Programa Conte sua História - Vivências LGBTQIAPN+
Entrevista de Julia Moraes Piccolomini
Entrevistada por Bruna Oliveira
São Paulo, 18/10/2023
Entrevista n.º: PCSH_HV1423
Realizada por Museu da Pessoa
Revisada por Bruna Oliveira
P/1 – Julia, para começar eu queria que você dissesse seu nom...Continuar leitura
Programa Conte sua História - Vivências LGBTQIAPN+
Entrevista de Julia Moraes Piccolomini
Entrevistada por Bruna Oliveira
São Paulo, 18/10/2023
Entrevista n.º: PCSH_HV1423
Realizada por Museu da Pessoa
Revisada por Bruna Oliveira
P/1 – Julia, para começar eu queria que você dissesse seu nome completo, a data e o local do seu nascimento?
R – Meu nome completo é Julia Moraes Piccolomini, eu nasci no Rio de Janeiro. E nasci no dia 7 de abril de 1989.
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – Sueli Vitória Moraes Piccolomini e Eduardo Piccolomini.
P/1 – E como você descreveria eles?
R – Vocês começam pesado. A minha mãe é um doce, ela… Mãe é doce, né? Até no nome. Eu acho que ela veio para… A minha mãe é minha companheira, ela veio para me salvar das coisas da vida. E eu acho que ela é todos os meus pontos de segurança e de insegurança também, porque todas as inseguranças dela batem em mim. E eu acho que no fundo, no fundo, tudo que eu quero, eu faço, eu sou, é meio que para fazer por ela também. Ela é uma mulher que, desde pequena, é bobona, não teve muita, não teve muito amor próprio por ela. E ela é uma das pessoas mais incríveis que eu já conheci na minha vida, uma mulher guerreira, amorosa que cuida de todas as pessoas que estão do lado dela. Ela é carismática, ela é brilhante, ela é linda, ela é uma das mulheres mais lindas que eu já vi na minha vida. E ela não se vê, ela está sempre se vendo feia, ela está sempre se cobrando para estar magra, ela está sempre se cobrando para ser alguém, ela não confia nela mesma. Mas ela é incrível e eu aprendo muito com ela, ela tem um carisma gigantesco, assim, sabe? Ela brilha, ela tem uma presença fenomenal, é engraçada, bem humorada e não deixa a peteca cair. E ela nunca viveu para ela, sempre viveu para os outros, sempre viveu para mãe, para o pai, para o marido e, quando a gente nasceu, pra gente. Minha mãe é uma pessoa, ela é amor, ela é vida, ela é dança, ela é luz, ela é pesada, ela é cuidado. Ela está sempre com as mãos ocupadas, está sempre cuidando e quando está brava é porque as pessoas não estão se cuidando ou fazendo do jeito que ela queria que fizessem. Mas ela não tem nada a ver com isso, porque não é uma responsabilidade dela, ela tem que cuidar dela, entendeu? Ela é maravilhosa, minha mãe é a maior sorte e privilégio que eu tenho da minha vida. Meu pai, meu pai é turrão, meu pai ele é o patriarcado, é italiano, é o Eduardo Piccolomini, ponto. E é assim, italiano criado com o pai… Ele não é italiano, mas criado dessa dureza do homem que não pode ter emoções e que tem que trabalhar e lutar. Ele trabalhou desde cedo, desde os treze anos de idade, se formou em Administração, um cara muito inteligente, muito sagaz, pega as coisas muito rápido, até dá raiva, porque ele lembra de umas coisas, que você fala, hamm… Porque ele humilha, sabe? Assim, de uma inteligência não emocional, porque a gente tem várias inteligências. É uma inteligência intelectual, então ele lembra das coisas e joga as coisas, ele tem uma prepotência, uma prepotência bonita, aquele cara de escritório que você desde pequena… dá medo! Eu tô viva hoje pelo amor da minha mãe e pelo medo do meu pai, entende? E foi assim! Hoje, o meu pai tá mais mole, acho que a vida vai ensinando, os golpes da vida.
P/1 – Sabe como eles se conheceram?
R – Eu sei! Foi acho que numa festa junina de bairro, no Ipiranga, que é onde eu moro hoje. Eles eram ipiranguistas em São Paulo. E foi numa festa junina, o meu pai galantiadosissímo, ele sempre alto, loiro, de olho claro, mais velho e seguro com essa beleza, mais velho. Minha mãe bobona, tímida. Minha mãe sempre foi gordinha, uma gordinha, para ela gordinha, mas acima do peso, daquela época padrão de beleza, ela sempre se cobrava demais. Meu pai passou por ela, ele falou: nossa, seus olhos são lindos! E aí ele não deixou minha mãe em paz, nunca mais. Ele ia na frente da escola dela, com o carro, ele foi atrás, ele a pescou. E namoraram, pediu ela em casamento. Teve um momento que ela até falou: “Ai, acho que eu não quero!” Mas aí ele falou com um primo dela, falou para resgatar, assim, ela falou: “Tá bom, então vou casar com ele.” E casaram! Estão juntos até hoje, 45, 50 anos de casamento, muito tempo de casamento.
P/1 – E com o que eles trabalhavam?
R – A minha mãe sempre foi dona de casa, ela sempre… Chegou a pensar em fazer Faculdade de Educação Física, ela sempre gostou de dança, mas ela nunca teve essa segurança de ir atrás, de: “Eu posso olhar para a minha vida.” Então ela sempre acompanhou. Ela foi atrás do meu pai e aí ela virou mãe. E aí ela sempre cuidou da gente. Num determinado momento, quando mais velhos, a gente foi despejado de casa e tal. Ela fez um curso de cabeleireira. Eu perguntei para ela: “O que você quer fazer?” Ela falou: “Vou fazer curso de cabeleireira, acho que é o que eu quero.” Mas ela não chegou a atuar, ela ficou muito insegura na hora de atuar, começou a dar uma ansiedade nela, acho que até uma depressão. Acho que depois de já idosa, você pegar essa responsabilidade… aí ela não quis também! Mas é ela que corta o meu cabelo hoje e não troco por ninguém. É uma mão… ela é poderosa em tudo que ela se propõe a fazer e esse que é o negócio. Tentou até mexer com artesanato, mas… O meu pai, ele queria ser engenheiro, mas não tinha dinheiro para fazer a faculdade de Engenharia, ele se formou em Administração. Começou como motoboy da Ultragaz, cresceu, cresceu, cresceu e contabilidade, sempre mexeu com contabilidade. Foi aí que ele foi trabalhar no Rio de Janeiro, foi trabalhar por três meses, se apaixonou, ficou por dez anos lá, nasceu minha irmã e eu. Eu fiquei um ano no Rio só, voltamos para São Paulo. Eu sou paulista, né. Mas o meu pai sempre foi contador, sempre trabalhou com escritório, máximo ali gerente de contabilidade. Depois abriu um escritório, depois faliu, não, depois, desculpa! Depois, ele saiu do escritório, o pessoal da gerência foi desligado. Meu pai é um cara duro, acredito que por isso não foi cativo, acredito. Foi trabalhar como sócio de uma casa, de uma loja de bomba de combustível para carro, essa loja deu super certo, chegou abrir fábrica de bomba para combustível. Mas depois faliu. Aí não ergueu. Aí acho que ele ficou com depressão. Aí hoje ele está aposentado, está terminando de pagar as dívidas agora. A gente chegou a ser despejado de casa, pegou muito empréstimo com a minha irmã, comigo. E aí foi a gente que assumiu a casa, desde os meus dezenove anos eu que assumi, que a minha irmã saiu de casa, ela casou, aí desde os dezenove anos fui eu que assumi as contas da minha mãe e do meu pai e toda aposentadoria dele vai para pagar essas dívidas da loja que ele fez. E aí, depois que eu casei, eu e a minha irmã, a gente dividia as dívidas. Aí depois que eu fiquei desempregada, agora a minha irmã paga tudo sozinho. Aí agora eu que me banco só. A minha irmã está bancando.
P/1 – E como é o nome da sua irmã e como era a relação de vocês durante a infância?
