Memórias da Economia Solidária
Entrevista de Maria Gercina Alves de Araújo
Entrevistada por Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo/Belém, 03 de novembro de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº IPS_HV012
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(0:23) P/1 - Boa tarde, Maria Gercina. Tudo bem?
R - Boa tarde! Tudo bem!
(0:27) P/1 - Então a gente vai começar com uma pergunta bem difícil. Queria que você se apresentasse dizendo o seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R - Meu nome é Maria Gercina Alves de Araújo, sou paraense, moro em Belém, na Avenida João Paulo II. E esse ano eu fiz sessenta anos de idade.
(0:56) P/1 - E qual o nome dos seus pais, Maria Gercina?
R - O nome do meu pai é Antônia Andrade de Araújo e da minha mãe, Maria de Nazaré Alves de Araújo. São casados há 62 anos.
(1:12) P/1 - E com o que eles trabalham, ou trabalharam?
R - Meu pai hoje é aposentado. Meu pai começou a trabalhar desde os doze anos e ele começou a trabalhar… No início, quando ele começou a trabalhar mesmo, de fato, foi na Pará Elétrica, que é uma empresa de energia elétrica aqui no Pará. Depois ele passou a trabalhar na Força e Luz, em seguida passou a trabalhar na Celpa. Depois foi trabalhar na Eletronorte.
Meu pai é operário e a profissão dele era torneiro mecânico. Ele criou todos nós aqui, somos seis filhos. Eu sou a segunda filha dos seis filhos do papai e da mamãe.
(2:06) P/1 - E a sua mãe?
R - A minha mãe sempre foi do lar. A mamãe, naquela época… As mulheres não tinham assim… Achavam que o casamento era tudo. Ela não chegou a terminar o ginasial, ela parou justamente para nos criar - foram seis filhos que a mamãe teve. Ela se dedicou à família, ao lar. E hoje ela se arrepende, ela diz que deveria ter terminado o estudo dela. E é isso!
(2:42) P/1 - E como era a relação de você com os seus outros irmãos? Seis filhos no total, como era a convivência de vocês na infância?
R -...
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Entrevista de Maria Gercina Alves de Araújo
Entrevistada por Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo/Belém, 03 de novembro de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº IPS_HV012
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(0:23) P/1 - Boa tarde, Maria Gercina. Tudo bem?
R - Boa tarde! Tudo bem!
(0:27) P/1 - Então a gente vai começar com uma pergunta bem difícil. Queria que você se apresentasse dizendo o seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R - Meu nome é Maria Gercina Alves de Araújo, sou paraense, moro em Belém, na Avenida João Paulo II. E esse ano eu fiz sessenta anos de idade.
(0:56) P/1 - E qual o nome dos seus pais, Maria Gercina?
R - O nome do meu pai é Antônia Andrade de Araújo e da minha mãe, Maria de Nazaré Alves de Araújo. São casados há 62 anos.
(1:12) P/1 - E com o que eles trabalham, ou trabalharam?
R - Meu pai hoje é aposentado. Meu pai começou a trabalhar desde os doze anos e ele começou a trabalhar… No início, quando ele começou a trabalhar mesmo, de fato, foi na Pará Elétrica, que é uma empresa de energia elétrica aqui no Pará. Depois ele passou a trabalhar na Força e Luz, em seguida passou a trabalhar na Celpa. Depois foi trabalhar na Eletronorte.
Meu pai é operário e a profissão dele era torneiro mecânico. Ele criou todos nós aqui, somos seis filhos. Eu sou a segunda filha dos seis filhos do papai e da mamãe.
(2:06) P/1 - E a sua mãe?
R - A minha mãe sempre foi do lar. A mamãe, naquela época… As mulheres não tinham assim… Achavam que o casamento era tudo. Ela não chegou a terminar o ginasial, ela parou justamente para nos criar - foram seis filhos que a mamãe teve. Ela se dedicou à família, ao lar. E hoje ela se arrepende, ela diz que deveria ter terminado o estudo dela. E é isso!
(2:42) P/1 - E como era a relação de você com os seus outros irmãos? Seis filhos no total, como era a convivência de vocês na infância?
R - Sempre tivemos uma boa relação. Claro que sempre tem aquela situação de irmão que um perturba o outro e às vezes tinha aquelas brigas, mas nada daquelas brigas homéricas, era briga de irmão.
Eu tenho um irmão mais velho que eu, que hoje também trabalha na Eletronorte, que a gente é muito amigo, ele está com 61 anos, eu tô com sessenta anos. E a gente era muito amigo, a gente ia junto pra escola, voltava, era uma boa relação. A minha irmã, que na época também era viva, ela nos acompanhava pra escola e Deus levou a minha irmã quando ela ia completar sete anos. Era também uma companhia nossa para ir para escola.
A gente estudava numa escola que era a Celpa, a empresa Central Elétrica do Pará que fomentava para os filhos dos funcionários estudar. A gente ia juntos, era uma boa relação. Mas aí mamãe depois teve outros irmãos, outros filhos que são mais novos do que eu.
Devido o papai na época ter tido uma aposentadoria muito cedo - aquela aposentadoria especial, ele se aposentou com 45 anos - ele ficou, se eu não me engano, um ano, um ano e meio a dois anos aposentado, mas muito jovem, ele achava que não deveria ficar dentro de casa. Aí ele voltou a trabalhar na Eletronorte, na época, e passou 24 anos morando lá em Porto Velho. Eu fiquei com os meus irmãos mais novos. Foi na época que eu passei no vestibular e fiquei cuidando dos meus irmãos.
A minha relação com os meus irmãos é como se fosse mãe e irmã ao mesmo tempo, porque como eu era a irmã mais velha, eu cuidava de meus irmãos. Um ficou com doze, outro ficou com treze anos, outro com quinze e uma prima que a mamãe também… A mamãe criou desde criança, com treze anos. Eu fiquei com essas crianças do meu lado e eles me consideram como se fosse uma segunda mãe, apesar de eu me achar jovem.
(5:12) P/1 - E você tem alguma informação da origem da sua família? Se os seus pais são mesmo de Belém? Ou se os seus avós vieram de outro lugar também?
R - Tenho sim! A família do meu pai é paraense mesmo, minha avó era paraense e meu avô era amazonense, lá de Parintins, o pai do papai. E a vovó, mãe do meu pai, era daqui de Belém.
Os pais da minha mãe… A minha avó era paraense e o meu avô era cearense. Esses são os meus ancestrais. Segundo o que o papai e mamãe relatam, a gente tem um pé lá, outro cá, no Ceará, outro lá no Amazonas. O papai, na verdade, ele não é paraense, ele é amazonense, da cidade de Parintins. E a minha mãe é paraense.
(6:24) P/1 - Contaram para você algo sobre o dia do seu nascimento?
R - Não, nunca ninguém falou sobre isso. O que eu ouvi falar é que eu e o irmão mais velho… A vovó que cuidava da gente, mamãe era jovem ainda. Parece que eles moravam ainda com os meus avós, no início, quando eu e o meu irmão nascemos. Quem mais cuidava da gente era a vovó materna, a vovó Bela, que a gente chama. Vovó Isabela, a gente chama carinhosamente de vovó Bela, que já foi também, foi embora.
(7:15) - E você sabe, Maria Gercina, como escolheram o seu nome?
R - Eu sei! Foi a vovó que escolheu, porque segundo o que eu fiquei sabendo ela conheceu um povo lá no Maranhão que tinha uma tradição. A religião da vovó era… Vovó era umbandista. Ela achava que eu tinha que ser Gercina, porque o povo lá, a maioria lá do povo que ela conhecia, tinha muitas Gercinas. Acho que vovó achava esse nome muito bonito e é muito voltado mesmo para essa questão dela, sabe? Mas ultimamente eu não fiquei mais gostando desse nome, porque já fiquei sabendo de outro significado desse nome, que eu não tô gostando. E na minha própria cidade eu fiquei sabendo, porque eu tentei agora quase não usar Gercina. Os companheiros da economia solidária lá do Piauí que me falaram o significado certo desse nome. Mas tranquilo, eu nunca tive problema não, mas fiquei meio zoada com esse nome ultimamente.
(8:25) P/1 - E tem algum cheiro, alguma comida, alguma coisa que até hoje remete à sua infância?
R - Nossa, tem, porque a gente ficou muito voltado para a família. A vovó, o meu avô também, usavam muito aquela tradição da família aqui no Pará. Principalmente aqui na cidade de Belém, a gente tem uma tradição muito grande com relação ao Círio de Nazaré. Lá na casa da vovó, até mesmo no nosso quintal, tinha sempre um chiqueiro, que a gente sempre criava para no dia do Círio a gente matar o porco pra fazer a maniçoba. Isso pra mim lembra muito a minha infância, a festa que a gente fazia quando tinha esses comes e bebes.
