Conte Sua História - Vivências LGBTQIAPN+
Entrevista de Silvana Gimenes
Entrevistada por Luiza Gallo e Leonardo Vieira
São Paulo, 11 de setembro de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PCSH_HV1415
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(0:27) P/1 - Silvana, primeiro eu quero te agradecer demais por estar aqui com a gente, por topar dividir um pouco da sua história. E para começar eu queria que você se apresentasse, dizendo seu nome, local e a data de nascimento.
R - Meu nome é Silvana Gimenes. Sou uma pessoa branca, de cabelos negros, grisalhos, nem gorda, nem magra. Tenho 62 anos, moro e sempre vivi na cidade de São Paulo. [Sou] funcionária pública e tenho por objetivo de vida militar por direitos, por respeito, seja nas minhas duas ou três frentes: direito das mulheres, das pessoas com deficiência, da população LGBTQIA+ e das pessoas soropositivas. É isso.
(1:52) P/1 - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Sim! Eu venho de uma família muito humilde da Zona Leste, pessoas que começaram a criar a Zona Leste. Eu sou a sétima filha do senhor Miguel e da dona Natalina.
A gravidez da minha mãe foi normal. Na hora de eu nascer, infelizmente eu fui para a maternidade no Tatuapé, Leonor de Barros, uma maternidade famosa ali e esqueceram a minha mãe na sala de parto, simplesmente isso. Minha mãe ficou com dores por muitas horas, e quando o médico veio da sala de parto em que ele estava, não era possível fazer cesárea e não tinha como ser parto normal; eles tiveram que usar a fórceps para me retirar.
[Foi] um parto muito dolorido, enfim, muito tenso. E eu nasci roxa, totalmente sem respiração, ______ mesmo. E aí o médico tira e retira da sala, me leva para algum lugar. A minha mãe foi ter notícias de mim 24 horas depois, porque eles não falavam para ela… Quando as crianças vieram para mamar, eu não fui, aí minha mãe ficou nervosa, perguntando. O médico falou que eu iria depois; realmente, eu fui...
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Entrevista de Silvana Gimenes
Entrevistada por Luiza Gallo e Leonardo Vieira
São Paulo, 11 de setembro de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PCSH_HV1415
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(0:27) P/1 - Silvana, primeiro eu quero te agradecer demais por estar aqui com a gente, por topar dividir um pouco da sua história. E para começar eu queria que você se apresentasse, dizendo seu nome, local e a data de nascimento.
R - Meu nome é Silvana Gimenes. Sou uma pessoa branca, de cabelos negros, grisalhos, nem gorda, nem magra. Tenho 62 anos, moro e sempre vivi na cidade de São Paulo. [Sou] funcionária pública e tenho por objetivo de vida militar por direitos, por respeito, seja nas minhas duas ou três frentes: direito das mulheres, das pessoas com deficiência, da população LGBTQIA+ e das pessoas soropositivas. É isso.
(1:52) P/1 - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Sim! Eu venho de uma família muito humilde da Zona Leste, pessoas que começaram a criar a Zona Leste. Eu sou a sétima filha do senhor Miguel e da dona Natalina.
A gravidez da minha mãe foi normal. Na hora de eu nascer, infelizmente eu fui para a maternidade no Tatuapé, Leonor de Barros, uma maternidade famosa ali e esqueceram a minha mãe na sala de parto, simplesmente isso. Minha mãe ficou com dores por muitas horas, e quando o médico veio da sala de parto em que ele estava, não era possível fazer cesárea e não tinha como ser parto normal; eles tiveram que usar a fórceps para me retirar.
[Foi] um parto muito dolorido, enfim, muito tenso. E eu nasci roxa, totalmente sem respiração, ______ mesmo. E aí o médico tira e retira da sala, me leva para algum lugar. A minha mãe foi ter notícias de mim 24 horas depois, porque eles não falavam para ela… Quando as crianças vieram para mamar, eu não fui, aí minha mãe ficou nervosa, perguntando. O médico falou que eu iria depois; realmente, eu fui depois. E aí ele, com toda delicadeza do mundo, só que não! Porque nessa hora até hoje eles não são delicados. Ele simplesmente falou para minha mãe que eu tinha nascido com problema, que eu ia ter várias crises, que eu não ia andar, que eu não ia falar, que eu seria um vegetal e que eu viria sempre em horários diferentes para mamar, porque eu não podia ouvir som, se eu ouvisse algum tipo de som, eu teria uma crise. E a minha mãe viveu anos esperando eu ter uma crise, que não aconteceu. Esse foi o dia do meu parto.
Como a minha mãe e o meu pai eram pessoas humildes! E humilde que eu digo, é assim: ela era semi-analfabeta e ele também, ele era açougueiro e ela empregada doméstica. Ela já tinha outras cinco filhas, porque o filho dela, o segundo, foi homem e morreu, não sobreviveu. O meu pai, na infinita sabedoria dele, disse: “A gente vai criar ela como criou todo mundo, não vamos fazer diferença. O que ela puder fazer, ela fará; se não, não!”
Naquela época não tinha tratamento, os médicos não disseram para minha mãe o que eu tinha, então toda vez que ela me levava ao médico, naquela época, INPS, eles só falavam assim: “Ela tem que tomar calmante. A senhora não espere nada da sua filha, ela tem que tomar calmante.” E minha mãe não queria me dar remédio.
Cresci na rua como todo mundo. De manhã eu ficava com meu pai no açougue e o diretor da escola conhecia meu pai, ia comprar carne lá. Um dia ele chegou, falou: “Miguel, põe ela lá na escola” - eu tinha uns cinco para seis anos. “Põe ela no pré, põe ela na escola. Ela nunca vai aprender nada, vocês sabem, mas ela vai ter amigos. Ela vai ficar com as crianças e brincar com as crianças.”
Como eu disse, meu pai… “Então eu vou por ela. Todas as minhas filhas foram para a escola, ela também irá.”
Meu pai tinha uma filosofia, ele dizia assim: “Ela vai andar e vai comer do jeito que ela quiser - com a mão, com o pé, enfim, ninguém vai ajudar ela. A gente ajuda uma vez e depois ela tem que fazer do jeito dela, porque um dia nem eu nem você, Natalina, vamos estar aqui e ela tem que comer, ela tem que andar, ela tem que falar.”
Eu fui para escola assim, para fazer um monte de amigos. Eu não tinha uniforme, não tinha caderno, não tinha nada; eu tinha uma lancheira, que minha mãe fazia Ki-suco e pão com ovo e eu ia para escola, com todo mundo da rua. Tanto que eu tenho uma amiga até hoje que a gente fez primário, ginásio; nos separamos por dois anos no colegial e a faculdade fizemos juntas. É a minha mãozinha, [como] eu brinco com ela - Eliane Paolino, minha irmã de vida.
Comecei a ir para escola e quando as professoras perguntavam, eu respondia; elas começaram a notar que eu respondia certo, entendeu? Eu dava resultado de conta, de tabuada, correção de texto. Aí eu comecei a ler. Mesmo que elas não ensinassem pra mim direto, como é feito hoje dentro das inclusivas, eu aprendi. Aí o que elas começaram a fazer? Tenho orgulho de todas elas que passaram pela minha vida. Elas começaram… Eu ganhei caderno, lápis, os livros, e aí eu tinha que escrever e eu não escrevo; eram rabiscos, garranchos, dificilmente alguém entende o que eu escrevo. Eu tinha que ler, então todos os meus estudos foram oral, entendeu? Aí eu fazia a prova oral. Quando era de assinalar, eu assinalava; quando era de escrever, terminava a prova, ela recolhia de todo mundo, e aí eu ficava em pé e ela ia dizendo: “Resultado dessa conta um, resultado da conta…”, “Diga a frase corretamente”, “Essa palavra é com x, com s ou com z?” Todos os exercícios ela falava e eu tinha que responder e aí ela ia anotando.