R – Mariana Moraes Piccolomini. Mariana sempre foi meu ídolo, minha rainha. Que é muito bom e muito ruim também, porque a Mariana sempre foi ‘padrão’, a Mariana ela sempre teve… sem fazer força, tá? Ou um pouco de força, porque depois que a gente cresce e faz terapia, a gente entende que tem muita força por trás de tudo isso. Mas eu sempre entendi que não tinha força. A minha irmã é linda, ‘padrãozão’, morena, magra. Desde pequena sempre foi muito carismática, falante, ela sempre gostou de aparecer, sempre muito inteligente, tirou notas altas, sempre foi muito obediente, sempre foi
muito… Depois eu descobri que ela também tinha esse medo do meu pai também, então ela tinha esse esforço para ser a filha perfeita também. Então ela era muito obediente, muito sagaz.Minha irmã era muito ligeira, muito sagaz, muito… E ela sempre foi o meu ídolo, eu sempre queria… Eu vim depois e eu queria pertencer, queria ser amiga da minha irmã, queria ser… eu queria brincar com ela, queria lutar com ela, eu queria… Eu queria brincar com ela. Então era isso. E aí a minha irmã, nem sempre, era boazinha não, tá! “Você vai brincar comigo, você vai ser a minha empregada.” Então assim, era ralar para estar com ela, mas eu era a empregada mais feliz do mundo. “Vai pegar água!” Era água com açúcar e mais alguma coisa. Porque eu estava brincando com ela, sabe? Era esse o rolê. Eu tinha primos mais velhos também, então eu queria pertencer, eu queria… E ela era a Xuxa, se ela era a Power Rangers Rosa, eu era a amarela, se ela era a Spice Girls, a Geri, que era a ruiva de que eu gostava, tudo bem, eu ficava com a Emma. E assim seguiu o jogo. Mas a gente tava junto. E aí tivemos fases, as fases da briga, que aí eu comecei a crescer, e ela parou, paramos dos tapas, porque ela percebeu que o meu tapa começou a doer também. E aí as encrencas na adolescência, começamos as encrencas mesmo de fala, de brigar, de xingar, da minha mãe tem que entrar no meio. Foi a única vez que a minha mãe entrou pra bater na gente. Ela bateu na minha irmã, bateu em mim, aí quando ela saiu, a minha irmã olhou pra mim: “Doeu?” Falei: “Não! E em você?” “Também não!” A gente começou a rir, deu tudo certo! O tapa da minha mãe violentíssimo. Mas era isso, a gente brincava… Mas para você ter ideia, teve uma vez que a gente entrou na mesma calça, (aponta uma cicatriz) isso daqui que eu tenho aqui, ó, é uma covinha que não é de nascimento, é uma cicatriz. A gente foi entrar numa mesma calça, porque a gente fazia um personagem lá e a gente foi entrar… Porque a gente sempre teve uma infância… Minha mãe, como ela era mãe, ela filmava a gente, eu tenho muitas gravações da gente pequena, então fazia peça de teatro, fazia dança, aí eu fumava. A gente tem muita filmagem dessas coisas, de pequena. E a gente foi entrar numa mesma calça, desta vez, a gente se desequilibrou, caiu. Foi entrar numa mesma calça, se desequilibrou e caiu. Só que a gente ia cair pra trás, eu ia cair na frente da minha irmã. A minha irmã é muito ligeira, ele me empurrou para frente, em cima dela. E quando eu fui para frente, eu caí na quina da cama. E isso daqui inchou de uma tal forma, que a minha cara ficou muito grande. Minha mãe subiu na hora, porque… E a minha irmã quando viu, já viu que a culpa foi dela, já foi pro banheiro e fechou a porta. Minha mãe subiu, na hora que a minha mãe subiu, eu fiz, assim: “Ó! “Não foi nada mãe, não foi nada!” Então, eu ao em vez de chorar de dor, eu virei pro lado e falei: “A Mariana não fez nada, está tudo bem, está tudo bem, a Mariana não… “ O meu receio era: se minha mãe ver e culpar, a Mariana não vai mais brincar comigo. Então eram esses os pensamentos. Se a minha irmã começasse a tossir, eu rezava para Deus – Para, hoje, Deusa – Para passar a gripe para mim, porque eu aguentava. Eu tinha essa relação com a minha irmã. Era uma loucura. E é a minha Deusa até hoje! Hoje, a gente é melhor amiga, não de contato, confidencialidades, mas quando a gente precisa. Quando ela está mal no trabalho, por exemplo, ela me liga… Eu “bournoutei” a minha irmã, por exemplo. Falei: “Chega, chega, você vai falar que não dá.” Coisa do trabalho a gente conversa, coisa da… Ela é minha melhor amiga, ela vibra por mim, eu vibro por ela. Essa tatuagem que eu tenho é uma Tríade. A minha mãe, a minha irmã e eu. É o início, meio e fim. Somos nós três. A minha irmã é a pessoa que eu mais amo na vida, sem sombra de dúvida, desde sempre. É o meu natal, é o meu feriado, não mexe com ela não. E, desde pequena, na escola, ela era a minha observação, ela era… E ela era mais tímida, ninguém sabia quem era a Mariana. “Mas a Julia é irmã da Mariana?” Porque eu era porra louca, eu era rebelde, a Mariana era uma nota exemplar, aluna, a menina que todos os caras queriam. Eu falo…. “A Julia, irmã da Mariana!” Mas eu ficava de olho. E as meninas tinham muita inveja da Mariana, eu só ficava de olho, se chegava alguma menina por trás, eu já… Era um negócio louco e ainda é, até hoje. E ela é divina, uma Deusa.
P/1 – Você chegou a conhecer os seus avós?
R – Cheguei! Os quatro.
P/1 – E como era na infância só relação com eles? Qual o nome deles? De onde eles vieram?
R – Eu não sei o nome da minha avó e do meu avô paterno, que eu sempre chamei de nonno e nonna. É alguma coisa… eu não vou lembrar. É Angelino e Natali. Porque eu sempre me chamei de nonno e nonna e eu vivi muito pouco com eles, eles morreram muito cedo. A nonna foi câncer e eu vivi muito… tem mais memória de vídeo, durona mesmo e eu lembro dela, ela já tava muito doente, então a gente ia visitar, era mas ela reclamando das dores dela e muito velhinha já… Mas eu lembro das coxas da nonna. E eu lembro que a nonna era muito trabalhadora de chacára, eles moravam na chácara. Eu não vou lembrar aonde. Limeira? Jaguariúna. E ela era muito trabalhadora de chácara, era rústica mesmo, era uma coisa durona, assim: “Vai pra dentro!” Sabe? Não era… E o nonno também, eu lembro dele muito bravo. Eu lembro deles em espírito, isso é muito louco. Eu via eles. Isso eu nunca falei para o meu pai, pra minha mãe, eu já falei. Mas eu lembro mais deles no apartamento em que eu morava, me vendo, do que eles vivos. Isso é muito louco! Mas isso eu via pequena, grande eu não vejo. Eu via os dois me vendo, o nonno sempre muito bravo, sempre uma cara (careta), bravo, bravo mesmo. Eu não lembro de eu conversando… Nonno foi antes ainda, eu nem falava. E eu lembro das histórias, do meu pai falar, essa coisa… nunca foi algo direcionado na vida dele, nunca é algo de:
“Ô, é assim que se faz.” É: “Quem foi o filho da puta que apertou a pasta de dente no meio?” Não é uma coisa direcionada, de tipo, é assim que se faz. É na bronca, entende? Então, era mais ou menos assim. Agora a minha avó e o meu avô, maternos, foram muito mais presentes na minha vida, porque eu tive mais convívio, eles viveram mais. A minha nonna e o meu nonno, eu ia mais de final de semana, mas de final de semana, não, mas de festas. A família da minha mãe, eu sempre fui mais presente, final de semana, era todo dia. A minha avó fazia muita questão, fazia muita festa, era aquela ‘matriarcona’ espanhola mesmo, cozinha. E cozinhava todo dia, com muita mistura, então era batata recheada, era bife a milanesa, era… E ela fazia questão da gente estar perto, então eu ia. Mas era briga todo dia, não era uma coisa saudável, de estar perto. Era a festa todo dia. Não, era perto e xingando todo mundo, que ela era danada mesmo de ruim. Fazia brócolis, bife à milanesa, bem, e falar mal dos outros. Ela era danada, batia em todo mundo. Teve uma vez que ela jogou o chinelo no meu avô, meu avô entrou atrás de mim, o chinelo veio na minha cara. Caralho, vó! Era comida, muita comida e chinelo voando do outro lado, era maravilhoso. E ela era danada, era ruim mesmo. Minha avó fazia distinção entre os netos, aí tinha os queridos, tinha os ruins. Eu era querida, graças a Deus! Aí tinha os bonzinhos. Mas ela escolhia pela dó mesmo, os mais fodidos eram os que ela mais gostava mesmo. Eu, então, ela gostava. Mas eu tinha umas conversas muito legais com a minha avó, depois de grande, eu batia na consciência dela: ”O que você está fazendo? Tá errado isso aí.” Ela conversava comigo, umas conversas cabeça mesmo, brigava com ela. “O que a senhora tá fazendo, Vó? Tá levando o colchão na escada com sessenta anos para a Fernanda? A Fernanda leva!” Que era a queridinha dela. “Fernanda leva!” Ela tinha umas coisas com as queridinhas, ela falava: “Pede dinheiro para a Julia, Julia tem dinheiro.” Ela tinha as coisas dela. Ela era uma louca desvairada, mas muito correta na visão dela. E ela queria as coisas do jeito dela, mas não é assim que a vida acontece. E se as coisas fossem do jeito dela, seria muito legal, porque ela tava certa, mas não era assim, entende? Porque ela tinha razão, as pessoas que ela escolhia eram boas mesmo. E as que ela via as maldades, tinha maldade. Mas não era assim, entende? Minha avó era massa pra caramba! Mas danada de ruim mesmo, das formas de fazer, do como fazer. Tinha que evoluir algumas coisas que ela fazia errado, pegava, machucava, traumatizou umas crianças por aí. E o meu avô, aí é… Deixa por último porque é… Como diz um amigo meu de Salvador, Marcel Zillig é ‘bião dobrado’ mesmo. Esse cara aí, ele não era muito profundo não. Ele era um bom malandro, um cara que sabia viver, ele era simples assim. Ele era boa praça, de bem com a vida. E ele levava a vida assim, ia no clube, jogava bocha, jogava cartas, jogava sinuca. Ele trabalhava, tranquilo, nada… Trabalhou primeiro no Aeroporto Viracopos, mas não fazia nada muito… acho que ela trabalhava na administração e não fazia nada muito uhull ali dentro não, não era piloto, nada… trabalhava ali. E aí, depois, ele trabalhou numa distribuidora de remédios como motorista, essa distribuidora era do meu primo, do meu padrinho, era um primo de segundo grau. E era isso, ele trabalhava levando o remédio. Tava sempre rindo, sempre de bem com a vida. E minha avó fazia da vida dele um inferno, xingava ele o tempo inteiro. E eu acho que ele deve ter tido umas amantes por aí também, sabe? Devia ser mulherengo pra caramba, porque ele dançava muito, nossa, era um pé de valsa, porque ele ia no clube e a gente ia dançar com ele, porque ele dançava com a minha mãe, minha mãe era o pé de valsa preferido dele. Ele dançava muito com a minha mãe, eles dançavam, era a coisa mais linda do mundo ver os dois dançando. E eu ia! Então, na minha adolescência, enquanto as meninas adolescentes estavam… Eu ia com a minha mãe e meu avô no baile para dançar com ele no baile, esperava ele me tirar para dançar. E aí ele e minha mãe dançavam. E as meninas faziam fila para dançar com ele, com ele e com o Nove Dedos, que eram dois pé de valsa lá, maravilhosos. Eu também adorava dançar com o Nove Dedos. Dancei uma vez com o Nove Dedos. E meu avô era bonitão, era lindo, até velho, cabelo grisalho, branco, para trás, assim. Até no enterro, ele estava com um terno branco. Nossa, meu avô era galã. Minha avó também. Minha avó Deusa, os dois lindos. E era isso! Só que brigavam muito, minha avó e meu avô, nossa, era prato que voava, era coisa que voava. E aí quando o meu avô morreu, antes, se tornou a melhor pessoa do mundo para a minha avó: “Meu lindo, que saudade que eu tenho dele.” Morto, né? Até eu, né? Que aí morto até eu! E aí ela ficou ‘deprê’, depois que ele morreu, foi minguando. Ela morreu acho que uns dez anos depois.
P/1 – Tem algum cheiro, ou algum gosto que lembra a sua infância?