Não era só no Círio, não, uma festa de quinze anos, um batizado, sempre tinha realmente essas comilanças aqui, que era justamente a maniçoba, o pato no tucupi. A vovó sempre foi muito voltada a criar esses bichos no quintal; ela sempre tinha um pato, sempre tinha um porco. Tinha até aquela plantação, se a gente tivesse uma dor, a vovó sempre tinha uma erva lá no quintal pra gente fazer um chazinho. Isso aí me remete muito [à infância].
Quando eu ando aqui pela cidade e vejo um pé de cidreira, um pé de capim santo, eu sempre trato de tirar e fazer aquela trouxinha, amarrar, pra sempre ter a minha erva pra fazer o meu chá. Isso remete a muitas lembranças da minha avó materna, principalmente. Isso pra mim é muito forte.
(10:19) P/1 - Você se lembra, Maria, como era a casa que você passou a sua infância?
R - Lembro! Na época que a gente morou lá na casa da vovó, a casa da vovó era uma casa de enchimento de palha. Ela morava, na época, aqui. Agora não é mais, porque cresceu a cidade, a cidade está mais urbanizada. Mas na época a vovó morava ali perto da Embrapa, lá era cheio de casinhas de enchimento de palha, uma coisa muito bonitinha, tudo organizado por dentro.
O papai veio fazer a nossa casa aqui, onde eu tô morando atualmente, na João Paulo, uma casa de madeira que ele comprou com muita dificuldade, num terreno de uma família. Tinha muitos terrenos aqui na cidade e o papai comprou essa casa e fez uma casinha de madeira pra nós. Foi uma coisa muito interessante, que de vez em quando eu lembro e meu irmão… A gente está de vez em quando se encontrando, meu irmão mais velho. A gente lembra quando o papai estava construindo a casa de alvenaria. A gente juntava aquelas latinhas e saía levando para dentro do quintal, entrava pelo saguão, pra levar aquelas… Pedra, aquelas areias que chegavam. Não tinha ninguém para carregar, éramos todos nós, era mamãe, era eu, os meus irmãos, todos com a latinha na cabeça para levar areia para o quintal.
Foi uma coisa que está muito na minha cabeça, na minha mente - essa relação com os meus irmãos, com os meus pais. Com muita dificuldade a gente conseguiu as coisas, mas a gente conseguiu. E a minha mãe sempre tinha aquele lema de dizer assim: “A maior herança do jovem que é pobre é estudar.” Ela sempre nos dava esse apoio pra gente estudar. Todos nós conseguimos furar o bloqueio, conseguimos estudar, passar no vestibular, fazer faculdade e a gente teve a vida da gente.
A gente até hoje tem uma boa relação, eu e meus irmãos. Eu sou atualmente a única filha de todos os meus irmãos, mas eu tinha uma irmã que eu perdi mesmo, lá na frente da minha casa, quando fizeram a avenida, no ano que construiu a avenida. Minha irmã morreu atropelada, bem na frente da minha casa. Minha mãe até hoje sofre por causa disso, faz uns cinquenta anos.
(PAUSA)
(13:06) P/1 - Você estava comentando sobre escola, Maria. Quais são as primeiras lembranças que você tem de ir para a escola?
R - É justamente isso, a minha primeira lembrança é justamente quando a gente ia junto pra escola, eu, meu irmão e essa minha irmã que morreu. A gente ia andando de lá dessa casa da João Paulo, até uma rua onde passava o ônibus para nos levar pra escola. A gente teve até um certo privilégio com relação à escola, porque era uma escola da empresa e a empresa tinha um ônibus que ia nos buscar, mas a gente tinha que chegar na hora certa; se perdesse o ônibus a gente não tinha condições de ir pra escola, que era no centro da cidade. A gente ainda morava muito distante da cidade.
A minha grande lembrança é essa. E é justamente onde eu estou agora congregando, na igreja onde eu estou atualmente. Nós ficávamos sentados na frente de um toquinho, justamente em frente dessa igreja onde eu estou. Isso me gera uma lembrança quando eu chego nessa igreja, lembro da minha infância. Uma coisa que a gente não consegue perder, essas coisas boas.
(14:24) P/1 - E tinha alguma matéria que você gostasse mais, ou algum professor que tenha te marcado nesses primeiros anos de escola?
R - Olha, eu me lembro que eu fui a que mais tive dificuldade de estudar, de todos os meus irmãos. Repeti dois anos na terceira série. A dificuldade que eu tinha era em matemática, mas eu era muito boa em português, muito boa em ciências e também na área da artes plásticas, que era para desenhar, pra fazer… Criar algo. Eu sempre me dava bem.
Naquela época era muita dificuldade, quando ficava reprovada numa disciplina, era difícil as pessoas entenderem que apesar de você ter dificuldade numa disciplina, não te davam chance pra te passar, sempre ficava prejudicada. Eu fiquei prejudicada dois anos, principalmente por causa de matemática. e atualmente eu estou trabalhando com matemática, porque eu estou trabalhando num empreendimento voltado à organização do nosso empreendimento, de economia solidária. Quem tá à frente disso, das finanças sou eu.
(15:48) P/1 - Do que você gostava mais de brincar nessa época da infância, Maria?
R - Naquela época a gente brincava muito na rua, em frente de casa, ainda mais criança de periferia - na época, era bem periférico onde a gente morava. A gente brincava muito de roda, de pira cola, que você tinha que correr atrás da criança e tinha muito rodas, com aquelas canções. A gente brincava muito de fazer bonequinhas de papel e criava a roupa de bonequinha, desenhava. E eu era a mais habilidosa para desenhar as roupinhas, fazia cada roupa linda, mas as bonecas eram todas de papel; a gente fazia no papelão e fazia as roupinhas. A brincadeira era muito voltada nessa questão. E brincadeira de roda, quando era criança mesmo.
(16:42) P/1 - Avançando um pouquinho mais para a sua adolescência, você continuou na mesma escola para você fazer o seu ensino médio, ou você chegou a mudar de escola?
R - Cheguei a mudar de escola. Foi quando eu saí realmente da escola da Celpa e fui para uma escola pública, que era aqui no bairro, uma escola chamada Jarbas Passarinho. Fui fazer o ensino do primeiro grau, na época era de quinta à oitava série. Fui justamente estudar na escola aqui num bairro de Belém, nas proximidades aqui da minha casa.
(17:28) P/1 - E nessa época teve algo que te marcou, que você lembre até hoje?
R - Olha, tem tanta coisa que marca a gente, ainda mais que a gente… Aqui em Belém chove muito e no período que eu ficava de recuperação, que era justamente na dificuldade da matemática… Todo mundo passava, aí eu tinha que ir no mês de janeiro recuperar. Eram uns quinze dias de recuperação que eu fazia nessa escola. Era no período de chuva, e não era asfaltada a rua, era tipo aquela tabatinga no meio da rua, aí a gente escorregava, era tipo sabão. E isso me marcou, porque a gente saía bem arrumado, tinha aquela certa vaidade, mas chegava com o sapato todo sujo, todo bagunçado. Foi uma das lembranças.
Outra lembrança, também nessa escola pública: a mamãe foi chamada na escola pela professora de português, que falou para mamãe que eu era uma menina muito desarrumada na época. Foi depois que a professora chamou a mamãe que eu tive um certo cuidado de andar arrumada. Era muito bagunceira, ia com o cabelo todo desarrumado. Não queria pentear cabelo, não fazia nada disso, não. E aí a mamãe chegou e disse: “Olha, tu tem que se arrumar mais, porque a professora disse que tu vai muito desarrumada. Tu não é feia, tu é uma menina bonitinha, que tem que ir mais arrumada.” Foi quando a mamãe começou a comprar aquelas coisinhas que amarravam meu cabelo, comprava um sapato bem bonitinho.
Eu não queria sujar o sapato, sabe? E aí quando eu pisava na tabatinga, aí o meu sapato escorregava, a gente chegava lá num sabão, parecia sabão. Era muito marcante.
E brigas na sala de aula, tinha colegas que chegavam falando certas coisas e eu cheguei realmente a brigar com uma coleguinha na sala de aula, se agarrar mesmo. Isso eu não esqueço. Eu me arrependo, é uma coisa que não é legal, mas eu cheguei realmente a brigar com essa coleguinha na sala de aula.
(19:58) P/1 - E no seu ensino médio, Maria, você mudou de escola também? Você passou a se dedicar a algum outro tipo de atividade?
R - Troquei de escola, justamente por causa do problema que eu tinha, da dificuldade da matemática. A mamãe me tirou dessa escola e me colocou numa outra escola, também nas proximidades de casa, para eu conseguir superar a dificuldade que eu tinha nessa disciplina.