Nessa escola eu fiz o primário, fiz o ginásio. Quando foi para eu ir para outra escola, foi uma crise, até porque eu nunca fui santa. Eu tinha umas amigas naquela época, a gente queria estudar num colégio que existia, existe até hoje, na Vila Prudente, que se chamava Rocha Mendes, hoje é uma Etec. E naquela época só homens estudavam naquele colégio. O irmão de uma amiga minha, da Milene, o Robson, estudava lá e ele dizia assim: “A única maneira de vocês conseguirem passar no vestibular é fazendo um colégio forte”, porque a gente não tinha grana para fazer cursinho. Ele falou: “Eu já li, não tem nada que impeça vocês de estudar lá; se inscrevam.”
Fomos eu, Eliane e Milene. Arrumamos mais cinco amigas, fomos em oito, convencemos oito meninas a ir se inscrever no colégio. Aí chegou lá ficou aquele mal estar, as pessoas [diziam]: “Não, não pode!” “Por que não pode? Cadê a lei?” A gente era cheio… Final da ditadura, a gente tá falando dos anos 76, 77 e a gente naquele fervo, já, já querendo a revolução.
A gente passou no vestibulinho. E o acordo era: “Se vocês passarem, vocês ficam; se não passarem, não ficam.” Nesse ínterim, a gente convenceu outras meninas a fazerem; se inscreveram nesse ano quinze garotas, das quinze, sete do nosso grupo passaram e uma de um outro lugar que veio também passou, a Ana.
A gente começou a estudar e os cursos eram bem “femininos”: eram cursos de Mecânica, Eletrotécnica, Desenho Industrial, Eletrônica. Eu fui fazer Eletrotécnica com as minhas amigas. Foi uma revolução, minha primeira revolução, minha primeira luta contra o machismo, porque no colégio não tinha banheiro para meninas, eles tiveram que criar, não tinha.
As oficinas… A gente ia ter aula nas oficinas e os meninos, os professores, estavam acostumados num linguajar de caverna, aquele linguajar dos homens, com palavrões, com gestos, com punições exageradas. Quando a gente estava na sala, eles não podiam agir assim, porque a gente reclamava, entendeu? Várias vezes eu me peguei com o professor de Matemática, que era um monstrinho, porque todo mundo na sala de aula dele era corno, e eu não gostava que me chamasse de corno. Era uma coisa assim…
Ali a gente começou uma luta feminista contra aquela estrutura. Claro, hoje estudam meninos e meninas, ok, mas nós fomos as primeiras.
Nesse colégio eu fiquei um ano, e aí eu fui gentilmente convidada a me retirar. Não por nada que eu tenha feito, na realidade a gente tinha… Eles foram maravilhosos comigo. Tinha o seu ngelo, que era orientador da escola, ele me chamou e nós conversamos, porque como eu tenho paralisia cerebral, eu não conseguia desenhar, então eu ia passar em todas as matérias, menos em desenho, porque não tem como você fazer desenho oral, né? Ou você desenha ou não desenha. Você tem noções de perspectiva, enfim, eu não tenho. E aí eles falaram: “Você vai ter que se retirar, porque em qualquer curso tem isso, tem desenho técnico.” E aí eles também me ajudaram a procurar uma escola.
Foi nessa escola, aos quinze anos, estava terminando o primeiro colegial… Através do seu ngelo, que tinha uma filha com paralisia cerebral - só que a filha dele não fazia nada, ela ficava o tempo inteiro na cama - foi por meio dele que eu descobri que existia tratamentos. Foi ele que me levou na minha primeira sessão de fisioterapia, de terapia ocupacional e de fono, porque ele não se conformava. E eu dizia para ele: “Eu nunca fiz isso!”
A única vez que eu estive num médico que quis me dar um tratamento, ele me internou por uma semana no Hospital da Casa Verde e ficou uma semana me dando Diazepam e Haloperidol. Eu fiquei uma semana chapada, porque ele queria ver a minha reação. Só que tem um problema, quem tem paralisia cerebral tem espasmos; eu não posso tomar Diazepam, me dá mais espasmos, tensiona mais o meu corpo, não me relaxa, então eu fiquei praticamente uma semana toda torta, tendo espasmos contínuos, aí minha mãe assinou um papel e me tirou do hospital.
Desde os onze anos eu jurei que eu nunca mais ia no neuro, aí o seu ngelo disse para mim que TO [terapia ocupacional], fisio, não era neuro. E eu fui!
Que me perdoem os neurologistas, mas até hoje eu morro de medo, eu sofro para entrar no consultório de um neurologista. Isso me marcou para o resto da vida.
Mudei de escola e olha que legal, de Eletrotécnica eu passei para fazer um curso de Patologia Clínica, tudo a ver! Fiz o segundo e o terceiro colegial de Patologia Clínica.
Nesse período eu já era da igreja católica, eu frequentava as comunidades eclesiásticas de base; tive a honra de ser do grupo do Dom Luciano Mendes. E eu fiz uma coisa que na época chamava de Escola da Fé. A gente ia fazer Escola da Fé no Belém; na Escola da Fé, eu aprendi filosofia e marxismo. Conheci o Partido Comunista Brasileiro e eu me tornei membro do partido. Comecei a frequentar as reuniões do partido e ali eu virei militante do Partido Comunista Brasileiro.
Passei na faculdade em São Caetano, fui fazer Ciências Políticas e Sociais. Conheci o Frei Chico, _______ e fiquei anos no partido, junto com o Frei Chico. Na faculdade, claro, eu fui do DA [diretório acadêmico], fui do movimento estudantil. A gente também participou dos movimentos de luta operária dos Metalúrgicos do ABC, a maioria estudava na minha sala, aí a gente se engajou na onda política. Não só mais uma luta estudantil, mas uma luta política.
Depois de formada e de várias brigas com o diretor do instituto lá, do IMES, o professor Silvio Miziotti, eu recebi o convite para trabalhar na faculdade, assim que eu me formei. Eu fiquei lá no Instituto de Pesquisa, seis anos, no instituto da faculdade.
Em 89 eu recebi o convite da equipe do Celso [Daniel] para ir trabalhar no governo dele. Prestei concurso em 91, tinha uma vaga, passei nessa uma vaga. Entrei como concursada na gestão dele, fiquei na Prefeitura de Santo André de 91 a 2011, que aí eu venho para a Secretaria de Cultura, trabalhar na Secretaria de Gênero e Etnias. Em 2018 o Dória nos manda de volta para casa; voltei para Santo André. Eu me aposentei agora em maio de 2023, com 34 anos de prefeitura; em junho eu voltei a trabalhar na Secretaria [de Estado dos Direitos] da Pessoa com Deficiência.
Nesse período de 88 eu concorri, me candidatei, como parte da minha militância política… Em 88 a gente saiu pleiteando a Prefeitura de São Caetano, pelo Partido Comunista Brasileiro. Era uma graça, porque você batia na porta das senhorinhas e falava: “Oi! Eu sou do Partido Comunista, vim fazer uma campanha.” Elas se benziam, mostravam a cruz. Era ótimo, divertidíssimo fazer campanha!
A gente estava na primeira abertura política, em que os partidos todos podiam concorrer. Foi uma experiência maravilhosa, primeira e única, nunca mais voltei.
Em 91 eu saí do partido comunista e não me filiei a nenhum partido. E aí eu tô aqui! Essa é a minha vida, resumidamente.
(25:06) P/1 - Bem resumida! Eu posso voltar?
R - Pode! Naquilo que você quiser.