R – Tem! Cheiro de praia. A gente tinha uma casa em Itanhaém, que era das minhas três avós, da minha avó e das minhas tias avós. Então a gente ia muito para Itanhaém. Então não é o cheiro de uma praia limpa, cheiro de uma praia bem a capenga mesmo. Uma praia com fosso. Praia com fosso mesmo, com cano, essa praia mesmo, melhor praia que tem, areia dura. Era uma casa que ficava… a gente tinha que andar uns cem metros para chegar na praia, chegava toda assada. Era muito gostoso! Então, tem cheiro de praia na minha infância. Cheiro de Dama da Noite, tem cheiro de Johnson's Baby verde, minha mãe usava muito esse perfume na gente também. Tem cheiro de fritura de bife à milanesa. Tem cheiro de roupa que sai da caixa mofada de Papai Noel. Tem muito cheiro de natal na minha infância. Eu não dou conta de natal. Minha irmã que segue. Meu avô se vestia de Papai Noel, todo mundo na casa da minha avó, todo mundo levava um prato. Aí depois a família começou a ficar rica do lado de lá, aí tinha que pagar para ir, sabe? Meu pai perdeu tudo! Como se perde, né? A gente está perdendo tanto, até as profissões. Tá perdendo tanto, as pessoas estão escolhendo profissões por causa do dinheiro. Ninguém mais quer ser atriz, jogador de futebol. E perde, essa coisa do dinheiro. E aí depois perdeu o natal, porque você tinha que pagar para ir, e a gente não tinha dinheiro para ir, porque era coisa de R$ 300,00 por pessoa. Aí a gente já não ia, porque ia para uma chácara lá em… Onde que tem os balões lá? Boituva. Aí só para ir, já era caro, porque aí tinha parma, pagar as parma lá dos caras. Aí não dava! E a comida nem era boa. Da hora quando a gente fazia, as casquinhas de siri da prima Edna. A gelatina colorida da da tia Nair, sabe? Tinha pratos que a gente sabia de quem era. Tia Nair também fazia um bem ruim, que era um frango no bacon, que sempre sobrava, mas ela sempre fazia. Mas era o que dava para o dia seguinte. E aí tinha sempre os pratos… aí elas brigavam para separar para os filhos do dia seguinte, aí guardava o prato em cima da geladeira, em cima… Aí, era maravilhoso! Enquanto isso ficava os caras jogando baralho lá no fundo, fumando um monte. Não entendo por que as mulheres não podiam jogar os baralhos também. Aí as mulheres ficavam lavando a louça. E as crianças com um único CD, porque eu só tinha dinheiro para comprar um CD, no rádio, ouvindo Fafá de Belém, Vermelho, vermelhaço, vermelho escuro, vermelhão, com vermelho, no repete. E a gente dançando, fazendo teatro. Aí, no final da noite, vinham os adultos ver o que a gente tinha ensaiado. E fazia o natal. E aí saia as crianças para procurar o Papai Noel, quando voltava tava o Papai Noel em casa. E assim se fazia. Uma infância muito cheia de natal. Aquele cheiro de caixa de árvore de natal mofada.
P/1 – E como era a casa que você passou a infância?
R – Eu mudei muito de casa, a gente sempre viveu de aluguel, então a gente mudou muito de casa. Quando você fala de casa de infância, eu lembro muito da casa da minha avó, era uma casa escura, uma casa densa. Que é a casa ênfase da minha mãe. Então eu lembro muito desse lugar único, quando você fala de casa, de porto, eu lembro muito desse lugar, porque era esse lugar que a gente sempre voltava, era esse lugar de unidade, de segurança, que era lá que sempre estava. Inclusive, essa casa foi… ela é muito significativa na nossa vida, porque ela foi caindo junto com a gente. Quando minha avó foi morrendo, ela foi morrendo junto, a gente vendeu essa casa craquelada, ela tava caindo literalmente. A gente não teve dinheiro para cuidar da manutenção dela.
A partir do momento em que o meu avô morreu, a casa foi morrendo, ela foi putrefando junto com o meu avô dentro do caixão, muito significativa. Eu lembro dessa casa, como a minha casa, a casa da minha mãe, do meu avô, da minha avó. Esse lado materno era muito forte. Porque do meu lado paterno, eu tenho uma ligação muito forte com uma prima minha, com duas primas, a Flavinha e a filha dela, o resto deu uma abandonada. Porque o meu pai cagou também, eu não sei quanto, mas a gente foi despejada de casa e o fiador era a família do meu pai. E aí quando a gente foi, eu não sei o quanto ele não falou, não sei o quando ferrou ali. Mas a gente foi abandonado ali também. Mas a casa… Então, eu sempre mudei, a casa da minha infância, a primeira, foi numa vila que eu lembro, porque a primeira foi no Rio, que eu fiquei um ano, nem lembro. Minha primeira lembrança que eu tenho do Rio, foi eu queimando o meu pé na areia, muito forte, eu fui andar na areia, muito pequenininha, queimei meu pé, e aí minha irmã ficou do outro lado rindo de mim, eu olhei para trás, a minha mãe falou: “Cava um buraco e senta.” Aí eu lembro que eu comecei a cavar um buraco, muito pequenininha, sentei, queimei minha bunda também, aí minha mãe me salvou. É a única lembrança que eu tenho do Rio. Aí depois, São Paulo, foi na vila, uma vila muito legal, com muitas crianças, numa casa gigante, três andares, uma super garagem e tal. Mas eu também não tenho muita memória dela, a única memória que eu lembro é de eu tirando panelas debaixo da pia e ficar brincando com a panela, aí bati nas panelas. Brincava muito com panela debaixo da pia. Essa casa da vila, depois eu fui para uma casa do lado do Museu do Ipiranga, do lado, muito boa também essa casa de três andares, foi lá que a gente teve a nossa primeira cachorra e única, Dalila. Dalila ficou dezessete anos com a gente. E aí a Dalila, enfim. Dalila não morreu, Dalila foi embora, ela fugiu, a gente não sabe, virou lenda, a gente não sabe qual foi o fim da Dalila. Acho que isso é uma coisa insuperável. E foi lá que a Dalila veio com a gente. Aí dessa casa a gente foi para um apartamento, porque a situação financeira para o meu pai ficou difícil. Aí foi para o apartamento e foi muito legal, porque foi aí que a gente começou a brincar com mais crianças no dia a dia, porque antes era eu e a minha irmã muito e lá no apartamento a gente brincava com mais crianças, aí fazia o show Spice Girls, brincava lá embaixo. Aí foi onde eu tive as minhas primeiras paixonites, foi onde eu comecei a ser rejeitada, foi aí que eu comecei a perceber o que era ser gorda, o que era estética, o que que era… Foi onde eu adquiri toda a noção de tudo ali na vida. Depois do prédio, a gente foi para uma outra casa, a casa perto do lixão, ali na Ricardo Jafet. E depois a gente foi para uma casa ali na rua de cima. Essa casa foi terrível, nosso período nela, porque ali foi onde a gente foi despejado, foi onde a Dalila fugiu, foi onde a gente foi assaltado duas vezes, tiraram tudo da nossa casa, rasparam duas vezes, em uma delas, a minha irmã estava. Essa casa foi horrível. E enfim. E dali a gente foi para um apartamento ali na Vila das Mercês, que já foi mais afastado, na Anchieta, porque a gente saiu do centro do Ipiranga mais legalzinho, porque a gente foi, Ipiranga, Santa Cruz, mais afastado que já não era tão bom financeiramente, aí a gente despejado, a gente foi lá para a Vila das Mercês,
Anchieta, que já não é tão bom financeiramente. Aí ali eu casei. Aí eu morei na Vila das Mercês e agora eu tô na Cisplatina, Ipiranga. Então, mudei muito a minha vida, não tem uma casa que eu falei, nossa…
A casa é a da minha avó. E eu sonho muito com essa casa da praia, que a gente teve que vender também, porque as minhas tias avós sabiam que iam morrer e elas queriam resolver o inventário. E resolveram. Não tá resolvido no sonho, quem sabe um dia.
P/1 – Tem alguma profissão que você sonhava em ter quando você era pequena?
R – Tem! Eu queria ser atriz. Eu me formei em Artes Cênicas. E foi isso, porque eu queria ser atriz… Eu queria ser atriz e cantora, mas eu já sempre entendi que a voz eu não tinha para isso mesmo. Aí eu falei: “Tá! Então eu vou ser atriz.” Só que na minha adolescência eu desapeguei disso, eu falei: não vai rolar! Não é para mim! Pelos padrões, por tudo. Eu falei: “Não vai!” Tirei isso da minha cabeça. Na minha adolescência, eu me envolvi com ONGs, comecei a fazer teatro no colégio, mas eu entendi que eu ia fazer administração ou direito. E ali no meu segundo, terceiro colegial, eu não sabia o que eu queria fazer da minha vida, eu não sabia mesmo. Eu era aquela adolescente frustrada, que todo mundo sabia o que queria e eu estava perdidaça mesmo. Eu não sei o que eu quero fazer da minha vida. Todo mundo já desde criança. E eu, quando eu era criança eu queria, mas eu não fui essa criança que sempre quis, eu realmente desapeguei da ideia de ser atriz, era uma coisa ali, uma vontadinha ali, entendeu? Aí quando chegou no terceiro colegial, eu falei: meu… Direito eu sabia que se eu começasse eu não ia terminar, eu não ia dar conta das leis, de estudar tudo aquilo massivamente. Eu não sou uma pessoa da teoria, eu sou peão, eu sou do fazer, eu sou a pessoa que vai… Você me dá uma atividade eu vou operacionalizar. Eu sou peão. Eu não sou da intelectualidade, eu nunca fui de nota alta, eu nunca fui de concentração, eu nunca fui de ler grandes livros. Os grandes livros que eu li foram raros na minha vida, foram as Brumas de Avalon, foram raros. E eu falei: não vai rolar. Aí Administração, eu falei: pode ser. E eu falei: eu vou fazer artes cênicas, porque eu falei, meu… Eu entrei na linha de tipo, assim, tava naquele momento que tudo que as pessoas fizessem, eu entrei naquela onda de, se eu fizer o que eu amo, pode dar certo. E aí eu fui para casa das artes cênicas mesmo. Falei: é o que eu amo! É o que eu quis desde pequena. Eu no teatro eu tinha o carisma, as pessoas gostavam. Eu falei, quer saber, vou atrás do que vai dar certo. Não deu! Não deu! Porque aí eu fiz artes cênicas e aí eu descobri a minha deficiência. E aí a minha deficiência, ela é progressiva, eu vou perdendo força no caminho. E foi nas artes cênicas que eu consegui descobrir, porque eu parei de ouvir o mundo, porque todos os médicos, todas as pessoas buscavam em mim um corpo padrão. Então eu ia nos médicos e tal, eu voltava para casa com dieta física e exercício para fazer. E eu fazia. Voltava, “fiz!” “Não, não fez, tá mentindo, você é gorda, você é isso, você é aquilo.” E desconfiavam de mim, me culpavam. E eu também me culpava. Tem alguma coisa errada, você não tá, enfim… E aí nas artes cênicas, foi quando eu parei de… Porque aí eu fazia exercícios diariamente, fazia tudo que todo mundo tava fazendo. Aí eu falei: vê gente, meu corpo não responde igual, tem alguma coisa muito… Enquanto tá todo mundo fortalecendo, ficando melhor, eu tô ficando fraca. E eu ficava o dia inteiro lá mesmo, então. E aí foi aí que eu fui atrás do SUS, minha mãe era voluntária da AACD, falou com uma fisioterapeuta lá, e aí a fisioterapeuta falou, olha, isso tá com cara de neuro muscular. Aí eu fui no SUS, aí no SUS eu descobri a distrofia muscular. Falei: legal, isso significa que? Super rara, né! E aí falou: significa que você tem uma deficiência que você vai perdendo força no seu caminho. Que que acontece? Todo mundo tem fibra muscular e quando você vai na academia, você nada mais faz do que acelerar a quebra dessa fibra muscular. E no lugar delas nascem novas, em camadas.