Naquela época não tinha aquele negócio de: “Ah, eu vou passar porque ela é boa nisso”. Não, ficava reprovado mesmo. A mamãe queria sempre que todos nós nos déssemos bem nos estudos, e eu era a filha que dava mais dor de cabeça para ela na época, em relação a estudos. Ela vivia me trocando de escola, troquei muito de escola.
Independente disso, dentro da própria escola comecei a me organizar em movimentos populares. Na época, eu conheci um professor de inglês que era ligado à igreja católica e ele chamava os alunos para se organizar, para fazer grupo de jovens, para discutir vários tipos de discussões, principalmente na questão da religião. Na época ele era muito católico e ele chamava a gente para trabalhar nessas questões. A gente fazia bingo, fazia rifa, organizava festa na escola, muito voltado para a questão da religiosidade. Foi o início, comecei a me envolver com movimento popular com a juventude, que não era só os meus colegas da escola onde eu estudava, mas outros colegas, outras crianças, outros jovens do mesmo bairro se inseriam com a gente lá nesse movimento.
Lembro que o nome do movimento era EJUCRI. Era [de] um professor que hoje é professor da Universidade Federal do Pará, ele é ligado à questão da educação popular. Fiquei muito feliz que eu encontrei com ele numa das pós-graduações. Eu o encontrei lá na UEFA, aqui na Universidade do Estado e encontrei também com ele agora lá na Universidade Federal do Pará. Ele também está trabalhando essa questão da educação popular, é uma coisa que vem desde a base. Foi justamente o meu início de trabalhar com movimentos, foi lá.
(22:37) P/1 - E o que você fazia para se divertir nessa sua época de juventude?
R - Olha, eu sempre tive vontade de sair pra festa. Tinha colegas aqui, lá da minha casa, na época… Eles iam, se organizavam: “Vamos para a balada!” Mamãe nunca deixou! E aí a minha época que eu mais me divertia, era justamente que… Eu sempre fui muito habilidosa de querer aprender a costurar, aí eu pegava, cortava perna de calça do papai, que eu pensava que ele não ia usar mais, aí eu cortava para fazer roupa, fazia uma série de coisas. Comecei a fazer, trabalhar com máquina. Eu não sabia costurar direito, mas eu fazia aquilo ali, inventava roupa de boneca, essas coisas. Até mesmo pra mim, algumas coisas para botar no cabelo, botava no grampinho, colava. Era uma coisa muito voltada para a questão do artesanato, na minha juventude.
Eu tinha vontade de sair, mas mamãe não deixava, o que eu ia fazer? Eu ia mexer nas coisas dela, costurar, fazer e acontecer. E fazia também colarzinho, era roupinha de boneca, essas coisas assim. Era uma garota de dezesseis, dezessete anos, mas já fazia essas coisas, acho que com aquela intenção realmente de aprender. Não só costurar, mas também eu gostaria de mexer na cozinha, fazer comida, fazer bolo, fazer doce, essas coisas assim. Sempre adorei estar na cozinha, até hoje eu gosto de fazer isso.
(24:25) P/1 - E nessa época você já pensava em prestar vestibular e fazer faculdade, ou você foi pensar isso um pouco mais para frente?
R - Olha, eu comecei a pensar em prestar vestibular quando eu completei dezoito anos. Acho que como eu estava atrasada… Com dezoito anos eu ainda estava na oitava série, eu estava atrasada.
O meu irmão, que está um ano na minha frente, já tinha prestado vestibular e já tinha passado no vestibular, em Engenharia Mecânica. Tinha aquela cobrança muito grande dentro de casa. “Olha, tu vai ter que estudar, tu vai ter que passar no vestibular.” A mamãe passava o tempo todo dizendo que tinha que fazer vestibular pra passar, tá entendendo? Foi quando eu realmente comecei a pensar, mas eu não sabia o que eu queria fazer.
A mamãe queria que eu fosse psicóloga. “Ah, tu tem que fazer Psicologia. Tu tem que fazer Pedagogia!” Aí eu disse: “Não, eu tenho que fazer uma coisa que eu quero, na verdade. Eu não sei o que é isso! E não sei o que psicologia faz.”
Eu sabia que a pedagogia tinha alguma coisa a ver com educação, mas no fundo, no fundo, eu pensava numa outra coisa. Depois, quando eu comecei a fazer o cursinho pra me preparar pro vestibular, eu descobri que eu queria ser antropóloga, mas pra fazer Antropologia eu tinha que fazer Ciências Sociais, pra depois fazer a minha pós-graduação em Antropologia. E foi isso, comecei a pensar que eu tinha que me formar em Sociologia, mas eu também não tinha muita noção do que a sociologia ia me trazer.
Realmente, não me arrependo de ter feito Sociologia. Um dia desses chegou um amigo meu, que estudou comigo na universidade e ele falou para mim assim: “Você não quis ser socióloga.” Eu fico muito triste! Gente, eu sou mais que socióloga. Ele é professor da Universidade do Pará. Eu digo: “Gente, eu trabalho na prática da sociologia, sabe? Trabalho com organização de mulheres, eu trabalho com organização de trabalhadores de economia solidária, sabe? Eu vivo na prática, não vivo fazendo nada na teoria.” E sempre praticando, praticando, sabe? Aí ele entendeu. Eu digo: “Olha, pra fazer sociologia não precisa ser um cientista social. É você começar a praticar aquilo que você aprende.”
Na verdade, antes não era Sociologia que eu queria fazer, era justamente fazer para ser antropóloga, mas infelizmente eu não consegui. Foi no período que eu engravidei e não deu para levar adiante a minha pós-graduação em Antropologia, mas a Sociologia me deu muitas possibilidades.
(27:35) P/1 - Conta um pouco pra gente, Maria, como foi essa sua época da faculdade.
R - Olha, na minha época a faculdade era sempre um desafio pra mim. Às vezes eu achava que eu sabia muito, mas eu descobri que eu não sabia de nada. Tinha muita gente que tinha muito mais potencial do que eu, pra trabalhar, estudar dentro da questão da sociologia. Eu me dei muito bem na disciplina de Antropologia, Sociologia, mas nesse negócio de Ciências Políticas eu tinha muita, muita dificuldade. Nessa história também de fazer aquela disciplina que era Probabilidade, também tinha minhas dificuldades, e isso me causou um mal estar dentro da universidade, porque eu chegava a pensar que não ia conseguir terminar.
Depois eu fui percebendo que não era bem aquilo, eu tinha que realmente dar conta desses temas para poder me formar, mas eu achava que dentro de um contexto, dentro de uma disciplina eu poderia me dar muito bem, como a questão da Sociologia. Tanto que hoje os professores que foram meus professores de Sociologia Urbana, Sociologia Rural, hoje são minhas amigas, meus amigos do movimento social. Encontro com ex-professores que até me reprovaram e que hoje são meus amigos no movimento social. E pra mim foi muito bom!
Isso também, dentro da universidade, foi um caminho muito grandioso pra eu poder também me inserir dentro das questões políticas, dentro do movimento político, mas eu não podia levar muito a sério a questão de movimento, porque a minha intenção era terminar o meu curso em quatro anos. Tanto que apesar de eu ter sido reprovada em algumas disciplinas, consegui terminar o meu curso em quatro anos. Consegui superar todas as dificuldades.
(29:58) P/1 - Você tinha comentado agora há pouco que assim que finalizou a sua faculdade você teve que pausar um pouco os estudos. Você queria fazer uma pós-graduação, porque você tinha engravidado. Você passou quanto tempo até voltar aos seus estudos? Conta pra gente como foi essa fase para você.
R - Foi assim: na verdade, eu engravidei. Foi uma coisa que eu não estava esperando, não foi nada desejado com a minha família. Teve uma série de dificuldades, mamãe não aceitava. Apesar da mamãe morar lá em Porto Velho, a mamãe vinha todos os anos para Belém. Quando eu dei a notícia realmente, que eu estava grávida e que eu estava justamente me preparando para fazer essa pós, estava apostando. Só que a mamãe, como era na época muito carrasca, ela não me aceitou em casa. Eu tive que ir embora, tive que morar com o meu ex-marido, com o pai do meu filho. Foi quando deu tudo errado para mim, porque eu não tive mais condições de estudar.
Com um ano que eu estava junto com ele, eu tive que me separar, por problemas de violência doméstica, porque ele… Na verdade, eu não considero ele um homem branco, mas ele se considerava. E as violências que surgiam comigo e com ele, eram justamente porque ele me insultava, me chamava de macaca. Apesar de eu não ter a aparência de macaca, de negra, insultava os meus irmãos. Meu filho é um menino branco, branco, ruivo e que puxou um pouco para ele. Às vezes chegava e dizia assim: “E aí, meu filho, como foi na casa dos seus tios macacos? Você comeu a banana do macaco? Dos macaquinhos lá?.” Era uma coisa assim, ele me magoava dessa forma, maltratava muito desse jeito. As coisas acabaram não dando certo.