(25:09) P/1 - Então vamos lá! Eu queria que você descrevesse os seus pais. Como eles eram?
R - Meu pai era um homem descendente de espanhóis. Tinha uma família, se eu não me engano, [de] oito irmãos, se eu bem me lembro. Meu pai era espírita, uma pessoa muito voltada ao coletivo. Eu acho que eu aprendi com ele essa coisa de acreditar no ser humano. O meu pai não tinha muita coisa, mesmo assim… Ele era um cara que saía de manhã e normalmente ele trazia alguém para casa. Ele pegava alguém que estava precisando, levava para casa, fazia a minha mãe dar janta, dava um banho no cara, dava as roupas dele e saía no dia seguinte, ia procurar emprego com aquela pessoa. Ajeitava a vida daquela pessoa, aí esquecia a vida daquela pessoa e ia viver a dele.
Fui criada numa casa que sempre tinha alguém, a gente sempre tinha que ajudar alguém. Não é que a gente tivesse muito, mas ele me ensinou isso, ele era isso.
Ele trabalhava, como eu disse… No começo ele tinha uma carrocinha em que ele vendia a carne, depois ele conseguiu um lugar e abriu um açougue. De sexta, sábado e domingo, ele ia cantar na Rádio Nacional, ou ia cantar em festas; ele era um ‘cantante’, tanto que eu tenho um violão [tatuado no antebraço] em homenagem a ele. [Mostra a tatuagem] A pomba é minha mãe, a pomba com arruda.
A minha mãe era descendente de calabrês - cabelo enroladinho, tinha um rostinho cor-de-rosa de anjo, mas era uma mulher muito forte. Meu pai morreu nos anos 70 e deixou ela com seis filhas mulheres, eu e minha irmã muito pequenas; eu ia fazer sete anos quando ele morreu e minha irmã ia completar nove. Eu já tinha duas irmãs casadas e só duas solteiras, que já podiam trabalhar, que trabalhavam em fábrica naquela época, [nas] Linhas Corrente, e ela tinha que sustentar a gente.
Ela criou a gente. Em nenhum momento da vida dela ela deixou a gente esquecer quem era meu pai e por que a gente estava ali. Mesmo sem ter ele fisicamente, a gente tinha ele nos ensinamentos, nas regras, no convívio. Como eu te disse, a minha casa sempre tinha uma prima que ele criava, um amigo que mandava o filho dele para criar; minha mãe continua isso. E eu tenho isso também, de levar amigos para casa.
Acho que o primeiro comunista que eu conheci foi Miguel Gimenes, que dividia o que ele tinha e o que ele não tinha. Um homem de princípios, honesto, aquele cara que falava… A honestidade dele era um fio de bigode, a palavra que ele dava era cumprida.
Eu lembro que o Natal na minha casa era um Natal de portas abertas. E o que eu mais lembro é ele e o Mário Tomé, que era um vizinho nosso… Eles saíam, iam à cidade comprar aquelas bolas de plástico colorido e aquelas bonecas de plástico, mas compravam de saco e vinham distribuindo a rua inteira. No fim da tarde eles faziam a ceia, que era para a rua inteira.
Quando ele conseguiu comprar a primeira televisão, ele punha fora da sala, que era para os vizinhos verem, e [eles] vinham assistir.
Era tudo muito comunitário, muito dividido com ele. Um cara que gostava de festa e tal. E a minha mãe era essa mulher que aparentemente era dominada por ele, mas que quando a gente cresceu, a gente vê que [era] ela que mandava nele, porque ela era uma mulher forte, decidida. Ela enfrentou muita coisa, enfrentou muita coisa por mim, porque não é fácil uma mãe ver que a rua inteira chama sua filha de maluquinha, né?
Eu lembro dela me carregando nas costas, porque às vezes eu não conseguia andar, para a gente ir ao médico.
Essa coisa de eu nunca aceitar um não vem deles. Eu brinco, é de família: se é governo eu quero derrubar, entendeu? Porque é isso! Todo mundo tem jeito! Todo mundo pode!
A primeira lição minha é quando meu pai diz: “Ela vai comer com as mãos ou com os pés.” E é isso, gente, esse conceito bem simples de respeito à diversidade, essa é a imagem mais simples que eu tenho de que a diferença não importa, importa o objetivo. O objetivo é comer? Ok! É o que eu brinco hoje, todo mundo anda, não importa se anda com os dois pés, se anda com dois pés e uma muleta, com dois pés e um andador, ou com rodas, mas todos andam e todos vão chegar onde querem. Então esse é o meu pai, _____. Mas é um homem que eu lembro cantando, que eu lembro trazendo alegria.
(33:24) P/1 - O que ele cantava?
R - Meu pai cantava as músicas da época, Lupicínio Rodrigues, Nelson Gonçalves, que era a música daquela época, das grandes canções do rádio. Ele tocava muito bem violão e ia acompanhado de uns artistas também. Mas ele tinha a vida dele, ele não era músico, aquilo para ele era prazer. Se chegasse sexta-feira e ele chegasse em casa, a minha mãe estava com o terno de linho dele limpo, passado a ferro de brasa, e ele saía, ele e o violão. Ela não sabia que horas que ele ia chegar, ela só sabia que ele ia chegar, entendeu?
Essa é a relação que eu conheci a minha vida inteira, porque ela respeitava que aquilo era importante para ele. Ele nunca deixou faltar nada em casa também, nem respeito, nem carinho.
Ele morria de ciúmes das minhas irmãs, da gente, tanto que ninguém podia namorar elas, porque todo mundo tinha medo do senhor Miguel; ele era esse cara rígido, apesar de viver na noite. Ele tinha um código de ética e de moral muito claro, para não deixar dúvidas para ninguém, tanto ele como ela. E eu me criei com essas duas pessoas.
Claro, para qualquer filho os pais são especiais, e são mesmo. O meu único arrependimento é que quando eu consegui ter um trabalho, ter uma condição de vida um pouco melhor, a minha mãe se foi, então eu nunca consegui viajar com a minha mãe, não tive isso que as minhas irmãs tiveram. Minhas irmãs levavam ela para todo lado, meu sobrinhos, eles se viam tanto em casa… “Tô levando a vó!” Eu chegava e a minha mãe não estava em casa, tinha ido viajar, tinha ido para o Rio, tinha ido para o Maranhão. Aonde eles iam eles levavam ela, era a “vó cor-de-rosa” deles.
Meus sobrinhos sempre chamavam a minha mãe de “vó cor-de-rosa”, por esse carinho; as bochechas dela ficavam vermelhas sempre, então era a “vó cor-de-rosa”. Uma mulher que qualquer um que chegasse na casa dela tinha que comer, ela ia fazer uma comida. Sabe essa gente do interior, que é assim? Você tem que comer! Tem que passar um café, tem que fazer um bolo, não importa a hora; chegou na sua casa, você alimenta essa pessoa, era alimentada e [recebia] carinho; comida é sagrada.
É isso que eu lembro desses dois seres.
(37:22) P/1 - Você teve na sua infância algum outro parente muito marcante? Eu não sei se você conheceu os seus avós, ou alguma irmã, ou algum vizinho?
R - Eu tive! O meu avô paterno, ele veio morar com a gente quando meu pai faleceu e ele morou dos anos setenta até oitenta, quando ele morreu. Ele também era esse homem forte, esse homem de regras claras.
É gozado, eu brinco, porque as minhas duas primeiras irmãs casaram [quando] eu era muito pequenininha. A minha irmã mais velha é minha madrinha, porque ela tá hoje com 81. Ela faz 82, eu fiz 62; ela é vinte anos mais velha que eu, então é muito diferente.