E por isso que as pessoas tomam whey, engerem whey, comem só frango, proteína. Para nascer novas. No meu organismo não nascem novas, então eu não posso quebrar as fibras que eu tenho. Então o meu organismo, ele funciona ao contrário. Tudo que pediam para eu fazer, tava piorando e ninguém me ouvia, entende? E foi ali que eu descobri, nas artes cênicas. Como o instrumento de trabalho do
ator é o corpo, eu naquele momento que eu tinha acabado de me formar, eu falei: eu não vou ter maturidade para me limitar. Sabe quando você está com sangue nos olhos? Eu já tava num grupo para viajar o nordeste. Sabe quando você tá com aquele tesão absurdo. Eu era a melhor aluna da faculdade. Enquanto no colégio eu era uma bosta, que eu tinha que ir para recuperação final, levava cola na recuperação final, para passar de ano, porque eu não entendia inglês, eu não entendia as minhas últimas, às vezes, física eu ia para a final. Na faculdade, eu era a melhor aluna, eu só tirava notão, só notão. Eu fiz aprimoramento de história da arte, aprimoramento de história de teatro, os professores me amava e tal. Eu era a melhor aluna. Eu tava com aquela coisa… eu quero viajar para o mundo e tal. Aí vem isso. Você vai ter que limitar seu corpo. Eu falei: eu não vou ter maturidade para limitar. Em paralelo, a gente tava sendo despejado de casa. Aí eu falei: meu… Em paralelo a cota no mercado de trabalho, abrindo e dando oportunidade de você ganhar R$ 2.000,00, R$ 1.800,00, sem diploma para PcD, porque o mercado estava querendo.
P/1 – Como foi esse momento de abdicar de um sonho e descobrir que você era uma pessoa com deficiência? E também no momento do despejo, como lidar com tudo isso?
R – Acho que foi um momento muito duro da minha vida. Mas eu acho que o momento mais… O que tava de mais duro nesse momento aí, eu tava vivendo um término de um relacionamento, que para mim era muito importante, com o João. Ele tava terminando comigo por causa do teatro, porque na peça que eu estava fazendo eu beijava uma mulher e tal. E ele… o João terminou comigo. E o João era… depois eu entendi um monte de coisa aí. O João era irmão do Chico, e o Chico ele morreu no período da faculdade. O Chico ele gostava de mim, mas quando ele morreu ele namorava uma amiga minha. Então quando ele morreu ele não gostava de mim, mas antes ele gostava de mim. E eu não dei bola pro Chico. E quando o Chico morreu, eu fiquei com o irmão dele. Então muita coisa mal resolvida aí, entende? E aí o João terminou comigo, foi nesse mesmo período. Então foi o término, foi a deficiência, foi, foi tudo. Foi um momento muito duro! Mas descobri a deficiência foi um alívio, porque a culpa não era minha. Primeiro, quando o cara falou da deficiência, ele falou: você tem uma deficiência. Eu falei: ok! Eu falei: beleza! Eu não sou preguiçosa, eu tô fazendo certo. Porque eu me culpava muito, por não estar conseguindo fazer as coisas, por ser gorda. Você não tem noção o que eu me cobrei nessa vida, até 19 anos. Você não tem ideia! E eu falei: ok! Ta tudo bem! Pequena garota. A realidade é outra. Segunda pergunta que eu fiz é se eu podia ter filho. Porque eu queria ser mãe. Falou: pode, mas você não pode ter parto normal, porque a pressão para tirar, pode ser que não volte os seus músculos daqui. Aí eu fiquei um pouco chocada, né! Puta, se abrir pelo que vai descer não volta. Aí a minha terceira pergunta foi, se eu preciso me preocupar com o que sai, eu também preciso me preocupar com o tamanho das coisas que entram? Legítimo né. Ela falou que não. Tá tudo bem, então! Vida segue! Foi um momento muito difícil, mas eu tive… eu tava em tratamento na AACD, foi o primeiro momento que eu fiz terapia, então eu tive apoio, que foi legal. Fiz TO, fisio, fisio aquática, terapia ocupacional, terapia. E o apoio da minha mãe. Só! E tudo de graça, AACD é SUS. Enquanto isso fui trabalhar na AACD também. Quando você está numa situação dessa, você não tem muito que pensar, sabe? Tipo, você tem que agir, você vai e faz. Então, assim, foi um misto de sensações. E a questão do teatro eu até hoje eu não trabalhei essa questão, eu até hoje não olhei para isso, porque se eu olhar o tamanho desse rombo. E você quer saber por que eu não olhei para isso? Porque vai voltar, porque não tá resolvido. E eu tô escrevendo uma peça, a parada PcD já é um movimento de colocar os artistas, tal, tal, tal. Eu tô… eu realizei de muitas formas também, esse negócio de palestras que eu faço, trabalhar com… eu comecei com business partner, depois eu fui para o desenvolvimento organizacional, que trabalha essa questão de transformação cultural. Isso tudo é artes cênicas, trabalho em grupo, isso é percepção do outro, isso é generosidade, isso é você tá em função de algo maior, isso é você trabalhar reflexão do outro, você fazer palestra, isso tudo é artes cênicas. Então eu continuei realizando isso de muitas outras formas. E o meu encontro com a arte, ele vai voltar, porque eu não trabalhei, tipo, parei. Porque se eu trabalhar, parei. Isso acaba com a Julia, entende? Então isso não é uma opção de olhar, isso vai sendo trabalhado de outras formas e isso vai voltar, vai voltar!
P/1 – Julia, você quer contar pra mim a primeira vez que você subiu num palco, o que que você sentiu?
R – Me senti em casa! Me senti viva! Pavorosamente viva. Mas foram muitas barreiras.
P/1 – Julia, eu queria saber se algo mudou da infância para adolescência?
R – Mudou muita coisa, porque minha infância foi muito rica, de coisas boas, de riqueza, de detalhes de alegrias, de segurança, de acolhimento, de amor. E aí quando você vai para a adolescência, você vai para o mundo. E aí você vai para a escola, você vai para um mundo de inseguranças. Eu que sempre fui essa pessoa que vive para os outros, que queria pertencer e tal. Você vai para um mundo onde é você por si, onde você não tem a sua mãe, onde você não tem a sua irmã, sua família. É muito louco! E aí na adolescência eu tive algumas… Eu só andava na ponta do meu pé, que foi o meu primeiro sintoma da deficiência e eu comecei a engordar muito, na minha na minha adolescência. E isso começou a pesar muito na minha vida, porque a questão da gordofobia pegou muito pra mim, muito. Eu lembro de eu com 7 anos fazer pedido de apagar a vela do bolo, para emagrecer. Isso tomou muito conta… Porque a minha mãe sempre foi muito encanada com isso, a minha tia, as minhas primas. Eu lembro de eu ir para as férias, eu ia com a minha prima andar na praia para a gente emagrecer. A minha prima Fernanda, essa é a minha cara metade. A gente é… E aí tem a Vitória, que é a mais nova, que é a mais magrinha. E aí ela… E aí a gente, eu e Fernanda, que eram as mais gordinhas, a gente ia andar na praia para emagrecer e tal. E isso pegou muito na minha adolescência, porque eu estudei em colégio particular, onde tinham as meninas padrões. Eu era amiga dos meninos e eu sempre tive a síndrome da salvadora, então eu ajudava as pessoas que… Eu tinha uma passabilidade melhor, porque eu era mais gordinha, mas eu não era a mais gorda e eu tinha o olho claro, tal, então não era… Eu tinha, Ok! Então eu era amiga, eu era legal. Eu me fazia muito legal, eu tinha que ser muito atrativa, porque aí eu começava a observar quem eram as primas legais, as pessoas legais, o que que tinha que ser para ser legal, então eu tinha que me tornar atrativa de alguma forma. E eu ajudava muito as pessoas que sofriam bullying, as mais pesadas. Então eu era a salvadora, eu arranjava briga, eu era encrenqueira, eu era… E aí eu só pisava na ponta do pé, eu era muito zoada por isso, eu tinha dificuldade para subir escada. E aí eu já comecei a sentir essas dificuldades do pertencimento, sabe? Eu lembro que eu só subia escada sentada quando eu era pequena, e aí as mães do colégio reclamaram. Chamaram a minha mãe na escola, pediram para eu parar de subir sentada, porque todas as crianças estavam subindo sentadas também e tavam voltando da escola com o uniforme sujo. Então, assim, o que que é ser diferente? Você tentar estar numa estrutura, e aí as pessoas… Você entende o que é não pertencer, porque quando você é pequena as mães já cobram de não pode, porque essa não é uma estrutura correta. Mais velha eu já sendo gorda, me chamando de gorda, isso é errado, e aí eu já me cobrando lá me enquadrar no padrão. Eu já fazia esportes, jogava handebol, eu fazia… Eu era super envolvida no coral da escola, eu tava envolvida em tudo, porque eu não ia parar, eu não ia deixar que as pessoas lá… Enquanto eu tava lá no handebol, mesmo sendo defesa, não sendo a melhor, as pessoas lá na plateia… Não é platéia, né? Torcendo, a torcida, enquanto tava jogando, tava falando, “pisa com o pé inteiro no chão gordinha! Pisa com o pé inteiro no chão, sua gorda!” E eu não ia deixar isso afetar, eu não ia parar! Não ia ser isso que ia me parar. Mas você já entende o que é não pertencer, você já entende o que é querer não ir para aquele lugar. Eu chorava para ir para a escola. Isso, claro, dificulta todo o seu aprendizado, dificulta o seu processo. Porque enquanto as pessoas estão lá se concentrando, você está lá pensando se você é aquela pessoa que vai ser a próxima a ser zuada. Quando você vai sentar na cadeira vai todo mundo levantar, na hora que você vai sentar, entende? Então você já entende o que é se esforçar para querer pertencer. Eu já era bi, eu já era fluida. Todos os primeiros beijos das minhas amigas, que hoje são casadas, lésbicas… Minha mãe descobriu que eu era bi quando eu namorei a mulher que eu casei, que depois… que é um homem trans, hoje. Mas quando eu casei ele não tinha feito a transição. Eu só assumi a minha bisexualidade quando eu namorei com uma mulher, quando eu já sustentava a minha casa. Mas eu já era eu bi, eu já beijava todas as minhas amigas. E quando eu falei para minha mãe, ela falou: será que na época das suas amigas… Quando eu tinha meus 30 anos, 29 anos de idade. “Será que na época das suas amigas… Eu falei: mãe… Primeiro beijo de todas as minhas amigas fui eu que dei, entende? Porque eu já era bi, mas eu não falava que eu era bi, porque eu nem sabia, eu nem queria cogitar essa opção, porque eu já tirava nota baixa, eu já era gorda, eu já era… já pisava na ponta do pé, eu já era PcD. Eu já ia trazer… “você é sapatão também?” Saca! E por mais que pese, fale: ah, não é um problema, não é… É mais uma camada social sim, é mais um intersexualidade, é mais um problema sim, porque quase são os indices de suicídio? Quais são os índices de não aceitação da família? Minha mãe me aceitava daquele jeito. Mas era mais uma coisa que eu não sabia se eu ia ser aceita. Quantas pessoas LGBTs são expulsas de casa? Eu não sabia como que ia ser. Porque eu tinha uma irmã também que tava tudo certo. Eu ia trazer mais essa? Então, assim, era esse embrolho de coisas, mas que me deu muita coragem, sabe? Que eu falei: ok! Se eu passar por isso aqui eu não vou parar, sabe? E eu não parei. E alí eu entendi que eu poderia anunciar melhor numa coisa, mas eu poderia desenvolver outras. E eu me entendi muito legal! E aí eu me entendi muito legal! E aí eu me entendi muito… uma pessoa que podia ser gorda, que podia ser… Mas que era muito querida e que era era muito necessária naquela escola. E eu saí dali triunfante, sabe? Mesmo zoada, mesmo não querida por aquelas pessoas para ser beijada, pelos meninos, mesmo… Ah, eu vivi muito ali, foi muito legal também!