A gente se separou e tudo aquilo que eu vinha tentando fazer não deu certo. Eu não gosto muito de entrar nesses detalhes, mas foi mais ou menos isso que a gente… Na verdade, não deu certo meu casamento. Separei dele e tive que trabalhar, apesar de eu ter ajuda da minha família, mas eu precisava trabalhar para não ficar só dependendo das pessoas. Foi quando eu me envolvi no movimento do artesanato, foi onde eu aprendi muita coisa, até hoje estou envolvida. Foi uma investida para que eu pudesse chegar numa associação, essa associação era totalmente voltada para a questão da economia solidária aqui no estado. E foi o que realmente me levou a chegar até isso, a necessidade de trabalhar. Apesar de eu ser graduada, eu não tinha ainda a expertise ainda de arranjar um emprego na área de sociologia e fui pro lado do artesanato.
Isso me trouxe um grande ganho na minha vida, um grande saber. Trouxe muita coisa grandiosa desse movimento, que às vezes as pessoas não valorizam. Tenho um grande apreço pelo trabalho artesanal, principalmente o nosso trabalho aqui, o artesanato paraense, do qual eu aprendi muita coisa boa mesmo. Se ainda tiver tempo, a gente ainda vai falar muito sobre isso.
(34:00) P/1 - Eu queria que você comentasse um pouco qual era o tipo de artesanato que você fazia nessa época.
R - No início, como eu te falei, eu comecei com movimento popular dentro das casas espíritas, que era com evangelização com adolescentes do bairro, das meninas aqui da periferia do Bairro do Mar. Ao mesmo tempo que a gente trabalhava com essa evangelização, a gente trabalhava também com bijuterias, biojoias, ensinando as meninas. Tinha bordado, tinha ponto cruz, tinha uma série de coisas que eu aprendi lá e que aprendi depois a repassar para as meninas de lá, desse centro espírita. Eu aprendi muita coisa, aí eu ensinava biojoias, ensinava aquelas pulseirinhas com miçanga, aquelas coisas… Tudo eu sabia naquela época. E sei ainda, só que não era com uma propriedade maior. Eu não tinha aquela técnica de saber, tinha aquelas ideias, mas ensinava as meninas do jeito como eu aprendia.
Com relação à questão da necessidade de trabalhar com artesanato, eu fui fazer uns cursos lá no São José Liberto. O São José Liberto é uma casa aqui no Pará que é um antigo presídio. Lá tem uma escola de ourivesaria básica e profissional, onde a gente aprende a fazer joias. E aí eu fui fazer esse curso. Fiz o curso e aprendi a fazer anéis com tucumã, com prata, com coco. Fazia pingente em prata, anel em prata com semente de paxiúba, de açaí, uma série de coisas que eu fazia. Era uma coisa, uma biojoia meio sofisticada. E nisso eu comecei… Através desse curso que eu fazia lá no São José Liberto, eu consegui uma vaga pra fazer um curso de design de joias lá no centro tecnológico da UEPA. Fiz mais ou menos uns quinze dias de curso para aprender a desenhar jóias em prata. mas não eram bem joias que eu fazia, eu fazia biojoias, era com prata e semente, na época, uma coisa sofisticadíssima.
A gente era bem apreciada, o meu trabalho. Eu ia vender nas praças. Quando eu sabia que tinha alguma praça com comercialização, eu pegava minhas coisas, botava numa bolsa e levava. Só que uma das coordenadoras da Secretaria do Trabalho, que organizava, ela dizia que eu não podia comercializar porque eu não fazia parte de nenhuma associação. Eu não era economia solidária, eu fazia só aquilo ali, entendeu? Foi quando uma das companheiras do movimento, que na época era presidente da associação, chamada Anprovac, me convidou para fazer parte da associação. É a Associação dos Artesãos e Artesãs do Bairro de Val-de- Cans. E eu fui, porque eu estava com interesse de ser convidada para fazer, para comercializar as minhas jóias em prata, sementes, essas coisas.
Chegando lá, eu fiquei pasma de ver o trabalho que tinha dentro dessa associação. Era uma associação com artesanato genuinamente paraense, era só com coisas mesmo que a gente tem aqui, insumos daqui da Amazônia. Eram brinquedos de meriti, era manto de Nossa Senhora de Nazaré feito com a fibra de tururi, eram bolsas de tururi, eram as biojoias, uma série de coisas, tudo voltado para a questão da regionalidade. Eu fiquei encantada, porque também o meu trabalho tinha a ver com a questão regional.
Nessa de eu estar nessa associação, teve uma assembleia da qual teve a troca da diretoria. E nessa assembleia eu fui escolhida para ser a presidente da associação Anprovac. Foi através disso que eu conheci a economia solidária, porque essa associação já é muito antiga, já vinha discutindo a economia solidária aqui no estado, aqui em Belém, principalmente, pelo Fórum de Empreendedores de Economia Solidária. Como eu era presidente, o fórum me convidava para participar das reuniões pelo Fórum de Economia Solidária, fórum de empreendedores.
No outro dia era reunião do Fórum de Economia Paraense Solidária. Foi quando eu realmente comecei a me envolver com a economia solidária. Aí houve um convite da Secretaria de Cultura, para participar de uma feira num hangar aqui em Belém, no centro de convenções. E foi quando eu levei as minhas joias, na época eu fazia joias de prata. E foi quando o pessoal da economia solidária me convidou pra participar das discussões diretamente pelo fórum. Realmente fui, conheci de fato o que era economia solidária, porque eu não sabia o que era ecosol [economia solidária], nada, não sabia nem o que era isso.
Fui me envolvendo aos poucos por dentro do Fórum de Empreendedores de Economia Solidária e também pelo Fórum Paraense de Economia Solidária, que na época era lá na Sudam [Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia] que a gente se organizava, nessa questão da economia solidária. Foi assim que eu comecei a conhecer a ecosol.
Em seguida fui convidada para fazer um curso pelo Planseq [Plano Setorial de Qualificação Social e Profissional em Economia Solidária], que era a Unisol Brasil que tinha enviado pra cá para o Pará, para fazer um curso de sementes, de gemas… Deixa eu ver se me lembro…Era com relação a gemas, que chamavam gemas naturais, que são as sementes. Era beneficiamento das sementes, das fibras, das folhas. E eu fiz todo esse curso no Planseq pela Unisol Brasil, aqui em Belém. Foi quando realmente eu comecei a trabalhar de fato com as biojoias. Foi quando eu fui fazer biojoias voltadas para a questão das sementes, das folhas, das fibras, uma série de coisas. Fui desenvolvendo o meu trabalho nessa questão. Foi um primeiro programa da ecosol que eu participei com formação, foi pelo Planseq da Unisol Brasil. E teve outros e outros aí.
(41:59) P/1 - Eu queria que você comentasse como essa sua atuação acabou chegando junto à Secretaria Nacional de Economia Solidária. Qual foi o caminho até chegar lá?
R - Quando eu comecei a me inserir lá no fórum de empreendedores, sempre… Não quero dizer que eu sou a melhor, mas eu sempre mostrava que eu tinha um certo jeito de trabalhar e eu sempre também, quando eu comecei… Quando elas começaram a fazer formação de economia solidária, eu fui me identificando. Eu disse assim: “Nossa, eu fazia economia solidária e não sabia.” Eu já fazia isso há muito tempo. Eu só falava comigo, não falava para eles.
Fui atuando no movimento. Não fui só da militância, fui também atuante dentro do movimento, tanto do fórum de empreendedores, como do Fórum Estadual de Economia Solidária.
Aconteceu uma plenária, a Plenária Estadual de Economia Solidária, me lembro que foi no início de 2006. Fui escolhida para participar da coordenação estadual do Fórum Estadual de Economia Solidária. Na época, fomos eu, o professor Arroyo, que também é muito atuante dentro da ecosol aqui, e um companheiro lá de Terra Alta, que também é ligado à questão da agricultura familiar. E eu aqui, representando os empreendimentos urbanos. E aí a gente foi pra… Foi quando eu comecei a participar da Coordenação Nacional do fórum brasileiro. Porque quem entra aqui na estadual, automaticamente entra pra nacional, pra fazer parte daquela coordenação.
Depois teve a reeleição, eu fui de novo reeleita com outros companheiros já, na coordenação. E nessa reeleição teve uma plenária em Santa Maria do fórum brasileiro e os companheiros da Região Norte votaram para eu fazer parte da executiva do fórum brasileiro.