Uma irmã que me marcou muito foi a minha terceira irmã, a Claudemira, que a gente chamava de Nina. Eu brincava que era a minha segunda mãe, porque ela era assim… Com ela a maior lição que eu aprendi é que ela tinha uma coisa de defender a gente, de ter orgulho de ser filha do meu pai e isso marcou a gente, entendeu? Quando eu precisei sair de casa, eu morei na casa dela e ela que corria comigo. Ela fez o marido dela arrumar uma briga quando eu quis tirar a carta de motorista; ele foi comigo, ele comprou uma briga no Detran - o Augusto Cláudio, ele era um delegado na época.
Ele e ela para mim… Era gozado, porque ele e ela eram minha mãe e meu pai. Ele tocava violão, cantava que nem meu pai e ela tinha o jeito da minha mãe. A vida inteira eu dizia assim: “Se eu não tenho a minha mãe, eu tenho a Nina.”
O que aconteceu? A minha mãe morreu em 2006 e ela sempre falou, a vida inteira dela, que ela não viveria neste mundo sem a minha mãe. Em 2007 ela morreu, seis meses depois. Eu perdi as minhas duas mães em um pequeno espaço de tempo, as duas foram embora. Augusto já tinha ido uns anos antes, ele foi antes da minha mãe, mas eu tinha ela. E aí eu perco a minha mãe em novembro de 2006 e em maio de 2007 ela vai embora.
Claro que eu briguei para caramba com ela, até porque eu fiquei lá com o corpo dela, no necrotério, esperando. A gente brigou muito, eu falava que não estava escrito que ela ia me abandonar. Mas ela sim, me marcou muito.
Todas as minhas irmãs são importantes na minha vida, mas eu sei que todas elas acham o mesmo que eu, que perder a Nina foi uma coisa… Ela era muito um misto deles dois, ela veio os dois numa pessoa só.
As pessoas que me marcaram muito… Meus professores, eu sou muito grata a eles, porque hoje eu tenho consciência. Naquela época, aquelas pessoas, do primário até o colégio, não tinham o mínimo conhecimento de como tratar uma pessoa com deficiência, porque a gente não ia ter escola. Você imagina que eu era uma única pessoa numa escola enorme, e elas me deram atenção, elas me ensinaram a ler e escrever, foram as primeiras que acreditaram, que não sabiam como, mas eu aprendia. Então, escola para mim é um lugar sagrado, por isso que eu luto tanto pela escola, pela inclusão escolar, para qualquer pessoa… Gente, aluno é aluno, todos têm o direito de estar na escola: pessoas com deficiência, negros, LGBTQIA+... Marcianos podem ir para escola, porque a escola é o lugar que ensina você a viver. Escola não é para educar, quem tem que dar educação são os pais; escola transmite conhecimento e vivência. Sociabilização é na escola que se aprende, a educação, com os pais.
(43:49) P/1 - Tem alguma história que foi inesquecível, que foi muito importante para você dentro da escola, que você se lembra?
R - Que eu me lembro? Ah, tem! Eu lembro no primário, [de] uma professora. A minha escola tinha escada e essa professora às vezes me levava no colo, porque eu não conseguia subir. No dia que eu subi a escada todo mundo me aplaudiu, foi incrível esse dia!
Uma outra história incrível: a gente fez uma peça de teatro no ginásio e essa peça que as minhas amigas escreveram tinha uma velha, uma avó, muito velhinha, e aí eu fui fazer a avó velhinha, porque eu tremia, então eu tremia que nem uma vovozinha. Eu entendi que todo mundo pode fazer alguma coisa. E eu estava ali no palco, no teatro, justamente porque tinha uma deficiência, não era porque eu era boa atriz, não era… Não, eu tinha o que eles queriam.
Essa inocência! Isso constrói o caráter das pessoas. E isso me marcou, reforçou pra mim que a minha deficiência não é problema, porque eu posso estar onde eu quero. Essa história me marcou muito, muito!
O fato de eu ter sempre a Eliane Paulino do meu lado, essa minha amiga, que a gente está junto até hoje.
Eu brinco, falar que eu tive problemas na escola, tive muitos! Mas eu tinha poucos amigos, que me defendiam de uma tal maneira! Por isso que amizade para mim é coisa séria, porque eu só sobrevivi por [causa] desses amigos que Deus me deu. E com a gente não tinha muita diferença, porque tinha amizade.
Eu fui abençoada por um lado, faço amigos facilmente e eles me defendem. Se eu consegui tudo que eu consegui não é mérito só meu, tem sempre essas pessoas iluminadas, que diziam: “Nós vamos! A gente consegue! É isso que você quer? Então vamos!” E a gente ia sempre.
(47:11) P/1 - O que você mais gostava de fazer na infância?
R - Brincar! Eu brincava na rua. Gente, quando eu falo que eu brincava, eu brincava mesmo. Eu tinha bolinha de gude, eu tinha estilingue, eu andava de carrinho de rolimã, eu jogava taco, eu caçava passarinho. Porque eu convivia com os meninos da rua, minha rua tinha mais meninos do que meninas, então a gente saia muito com os irmãos da Sandra, ou da Magali, que eram as minhas parceiras, minhas amigas de rua mesmo, vizinhas. E aí a gente ia, porque ali tinha muita árvore, muito mato, e ia catar girino no lago.
Eu sempre brinquei na rua, gente! Tem que aprender a ser criança.
Falar qual brincadeira era mais legal? Todas! Porque a gente estava rindo, estava brincando. Era muito bom estar ali na rua, subir em árvore, se machucando. Era muito bom!
(48:32) P/1 - E tinha algum lugar na Zona Leste, que era onde você morava, que foi muito marcante para você?
R - A gente tinha árvore. Na rua que eu moro hoje… Eu moro atrás da Subprefeitura da Vila Prudente. A subprefeitura era uma chácara, do doutor Dino. Os alunos que não tinham escola podiam passar o dia na chácara dele. E as filhas dele tinham uma casa de boneca no quintal, então era uma loucura ir ali.
Atrás da chácara tinha muita árvore e a gente, a molecada da rua, cada um tinha a sua árvore, que a gente subia e ficava conversando um com o outro, eu lembro disso. As formigas subiam, aquelas formigas vermelhas, e a gente falava que era visita: “Ah, eu tô com visita vizinha, chegaram para o café da tarde!” A gente ficava na árvore, conversando com as formigas. Era muito legal, muito legal!
Hoje eu olho, só tem casa ali, só tem prédio, mas eu sei exatamente onde ficava a minha árvore, porque cada um tinha a sua. Era muito legal brincar disso, de ter criatividade. Muito bom!
(50:18) P/1 - E na juventude, que você mudou de colégio, foi pioneira… Queria saber como você se sentiu.
R - A juventude é meio triste, né, gente? Porque você começa a querer namorar, a ter gatinhos, gatinhas do lado e tal. E as pessoas são mais maldosas. Quando eu saí do colégio… Eu tive o meu primeiro namoradinho no colégio, comecei a namorar com 15 anos. Nós três já tínhamos namoradinhos. E todo mundo no colégio me protegia. No Rocha, era o bibelô dos meninos, porque eles iam jogar handebol, basquete, a gente ia fazer torcida. Aquela coisa, cada menina arrumou um namorado ali.
Estava na época daquelas escuderias na Mooca. Quando eu passo para outro colégio, é um colégio só de meninas, então eu saí de um extremo, que era só homens, para um colégio majoritariamente feminino. Tinha uns rapazes, mas eram um, dois, na sala de aula.