P/1 – Tem algum professor, alguma professora, não precisa ser da escola, pode ter sido da faculdade também, que tenha sido marcante?
R – Vários! Vários! Para você ter ideia, nesse meu colégio, no terceiro colegial, a gente fez homenagem para eles, eu e as minhas amigas. Eu tinha um grupo de sete amigas, até hoje eu converso bastante com quatro delas, três, duas. A Mari G, que é minha agente e a Juliana Brunelli, as duas são… a Mari e bi e a Juliana é lesbica. Maravilhosas! E desse grupo, a gente fez uma homenagem para os professores, último ano, no terceiro colegial, entrando tocando violão, entregando rosa, cantando… Eu tenho tanto para lhe falar, mas com palavras… A gente sempre valorizou muito o que esses caras faziam, eles muito significativos. Tinha a professora Tânia, que tava cansada já de dar aula, então ela dava trabalho pra gente, a gente conversava com ela a aula inteira. Professora Lídia de literatura, ela me ensinou amar história, através da história da literatura. A gente fazia trabalho do Alto da Barca do Inferno, fazia gravação nos castelos de criança no playground. A gente aproveitou aquilo ali, os professores… O Vanderlei, que na quinta série eu falei para ele, “você é meu professor, eu pago seu salário.” Ele me colocou num lugar ali e me ensinou matemática, era fera. Ele me colocou num lugar ali, que deu na cabeça ali… Os caras que eu mais amo na minha vida. Então uns caras ali que me deram uma lição de vida. Aí na faculdade veio o Guera, Antônio Carlos Guerra, veio Juliana Jardim, de interpretação da arte. O Guerra era de história da arte, história do teatro. Ele dava aula parecia que era um palco, cada aula um palco. Ele não se atualizou não, os slides dele era daqueles claque, claque. Ele levava aquelas coisinhas dele, mas cada aula dele era uma peça de teatro. Caralho! Eu fiz aprimoramento com ele, repeti todas as aulas de novo, para ouvir tudo de novo, um gênio. Juliana da arte, interpretação de… aula de interpretação, ela tinha um autoconhecimento que você não entende, vinha coisas de técnicas, de clau______ E história de vida, esses caras formaram gente. Professor tem que ser muito valorizado, muito valorizado. Não é, né? Cada professor que passou na minha vida… não foi um não, todos eles me ensinaram, até pessoas que eu não gostava. Até os que eu ficava na aula inteira só prestando atenção na babinha aqui, me ensinaram coisas, porque estão lá batalhando, os caras são foda mesmo. Todos eles me ensinaram uma coisa, até os que eu odiava, até os que pegaram a minha cola e me deram zero, me ensinaram muito.
P/1 – E nessa época da adolescência, eu queria saber se você… Pelo o que entendi que você falou não tava tão claro para você que você era bi. Assim, você já sabia, mas não falava isso, né? Se tinha referência de outras pessoas LGBT perto de você? Ou era uma coisa distante, na televisão…
R – Muito distante! Na minha adolescência, não tinha referência, eu fui ter na faculdade, nas Artes Cênicas. Mas na adolescência, não! Que a gente tinha de referência na televisão eram aqueles estereótipos LGBT, gay que é o engraçado, o que tá ali para… o figurante. As referências eram muito rasas, você não tinha… De mulher, então? Não tinha! A minha primeira paixão, que eu entendi, que eu falei: eu gosto de mulher! Para você ter ideia, era de cantoras. E a minha primeira paixão foi a Cássia Eller. Essa mulher quando morreu, eu entrei luto, que tu não tem ideia. Eu era fissurada pela Cássia Eller, eu me masturbava pensando na Cássia Eller. Eu era louca por essa mulher. Foi a primeira paixão! Eu falei: opa, tem alguma coisa aqui. Mas eu desde pequena, eu pegava as minhas primas, eu sempre fui muito fluida. E pele, eu nunca tive essa noção de… eu tive que ter a noção de que não pode e sim de… Entende? De que “ô, esse aqui é menino, menina”. E aí que eu fui…. aaaaa, entendi! Mas na minha concepção, “mas pera aí, é bonito, é pele, é gostoso, é pepeca? Qual que é o rolê? É pele? Entende? Eu tive que trabalhar a concepção de que, “ah, a pessoa se entende hetero?” Eu tive que entender a cabeça hetero. Entende? Porque na minha cabeça sempre foi amplo, sempre foi, pode! Pra mim funcionou… teve que funcionar ao contrário. Mas de referência, de… Não! E não se falava. A Cássia Eller é lesbica, a Cássia Eller pega mulher, A Cássia Eller é… Era uma coisa meio, “hum, caminhoneira!” Uma coisa meio… Não se falava sobre. Começou a falar quando ela morreu, na guarda do Chicão. Aí começou a trazer a pauta. Mas foi muito depois, eu era adolescente ainda. Então não era uma possibilidade. Então eu ficava com as meninas, não era uma possibilidade de eu explorar essa sexualidade para um relacionamento, era uma brincadeira. Era… Eu conheci muitas mulheres apaixonantes na minha vida e muitos caras babacas. Eu me apaixonei por várias e nunca me apaixonei por nenhuma. Qual que é o inconsciente disso? E aí foi depois de grande que… aí a possibilidade de um relacionamento é possível. Foi quando eu me tornei dona de mim. Mas antes disso era brincadeira. Mas era bom! E aí depois você fala, porra, se é bom… E depois de grande…
e saudável. O que que eu tô fazendo da minha vida?Aí realizei, casei! To feliz pra caralho!
P/1 – Qual foi seu primeiro emprego?
R – Meu primeiro emprego… meu primeiro emprego, formal, foi de estagiária, eu era… eu trabalhava no teatro da Universidade São Judas Tadeu e era pra eu pagar a minha faculdade. E aí eu fazia peças durante o dia… Como que funcionava. Era muito legal esse programa da faculdade, a gente montava peças de obras de literatura que caiam no vestibular, então os alunos do ensino médio vinham conhecer a universidade, no final assistia essa peça de uma obra literária. E eu fazia artes cênicas no curso e de manhã fazia parte desse grupo do marketing da Universidade, de estágio e fazia essa montagem dessas peças. Então eu fazia iluminação, peça…
De manhã ou à tarde era montagem de peça de teatro e à noite eu estudava. Esse foi o meu primeiro emprego.
P/1 – E o que você fez com o seu primeiro salário?
R – Era para a minha faculdade, total! Era bolsa total.
P/1 – Depois que você saiu das artes cênicas e você teve várias questões que aconteceram ao mesmo tempo. Como que seguiu sua vida nesse momento?