Passei quatro anos na executiva do fórum brasileiro. Foi o período também que eu passei na minha reeleição aqui no Fórum Estadual de Economia Solidária, junto com o fórum brasileiro. E isso aí na Senage… Eu não cheguei ser do conselho, mas a gente, no período que… Eu me lembro, bem no início de 2010 saiu uma chamada pública de um projeto chamado Brasil Local de Economia Solidária e Feminista. Eu mandei o meu currículo pra lá, pra essa chamada pública, e foi selecionado o meu currículo para trabalhar nesse projeto. Foi a primeira chamada pública que eu participei como contratada, na época era Aguaí, junto com a Senage. Aguaí fomentava esse projeto aqui, não só aqui no Pará, mas em vários estados. Na época, se eu não me engano, eram nove, no início do projeto do Brasil Local de Economia Solidária Feminista. E o Pará, das cinco regiões, era o único que começou a trabalhar no projeto Brasil Local de Economia Solidária Feminista.
Foi um início justamente pra me envolver com esses programas do SENAI. Depois a gente foi construindo aos poucos, depois do Brasil Local. Aí veio a contrução da Rede de Economia Solidária Feminista.
Até hoje, apesar da gente não estar com projeto em andamento, porque no desgoverno parou tudo, a gente ficou trabalhando com a articulação estadual nas bases. Faço parte, coordeno aqui a base estadual da Rede Feminista de Economia Solidária. A gente fomenta aqui no estado três redes, que é a rede Canaã Faz Arte, aqui no sudeste do Pará, na Canaã dos Carajás, que é bem distante daqui de Belém. A gente consegue fomentar lá uma rede em que está bem avançada a discussão da autonomia das mulheres e que tem muita pareceria lá com a prefeitura, a própria Vale. Elas estão bem envolvidas na questão de sua produção e comercialização dos produtos. Também tem a Rede Cabocla, que é a rede a qual eu faço parte, que o meu empreendimento… São dois empreendimentos que eu faço parte, é o empreendimento Amazônia Designer, que é esse dos artesanatos, e também o açaí. No período da pandemia nós montamos um empreendimento familiar, devido ao problema de que ninguém comprava o artesanato. A gente teve que se reinventar. Foi um empreendimento familiar, que eu fiz com meu filho; na época, nós ficamos realmente em situação difícil. Foi quando a gente conseguiu montar uma casa de açaí, onde a gente tira a polpa do açaí, bate o açaí e começa lá na porta da minha casa. Nós fizemos tudo como demanda a lei, porque a gente tem uma lei aqui dos batedores de açaí, então a gente conseguiu fazer um outro empreendimento, no período da pandemia.
Voltando à questão da Rede Cabocla, que eu estava falando, essa rede está em vários municípios aqui. Está em Belém, tem Ananindeua, Benevides, Santa Luzia do Pará, tá em Santo Antônio do Tauá.
São muitos empreendimentos que são voltados dentro dessa Rede Cabocla. São empreendimentos da agricultura familiar, empreendimento de alimentação, empreendimento familiar, muito familiar, de artesanato regional… É muito grande. É uma rede bem complexa, essa Rede Cabocla daqui, porque está em vários municípios. E tem a Rede Arte na Praça, que é uma rede aqui na região metropolitana, no município de Marituba, que são mulheres que vêm de um estado de vulnerabilidade, de extrema pobreza. Hoje elas estão trabalhando com crochê, reaproveitamento, o que mais? Serviços. E vem acompanhando sempre a Rede Cabocla nas comercializações solidárias que às vezes a gente consegue aqui pelo Fórum Estadual de Economia Solidária, pelo Fórum Municipal de Economia Solidária. E a gente vai levando aqui, se organizando da forma que a gente tem que fazer.
Eu falo muito!
(50:09) P/1 - Imagina, você está contando a sua história, tá ótimo! Maria, eu queria que você comentasse se tem alguma história, algum dia, algum evento que te marcou muito dentro desse seu trabalho com economia solidária? Seja nos empreendimentos que você trabalhou, ou mesmo nessas atuações com os fóruns.
R - São vários, Genivaldo.
Uma coisa muito marcante, que me abateu muito e que até hoje eu sinto, sabe? Uma coisa muito marcante foi que um dia a Rede Arte Na Praça solicitou uma formação, aliás uma oficina de beneficiamento da palha do tururi, que é a esqueletização. A gente faz a despigmentação, aí depois pigmenta com… Pode ser com Tintol, ou com alguma coisa que seja natural, tirar das próprias plantas. E eu domino essa técnica devido ao curso que eu fiz pelo Planseq que eu havia falado, já falei pra você no início. Fui ensinar essas mulheres lá, e aí: “Ah, o que que você precisa?” “Olha, pra gente não usar fogão a gás, a gente vai usar um fogão a lenha. A gente vai comprar carvão pra gente fazer um camburão lá, botar para ferver, pra gente poder trabalhar na questão da esqueletização da fibra do tururi.”
Fizemos tudo isso e ficou certo de eu pegar a saca de cimento, aliás, a saca de carvão na casa de uma das companheiras que ia fazer o curso, que tem até problema, ela não enxerga; ela é da rede. Nesse dia eu me atrasei, o Uber custou a chegar e eu acabei me atrasando. Quando eu cheguei na casa dela, eu vi as pedras de carvão jogadas, algumas pedras na frente na casa dela. E eu imaginei: “A Claudia já foi embora”. Bati na porta, chamei, aí o filho dela falou comigo: “Quem é?” Aí eu falei que era Gercina, que eu ia buscar a saca de carvão e a Cláudia para levar para a oficina. Ele disse: “Mamãe já saiu a um tempão!” Mas ele não abriu a porta.
Segui para lá, pro espaço onde a gente ia fazer a oficina. Passamos um dia bem legal. A oficina foi ótima, elas aprenderam a esqueletizar. Algumas coisas eu já levei secas, esqueletizadas. Fizemos a modelagem das bolsas, porque eles fazem bolsas de tururi também, que eu ensinei pra elas..
No que terminou a gente conseguiu pegar um ônibus lá em Marituba, que é bem longe realmente de Belém. Tinha que pegar dois ônibus. Peguei um lá em Marituba e desci na BR para pegar um outro pra Belém, pra casa.
Quando eu cheguei, eu soube da notícia do que havia acontecido. Nesse dia eu fiquei arrasada. O filho dessa mulher, que eu falei de manhã, havia sido assassinado na hora que ela chegou em casa. E a Malena, que é coordenadora, articuladora lá da rede Arte na Praça, ela disse que a roupa dela - ela estava com uma blusa da Rede Feminista - parece que jogou fora, ficou tudo ensanguentado, porque o rapaz que mataram estava atrás dela. A bala passou por cima da cabeça dela e o sangue jorrou na Malena.
Isso repercutiu na televisão, foi uma loucura. Tu nem imagina o quanto isso me doeu, dava impressão que era o meu filho. Eu só sei… Nossa, eu falei com esse garoto, sabe? E olha o que tá acontecendo. Isso foi uma coisa, assim, pra mim, que até hoje… Eu cheguei até falar pro pessoal da rede nacional que eu achava que não ia mais poder voltar mais lá pra Marituba, pra trabalhar no fomento dessas mulheres, porque até quando eu passava lá na BR, que dá para ver o conjunto onde eu fui. [Ela] mora num conjunto residencial lá, dá pra ver. Eu me sentia muito mal de ver aquilo, sabe?
Eu passei muito tempo, muito tempo realmente com essa lembrança triste na minha mente. Isso mexeu muito comigo, foi algo assim que… Acho que foi o que mais me doeu dentro do movimento.
E fora os outros, dentro do movimento da economia solidária, do fórum… Tem as pessoas que entram no fórum, mas não acreditam que essa economia solidária possa de fato acontecer. Tem muita gente que entra lá na intenção mesmo de entrar para ser convidado para comercializar. Isso traz muito mal estar para a gente que coordena, pra gente que corre atrás das telhas, pra gente que representa o fórum, sabe? Isso é complicado. Aqui no Pará tem algumas pessoas que já têm consciência do fato do que é economia, mas tem muitos companheiros ainda, que estão chegando, principalmente, que não tem essa consciência. Isso causa um mal estar muito grande pra nós que estão realmente à frente dessa construção.
Pra mim a economia solidária é sempre uma construção. Todo tempo a gente tem que estar discutindo sobre essa nova economia, sobre essa economia que realmente diverge com a economia capitalista.