A gente, estudando de manhã, tinha mais meninas, mas tinha homens também. E aí tem aquela velha história, da disputa feminina. Eu nunca tive atitudes femininas, princesinha, de bolsinha, de maquiagem, aí foi um pouco mais difícil a convivência, mas eu consegui superar porque tinha uma moeda de troca. Eu conhecia os gatões do Rocha Mendes, então se elas queriam os gatões, elas falavam comigo, viravam minhas amigas, porque a gente saía ainda com o pessoal do Rocha.
Fui passando por isso, mas não foi legal. Essa mudança não foi legal, porque foi a primeira mudança que eu fiz sozinha, eu tinha que me virar. Acho que foi ali que eu aprendi, porque você acaba… Todo mundo tem um grau de vaidade, de prepotência, de orgulho; eu também tinha, só que ali eu tive que dar aquela encolhida, chegar e falar assim: “Você pode escrever para mim? Você pode pegar esse copo e dar na minha boca?” Porque não tinha ninguém, a minha ‘mãozinha’ ficou lá no colégio. Eu sempre tive a Eliane do meu lado e outras amigas, sempre _______. E nessa fase, só eu saí, só eu fui para um colégio, uma sala de aula que as pessoas já se conheciam já tinham feito o primeiro ano juntas, então eu era a garota nova, estranha para caramba.
Elas ficavam me olhando assim, com aquele…. Tem uma coisa que eu sinto até hoje; me bate, me queima, me tortura, mas não olha para mim com piedade. Não olha para mim como um monstro. E as pessoas te olham assim! Olhão!
Hoje não faz tanta diferença. É que nem um sapato que você sabe que aperta o calo, mas você põe. Machuca! Andar de metrô machuca, chegar num lugar estranho, machuca, machuca! Mas naquela época rasgava, sangrava. E ali eu tive que ser eu, entendeu? Ali eu tive que aprender que eu tinha que pedir, não tinha outro jeito! Eu tinha que mostrar a minha vulnerabilidade.
Ali também tinha um lance complicado. Tinha uma garota mais velha, ela era a mais velha da turma, e a gente ficou muito amiga, porque eu conheci o irmão dela do Rocha, a Maria. E essa garota, ela tinha um sofrimento mental - hoje eu sei que ela tinha depressão. Só que ela acabou se apaixonando por mim, acho que foi o meu primeiro contato… Porque eu sou bissexual. Até então, eu só tinha tido relações com garotos. Eu nem sabia que existia… Eu gostava, eu me relacionava bem com as meninas, mas eu nunca tive desejo com as minhas amigas. E a Maria começou a me sufocar, porque eu não tinha desejo por ela. Ela se apaixonou por mim. E aquilo, para mim, eu fiquei assim: “Oi?”
Meu professor de patologia, o Yukio; era um japonês muito legal. Um dia ela teve uma crise na escola, coitada, e ela saiu gritando, falando coisas, que eu traí ela…. Aquilo me chocou demais. Eu já chamava atenção, aí… (risos) Ela fez o rebu ali e me pôs no meio!
Aquilo me marcou profundamente, porque virou coisa de anormal. Toda lésbica é louca, ponto! Talvez até a família negligenciasse ela por isso, mas eu era muito nova, tinha dezesseis anos, e eu nunca tinha visto, ou convivido com uma pessoa lésbica. Ou visto filme. A gente tem aquelas histórias de mãe, que: “Não fala o nome dele! Não fala o nome dela! Tá possuída pelo diabo”, não sei o quê. Mas a gente nunca tinha visto, e ali eu vi!
Ficou uma situação muito ruim, porque eu gostava demais dela, eu tinha um carinho especial pela Maria. Ela era o que eu tinha mais próximo de segurança, era irmã de um amigo meu. Ela teve essa crise, ela foi internada, e eu fiquei só! E ainda com um puta problema, porque a escola inteira comentava aquela crise dela.
Nisso, meu professor sentou e explicou o que que era. Achei bonitinho, falava que era outra forma de amar. Por isso que eu falo, os professores que eu tive foram muito gentis comigo, a não ser na faculdade que a gente brigava de igual para igual, mas até então, sim!
Essa passagem foi dura, para mim foi muito dura. Não ter rostos amigos… Não tinha uma área de segurança, eu não tinha! Isso é ruim! É muito ruim dentro da escola não estar seguro, e eu não estava, porque as piadas me machucam, me feriam, os olhares, enfim. E [tinha] a exigência de ser a melhor, porque quando você é a melhor escola, as pessoas te respeitam, então eu tinha que ir bem nas matérias, tinha que saber responder, eu tinha, entendeu? O peso é maior.
Claro, no terceiro ano ficou mais leve. Eu tinha amigas, fiz amizade, fiz grandes amigas ali. A gente passou por isso legal. E eu tinha _____ o meu grupo, segurança, que a gente se encontrava, enfim. Mas eram dias difíceis.
(1:01:52) P/1 - Você falou uma coisa legal, que nesse momento, apesar de todos os desafios, você entendeu que você tinha que ser você. O que mudou nesse momento?
R - Eu acho que o que mudou foi que eu não podia ser sincera, entendeu? Naquele momento eu não podia confiar em todo mundo, então eu estava ali por mim mesma. Às vezes, quando você está num grupo, você sabe que se você falhar, alguém vai te ajudar. Você conta com o outro, ou com uma palavra de apoio, com uma ajuda real e tal. E ali no começo, quando eu cheguei, eu era muito estranha, cara! E a única maneira daquilo não me doer tanto… Porque eu nunca cheguei em casa e reclamei da escola, nunca! Eu entendia que estar na escola era uma coisa tão grande para minha mãe, para as minhas irmãs! Para você ter noção, eu fui a primeira que tive diploma superior na minha família, então eu não podia chegar e falar para minha mãe. Sabe aquela coisa…. “Eu não tô nem ligando, fala o que você quiser!” E por dentro, eu tremia. Mas você tem que dar aquela [endurecida].
Comecei a sair __________, sabe? Uma coisa assim: “Ah, é? Tá me machucando? Agora é que eu quero ficar aqui!” Isso é ruim. Hoje eu sei com terapia o quanto isso é ruim, mas a vida toda eu me tratei assim: “Eu sou forte! Eu consigo! Eu vou lá! Eu me estouro, mas ninguém vai perceber que eu estou estourada!” Você se esforça tanto, você se esforça no trabalho, assume mais tarefas do que pode, se esforça na escola… Quando você percebe você tem mil e quinhentas atividades. E você se esforça, você se esforça! E isso vira um ato contínuo.
Ali eu me montei de uma maneira errada, mas era o que tinha. É assim a minha vida inteira e eu me perdoo também, porque a minha vida inteira foi assim, eu aprendi a andar sozinha, então eu tenho uma coluna em S por conta disso. Eu aprendi tudo sozinha, na raça, porque todos os médicos falavam “não”.
Eu lembro de uma coisa muito legal, muito marcante. Eu tinha acho que uns doze anos, já. Fui passar por uma consulta na Gastroclínica, que era do lado da AACD - hoje é tudo AACD, mas era ao lado - e o médico me disse: “O que você gosta de fazer?” Falei: “Andar de bicicleta.” O médico olhou e falou: “Eu estou falando sério! O que você gosta de fazer?” “Andar de bicicleta.” “Não pode mentir! O que você gosta de fazer?” “Andar de bicicleta.” Aí ele: “Mãe?”
Minha mãe virou e falou: “Ela gosta de andar de bicicleta”. “Ela não pode andar de bicicleta! Uma pessoa com paralisia cerebral não anda de bicicleta!” Aí minha mãe virou e disse assim: “Ela anda! Nós temos uma Caloi 10 para ela e para as irmãs, elas dividem a bicicleta.” Ele mandou pegar uma bicicleta e andei no corredor, porque ele não acreditava.