R – Depois das artes cênicas eu dirigi uma peça, chamada “A Mais Forte”, porque eu identifiquei que eu não ia conseguir aturar, por essas questões de limite. Eu falei: eu vou tentar dirigir, então. E queriam que eu dirigisse. Então me convidaram para uma peça, chamada “A Mais Forte” de Strindberg. Uma peça bem machista. E a gente fez uma montagem feminista para a época, pra época! Hoje eu penso nessa montagem, eu falo: caraca, que machista! Mas para a época era feminista Fizemos essa montagem, independente, lançamos a peça, foi muito legal, faturamos. Não muito, mas faturamos. Três mulheres, eu, Mariana Molina e Taciana Lacerda. Grandes amigas minhas até hoje. Uma atriz e a outra intérprete de tradução de línguas, de trabalhar com produção de texto, interprete. E aí fiz essa montagem, mas identifiquei que tava muito triste, porque tudo que eu aplicava de laboratório, tudo que eu aplicava… eu queria estar lá, eu queria estar lá. E aí me machucava demais. E aí, dali, eu em paralelo, eu comecei a trabalhar na AACD. E aí eu trabalhava numa escola na época que chamava escola Especial, ainda não tinha a lei pesada de 2022 para escolas… para acabar com as escolas exclusivas, essa coisa de institucionalização que veio da Europa, de colocar a pessoa com deficiência sempre a margem, sempre não incluída na sociedade, mas sempre um ensino à parte, uma questão a parte. Na época ainda existiam essas escolas especiais para pessoas com deficiência. Eu trabalhei na administração, na recepção dessa escola, lá em Santana, fazendo toda parte administrativa de controle, arquivo, essas coisas. E fiquei dois anos, um ano e meio lá e de lá eu pedi transferência para a central da AACD. E aí eu fiquei no SAMIR, no atendimento do SAMIR da AACD, atendendo as pessoas na central, que era 20 minutos de casa. Fiquei um ano e meio pedindo essa transferência para conseguir trabalhar na AACD de 20 minutos de casa. Eu ia para Santana que era uma hora e meia, aí eu consegui essa transferência. Aí eu fiquei dois meses na central, voltei a trabalhar na São Judas, telemarketing. Meu primeiro salário da AACD eu comprei um all star e dei R$ 300,00 para um mendigo. Eu tinha esse sonho de pá, na rua e ver a reação. Na época mendigo, agora morador de rua. A gente vai desconstruindo umas coisas, né! E aí da AACD eu fui para a São Judas, telemarketing, tive umas brigas por lá. E de lá eu fui para Bigforma, cai de paraquedas no RH. Participei do processo seletivo e tinha possibilidade de duas vagas e eu pedi para entrar na área de Business Partner. Aí trabalhei na Ernst Young, aí foi carreira de RH. E aí foi onde a Julia se fez. Porque eu entrei com a síndrome da impostora muito grande, porque eu entrei como cotista, todas as minhas pares é uma Bigforma multinacional, todas as minhas pares tinham diploma de psicólogas, administradoras, tinham inglês, espanhol. Eu tinha meu diploma de artes cênicas e nem sabendo o que era excel, tá ligado? Então eu não queria que ninguém soubesse. Na época eu andava, a minha deficiência é progressiva, hoje eu não tenho força, por exemplo, para levantar os meus braços e eu uso a cadeira de rodas, eu ando um pouco, mas bem devagar. Na época eu andava, então não queria mostrar a minha deficiência, eu escondia minha deficiência, porque bastava eu saber que eu era uma impostora, bastava eu saber que eu era… Na época não se falava de equidade, da necessidade de inclusão. Só botava as pessoas com deficiência pra dentro, entende? Então nem eu entendia o que era equidade. Eu falava: meu, sei lá! E aí eu escondia a minha deficiente, então se eu tinha dificuldade para levantar, por exemplo, eu só levantava quando não tinha ninguém naqueles staffs gigantes. Então eu demorava para ir ao banheiro. Uretra, é músculo, eu tinha vários escapes, eu fazia xixi na calça, levava roupa. Então eu passava por uma coisas que não precisava, entende? Mas eu fui fazendo uma carreira muito rápida, porque como eu disse, eu sou peão, então eu aprendo. Eu falo: ensina uma vez… E aí eu ia a mais, falava: o que que tem que fazer? Digitalizar? Então além de digitalizar eu organizava o arquivo, eu ia. Então eu entrei como auxiliar, em 6 anos me tornei sénior. Eu fiz uma carreira muito rápida, mas muito dolorida também, porque eu passei por cima de mim. Tinham escadas lá e eu eu caía demais, eu já devia desse momento ter aceitado a cadeira, mas tinha essa questão do preconceito, de quem vai me respeitar? Eu vou ser menos mulher, eu vou ser objetificada, a questão do capacitismo. Enfim, tinha tanta coisa ali. E eu não me respeitava como PcD. Eu não virava e falava: eu preciso disso para a minha equidade. eu ia, eu passava, eu madrugava, entende? Não empunha o que precisava para a minha equidade. Então eu passei por cima de mim e fui. Motorzinho, tá, tá, tá. Eu cobrei de mim com uma pessoa sem deficiência e fui cobrada também. Não houve inclusão em todos os meus processos e eu não me limitei para isso, eu não me respeitei para isso. Em todo meu processo da vida eu não descobri o que era amor próprio, eu tô aprendendo isso agora, na terapia, alimentar, entende? Mas aí eu fui! Dei tudo que eles queriam. Virei senior, aí de lá eu fui para um escritório de advocacia, porque eu era uma senior que ganhava muito pouco. Aí eu fui para o escritório de advocacia, dei um passo para trás, virei pleno, mas eu ganhava o dobro. Aí de lá eu fui para implementar a área de Business Partner, só que aí eu acabei trabalhando com desenvolvimento organizacional, diversidade e inclusão. Porque as dores de PcD, ouvindo as pessoas, tava linkado com muitos outros processos, com processo de remuneração, com processo de diversidade e inclusão, com o processo das pessoas… Então eu acabei ______acabei abraçando bem estar e saúde, acabei entrando em vários processos ali. Universidade de corporativa, porque tinha muitos gaps ali. Então eu acabei abraçando muita coisa. Eu fiquei 2 anos e do escritório de advocacia, eu fui liderar diversidade e inclusão numa fintech. E aí eu implementei a área de diversidade e inclusão, fiquei lá um ano e meio. E aí a fintech… E aí foi muito legal, a cultura da fintech acabou virando diversidade e inclusão, a gente fazia uma ação de diversidade e inclusão por mês, a gente deu aula de libras para toda a galera que queria fazer, a gente deu aula de liderança feminina para as mulheres, a gente deu…
A gente fez tanta coisa legal nessa fintech. Foi muito legal! Foi muito legal! As pessoas eram muito… Teve workshop, foi muito bacana. Aí teve uma síndrome da impostora muito grande também ali, entrei com um quadro de ansiedade muito forte, muito forte. Foi aí que eu comecei a fazer terapia. Porque é isso, foi o primeiro cargo de liderança, numa empresa nova, eles estavam muito ansiosos para ter uma líder. E aí eu entrei para querer fazer, para querer mostrar e provar. E aí a bicha trabalhou. E aí eu fiquei muito ansiosa. E aí depois entrou o quadro de depressão também. Mas aí quando a fintech… A economia baixou, não teve uma terceira rodada de investimento, fintech vendeu a solução e todos os profissionais, rua. E aí eu não consegui me recolocar. Tentei muito como líder, muito, muitos processos, processos gigantes, processo que eu cheguei até a etapa final, pra gerente e aí na etapa final, “a gente não vai, vai fechar essa cadeira. Isso tudo foi acabando com a minha autoestima, de eu chegar em entrevista às vezes, falar: seu nome? O que você fez em tal empresa? De minguar a segurança, de eu esquecer quem eu era, de eu… Acabou comigo mesmo. E eu trabalhadora, se o mercado não me queria mais como líder, como analista, com a metade da metade do salário, quem era a Julia, saca? E aí o bicho pegou. E aí a depressão veio! A segurança… Mas o que rolou e que em paralelo eu já era palestrante, eu já palestrava quando ninguém queria palestra de PcD, ninguém pagava pra mim. “Não, vou de graça, vou conscientizar de graça.” E a pessoa falava: você é louca, dá palestra de liderança. O pessoal tá comprando. Não, palestrar de conscientizar PcD. Porque é isso, quando eu comecei a me envolver no curso comitês, era exatamente pra… quando eu comecei a crescer e me consolidar na carreira, eu fui entendendo o papel determinante de… o meu diferencial era minha individualidade, era eu ser mulher, era eu ser bisexual, era ser PcD, era isso que me conectava, era isso que fazia de mim a profissional diferenciada que eu era. Então era isso que me humanizava, eram as minhas vulnerabilidades que eram as minhas forças. Então que dizer, eu não podia continuar escondendo e eu tinha que construir um mundo melhor para quem vinha depois, então a gente precisava conscientizar. Então eu dentro dos meus ambientes de trabalho, comecei a me envolver com comitê, comecei a questão do orgulho PcD, comecei… orgulho bisexual, comecei… Porque aí eu comecei a namorar o Tiago, antes da transição, assumi dentro do trabalho, que eu era bi, tava namorando com uma mulher. E aí começou a militância. Só que aí quando eu fui para o escritório de advocacia e as_____ começaram a pedir para eu entrar em todos os comitês. Pessoal de marketing se sentiu atropelado e a minha líder pediu para eu sair de todos os comitês. Isso me pegou! Porque eu falei: você tá me tirando o meu maior propósito, meu. Não faz isso! E aí veio a pandemia. E aí encurtaram a minha jornada por causa da pandemia. Meu, eu tô com os maiores projetos, vai encurtar a minha jornada, me tiraram dos comitês. Aquilo ali… Aí começou o novo normal, o novo normal, novo normal pra quem? O que que vai ser o novo normal quando voltar dessa pandemia? Porque as pessoas vão voltar, desse processo de exclusão, desse processo de isolamento, mas as pessoas com PcD, as pessoas com deficiência, vão continuar onde? E aí isso começou, aí eu comecei a criar conteúdo. Falei: você não vai me deixar dentro? Eu vou começar a falar. Aí eu comecei a fazer vídeo. Aí o vale PcD tinha começado a fazer conteúdo em 2020 e eu comecei a criar conteúdo. Aí o meu ex e a minha mãe mandaram meus vídeos para o Vale PcD, falou: conhece a Julia, conhece a Julia! Aí o vale PcD me chamou para uma entrevista, uma entrevista de vídeo, aí eu fiz um vídeo para eles. Aí do devaneio PcD, que era o que eu fazia, eles chamaram para ser uma coluna dentro do Vale. E aí eles me chamaram para integrar o Vale. Naquela época não tinha Colab, aí você tinha que escolher, ou eu faço conteúdo para a minha página ou para o Vale. Eu fui para o Vale, porque é coletivo. Eu sozinha. Ali tinham várias pessoas com deficiência, eram quatro, na época era a Pri, o Lipe, que morreu de covid e o Manu e eu. Na época tinha mil seguidores na página, nem 1000 seguidores, hoje a gente tá com 17.000. E a gente começou a criar conteúdo anticapacitista tal, tal, tal, tal. Porque veio a pandemia e a gente queria criar espaços acessíveis para pessoas com deficiência no ambiente LGBTQIA+, que o Vale PcD é um coletivo de pessoas LGBT com deficiência. E a gente queria caber as pessoas com deficiência nesse espaço LGBT, não tem, não tem essa representatividade, então será que as pessoas estão vivendo essa sexualidade, será que elas estão com direito da intimidade, será que elas estão indo além. E aí a gente queria criar esses espaços acessíveis, mapiarr esses espaços LGBT acessíveis, mas aí veio a pandemia e todos os espaço fecharam. A gente começou a criar conteúdo e foi, foi, foi, aí começou a crescer. Só que… aí quando o Vale começou a crescer e eu desempregada e eu naquele momento de fazer palestra, quando ninguém queria comprar, fiz de graça, comecei a consolidar a questão de palestra, começaram a comprar. Então comecei a vender palestra… primeiro de graça, depois 200, depois 500, 2. E aí foi, cresci. Aí comecei além de palestrar. E aí no Vale PcD a gente crescendo com criação de conteúdo, ouvindo a comunidade, quais eram as principais necessidades. Eu sobrevivendo na parte de RH, Pri sobrevivendo na parte de psicóloga, ela é psicóloga. Manu sobrevivendo na parte de eventos. Enfim, a gente ouvindo a necessidade da população, a gente começou a criar soluções para a população, para apoiar a população. Então começamos a desenvolver palestra para população desenvolver a marca pessoal, psicoterapia para a população apoiar… e aí a representatividade PcD atuando no atendimento PcD, nessa parte de saúde mental, começamos a criar a plataforma de mapeamento acessível. E aí a gente começou a crescer e virar uma ONG. E aí dali… nesse momento que eu fiquei desempregada, não ser contratada e na depressão e tudo. Eu falei: pô o mercado não tá me querendo como CLT, mas eu tenho um PJ aqui que eu tô palestrando e eu tenho a minha ONG, terceiro setor. E aí eu foquei total no Vale e agora a gente tá… Tô diretora do Vale e a gente tá com Business há um ano, trabalhando no Vale terceiro setor, então a gente tá com esses três pilares aí principais. E aí trabalhando mercado de trabalho, parte de palestras, painéis, consultoria, parte de condição de comitês, a partir de divulgação de vagas, que a gente é uma puta de uma vitrine, uma grande vitrine. A parte de psicoterapia, vendendo também condução de rodas de conversa de pertencimento, vendendo palestras de saúde mental, vendendo convênio com empresa. E a parte também de consultoria de eventos, a gente já fez a virada do Futuro, que foi o Lula, a gente que fez acessibilidade da posse do Lula, a gente que fez a acessibilidade do evento Biscoito, a gente já fez acessibilidade de vários eventos. E estamos crescendo, virando um grande terceiro setor aí de uma empresa que cuida de impacto social, mas que tem o lucro em cima disso, porque a gente é especialista e precisa sobreviver nesse mundo capitalista.