Acho que quando comecei a discutir, trabalhar com a economia feminista, isso me trouxe um grande acúmulo. Foi quando todas as respostas que eu precisava eu já sabia, sabe? Quando eu comecei a trabalhar com a economia feminista, que a gente vem trabalhando… Eu me lembro que no projeto Brasil Economia Solidária Feminista a gente tinha aquele lema de dizer assim: a economia feminista qualifica a economia solidária, porque na verdade a gente já vem já trazendo aquele acúmulo da economia solidária. Quando você trabalha sobre a questão da economia feminista, nossa, tudo você já sabe; por mais que você faça a pergunta você já sabe a resposta, entendeu?
Aprendi muito, muito, tanto que nesse movimento da economia feminista, quando eu me inseri no movimento de mulheres… Eu sou não só militante, mas sou atuante dentro da Marcha Mundial da Mulheres aqui no estado do Pará. E também isso me trouxe muitos benefícios e muito saber, de descobrir. Porque a minha bandeira de luta dentro dento do movimento feminista, dentro da Marcha Mundial das Mulheres é autonomia econômica das mulheres, é o trabalho. Foi quando eu descobri a importância das mulheres estarem dentro do seu trabalho, das mulheres levarem o trabalho como algo grandioso para que possam crescer como seres humanos, como pessoas, como mulheres, para ter sua autonomia, para ter respeito como as demais pessoas na sociedade. É muito prazeroso ver muitas mulheres que realmente necessitavam de muita coisa e que hoje estão com a gente, trabalhando e discutindo essa questão da economia feminista, que é a autonomia econômica das mulheres.
(59:25) - P/1 - Fala um pouquinho pra gente se a atuação de vocês na economia solidária, acabou trazendo algum benefício no sentido de alguma política pública, seja ela federal, estadual ou mesmo municipal, relacionadas ao trabalho de vocês.
R - Com relação à questão das mulheres, que você está falando, né Genivaldo?
(59:49) P/1 - Das mulheres dentro da economia solidária, mas também em relação às discussões do fórum. Se vocês conseguiram, digamos assim, influenciar alguma política.
R - Sim, com certeza! Dentro do fórum… No início, quando a gente estava discutindo, no início do governo Lula, quando começou a chegar os programas de economia solidária, o fórum estadual realmente estava muito envolvido no projeto. O projeto que chegou aqui, de mapeamento de economia solidária, trouxe benefícios para que a gente pudesse saber quantos empreendimentos existem aqui no Pará. Foi quando a gente começou realmente a já ter uma luzinha no final do túnel para que realmente pudéssemos receber mais políticas públicas de economia solidária aqui no estado.
Foi quando começou a vir a discussão do projeto estratégico do Centro de Formação de Economia Solidária. E aí também eu me lembro que fiz até parte do conselho desse projeto. Na época, quem executou o primeiro CFES foi a Universidade Federal do Pará, era pelo ICSA [Instituto de Ciências Sociais Aplicadas] que estava fomentando o projeto aqui no estado. E a gente fazia… Primeiramente tinha algum grupo de pessoas do fórum que faziam formações nacionais para fazer a formação para alguns companheiros; a gente fazia a formação dos formadores. Eu fiz essa formação, pra gente fazer essa formação dos formadores de economia solidária aqui no estado.
Depois teve a segunda parte do projeto, que também foi do CFES. Não foi mais na universidade [do Pará], foi na Universidade da Amazônia, a UNAMA, que estava também fomentando, que trouxe também… Eu me lembro que quando eles estavam fomentando esse projeto, eles tinham muitas feiras de economia solidária que aconteciam no espaço dessa universidade. Inclusive eles abriram um espaço de comercialização, que se chama Andorinhas, aqui no estado; quem fomenta é o professor Arroyo. Sou muito grata, porque eu aprendi muitas coisas com ele. Na época da coordenação a gente trabalhou junto, eu representava o fórum como empreendimento, ele também representava como entidade de apoio. Foi um período realmente de muito aprendizado.
Em seguida vieram também as políticas públicas com relação à questão da pós-graduação. Eu me lembro que veio uma pós-graduação… Eu não sei te dizer se a primeira que teve aqui foi voltada para a questão da… Teve uma pós-graduação de Economia Solidária, que eu não consegui fazer, mas em seguida veio a outra pós-graduação, de Gestão Pública e Sociedade, vindo pela Universidade Federal do Tocantins. Era justamente um programa de lá da SENAES, da Secretária Nacional de Economia Solidária.
Eu me lembro que eram trinta vagas aqui no Pará e eu fui a 24ª, quando eu fiz a prova. Consegui entrar para fazer essa pós e foi realmente muito bom, porque a gente descobriu dentro da pós-graduação que não é… Que a economia solidária é muito ampla pra se discutir coisas assim… Eu vejo que o povo aqui, as pessoas discutem muito a questão da comercialização, sabe? Mas a gente quando foi estudar, quando eu fiz essa pós, foi uma coisa que eu descobri, que a economia solidária é muito abrangente, de uma forma que você nem imagina.
Eu me lembro que tinha uma disciplina que era voltada à questão de… Eu não lembro a disciplina, mas era justamente sobre centros urbanos, e aí a professora discutia muito aquela questão da gente trabalhar com ciclismo, a importância das pessoas trabalhar com… Ao invés de você tirar o seu carro da garagem, a gente tinha que trabalhar com a bicicleta. Depois a gente vinha discutindo de uma forma muito ampla essa questão, não só essa questão urbana, como eu estou querendo dizer, mas com a questão também das obras - já vi aqui pelo Pará, já vi também no Rio Grande do Sul -, as casas que vêm trabalhando com reciclagem. Eu me lembro que a gente discutia muito essa questão.
Outra questão que a gente aprendeu muito foi a questão dos alimentos, então eu vi que na economia solidária, ele é muito abrangente. Tanto que o curso de Gestão Pública e Sociedade… Ali eu vejo que a economia solidária está em todas as áreas para ser discutida. Não é só na área de comercialização, não só na área de produção, não, que ecosol está envolvida. Tá na hora também da gente começar a pensar como se reinventar ao se vestir, mudar a importância.
Ultimamente eu não tô dando importância para comprar roupas. Um exemplo: principalmente no movimento da marcha das mulheres, a gente faz muitos brechós, a gente tem muito esse trabalho e o carinho da gente levar o que é necessário para as pessoas usarem. As minhas roupas ultimamente são tudo de brechó, não compro mais em magazine, porque eu sei que aquilo ali… Querendo encher o meu guarda-roupa com roupas novas eu não tô contribuindo aqui para o futuro do nosso clima, do nosso planeta, tá entendendo? E aí já é uma questão de conscientização de uma das causas da economia solidária. De uma das coisas que a economia solidária discute, entendeu? Que é muito abrangente, muito abrangente.
(1:07:08) P/1 - Tem toda uma ligação com o meio ambiente, né?
R - Com certeza tem. E é muito amplo mesmo esse negócio.
A gente tem um carinho muito especial com o pessoal, com os catadores aqui. Apesar da gente não ter feito um mapeamento com os catadores dentro da economia feminista, eu tenho uma relação muito grande, até porque muitas mulheres do movimento de catadores estão dentro do movimento da Marcha Mundial das Mulheres. E a gente faz muita oficina voltada à questão do reaproveitamento na questão da autonomia econômica das mulheres, do próprio feminismo. E é isso!
(1:08:10) P/1 - Você estava comentando sobre essa questão da economia solidaria feminista. Eu gostaria que você falasse como você vê a importância da mulher dentro da economia solidária.
R - Eu sempre digo que a importância é quando a gente começa a se conhecer, quando a gente começa a discutir a economia feminista, até porque quando a gente está dentro da economia solidária a gente não consegue ver também a importância do trabalho da mulher. E pelo que eu percebo muito dentro da… Eu sempre falo nessa questão, que quando você começa a falar na economia feminista, você fala sobre autonomia econômica das mulheres e também sobre a divisão sexual do trabalho.
Eu me lembro que em uma dessas discussões, não sei bem te dizer onde foi, eu via muitas mulheres dizerem: “Olha, a gente precisa discutir o GT [grupo de trabalho] de mulheres, porque dentro da economia solidária ainda tem presidente de associação, ainda tem presidente de cooperativa, ainda tem um coordenador de produção. E geralmente as mulheres estavam sempre atrás. Na verdade, eles estavam produzindo e os homens… As mulheres poderiam até lá comercializar, mas os homens sempre ficavam no caixa, sempre ficavam à frente, sempre estavam representando. E a gente percebeu, que a mulher, como ela é… Apesar do mapeamento aqui ter colocado que a maioria das pessoas que existem na economia solidária são homens, se você for numa reunião do fórum, se você for numa reunião do próprio artesanato, a maioria são mulheres que a gente vê. Não sei se aí em São Paulo é assim, mas aqui a gente vê muita mulher na feira. Então a gente achou que seria interessante a gente criar um GT de mulheres, tanto que aqui no Pará nós conseguimos criar um GT de mulheres, no qual a gente vinha discutindo a questão do protagonismo da mulher dentro da economia solidária, que é de fundamental importância, até para que elas possam ter esse olhar pela sua própria posição, porque a gente percebe que as maiores companheiras que levam… Eu também já fiz muito isso, mas agora não! Eu fui muito, como é que se diz, ousada em querer montar uma casa de açaí que é trabalho de homem. Mas as mulheres sempre tratam de multiplicar o trabalho que elas vêm fazendo dentro de casa, na cozinha. Elas levam para comercializar o seu trabalho nas feiras.
