abriu as portas e disse: “Está aberta a Casa Vida”.
(01:21:38) P2 – Que dia?
R - Foi no dia 26 de junho, dia de São Joaquim e Santa Ana, de 1900... o estatuto é 1999, para 2000.
(01:21:58) P/1 – Quem eram? Que santos que eram São Joaquim e Santa Ana?
R - Os avós do menino Jesus, os pais de Maria.
(01:22:07) P/1 – Quanto tempo durou a Casa Vida?
R - A Casa Vida durou assim, mais, até 2009, 2010, porque aí é toda uma luta que foi feita de que hoje, por exemplo, o exame de HIV faz parte do pré-natal. Então, toda mulher, no pré-natal, faz exame de HIV. Então, a gente sabe já antes se a mulher é HIV positivo, para baixar a carga viral e para ela ter um parto seguro, não passando para criança. Então, hoje a gente zerou a contaminação vertical.
(01:22:51) P/1 – E aí a Casa Vida...
R - Hoje é um abrigo comum, um abrigo de crianças comum, porque hoje já não teria necessidade de ter uma casa só para crianças com HIV.
(01:23:07) P/1 – E nesse momento, quer dizer: o senhor estava nessa causa, atravessando tudo isso e o senhor tinha outras causas, já?
R - Eu estava já com a Pastoral de Rua e com a Pastoral do Menor.
(01:23:20) P/1 - Quando que o senhor fez essa opção para Pastoral de Rua?
R - Acho que sempre eu convivi com o pessoal de rua.
(01:23:29) P/1 – Como que era a Pastoral de Rua naquele momento?
R - Era aquilo que Dom Paulo pediu que levasse Puebla para a rua. Isto é: se formasse comunidade com a população de rua. Dom Paulo queria que não formasse fila, formasse comunidade. Não fosse cliente, fosse irmão.
(01:23:51) P/1 – Como é que se dava essa (01:23:53)?
R - Na convivência, conviver.
(01:23:59) P/1 – Como era, na prática, conviver?
R - Conviver, comer junto, estar junto, rezar junto. É aquilo: não rezar por eles, rezar com eles. Não dar comida para eles, comer junto.
(01:24:15) P/1 – Como é que as pessoas iam, procuravam a pastoral?
R - Aos poucos. O número de pessoas em situação de rua era bem menor. Na primeira contagem que fez eram sete mil, hoje são cinquenta mil.
(01:24:30) P/1 - Que ano que era sete mil?
R - Era no início da década de noventa.
(01:24:40) P/1 – E tinha uma concentração?
R – Tem. Como sempre, o Centro sempre tem um número maior.
(01:24:49) P/1 – E você ia até tipo a Praça da Sé?
R – Ah, sim, nós tínhamos várias comunidades, em vários lugares, mas aí depois a gente entra nisso, da Pastoral de Rua. A Casa Vida foi concomitante, eu já tinha paróquia.
(01:25:05) P/1 – Essa paróquia?
R – É. Eu sempre fiquei aqui, por dois motivos: nunca nenhum padre quis vir pra cá e nunca nenhuma paróquia me quis, então eu tive que ficar aqui.
(01:25:15) P/1 – (risos) E por que ninguém queria vir pra cá?
R - Porque é uma igreja pequena, pobre, cheia de maloqueiros, cheia de pobres em volta. Aqui não rende nada, então nenhum padre queria vir pra cá. E também nenhuma paróquia me quer, porque eu sou um padre maloqueiro, comunista...
Essa é a caixinha da Fabiana, que eu guardei, não quis me desfazer. E o ‘oclinhos’ dela, que eu guardei. Eu comprei pra ela com o nome dela, o pentinho dela e as figurinhas que ela cortou. A tesourinha dela. Eu me dei o direito de guardar a caixinha que eu comprei pra ela. Um dia eu estava no hospital e o médico veio com os alunos e começou a despi-la para dar aula, porque o Emílio Ribas é um hospital-escola e ela não deixou. Aí o médico veio e falou para mim: “Fala para ela, ela tem que aceitar”. Eu falei: “Pergunta para ela. Ela quer tirar roupa na frente das pessoas? Ela falou não. Então, respeite, ensine para os seus alunos a respeitar o paciente. Ela não quer tirar a roupa, por que o senhor vai despi-la?” “Para eles aprenderem”. Eu falei: “Então, a primeira coisa que eles têm que aprender é a respeitar e perguntar para a criança” “Você quer tirar a roupa, Fabiana?” Ela falou: “Não”. Eu falei: “Então, tchau você e os alunos de medicina”. O Daniel se identificava com o corcunda de Notre-Dame, porque todo mundo olhava para ele e falava: “Ele é doente?” E os animaniacs na camiseta dele e um dia o médico perguntou para mim: “Ele tem AIDS?” Eu falei: “E você é burro? Você quer falar comigo, vamos conversar lá fora. Você não sabe respeitar a criança?” Aí eu estava - o médico foi reclamar para o diretor do pronto-socorro – com o Daniel, aí chegou lá e falou assim: “O diretor do pronto-socorro está te chamando, que quer falar com você”. Eu falei: “Se ele quer falar comigo, ele que venha aqui. Eu não estou querendo falar com ele. Ele que quer falar comigo? Então ele vem aqui”. Aí passou um tempo e ele veio. Aí eu estava dando a sopa pro Daniel, na boca do Daniel. Aí ele disse: “Eu vim aqui falar com você”. Eu falei: “Agora eu estou dando sopa pro Daniel, você volta depois”. E o Daniel gostava, quanto mais brigavam... (risos) Eu escrevi e depois tenho que achar, uma poesia pra cada um. E tem um artigo que eu escrevi no jornal, um artigo pra cada um, dos que morreram. Então, são vários. O pai da Marina, Eugênio, ficou viúvo no século VI, na Turquia e ele quis ser monge e ele não sabia o que fazer com a filha. E a filha não queria separar do pai, tinha perdido a mãe, mas o pai queria ir, para ser monge. Aí o pai não teve outro jeito, chamou Marino, cortou o cabelo dele, o vestiu de menino e disse: “Agora você é o Marino”. E o Marino foi para o mosteiro também. E os monges achavam o Marino com uma pele muito lisinha, uma voz fininha, mas era um monge piedoso, obediente e ficou monge. E passado o tempo o pai do Marino morreu e o Marino continuou monge. E, com o passar dos anos, o Marino podia sair, para ir buscar doações na cidade. E numa das saídas eles ficaram numa hospedaria, porque teve uma tempestade e a filha do dono da hospedaria logo depois apareceu grávida. E ela não podia dizer quem era o pai, ela disse: “É aquele monge, mocinho bonitinho, que veio aqui, o Marino” e ela e o pai dela foram no mosteiro, denunciar o Marino. E o Marino foi expulso do mosteiro, humilhado publicamente, jogado na rua e teve que assumir a paternidade da criança e não se defendeu. Assumiu a paternidade da criança, cuidou da criança como pai e continuou circulando em volta do mosteiro, os outros monges diziam: “Perdoa o Marino, o deixe voltar” e o abade não deixou e falou: “Se ele quer alguma coisa, ele vai ajudar a fazer os serviços mais penosos, para pagar os pecados dele”. E aí pôs o Marino para carregar fezes, urina, no século VI, cuidar de fossas, quebrar pedra, cavar o chão e em três anos o Marino, nessa vida, ao relento, morreu. E aí o abade disse: “Está vendo? Morreu cedo, nem pagou o pecado dele, enterra lá no cemitério dos malditos”. Aí, quando foram arrumar o corpo pra sepultar, viram que era uma mulher, que não podia ser o pai da criança e que nunca se defendeu. E aí todos... o monge, o abade pediu pra trazer o corpo do Marino, pediu perdão, ficou na capela e o povo começou a venerar. Por isso ela é a padroeira dos difamados, injuriados, caluniados e perseguidos. Ela é minha padroeira. E a Escola de Costura para as Mulheres Trans é dedicada a ela também. A ela e à Santa Paulina. E aí eu apanhei pra caramba, porque a Mônica Bergamo publicou que eu tinha falado de uma santa LGBT. Eu falei: “Eu nunca falei que ela era LGBT. Ela assumiu uma identidade masculina”. O que ela fazia com a menstruação? No século VI nem sei o que as mulheres usavam. Não era absorvente, né? Devia ser palha de milho, algodão, pano. Chamava aqui no Brasil ‘pano de chico’, né? Então, não sei como é que era. Ela de certo comprimia os seios e foi feito um filme sobre a Marina e o filme é um curta-metragem, que concorreu a vários concursos, que chama São Marino e todos os artistas e todos do filme são homens e mulheres trans e a equipe técnica também. Essa é uma imagem antiga de Santa Marina, mas aí eu mandei fazer essa, com a criança. Bonita ela, né? E foi feito esse vídeo, esse curta-metragem, que chama São Marino. E aí eu apanhei até. Aí a arquidiocese fez uma nota, dizendo que ela não era LGBT, que ela tinha... como é? Se disfarçado de homem. Fica ‘pior a emenda que o soneto’, por que quem se disfarça de homem é o quê? Travesti. E eu perguntei: “Por quê? Quem é LGBT não pode ser santo?”
(01:32:56) P3 - Ninguém tem nem resposta.
R - Tem um padre me xingando na internet, porque tem aquele grupo LGBT, que até é um casal de dois homens, que tinham aquele grupo que chama... como é? Eles têm um canal no You tube. E tem um programa dele que chama 24 Perguntas. Não sei se vocês já viram isso. E eles me fizeram as 24 perguntas. E eles perguntaram pra mim: “Ser LGBT é pecado?” Eu falei: “Não, pecado é ser desumano. Porque tem hetero desumano, tem homo desumano. A questão, o pecado não é ser LGBT. O pecado é ser desumano”. Vixi, tem um padre que está me xingando até, porque eu falei isso: “Por quê? É pecado ser LGBT? Não pode ter santo LGBT?” Aí eles ficam com raiva de mim, porque eu falo isso. E a Marina, o grupo trans gosta dela, porque eles falam: “Ela assumiu a identidade masculina”. E ela não se defendeu, ela podia ter dito, quando foram acusar, ela dizer: “Não, eu não posso ser pai. Eu posso até ser companheiro e ter uma companheira, mas pai eu não posso ser”. Ela podia ser mãe, mas ela assumiu como pai.Recolher