P/1 – Até então, até você encontrar o Vale, você tinha contato com outras pessoas PcDs LGBTs? Como foi… como se deram esses encontros? E também como você via isso dentro do mercado de trabalho? Como se deram os encontros e depois como você via dentro do mercado de trabalho em relação à inclusão mesmo de pessoas LGBT e PcD?
R – Não tinha! Não conhecia! Antes do Vale, não! A interseccionalidade começou a entrar na minha vida a partir do Vale. Já falávamos de interseccionalidade, mas no trabalho, assim, mas eu conheci pessoas com outras interseccionalidade, então falando de maternidade, eu tinha amigas mulheres, eu tinha amigas pretas, amigos pretos. Então eu tinha contatos com outras interseccionalidades, mas LGBT, eu tô tentando puxar na minha memória aqui. Não! Que eu conhecia só eu. Eu fui conhecer o pessoal de Recife, que foi o Vale PcD. Então eu conheci pessoas LGBT e pessoas PcD. E foi a partir do Vale que eu vivi essa interseccionalidade, mas só o fato de conhecer outras interseccionalidade, era um acalento, sabe? De falar de outras camadas, de falar de outras… isso já mostrava que não tô sozinha. Vocês também vivem camadas? Vocês também tem isso? Também… Sabe? Então isso já era uma introdução pra algo que eu vim passar a viver junto com o Vale. Mas pessoas LGBT eu fui viver com o Vale PcD, foi o meu amparo, foi o meu nicho de segurança, de… E er assim mesmo, as nossas reuniões, quando a gente se encontrava, era… até hoje é um lugar que a gente pode ser a gente, que a gente respeita as deficiências. A gente tem todos os tipos… a gente tem autistas, tem… E a gente trata neurodiversidade como deficiência também, apesar de não estar na legislação brasileira, TDAH, bipolaridade, a gente acolhe como, porque é diversidade. Então o nosso grupo é bonito assim e a gente respeita esses tempos e se comunica e faz… E é essa riqueza dessa diversidade que faz toda essas ideias, essas inovações e toda essa riqueza de soluções, sabe? Que a gente tem hoje. Não é um padrão de processo, não é um processo que você vai falar, nossa! É conhecido, mas é… faz sentido pra gente, é como funciona pra gente, tá dando certo! Porque é humano.
P/1 – Você estava contando que sua mãe falou quando você começou a namorar o Thiago: “Ah, será que não foram suas amigas?” Eu queria que você contasse como foi esse momento de começar a namorar com o Thiago? Tudo que estava passando na sua cabeça? Como foi a descoberta? Não descoberta, mas a reafirmação da sua bisexualidade?
R – Foi tenso pra mim! Foi bem tenso! Porque é isso, eu tinha que falar para o mundo que eu era LGBT. E aí eu fiquei com medo, eu fiquei com muito medo, eu fiquei com muito medo. E pra cada pessoa que eu falava era um novo medo, porque eu não sabia o que… E aí eu fiquei com medo em dois locais, que foi a minha família e que foi o trabalho. Que o Thiago ele era do trabalho, então tinha um lance do conflito de interesse. Mas eu também já tava querendo sair da empresa e pra mim tava tudo bem. Mas eu tinha receio porque eu atendia muitos sócios, eu atendia 1.300 profissionais na época, na Ernst Young. E tinha muitos sócios. E eu tinha sócios do… Eu tava lá há 7 anos e eu trabalhei muito para conquistar todos eles. E o meu receio, eu tinha sócios dos mais tradicionais holandeses aos mais abertos, tranquilos, então eu tinha receio de como que essa empresa também ia me receber, sabe? E falei! E fui muito bem recebida dentro da empresa, pensei que eles iam me tirar da área, até meio que queria, que a minha líder, a gente… ela entrou depois e tinha umas rinchas ali. Mas me tiraram só da área, porque os outros sócios não queriam que eu deixasse de atender. Então deu certo, sabe? E a minha mãe, eu decidi contar para ela numa viagem de São Paulo para São José do Rio Preto, são 7 horas de viagem, 6 horas. Eu fiquei às 7 horas, “legal o dia, bacana…” E eu contei faltando cinco minutos para chegar, dez minutos para chegar. E a minha mãe ficou meio brava, minha mãe ficou meio… Ela falou isso das amigas, “eu já tava percebendo…”
Porque eu já tava saindo bastante com o Thiago. “Já tava percebendo esse movimento com o Thiago e tal, não sei o que lá” Aí ela ficou uma semana meio estranha comigo, meio cara fechada. E aí depois ela falou que o que mais chateou ela é de eu não ter contado nunca para ela, ela se sentiu traída porque ela era minha amiga. Mas sei lá, né!
P/1 – Eu queria saber como foi o momento de usar a cadeira. O que que você sentiu? Como que foi?
R – Essa daqui é minha amiga hoje, né! Mas foi complicado, eu demorei para aceitar ela. E eu deveria ter aceitado muito antes, porque eu me machuquei muito, eu já rompi muito ligamento, porque é isso, eu queria me sentir feminina, mulher, sexy. Nossa, eu era desequilibrada, não era o meu eu natural, não era meu nicho, eu não era segura. Aí depois que eu sentei, eu sou tão mais bonita agora, sabe? Tão mais feminina, eu tenho tão mais orgulho de mim, sabe? Eu queria que a sociedade entendesse isso, sabe? Eu queria que a sociedade olhasse pra mim e não quisesse me curar, entende? Porque há belezas e esse é o meu eu natural. E tá tudo bem! O problema está nos degraus aí, saca? O problema tá na forma de fazer essas mobílias, não pensam nessa diversidade de corpos e tal. Mas porra, depois que eu aceitei a cadeira foi uma libertação, eu vou e volto e vou rápido, eu corro, eu sou kamikaze, eu subo ladeira, eu capota. Eu já capotei da cadeira três vezes, de frente, de trás, de lado, eu sou violenta na cadeira. Porque ela é meu complemento, ela é a minha autonomia, ela é a minha equidade, ela é… ela é possibilidade. Mesmo que não tivesse, mesmo que eu tivesse parada, é minha forma de ser, a minha forma de existir, é minha forma de viver. Meu corpo é uma prisão que eu existo aqui. E tá tudo bem! Eu sou possível assim! Eu sou sexy assim! Eu sou gata assim! E se você não achar tá tudo bem também. Tem quem ache, tem quem coma! Tá tudo bem!
P/1 – Julia, eu queria saber se quando você começou a dar rolês LGBTs em São Paulo, se você se sentia acolhida e se você sentia que tinha acessibilidade?
R – Não! Não! Eu ia em um rolê em específico, por ter acessibilidade, porque eu ia muito nas festas da Gambiarra, porque era um evento de artistas, então amava! E aí eu ia muito quando acontecia na The Week, porque a The Week era mais acessível. Mas depois eles passaram o fumódromo para um lugar que tinha escada, e eu reclamei, falei um monte, mesmo assim… Porque PcD não pode fumar, PcD não pode beber, PcD não pode essas coisas. Eu cheguei a cair na escada, eu cheguei a cair na escada do Gambiarra e depois eu não fui mais. Não fui mais depois de um ataque de pânico que eu tive no Gambiarra e minha mãe entrou de pijama para me tirar. Porque é isso, porque esses eventos que são muito lotados e muito… não tem esse olhar para PcD, não tem, não tem esse cuidado, não tem, não tem, não tem esse cuidado, não tem… Então não tem esse cuidado, não tem essa acessibilidade, balcões baixo, banheiro acessível. Não tinha! Não tinha! Se hoje não tem, você imagina na minha época de adolescência. Então, na hora de eu subir escada, era, vai para reabilitação, na hora que eu tava subindo. A maioria dos lugares quando tinha escada era o segurança que precisava me levar lá no colo para ir para outro lugar. Mas é isso, você tira de onda, você brinca, você vai no colo do segurança, abraça ele, dá uma agarrada, tira uma onda. Mas, assim, não tá preparado e você passa a ser um evento de circo, porque a gente precisa entender que a sociedade é… O nicho LGBT é o reflexo da sociedade, a sociedade é capacitista. É isso! E o lugar do PcD é esse lugar de falta de afeto também. Quem quer beijar a pessoa com deficiência também? Quem quer ser visto pegando a pessoa com deficiência? E aí quando às vezes querem pegar pessoa com deficiência é aposta também, sabe? A zueira. Depois que pega comemora. Aí você vai beijar alguém, será que vão comemorar depois? Então, assim, os lugares não estão preparados e é por isso que eu tenho uma ONG para mapear esses lugares. Tanto na questão de acessibilidade, tanto na questão de cultura mesmo, de atitude, acessibilidade atitude_____, que a gente chama. Porque é isso, as pessoas com deficiência são marginalizadas por muito tempo, desde a época imperial, bobo da corte, palhaço de circo, aquele que você joga comida pra… Quais são as referências dos filmes? Quem são os monstros? Na vida real quem são? Então é isso! Então quando a gente tem todas essas referências na realidade, quem quer ser visto com? Quem quer estar? É uma quebra de paradigma, é algo muito grande. Isso reflete nas comunidades, as pessoas com deficiência elas não são incluídas dentro da pauta racial, dentro da pauta LGBT, dentro da pauta da maternidade, dentro da pauta de gênero, dentro da pauta… Não estão! Porque elas são invisibilizadas, porque elas nascem socialmente mortas, porque elas são um fardo social. Então para pensar e acessibilidade é caridade, porque é lei, é a última coisa. Porque não somos vistos nem como consumidores, nem como atrativo. É um paradigma muito grande para se quebrar. Não é pensado para, não é pensado… Mas é isso, pra gente quebrar isso é estando, é se mostrando, é botando o peito para o jogo e falando: tu ganha dinheiro comigo aqui também! Eu sou artista também! Eu vendo também! E aí tu tem que ser o pioneiro ali no rolê. Às vezes é bom. Aliás, muitas vezes é bom! Mas não estamos preparados, o mundo não está preparado.