A gente vê companheiras que levam guardanapos com biquinhos de crochê, a gente vê ainda mulheres que levam alimentos, comida… Eu vejo mulheres que levam ainda aquela comida normal, que é feijão com mocotó, ou então feijão com rabada, pra vender nas feiras. Não leva nem um quitute que a gente diz: “Não, hoje eu vou levar uma maniçoba, hoje eu vou levar…” Tem mulheres que levam, mas tem mulheres que levam ainda esse tipo de comida para comercializar. Eu não sou contra, mas eu vejo que as mulheres estão tão voltadas pra esse tipo de produção que elas fazem no ambiente privado que justamente no trabalho, quando ela consegue sair do ambiente privado, elas levam, reproduzem o trabalho que elas fazem no ambiente público, numa feira.
Dentro da questão da divisão sexual do trabalho, a gente sabe que os homens são os que saem de casa, que vivem no ambiente público, e as mulheres no ambiente privado. E quando a gente consegue furar esse bloqueio, consegue entrar no mercado de trabalho, dentro da economia solidária, às vezes ainda leva esse tipo de trabalho.
Na questão da economia feminista tem o trabalho do cuidado. A gente trabalha com a questão da criação dos filhos, da produção do alimento, na limpeza da casa. Agora com essa história de você cuidar dos pais que já estão de idade, isso tudo é apontado na questão do trabalho da mulher. Na verdade, as próprias mulheres também têm que ter a consciência de dizer para o companheiro, pro filho, que eles também tem obrigação de fazer aquele trabalho doméstico, que aquilo ali não é obrigação só das mulheres. É uma das causas que eu vejo dentro da economia feminista.
Na economia feminista, a gente trabalha muito com a questão da valorização do trabalho da mulher. Achar que a mulher realmente tem que estar no mercado de trabalho, apesar de todas as dificuldades, apesar de ainda o homem ter mais privilégio. Graças a Deus, no governo Lula, isso futuramente já não vai mais acontecer, do homem que trabalha na mesma profissão que a mulher ganhar mais do que a mulher. Agora vai ser tudo de forma igual. E é isso que as pessoas às vezes não entendem, que quando a gente fala na questão do feminismo, na igualdade, acham que as mulheres querem estar à frente dos homens. Não, não é isso. A gente quer estar do lado, a gente quer estar igual.
Com relação a essa questão da religiosidade, ultimamente conversei com um irmão meu que já é da igreja há um bom tempo. Ele fala: “A igreja condena feministas. Isso aí não vai ser possível, tu ir adiante sendo evangélica, crente, dizendo ser feminista.” Digo: “Pois é uma coisa que nunca vou deixar de ser. Porque eu sempre tive que correr atrás do trabalho pra botar uma comida na minha mesa. Se eu não botasse, quem ia colocar?” A própria economia feminista, o próprio feminismo me ensinou a valorização do trabalho, me ensinou que realmente eu tenho potencial para ter possibilidade de botar um prato de comida na minha mesa, e com qualidade, penso assim.
Eu sou muito grata pelo que eu aprendi dentro do movimento, tanto feminista, como do movimento da economia feminista, dentro da economia solidária. Isso me trouxe um grande ganho pra trabalhar e colocar os meus pés no chão, aqui como pessoa, vivendo até hoje aqui nesse mundo. Espero que eu aprenda ainda muito, muito mais, porque a gente não leva só o nosso saber para as mulheres. O que elas trazem pra gente também traz saber, a gente aprende também com as outras companheiras.
(1:16:02) P/1 - Você acha que o trabalho com a economia solidária mudou o seu jeito de ver a vida, Maria?
R - Nossa, claro que mudou! Eu me lembro que a minha mãe, ela tem muito assim… Agora ela mudou também. Mamãe mudou porque ela vê o meu jeito, ela diz que eu mudei muito. Mas antes, muito antes, porque quando eu comecei a entrar na universidade eu não pensava como eu penso. Eu valorizava as coisas, achava que tudo bom era o que era de marca, tudo bom é que era de couro, tudo bom era o que era de ouro. E aí eu via que aquilo fazia depois um grande malefício para o planeta, tá entendendo? É aquilo que eu falei das roupas, tem roupa de marca aí que tem trabalho infantil, tem trabalho escravo, tá entendendo? E a partir do momento que eu comecei a entrar dentro da economia solidária, é aquilo que eu disse, eu coloquei os meus pés no chão e aprendi que a vida não é assim como a gente pensa, que a própria economia capitalista deixa a gente pensar dessa forma assim, bem reduzida. Não imaginar porque eu tô… Será que esse anel de ouro que eu tô usando vai trazer um malefício para o meu planeta? Eu já penso, já me questiono. Isso vai fazer, sim, um malefício. Assim como aquela roupa, a gente sabe que se você for fazer uma roupa jeans vai gastar muita água, isso vai contaminar também, isso vai fazer malefícios pro planeta. Eu começo a me conscientizar com relação a essa questão.
Eu não quero ser melhor, só quero ser consciente das coisas pra que eu não posso fazer danos futuramente para outras pessoas que venham a viver aqui na terra. É isso. Mas eu mudei muito sim, porque eu valorizava as coisas que hoje eu não valorizo de maneira alguma. Isso que eu tô usando aqui é uma biojoia, aliás é uma joia que eu fiz na época quando eu era ourives, que eu fazia com… Aqui tem madeira, tem cascalho de pedrinhas, não é nada luxuoso, mas uma coisa feita por mim, com muito carinho. Eu coloquei justamente para você ver que fui eu que fiz. É isso!
(1:18:39) P/1 - É muito bonita mesmo, eu estava reparando nela. E falando sobre os contatos que você teve com a Secretária Nacional de Economia Solidária, você chegou a conhecer o secretário na época, o Paul Singer?
R - Cheguei sim! Cheguei a conhecer o Paul Singer, que fazia algo revolucionário para todos nós e que nos enchia assim… Toda vez que eu via o Paul Singer… Vi o Paul Singer várias vezes. Eu era Taguaí, eu trabalhava na rede. A gente sempre ia para as feiras de economia solidária lá em Santa Maria. Tive muita oportunidade, inclusive numa das mesas em que era discutida justamente a criação da Rede de Economia Solidária Feminista, eu estava do lado do Paul Singer. Eu estava coordenando a mesa, tive o prazer de tirar uma foto do lado do Paul Singer.
Todas as vezes que eu via o professor Paul Singer eu me enchia de alegria, por saber que tem alguém realmente que vai deixar esse legado, pra gente começar a multiplicar pra muita gente essa outra economia, que é possível sim fazer, porque se a gente acredita em tudo isso que eu acabei de dizer, nessa transformação, nessa conscientização de viver no mundo, isso é possível, sim. E achar também que não é só o lucro que vai te trazer benefícios para a vida; é você saber que dividir possibilidades, dividir trabalho, dividir produção, até recurso mesmo das feiras de onde às vezes a gente comercializa vai trazer um benefício muito grande para gente, porque eu sei que não sou só eu que vou comer mais, muita gente vai comer, conforme aquilo que eu venho acreditando.
Isso para mim é… Muita gente acha que isso aí é só sonho, mas para mim isso é muito verdadeiro. Saber que nem que seja um grãozinho eu estou colocando e contribuindo para que essa economia solidária possa acontecer.
Eu tenho certeza que a economia solidária de fato vai acontecer futuramente no nosso planeta, apesar de pessoas acharem que isso é sonho, que isso não vai acontecer. Às vezes acham que a gente viaja em relação a toda essa questão. Mas isso não é pra agora pra gente, a gente está só contribuindo, como o Paul Singer veio a contribuir com todos os ideais para que realmente aconteça. Futuramente o nosso planeta vai precisar sim que a economia solidária aconteça. Já tá acontecendo gente, já tem gente que precisa de outros companheiros pra poder ganhar, pra poder comercializar, para poder sobreviver. Às vezes não é incompetência, na verdade é uma necessidade de você trabalhar e também… Eu digo exercitar a economia solidária dentro da tua vida, do contexto de vida, eu vejo assim. Futuramente isso vai acontecer, eu tenho fé que isso vai acontecer com certeza absoluta. .