Hoje eu sei que as pessoas que têm paralisia cerebral têm muitas limitações, que talvez porque eu não tenha tido um tratamento… Eu tive que aprender, caí seis meses, até que eu andei de bicicleta. Entendi como era me equilibrar na bicicleta.
Eu fazia as coisas. Foi a vida inteira fazendo as coisas. E é isso! Eu não tinha… Eu aprendi assim, então eu era essa pessoa, que nada me machucava. Nada podia me atingir, mesmo atingindo.
(1:08:31) P/1 - Silvana, e sobre as descobertas de novos desejos e autonomias, enfim…
R - Quando eu começo a trabalhar no IMES [Instituto Municipal de Ensino Superior de São Caetano do Sul, atual USCS], eu me apaixono por um rapaz. Só que eu me apaixonei por ele sem conhecer ele. Ele trabalhava numa oficina que eu passava [em frente] todo dia. Aí ______ vem trabalhar comigo e eu conheço ele, a gente começa a ficar junto. Maurício, meu grande amor foi o Maurício.
Eu trabalhava em pesquisa como supervisora, com uma equipe que ninguém queria trabalhar, que são os gays, as lésbicas… Ia tudo pra minha equipe, as trans… “Ah, vem para mim que eu trato ali com eles.”
No meio disso, começa ter aquelas brincadeirinhas. “A queridinha do chefe, fulano tá apaixonado pela Silvana.” E eu sempre brincava com elas. “Não, meu negócio não é mulher”, até que entra uma menina na equipe. Eu estava me separando nesse período, estava muito mal com o Maurício, a gente estava discutindo muito. Ele acaba se viciando em cocaína, eu não consigo mais levar a relação. E aparece a Mônica.
A gente começa a conversar, brincar e todo mundo começa a tirar um sarro. “Ai, agora tá com a Mônica? Cadê a Mônica?” “Imagina, não tem nada a ver! Nada a ver!”
Depois de um ano de amizade, um dia a gente sai. Eu vou fazer depilação, ela vai comigo; quando a gente sai dali, a gente fica. Como eu sou uma pessoa muito sincera com aquilo que eu faço, como eu te falei, eu preciso entender. Eu falava assim para ela: “Não vai dar certo essa noite.” E aí veio a noite seguinte, e a outra noite…
Eu me vi apaixonada pela Mônica. Quando me vi apaixonada pela Mônica, para mim não foi uma questão, entende? Porque eu sou movida por paixões, eu gosto, e se eu gosto, eu gosto daquilo que eu gosto. Se aquilo é um homem? Se aquilo é uma mulher, se aquilo é uma trans? Eu gosto! Eu me apaixonei!
Eu estou há 34 anos com a Mônica. A gente brinca entre as amigas que é assim: eu me apaixonei pela Mônica, então às vezes eu tenho receio, porque todo mundo [diz]: “Você já é lésbica! 34 anos!” Eu não sei se eu sou lésbica, porque eu gosto da Mônica! Eu me sinto confortável dizendo que eu sou bissexual, porque talvez se eu terminar com a Mônica eu vou me apaixonar por um garoto, por uma trans, não sei! Assexual? Não sei, cara, por quem vou me apaixonar.
Todo mundo que esteve na minha vida até hoje foi porque eu me apaixonei. Eu respeito os meus sentimentos e não me dobro a convicções. Se o fato de eu ter estado a vida inteira, sei lá eu, dos quinze aos trinta com homem e aos trinta fico com uma mulher, isso me faz bissexual? Ok, eu sou bi! Isso me faz uma lésbica? Se te deixa contente, ok, eu sou uma lésbica! Eu só não quero me definir, porque é amor, gente! Quando você começa a pôr limite no que é o amor, não é mais amor, é uma padronização do sentimento, que tem hora para começar, tem jeito certo!
A descoberta, para mim, foi muito sossegada porque, talvez, como eu não sou o padrão, ninguém nunca esperava nada de mim. Outra coisa: o fato de você ter uma sexualidade divergente sempre, na história do mundo, esteve ligada a uma questão de saúde mental. As pessoas achavam que eu era doida mesmo; sair com uma mulher ou com um homem, qual é a novidade? É coisa da loucura, não é? Então eu não tive que romper, porque eu nunca me afirmei perante ao mundo e ao conceito heterossexual, dito consenso, de uma pessoa normal. Eu nunca me afirmei, eu sempre fui estranha, então era só mais uma maluquice da minha cabeça, tanto que na minha família nunca cheguei a falar: “Eu estou com a Mônica”. A Mônica veio para casa e foi ficando comigo e com a minha mãe, e até hoje todos os meus sobrinhos chamam ela de tia. Nunca foi uma questão. Os outros que chegaram pra mim e falaram: “É verdade que você namora a Mônica?” Eu falava: “É! Ela é o meu grande amor, algum problema?” “Não, tia, eu só queria saber se era verdade.” “É verdade!”
Nunca teve um momento de comunicar a família: “Oi, tô com uma mulher!” Eu estava, é simples assim!
Não é com todo mundo, eu lamento que não seja. É o que eu digo, a sociedade nunca esperou nada de mim, porque nós, pessoas com deficiência, a gente não tem sexualidade, a gente não tem desejo, a gente não tem nada, então todo mundo pensava que era mais uma amiga legal minha. Até hoje as pessoas falam assim: “É sua cuidadora? É sua irmã? É sua filha?” Falo: “Não, é minha esposa!” “Ah!!!” Então eu avancei, porque é minha esposa. É isso. Foi assim a minha descoberta.
Eu não tenho grandes histórias, porque nunca foi uma questão para mim. Claro, teve alguns atritos, e vou te contar, tive mais atrito com a mãe dela que com a minha mãe, e a mãe dela era lésbica. Mas por quê? Porque era eu! Ela já tinha saído com várias mulheres, ela já tinha sido casada, mas comigo foi diferente. Não por conta da sexualidade, por conta da deficiência.
(1:18:30) P/2 - Antes da gente falar um pouco do seu trabalho na Secretaria de Cultura e como você foi trabalhar com esses públicos de pessoas LGBTs, de pessoas negras, pessoas com deficiência, eu queria puxar esse gancho dessa sua fala inicial. A partir dessa experiência e da sua atuação futura, como é que você vê hoje também essa relação das comunidades LGBTs… Esse olhar, na verdade, das comunidades LGBTs para as pessoas com deficiência? Desde esse momento que você descobriu essa questão por conta da sua sogra, até hoje, como é que você olha?
R - Acho que hoje as pessoas aceitam um pouquinho mais. Porque mesmo na comunidade… Veja, eu sei que é um superpeso. “Poxa, mas eu já tenho uma carga porque eu sou gay, ou porque eu sou lésbica. Ainda vou pegar alguém com deficiência e vou assumir o meu amor com alguém com deficiência?” É pesado! Mas eu acho que está mudando, até porque, veja, a gente sabe que o uso de algumas substâncias… Ou mesmo as trans, quando elas fazem aplicação de… Esqueci o nome agora, que enche lá. Como chama? Que desce. Como chama? Industrial.
(1:20:16) P/2 - Silicone industrial?
R - Silicone industrial. Várias ficaram com deficiência, por conta disso. Ou quando você toma hormônio por conta própria, os AVCs decorrentes da hormonioterapia sem controle causam deficiências. Mesmo a velhice - porque graças a Deus a gente envelhece, não morre antes - te dá uma limitação.
Talvez isso esteja melhorando, mas eu ainda vejo as pessoas olharem com estranheza. Claro, elas aceitam melhor, são cegos, são surdos, por quê? Porque o corpo está intacto. E a gente vive de corpo. Quando a gente aprender que todos os corpos tem a sua beleza, que todos os corpos vão te dar prazer, que o que está ali é a habilidade de manusear aquele corpo e de seduzir aquela pessoa, talvez amenize isso.