P/1 – Julia, eu queria saber, se você quiser me contar, como foi seu casamento?
R – Foi lindo! Foi lindo e difícil! Mas foi lindo! A gente fez… a gente não tinha dinheiro. Então, assim, tava naquela situação… Nós duas éramos seniors na Bigfor, que ganhava mal. E aí a gente fez as contas… Porque foi assim, o Thiago, ele morava na periferia, extremo ali da Zona Leste, não sei se é extremo, Ermelino Matarazzo. E eu no Ipiranga. E aí ele já ia ver casa para morar, mas perto do trabalho, e aí eu falei para ele, “meu, você vai ver casa para morar, você sabe que eu vou ficar morando mais com você do que comigo, né!” Aí ele falou, “é, faz sentido!” Aí eu falei, “então deixa eu escolher junto.” Aí foi meio que assim que a gente decidiu morar junto. Aí a gente viu apartamento para comprar e apartamento para alugar. Aí ele me convenceu de alugar, porque valia mais a pena investir dinheiro… A gente fez todo o estudo, Marina Cury. Aí a gente alugou. E aí dava para ver metade do meu salário para a mesada da minha mãe e metade do meu salário para as contas. E aí ele… E aí deu! E aí a gente comprou tudo do zero, parcelado, geladeira, tudo, tudo. A gente pagou essas coisas durante, acho que dois anos. A gente ganhou só a televisão e o sofá. A televisão das minhas primas, a Fernanda e a Patrícia, de consideração, que é de sangue para mim. E minha madrinha, a tia Vera. E o sofá da minha irmã e do meu cunhado, Lucas, que é maravilhoso. Quando eu casei a Mariana_____
há muito tempo já, desde que eu tô junto com o Thiago também. Eles são super apoio na vida. E a gente casou no civil só, então a gente não fez uma grande… a gente chegou a fazer uma lista de casamento, aí a gente falou: quanto que daria uma festa? Perguntei para a Mari G, a minha agente. Ela falou… R$5.000,00 dá? Ela falou: amor!... Ela é RP, relações públicas. “Amor…” Aí a gente falou: tá bom! Então a gente fez no civil e fez um almoço pago para a galera. Acho que a galera pagou a bebida, foi algo assim. Foi num lugar. Aí a gente convidou só as pessoas bem próximas mesmo, tipo mãe, pai dele, minha. Ele não convidou o pai! Irmã, minha irmã e essas de consideração. E aí uma amiga dele e uma amiga minha, que não se conheciam e hoje são casadas, que a Mari G e Ciça, melhor amiga dele. E a mãe dele foi e saiu chorando, foi embora, não conseguiu ver. E a gente casou no civil, a gente ficou cinco anos juntos, Thiago e eu. Foram quatro anos namorando, cinco anos namorando e quatro anos casados, eu acho. A gente casou duas vezes, porque eu casei com ele antes da transição e depois eu casei com ele com o nome retificado.
P/1 – Queria que você me contasse um pouco da Parada?
R – Conto da parada! Ainda tô com o Thiago, pera! (choro)
P/1 – Você quer falar mais alguma coisa?
R – Faz quatro meses que a gente separou, quatro ou cinco. E aí estamos num grande luto ainda. Mas transformador na minha vida, amei demais! Ele também me amou demais. E acho que é isso, acho que é todo esse processo de pandemia, todo esse processo de insegurança com o trabalho, foi deixando tudo muito inseguro no casamento também. E às vezes as coisas não dão certo. Não é só de amor que se faz as coisas. Ou o amor também vai enfraquecendo, ou os amores reais são vão mesmo, são para ser em vão, como Gilberto Gil diz em Drão. Então a gente segue. Mas extremamente necessário na minha vida. E uma das pessoas mais incríveis também, que eu tive o prazer de encontrar. E que bom! Que bom que ele passou. Parada PcD! Parada PcD, ela surgiu de uma ideia em agosto do ano passado, em julho do ano passado e a gente realizou ela em setembro do ano passado. E foi dessa frustração de porque que os eventos deixam acessibilidade para o último momento, dá muito mais trabalho, você ter um evento todo e tem que desmontar para pensar em acessibilidade… Desconstruir as barreiras, porque acessibilidade é isso, é desconstrução de barreiras. Então, porque que as pessoas não colocam um Vale PcD desde o começo, pensando estrategicamente na acessibilidade do evento, pensando já nas pessoas com deficiência desde o começo, sabe? Por que que só lá no final quando pensam em lei, coloca? Por que que os artistas já não pensam nas pessoas e falam: pô, é importante, vamos colocar no budget. Por que que é sempre o budget final, a raspa do tacho? Isso começou a incomodar muito a gente. E aí… Como sempre, muitas coisas incomodam a gente. E aí veio essa questão de por que que a gente não faz esse movimento de rua, de levar as pessoas pra rua? E aí veio essa ideia minha dá… “Vamos fazer a parada PcD.” Porque já tem… porque não é uma ideia, ela copia como artista, já existe a parada LGBT, já existe. E porque não esse resgate nosso, de pô, somos artistas, somos consumidores, somos… produzimos, somos… sabe? O capacitismo surgir na época imperial, quando importava a maior fazenda e o maior exército que tinha que ir para guerra, que tinha que ir para uma forma de produção de massa, pô, naquela época, ok! Mas hoje você falar que a pessoa com deficiência não consegue produzir, uma pessoa com deficiência… Porra, temos intelecto, temos várias formas de trabalhar e cuidar de várias formas de trabalhar… Então, assim, temos que resgatar esse nosso orgulho, temos que falar desse… Não resgatar, mais apoderar… Quando a gente fala de apoderamento e tomar poder de algo que já é seu. Então precisamos falar disso! E aí vamos fazer a parada. Só que aí ficou muito em cima do tempo para a gente conseguir apoios, a gente tentou secretaria da pessoa com deficiência, conselho da pessoa com deficiência, secretaria da cultura. A gente tentou tanta coisa. A gente tentou patrocínio. A gente não conseguiu a ajuda de ninguém, obviamente, porque mesmo com tempo já seria difícil. Mas a gente não parou. A gente conseguiu artistas que falaram: vamos! E a gente fez! E foi incrível! Foi um momento de representatividade, de você se sentir…
Como eu posso dizer? É difícil a gente achar a palavra. Mas é um momento de pertencimento, sabe? De pertencimento! De pessoas ali com deficiência ocupando a Paulista, todo mundo passando ali e parando para ver os artistas com deficiência, a gente teve muitos tipos de artistas, com mais variadas tipos de música, tipo de arte. Teve teatro, teve palhaçaria, teve rap, teve… Enfim, uma festa de cultura, uma festa de… uma celebração do ser, de pertencimento, de encontro. A gente fez manifestação e vai ter documentário, vai sair bastante coisas aí. O ano que vem vai ter mais, a gente já vai fazer em Salvador, em Recife, São Paulo, Brasília e algumas outras coisas aí. A gente não vai parar! A gente vai… A gente vai falar de Orgulho PcD até cansar.
P/1 – E quais são os seus sonhos?
R – Eu não tenho sonhos mais. Eu só tô fazendo agora, Bruna. Eu não tenho mais. Talvez eu tenha, sei lá! Mas é… foram muitas coisas já desmoronadas e é difícil a gente falar de sonhos, expectativas, não é mais isso que me movimentou, não! Não é sobre o que eu quero, é sobre o que tem que ser feito. Eu só faço!
P/1 – Julia, qual é o legado que você deixa para o futuro?
R – É você que me diz Bruna. São vocês que me dizem. Acho que é… Eu acho que tá algo em torno de mais amor, sabe? Para dentro e para fora. A gente tá precisando, ainda mais depois dessa pandemia, dessa… desse luto mal cuidado. Acho que tá… Não é esse amor romantico não, mas tá nesse campo aí. Tá faltando! Esse neoliberalismo aí, as pessoas centradas, esse antropocentrismo, as pessoas centradas nelas mesmo, tá tudo errado! É muito antinatural, ninguém entendeu nada! Sabe o Caetano Veloso? “Entendeu nada! Entendeu nada!” É mais simples! Acho que é bem assim. Acho que é isso aqui ô! Acho que o legado não é meu não, o legado tem que ser nosso. Tem que ser sobre nós, não é sobre mim! Não tem que ser sobre mim.
P/1 – A gente já tá chegando ao fim, eu tenho só mais duas perguntas para você. A primeira delas é se eu não te perguntei alguma coisa que você queria contar?
R – Não!
P/1 – Como foi contar sua história hoje no Museu da Pessoa?
R – Foi muito acolhedor! Foi muito legal! Foi muito gostoso! Vocês são muito legais! Foi muito bom conhecer vocês! Foi um encontro que eu vou levar para sempre. Porque o Museu da Pessoa é sobre pessoas e eu pensei que ia ser muito sobre mim e foi, mas vocês não sabem o que houve daqui, foi muito legal conhecer vocês. Foi um encontro que eu vou levar para minha vida, então eu estou muito grata, eu tô… Eu não fiquei nervosa desde o começo, porque foi muito bem cuidado e muito acolhedor desde o começo, vocês sabem o que é humanidade. E eu saio daqui preenchida de afeto, gratidão e certa de que é isso que eu quero continuar encontrando na minha vida. Tem que ser sobre isso! Obrigada, obrigada!
[Fim da Entrevista]Recolher