(1:22:48) P/1 - Maria, você tinha comentado que você começou um trabalho relacionado ao açaí durante a pandemia. Eu queria que você comentasse um pouco como foi pra você pessoalmente, mas também profissionalmente esse período da pandemia.
R - Foi meio complicado, porque eu sempre trabalhei com artesanato, fazia joias. Já não tava mais fazendo as biojoias, fazendo bolsas com reaproveitamento de jeans, às vezes jeans novo mesmo, tecidos novos. Fazia camisas que retratavam a questão da economia solidária, a questão da economia feminista, personagens, mulheres feministas, trabalhava muito com esse tipo de trabalho. Mas quando chegou a pandemia ficou uma dificuldade muito grande, teve várias dificuldades para você sair pra comercializar, participar de feira. E ninguém encomendava mais nada.
Eu me lembro que a última coisa que eu fiz ainda de encomenda de artesanato foi uma bolsa jeans, que tinha a cara da Frida Kahlo, com os dizeres da Frida Kahlo, depois não teve mais.
O que a gente teve que fazer? A gente teve que se organizar, eu e o meu filho. Na época meu filho também teve que parar a faculdade, porque ele estudava na faculdade particular e a gente ficou realmente sem nada. E foi quando a gente decidiu, eu e ele, da gente fazer um espaço do açaí. Primeiro eu pensei em fazer um ateliê porque a gente já faz bolsa, fazer um ateliê legal. Mas eu vejo que ele por ser um rapaz, um garoto, não ia querer fazer nada de ajuste, nada de trabalhar com… Foi quando eu disse: “Olha, eu tô pensando em montar uma casa de açaí, porque como é também um alimento regional… A gente faz uma casa de açaí, ou um ateliê, mas se tu aceitar trabalhar comigo nessa casa de açaí, a gente monta essa loja de açaí.” “Mãe, tranquilo, a gente vai trabalhar.” Só que a gente não sabia de nada.
A gente começou a pesquisar, aí fomos fazer um curso de boas práticas na prefeitura, fomos estudar a lei, porque existe uma lei do batedor de açaí, que tem que fazer conforme o que a prefeitura recomenda, conforme a lei recomenda; é como se fosse um laboratório, porque é um alimento. E aí a gente fez tudo direitinho.
A gente fez primeiro o espaço, lembrava uma baita de uma cozinha bem legal, depois a gente teve que comprar os maquinários, para a gente começar a trabalhar com açaí. E foi de início uma lástima, porque eu não sabia trabalhar, nem ele sabia trabalhar. A gente ia para a feira do açaí e chegando lá os caras lá nos enganavam, porque vem açaí de toda parte, vem açaí do Marajó, vem açaí de Macapá, vem açaí daqui das ilhas de Belém, todo lugar. A gente não sabia qual era o melhor açaí, a gente queria comprar um açaí para vender, e aí teve muito prejuízo, porque a gente não sabia usar a prática. A gente fez o curso na prefeitura, a gente fez tudo direitinho, mas a gente não sabia a qualidade que a gente tinha que colocar no nosso açaí.
Nós apanhamos muito, foi muito prejuízo que nós tivemos. Mas foi uma coisa depois que devido a gente tanto insistir… Eu sou muito persistente nas coisas que eu faço. É difícil eu dizer que eu não quero mais, só quando realmente não dá. Quando eu não quero, eu não quero mesmo. Mas eu sempre persisti. Foi quando a gente descobriu que o melhor açaí para comercializar em Belém é o das ilhas de Belém mesmo. O açaí que tem em Belém, que é das ilhas próximas daqui. Inclusive [tem] aqui próximo à minha casa, não fica muito longe o porto do açaí, que é no Jurunas, onde a gente pega açaí daqui das ilhas.
Foi quando a gente começou a trabalhar com pessoas realmente que… Formar um grupo, pessoas que de fato sabiam já trabalhar com açaí. E a gente começou a trabalhar.
O problema também foi como você armazenaria o açaí. A gente foi descobrir aos poucos que tinha que ser o próprio gelo pra conservar o açaí, justamente pra que ele não perca o sabor e a qualidade. Aos poucos a gente foi aprendendo, ninguém nos ensinou.
Depois meu filho decidiu não mais trabalhar comigo, porque ele voltou para a universidade - dessa vez ele foi para uma universidade pública. Ele disse: “Olha, não vou mais trabalhar com a senhora, mãe. Agora vou tentar terminar o meu curso.” Foi quando realmente eu chamei algumas pessoas, organizei um grupo de trabalho para gente trabalhar no açaí. São justamente pessoas que são das ilhas daqui de Belém, que trazem o açaí, o açaí que a gente conhece… O nosso açaí é conhecido como açaí da hora, porque é tirado no mesmo dia e batido no mesmo dia. Isso eu não sabia. E é um açaí que na verdade está virando uma iguaria aqui no meu bairro. Papai mora no mesmo bairro que eu moro, só que a vantagem lá é que é uma avenida, e aí todo mundo já conhece, que é um açaí que é de superqualidade, que é o pessoal ribeirinho… Nosso açaí não é de plantação, é açaí mesmo, que vem do extrativismo. São pessoas que moram mesmo nas ilhas, dentro do mato, que trazem o açaí todos os dias para o nosso açaí, que se chama Açaí Caboclo, entendeu? E que a gente vem vendendo a farinha, junto com a farinha da mandioca, farinha da tapioca.
Algumas companheiras da rede feminista mandam a produção delas de café para gente vender lá na lojinha, no nosso espaço de comercialização. Também às vezes elas mandam as farinhas. Não mandam todo o tempo, mas a gente já compra também daquelas pessoas que estão aos redores da feira. A gente tem todo cuidado para não pegar de pessoas que vêm para encarecer, que são os atravessadores.
O nosso trabalho eu vejo assim, com muito zelo, com muito carinho esse açaí que a gente está tentando fazer lá, no nosso ponto fixo. E a ideia, junto com a Rede de Economia Solidária Feminista nacional é de montar também um ponto de cultura, pelo fato de ser alimento regional. Também vender outras coisas, com peixe, com charque, com camarão, como a gente come no Pará o açaí, entendeu? É um ponto de cultura de alimentação que a gente está querendo fazer, lá no nosso ponto fixo do açaí.
(1:31:13) P/1 - Pra finalizar, Maria, quais são os seus maiores sonhos hoje?
R - Ainda tenho uma meta de trabalho. O meu sonho é uma meta de trabalho ainda, de organizar um grupo de mães no meu bairro da periferia e trabalhar justamente com aquilo que eu vinha trabalhando desde o início, que é trabalhar com a questão da evangelização. Trabalhar também com oficinas do pouco do saber que eu tenho, com a questão das biojoias, com a questão do artesanato, a questão de bolsas reutilizando tecidos. Essa que é a minha meta, o meu sonho de fazer isso. E eu todo dia peço para que Deus possa fazer com que isso possa ser realizado.
(1:32:09) P/1 - A última pergunta, então, pra gente finalizar. Como foi pra você contar um pouquinho da sua história pra gente hoje?
R - Nossa, foi um desafio, porque nunca ninguém quis saber da minha vida. Muita gente me acha até maluca por estar envolvida numa coisa que acha que não pode acontecer, a economia solidária.
Uma vez o meu irmão estava dizendo: “Nossa, tu fizesse Sociologia e não tem nada.” Eu não penso dessa forma, eu penso que eu tenho muito, porque muito eu aprendi. E nem tudo que tu faz é com intenção de enriquecer financeiramente. Eu penso que a gente enriquece quando a gente começa a dar possibilidades de saberes para outras pessoas. Isso pra mim é um grande ganho, é a maior riqueza pra mim está envolvida dentro desse campo de trabalho que a economia solidária me trouxe.
Ultimamente eu me vejo muito assim, lembro muito da minha infância. E ao mesmo tempo eu relaciono a minha infância junto com o que eu faço atualmente dentro da economia solidária, as coisas mais simples que eu faço. A minha vida é uma vida muito simples, eu não tenho luxo, não pretendo ter. Não é que eu esteja querendo dar uma de boa moça, não, mas eu nunca tive vontade de ter riqueza. A riqueza que eu tenho de ter é uma riqueza espiritual, uma riqueza que eu possa realmente possibilitar algo para alguém. Isso pra mim é muito prazeroso. E fico muito feliz quando isso acontece.
(1:34:11) P/1 - Em nome do Instituto Paul Singer e do Museu da Pessoa, a gente agradece muito pela conversa de hoje, Maria.
R - Também fico grata por tudo, por essa possibilidade de vocês terem me dado, de contar um pouquinho da minha vida. Não foi tudo, mas deu pra resumir.
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