As deficiências que não trazem nada no corpo, tudo bem, mas aquelas que trazem, como ausência de membros, ou membros retorcidos, ou trêmulos, que nem no meu caso… Eu manco. Às vezes eu tenho expressões diferentes, porque o meu rosto puxa de um lado, puxa do outro. Eu sei que não é bonito, mas sou eu, cara! Quem gosta de mim, gosta do pacote inteiro. E graças a Deus, sempre gostaram.
Eu sempre fiz uma brincadeira. Veja, estar comigo é quase como estar com um vibrador. Pensa na satisfação, tá garantida! E é isso, gente! A gente tem que pensar nisso, cada corpo te traz uma vantagem.
Mas ainda é isso, porque por mais que a gente fale, por mais que a gente queira que os nossos corpos…. Todo mundo diz uma frase: “Nossos corpos têm que estar na rua, em qualquer lugar”. Quais corpos, cara pálida? Porque as pessoas reprimem. Dentro dessa frase existe um tipo de corpo que pode estar na rua, ok?
(1:23:45) P/2 - Sobre a sua atuação profissional, agora, você comentou que você esteve um tempo na Secretaria de Cultura da cidade de São Paulo, especificamente na Assessoria de Gêneros e Etnias. E foi nessa assessoria que começaram as discussões para criação do Museu da Diversidade Sexual. Queria que você comentasse de como você acompanhou essas discussões. Como essas discussões chegaram na secretaria?
R - Na realidade, não foi na secretaria. A secretaria acolheu. Essas discussões, elas nascem muito depois da primeira parada, em 96, porque elas nascem tendo como plano de fundo o pós epidemia da Aids, no final dos anos 80. E metade, ou quase os anos 90 inteiros, a gente perdeu muita gente para a AIDS. Muitos, importantíssimos. E aí, com as paradas… O que são as paradas? As paradas são momentos de visibilidade e afirmação. E com as paradas, esse grupo, essa sociedade civil, começa a discutir que é necessário preservar a nossa memória, a nossa história, porque a gente viu muitos morrerem.
Há um grupo que começa a discutir isso. A sociedade civil começa a se organizar para isso. Quando a gente entra nos anos 2000, isso fica mais forte, porque a cultura é o espaço onde a gente tem mais a inserção do LGBTQIA+. É o teatro, é a música, é o balé, a dança, as artes; é onde a gente se expressa melhor. E aí eu ponho a arquitetura e a engenharia, que são artes também. Esses intelectuais no meio da cultura começam a discutir fortemente isso, mas só entre 2005 e 2010 a gente começa a ter no meio acadêmico, começa a ter um material que vem sendo construído - teses, estudos, pesquisas, livros, escritos, para contar essa história. Tudo isso providencia e fortalece a ideia do local.
Em 2010 eu vou à primeira reunião na Assessoria de Gêneros e Etnias, para discutir isso. Eu chego lá, tem grandes intelectuais: você tinha lá Celso Cury, Paulinho Mortari, Fernanda Mello; artistas, pintores, querendo este espaço, aí a Assessoria de Gêneros e Etnias encampa isso. A gente começa a ter essas reuniões, essas discussões, chamando vários segmentos da sociedade civil. Como a gente tinha naquela época, primeiro o Andrea Matarazzo, que era muito a favor disso, o secretário, depois tem o Marcelo Mattos, que também compra a ideia, é um momento propício, onde a academia tem gente, tem autores, tem escritores, cientistas. Você começa a fazer meio que um outing de algumas personalidades pra ______ essa ideia. E aí a gente começa a procurar um espaço.
Eu já estava na secretaria em 2011, e a gente encampa isso. Cássio Rodrigues era o assessor e ele falava: “Nós vamos fazer!” Ele se reuniu com o Franco, com o Paulinho Morgari, com Celso Cury, enfim; a gente monta uma equipezinha mínima ali, e fala: “Vamos achar esse local!”
Aí não pode criar como museu, se cria primeiro como centro de estudos, que é para abarcar tudo isso que está tendo. E a grande preocupação, já naquele momento, é: temos que começar a gravar essas pessoas. Elas estão morrendo, não pode morrer com elas a cultura LGBT. E surge daí… Tanto que o maior orgulho nosso é dizer: é o primeiro museu que realmente nasce da sociedade civil. Não é um museu classista, ele vem da sociedade civil, ele tenta dar uma resposta à sociedade civil e principalmente representar essa sociedade onde todos têm que ter a sua voz, entendeu?
Muitas vezes as pessoas nos criticaram: “Tem que ter o museu da lésbica, o museu do gay, o museu da….” Não, gente, nós somos o que somos, porque somos juntos. Tanto que nas primeiras exposições a gente tenta atender todos os segmentos, a gente a ter exposições interativas, exposições que trazem a militância, que falam um pouco dessa trajetória, porque a gente tem que ficar relembrando. Se lá atrás, em 88, as pessoas faziam o sinal da cruz quando a gente falava que era comunista, em 2012, 2013, a gente está ali na República e as pessoas vinham orar, tentar tirar o Satanás de nós, que estava ali, no museu. As pessoas não mudam, as pessoas não respeitam o diferente, né?
O museu nasce assim. Tivemos a sorte e o mérito histórico, eu acho, dele nascer na Secretaria de Gêneros e Etnias, na hora que a gente estava ali, mas a ideia nasceu antes, nasceu lá quando a gente começa as paradas, nasceu porque a gente quer mostrar a cara. A gente foi tão achincalhado durante a pandemia da Aids, tudo para nós… A gente só estava inserido no foco da Saúde. O museu vem mostrar que não, que a gente é história, lazer e cultura, é tudo, gente! Não estamos só no campo da saúde, porque não é doença. E o museu é essa história, é essa acessibilidade, é essa afirmação acima de tudo, que existimos e resistiremos a tudo. Passamos pela pandemia agora do covid, perdemos grandes pessoas, grandes militantes também, mas estamos aí.
(1:33:31) P/2 - E mesmo não tendo sido criado como museu, já havia uma discussão sobre o acervo desse lugar ou não?
R - Sim, sim! Eu lembro que na primeira coisa que a gente recebe para o acervo, a gente começa a pensar no acervo da Cláudia Wonder. A gente começa a pensar nessa reserva, nesse local, onde a gente tem que guardar isso, porque tem o estatuto da nossa cultura no princípio. Ela está registrada em cartas, em livros, em fotos; você tem que guardar isso. Até fotos dos grandes monumentos feitos por artistas LGBTs, tem que guardar e mostrar, você tem tanta coisa… “Isso foi um gay que fez! Foi uma lésbica que construiu. Uma trans que escreveu esse livro.”
A gente sempre pensou, por isso que eu digo, ele só não nasceu como museu direto por uma questão burocrática, pelo momento ainda, que o governo tem que assumir essa pauta, porque ele deveria ter nascido como museu. Mas para contemplar a sociedade, os eleitores, a gente cria o quê? Um centro de estudos e pesquisa. Ele é mais palpável, é mais bonitinho, mas rapidinho ele vira museu. A gente conseguiu colocar [como] museu, começar o plano museológico e fazer um museu.
Tem o Museu Schwules, em Berlim, é de 85, e tem o de São Francisco, que também acaba de ser criado, então está fresquinho na nossa memória. Esse foi um argumento legal, foi o primeiro da América Latina, porque você só tinha dois no mundo, em São Francisco e lá em Berlim. [Foram] argumentos para romper as barreiras do preconceito.
(1:36:26) P/1 - Silvana, deu o nosso horário.
R - Mais alguma pergunta?
P/1 - Daria para só mais um pouquinhozinho. De acordo com as suas vivências, você considera São Paulo uma cidade acolhedora para a comunidade LGBTQIAPN+?
R - Ela já foi mais acolhedora, porque mesmo tendo todo o preconceito, veja, a gente tem relatos das vivências LGBT aqui no centro, ou na Augusta, na República, que remontam às décadas de 40, de 30. A gente sempre teve aí, gente! E São Paulo é uma metrópole, é fácil você ter lugares que você pode se esconder.
Eu digo que ela foi mais acolhedora, porque nesses últimos quatro anos a gente perdeu espaço, a gente regrediu. Vejam, mudar cultura, mudar conceitos culturais leva gerações, porque o preconceito tá no imaginário das pessoas, entendeu? O imaginário se cria na casa, na constância. Às vezes você vê como é a pessoa, você fala: “Por quê? Você não gosta do quê?”
Eu fui trabalhar com um amigo, uma vez, e meu chefe virou e falou:.. Logo que eu retornei pra Santo André, em 2018. Meu chefe chegou pra mim e falou assim: “Não fala para ele que você se mete com esse negócio de LGBT, pelo amor de Deus! Não fala que você é casada com a Mônica, porque ele não admite.” Falei: “Tá bom, não vou falar.” Um rapaz novo, professor universitário; viramos grandes amigos. Até que um dia ele falou assim: “Nossa, você é casada?” Falei: ”Sou, há mais de trinta anos.” “Ah é?” “É! Eu e a Mônica, a gente se dá muito bem.” “É?” “É!” Ele nunca mais tocou no assunto. Continuamos a amizade, somos amigos, mas eu sei que ele não gosta. Ele gosta de mim. É imaginário, é que nem o racismo.
Quando a gente estava construindo uma cidade acolhedora, vieram esses quatro anos que vieram com o imaginário popular contra a gente. Para destruir esse imaginário é difícil, mas para reanimá-lo, revivê-lo, é muito fácil! E o nosso antigo presidente fez isso.
Eu acho, sim, que São Paulo ainda é acolhedora. A gente superou os carecas do ABC, a gente superou os neo-nazistas. Agora, para a gente ser realmente acolhedora, a gente precisa de políticas públicas reais, a gente precisa de um governo que assuma sim que ele é a favor dos LGBTs. Não vai ser com esse nosso governador, porque tá claro o conceito dele, agora ele também não faz nada contra, hein, gente? Ele também não tirou verba de nada.
Estamos no zero a zero ainda. Eu não sei amanhã, mas ainda a gente tá no zero a zero. Eu acredito sim que somos acolhedores. A realidade desse país é muito pior, então aqui em São Paulo é acolhedor. Com tudo de restrição.
(1:41:57) P/1 - Você comentou que assim que nasceu já teve um monte de estigmas em cima de você. Eu queria saber como foi vencer todos esses…. Mostrar que é uma mulher desejante.
R - Eu não sei se venci. Eu teria vencido se as pessoas ainda não pensassem nisso. Eu vou saber que venci na hora que eu entrar num restaurante com várias pessoas e o garçom não vier para quem está do meu lado e falar: “O que ela vai beber? O que ela quer comer?”
Eu não venci. Eu me empoderei, mas não venci. Eu entro num consultório médico em 2023 e se eu estiver com a minha esposa, ou com algum acompanhante, o médico vai virar para o meu acompanhante e falar assim: “O que ela está sentindo? O que fez você trazê-la aqui hoje?” Como se eu não pudesse ir lá, entendeu?
Eu carrego todos os estigmas, carrego todas as mágoas. E o que mais me entristece hoje é que quando nasce uma criança com deficiência, eles dão o mesmo laudo: “Mãe, ele não vai ser nada, ele tem uma deficiência.” Pergunte para qualquer mãe. Ela ouviu essa frase. “Mãe, sinto muito! Seu filho tem uma deficiência.” Porque ele não fala: “Mãe, sinto muito, seu filho é loiro”, “mãe, sinto muito, seu filho é careca.”
A deficiência é um traço, não é uma sentença de morte, então eu não venci, eu me empoderei; eu consigo jogar o jogo, mas eu não superei. Eu te disse antes, olhares me doem, eu ainda sento no banco do metrô e a mãe puxa o filho, como se eu fosse passar uma doença. Eu pego o celular, o vagão inteiro olha para mim, como se eu tivesse ficando nua. Eu me empoderei. Às vezes eu saio e choro ainda, mas às vezes eu saio rindo. E às vezes, eu ando tão perversa, aí eu deixo cair o celular e levanto tremendo. Não é show? Eu posso te dar o meu, não posso? Eu manco, saio mais torta. Eles não querem ver isso? Vingancinha mesmo. É isso!
(1:46:03) P/1 - Quais são os seus sonhos?
R - Meus sonhos pessoais… É realmente ter respeito. É ninguém implicar com cabelo de negro, ninguém implicar com a cor das pessoas. E tudo bem ser LGBTQIA+, tudo bem ser pessoa com deficiência. Ninguém é feliz por ter um filho com deficiência, mas ninguém é infeliz. É só aceitar, gente! Para tudo isso só tem uma palavra, aceita e respeita! Só isso, cara! “Não dá para aceitar!” Mas tenta, pelo menos. Isso é o meu sonho.
A democracia será plena quando a gente for respeitado, entendeu? Falta muito, eu sei. Talvez eu não vá ver, mas o meu maior orgulho é que os meus sobrinhos, meus sobrinhos netos e os meus sobrinhos bisnetos provavelmente verão, porque estou ensinando eles melhor. Eles estão vendo a diversidade na casa deles, então vai acontecer. Eu não sei quando.
É o que eu sempre digo pros movimentos sociais. Não está ganho, não temos democracia, não temos respeito, não temos dignidade. Principalmente, eu não quero igualdade, essa coisa de lutar por igualdade me irrita! Eu quero equidade, com as diferenças reconhecidas e respeitadas e tratados sem diferença, porque quando eu quero me igualar a você… Eu vivi isso! Eu tive que estar mais que você e não foi reconhecido. A igualdade pra mim… Não vem com essa moeda, que na minha terra não tem valor.
Quando a gente tiver equidade, respeito, a gente vai ter ganho, vai ter democracia - no mundo, porque isso não é um problema nosso, é um problema mundial. Eu estive fora do país, estive na Espanha; eu falava com todo mundo e ninguém ficava desesperado pra me entender. Ninguém estranhava quando eu entrava nos lugares porque eles convivem com o diferente. É só conviver, gente. Só isso que eu quero.
(1:50:01) P/1 - Você gostaria de acrescentar algo mais que a gente não tenha te perguntado? Uma mensagem?
R - Toda a história é feita de dois lados, a gente sempre tem que ouvir os dois lados, entendeu? Ninguém pode ser punido por algo que é natural dele. Eu só queria deixar isso.
Qual a necessidade do outro? De repente você faz o seu julgamento e ele é seu, você não precisa emitir ele para o mundo, porque se você emitir ele para o mundo você vai discriminar, e isso é crime. Então, ouça a história, tenha o seu julgamento, mas não emita, porque você está discriminando. Só toma esse cuidado. E obrigada!
(1:51:15) P/1 - E como foi contar, dividir um pouquinho da sua história com a gente?
R - Cansativo. Teve algumas memórias que doeram, mas é bom falar, eu acho que é bom falar, porque são histórias. Talvez tenha gente que tenha outras mais pesadas ainda, mas é bom que as pessoas ouçam.
O mundo não é feito só de histórias bonitas, né, gente? Normalmente elas não existem. Toda história tem que ter dor, toda história tem que ter um fantasma atrás da porta, senão ela não fica sedutora, não é?
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